Open-access RECEPÇÃO COMO ELO DA OBRA DE ARTE COM O MUNDO E COM A HISTÓRIA

RECEPTION AS A LINK BETWEEN THE ARTWORK AND THE WORLD AND HISTORY

RECEPCIÓN CÓMO ENLACE ENTRE LA OBRA DEL ARTE Y EL MONDO Y LA HISTORIA

RESUMO

Baseado na compreensão do artista Marcel Duchamp de que o público conecta a obra artística com o mundo exterior e, ao fazê-lo, contribui para sua incorporação pela história da arte, o presente texto procura delinear a cadeia na qual esse ato de recepção se inscreve. Para isso, recorre a análises provenientes de diferentes campos, a saber, da arte, filosofia, semiologia, sociologia e mediação cultural. Mobilizando os conceitos de “obra aberta”, “coeficiente artístico”, “regime estético”, “distinção” e “mediação documentária”, busca verificar tanto as possibilidades como as limitações de um tipo de encadeamento cuja universalidade é relativizada por incongruências socioculturais e de classe, que fazem com que a influência exercida pelos públicos nos rumos da arte seja marcadamente desigual.

artes visuais; história da arte; mediação cultural; públicos

ABSTRACT

Based on the artist’s Marcel Duchamp understanding that the public connects the artistic work with the outer world and, in doing so, contributes to its incorporation into Art History, this text seeks to outline the chain in which this reception act is inscribed. For this, it uses analysis from different fields, namely, Art, Philosophy, Semiology, Sociology, and Cultural Mediation. Mobilizing the concepts of “open work”, “art coefficient”, “aesthetic regime”, “distinction”, and “documentary mediation”, it pursues to verify both the possibilities and the limitations of a type of chain whose universality is relativized by sociocultural and class incongruities, which make the influence exercised by spectators in the directions taken by art markedly unequal.

Art History; Cultural Mediation; Spectators; Visual Arts

RESUMEN

Basado en el entendimiento del artista Marcel Duchamp de que el publico conecta la obra artística con el mondo exterior y, al hacerlo, contribuye para su incorporación por la historia del arte, el presente texto busca delinear la cadena en la cual ese acto de recepción se inscribe. Para eso, recurre al análisis de campos distintos, a saber, arte, filosofía, semiología, sociología y mediación cultural. Movilizando los conceptos de “obra abierta”, “coeficiente artístico”, “régimen estético”, “distinción” y “mediación documentaria”, busca identificar tanto las posibilidades cuanto las limitaciones de un tipo de encadenamiento cuya universalidad es relativizada por incongruencias socioculturales y de clase, que hacen con que la influencia ejercida por los públicos en los rumos del arte sea marcadamente desigual.

artes visuales; historia del arte; mediación cultural; públicos

Em conferência realizada no ano de 1957, em Houston, Estados Unidos, o artista Marcel Duchamp comenta as diferentes instâncias pressupostas ao “ato criador”, gesto que, segundo ele, envolve, além das iniciativas e mobilizações dos próprios artistas, as atividades exercidas pelos públicos na relação com as obras de arte. Seus apontamentos a esse respeito têm o mérito de abrir perspectivas acerca do decisivo papel desempenhado pelos fruidores dessas obras, ensejando indagações sobre o estatuto da recepção nas dinâmicas sociais e históricas desencadeadas pela arte. No trecho final de sua fala, publicada na forma de um breve ensaio, Duchamp anuncia que é “o público [quem] estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior” (DUCHAMP, 1975, p. 74), atribuindo à audiência uma responsabilidade que, a nosso ver, exige ser detalhada e, além disso, permite ser desdobrada para além daquilo a que se propunha o artista em sua comunicação – marcada por seu conhecido laconismo.

Imputada àqueles que dedicam sua atenção às realizações dos artistas e, desse modo, são capazes de fruí-las1, essa prerrogativa de conexão com o “lado de fora” da obra – com a experiência comum que se desenrola a partir e em torno dela – assenta-se, em contrapartida, na vocação polissêmica do próprio objeto de arte. Ou seja, é justamente o caráter plural e não determinado dos significantes colocados em cena pela obra que, mais do que possibilitar, solicita que os públicos assumam posição diligente e produtiva na operação por ela deflagrada e, por conseguinte, na sua existência pública, uma vez que essa existência depende diretamente da disposição destes em lidar com os sentidos conotados pela obra, interpretando-os e fazendo-os repercutir para além do seu domínio circunscrito.

Sobre essa condição em particular, Umberto Eco dirá, em Obra Aberta – estudo contemporâneo à conferência de Duchamp, publicado cinco anos após sua ocorrência –, que “a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua”, demandando, portanto, um tipo de “intervenção ativa do consumidor [sic]” para a sua consecução (ECO, 1986, pp. 22-23)2. Essa demanda provém do caráter conotativo do signo estético, desvinculado da “função referencial” das mensagens que denotam certa informação, nas quais significante e significado se associam univocamente, admitindo apenas uma interpretação. Conotativo, o signo estético abdica desse uso referencial da linguagem em benefício de sua “função emotiva”, que, conforme Eco, distingue-se por “suscitar reações no receptor”, no sentido de nele estimular associações e respostas “que vão além do simples reconhecimento da coisa indicada” (ECO, 1986, pp. 74-75, grifo nosso).

Esse “ir além” condiz ao movimento requerido pelo ato de recepção e fruição da obra artística. Se, como sugere o semiólogo, a obra realizada pode ser considerada como “ponto de chegada” para o artista – enquanto culminação do seu esforço de produção –, em compensação, ela funciona como “ponto de partida” para seus públicos, que, a partir dele, ensaiam “perspectivas diversas”, por meio de suas livres interpretações (Ibidem, p. 28). Para usarmos uma imagem diagramática, é como se, dessa área delimitada pela obra, os fruidores partissem em direção à suas margens externas, desenhando suas próprias linhas (interpretativas e performativas) para além do perímetro do objeto artístico3, mas mantendo-as ligadas ao seu marco originário, a obra, que passa a existir fora do seu domínio semântico e espacial – nos outros e alhures, ressignificada4.

Esse processo de transposição e produção de sentidos, levado a efeito pelos públicos da arte em seus ensaios interpretativos, se complexifica ainda mais quando consideramos, na esteira da abordagem duchampiana, que o “ato criador” porta um descompasso em sua gênese. Identificado como “coeficiente artístico”, esse desajuste estrutural reflete uma espécie de descontinuidade vigente entre a intenção que orienta a produção de uma obra e a sua concretização propriamente dita. Com isso, Duchamp (1975) revela que o caminho percorrido pelo artista para alcançar o seu “ponto de chegada” – a obra – é necessariamente acidentado, pois sua “luta pela realização” encontra uma série de resistências. Enfrentando-as, o criador se encontra enredado numa sequência de “esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões”, das quais ele sequer é plenamente consciente. Isso significa que a própria noção de “intenção artística” é problemática, uma vez que permanentemente relativizada pela “inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção” (DUCHAMP, 1975, p. 73). Depreende-se disso o quão aberto e entremeado se faz o jogo perceptivo, semântico e criativo proporcionado pela obra na relação com seus públicos.

A propósito da “abertura” intrínseca à obra de arte, Eco comenta que tal condição representa “uma constante de qualquer obra em qualquer tempo”5, associando à ambiguidade constitutiva do signo estético o entendimento, análogo ao de Duchamp, de que a obra artística traz consigo “disparidades entre projeto e resultado”, entre “o esboço do que pretendia ser e do que é de fato” (ECO, 1986, p. 25). Destarte, as obras com as quais os públicos se relacionam são menos a materialização transparente das decisões estéticas dos artistas do que objetos opacos e algo incertos, resultantes de operações que abrangem, conforme Duchamp, aquilo “que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente” (DUCHAMP, 1975, p. 73). O que o fruidor tem diante de si é, desse modo, um construto cujas qualidades – por não coincidirem completamente com as deliberações e expectativas de seu propositor e por se distinguirem pelo caráter ambíguo de seus significantes – o convocam a contribuir efetivamente com o “ato criador”, participando de sua dinâmica constituinte. O que envolve tomar as qualidades que tal ato reúne e organiza como índices a serem, mais do que “decifrados” ou “refinados” (Ibidem, pp. 73-74), interpretados e ressignificados. Trata-se, em outras palavras, de extrapolar o marco inicial assinalado pela obra.

Ao exceder os limites por ela demarcados – num movimento de resposta aos estímulos fornecidos pela obra –, o fruidor traz em sua interpretação uma série de aspectos condizentes à sua própria “situação existencial concreta”, de acordo com Eco. O “ato de reação” do fruidor é marcado, segundo ele, por “uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais”, o que, a nosso ver, dá ensejo para concebermos a obra como um hábil dispositivo disparador de discussões culturais, no sentido de provocar uma miríade de enunciados interpretativos por parte dos públicos. Mesmo porque, a validade estética da obra depende da possibilidade de “ser vista e compreendida segundo múltiplas perspectivas, manifestando riqueza de aspectos e ressonâncias”, aberta que é a “mil interpretações diferentes” (ECO, 1986, p. 40).

Nosso argumento se pronuncia mais claramente a partir deste ponto. Ele se baseia no entendimento de que a obra de arte, não se prestando a denotar/transmitir mensagens referenciais e unívocas, nem tampouco a servir como representante dos propósitos do artista, adquire um tipo de especificidade atrelado às suas qualidades estéticas. Por serem autônomas e desimpedidas de incumbências externas a elas, tais qualidades estimulam o engajamento interpretativo e inventivo dos públicos, compreendidos como partícipes do “ato criador”.

Fazendo ecoar a constatação de Duchamp, Eco dirá que, diante da obra, o interpretante é instado a “reinventá-la”, ao passo que ensaia um “ato de congenialidade com o autor” (Ibidem, p. 41). É nessa “relação de alteridade” entre fruidor e obra que esta adquire dimensão pública (Ibidem, p. 33), ao mesmo tempo que faz emergir questões e formulações do público. Interessa-nos jogar luz sobre essa concomitância, haja vista que ela funciona como “alavanca” para a inserção no mundo e na história – tanto dos artistas e suas obras como dos públicos e suas interpretações. A história da arte, nesse caso, não se encontra exclusivamente reservada à obra artística, abrangendo também, em consonância com o pensamento de Eco, “a história de suas interpretações” (ECO, 1986, p. 29).

ARTE NO REGIME ESTÉTICO

A autonomia das qualidades da obra artística é identificada por Jacques Rancière como aspecto distintivo do “regime estético da arte”. Seu advento remonta às postulações do Romantismo, na virada do século XVIII para o XIX. Em tal regime, a “forma é experimentada por si mesma”, já que não se trata de reduzi-la a veículo de enunciados prévios, nem tampouco de reverenciá-la como portadora das intenções do artista, mas de considerá-la como corpus com organização, densidade e valor próprios – algo que, via de regra, sobrepuja o projeto artístico que a gerou. O regime estético rancieriano discrimina, assim, “um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte”, postulando uma ontologia para esses produtos que, ademais, engloba seus critérios de recepção e fruição (RANCIÈRE, 2005a, pp. 32-34).

Importa-nos pensar o estatuto da recepção por meio desse regime tendo em conta que a sua definição se dá menos do ponto de vista da produção artística do que da interpretação “daquilo que a arte faz ou daquilo que a faz ser arte”. Isso quer dizer que a perspectiva proposta pelo regime estético não resulta exatamente das rupturas promovidas pela arte moderna, ou não apenas delas, mas da reconsideração – inclusive em termos retrospectivos – do que a arte faz, ou seja, daquilo que é singular em seus modos de fazer e, sobretudo, em suas formas de visibilidade. Trata-se de um deslocamento de nossas faculdades perceptivas, interpretativas e críticas, enquanto públicos da arte, manobra que nos viabiliza até mesmo “um novo regime da relação com o antigo”, visto que passamos a apreender seus exemplares por um novo ângulo, privilegiando certos aspectos em lugar de outros (Ibidem, p. 36)6.

Compreende-se esse “regime do sensível” como modalidade específica do visível e, assim, daquilo que é interpretável nas obras de arte. Rancière também o diferencia de uma apreensão habituada às “conexões ordinárias” da mensagem referencial, assim como o desincumbe de compromissos assumidos em outros tempos (e regimes) pela arte, tidos por ele como esteticamente anacrônicos. São eles: (i) a incorporação de funções e a indução de efeitos, (ii) a imitação de modelos ideais e finalísticos, (iii) a ordenação da vida comunitária, (iv) a adesão a cânones de representação e (v) a reiteração hierárquica entre o que é digno de representação e o que não é. Desvencilhada dessas e de outras convenções, a arte no regime estético se diferencia pela “potência heterogênea” de um pensamento tornado “estranho a si mesmo”, no qual se manifesta, entre outros paradoxos, a “intenção do inintencional” (RANCIÈRE, 2005a, p. 32), aspecto que encontra ressonância no “coeficiente artístico” aludido por Duchamp.

Tal “coeficiente” contribui para a singularidade da arte no regime estético, afeita ao permanente estranhamento de suas formas não somente em chave endógena, quando elas mesmas sustentam ambiguidades, mas também por parte dos públicos, que com elas se relacionam de maneira livre e heterodoxa. Logo, tanto a sua abertura como a faculdade de transpor os próprios limites, de sair de si, não se limitam às possibilidades de interpretação que proporcionam à audiência. De acordo com Duchamp, esses atributos eminentemente relacionais abarcam, também, o “veredicto do público” sobre o valor estético e social de determinada realização artística, assim como o seu reconhecimento e incorporação pelas gerações futuras; no limite, pela história da arte (DUCHAMP, 1975, p. 72). As consequências dessa compreensão acerca do protagonismo dos públicos nos processos de inserção social e histórica da obra de arte são deveras abrangentes. Tendo em vista o tom aforístico de Duchamp em sua conferência na Federação Americana de Artes, suas afirmações acabam por cobrar maior desenvolvimento, para que possamos compreender o mecanismo sócio-histórico que deixam vislumbrar.

O PÚBLICO COMO HISTÓRIA DA ARTE

Colaborar com esse desenvolvimento passa por indagar a noção de “público” e suas diferentes acepções. É o que faz o pesquisador e mediador Cayo Honorato em sua contribuição para o “Seminário Reconfigurações do Público: Arte, Pedagogia e Participação”, realizado em 2013, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sua intervenção – publicizada na forma de ensaio – se vale, entre outros, do texto aqui comentado de Duchamp, a fim de conceber a ideia de “público” não somente como instância formada pelo imensurável conjunto de espectadores das obras artísticas, mas também como o universo discursivo constituído por suas interpretações (HONORATO, 2013, p. 4). Assim, os espectadores e seus discursos interpretativos são propositalmente imiscuídos na designação de “público” – operação que nos leva a entendê-lo como um público discursivo, que se constitui na relação com a obra.

Tal acepção é derivada da máxima duchampiana sobre o poder do público tanto de ressignificar os feitos artísticos como também de valorá-los, ao “determinar qual o peso da obra de arte na balança estética”, de modo a influir na elaboração de seus sentidos e no seu ingresso, ou não, na história da arte (DUCHAMP, 1975, p. 74). Por metonímia, Honorato dirá que “o ‘público’ é também a história da arte ou a posteridade” (HONORATO, op. cit., p. 4), sugerindo que estas últimas representam extensões daquilo que os espectadores fazem com as obras, em termos de interpretação e valoração. Essa formulação do problema instaurado pelo “ato criador” nos auxilia a esboçar a seguinte cadeia de elos:

artista-obra-público-história da arte

Entretanto, a aparente coerência e linearidade dessa cadeia não devem nos distrair da necessária tarefa de lidar com suas incongruências estruturais. Distante de uma relação previsível e causal, nossa esquemática cadeia serve, antes, para desvelar a vigência de “uma rede complexa de múltiplas obras e interpretações, mais ou menos distantes no espaço e no tempo, que se entrecruzam e se referenciam, quando não se ignoram” (HONORATO, 2013, p. 4). Essa ponderação de Honorato permite-nos entrever o quão intrincada e descontínua é, na realidade, tal cadeia. A essa ressalva deve se juntar, ainda, a constatação de que as interpretações pessoais ensaiadas pelos públicos a partir das obras por eles escolhidas como objetos de fruição não gozam, entre si, do mesmo nível de visibilidade, reconhecimento e repercussão, muito pelo contrário. Até porque, “milhões de espectadores produzem interpretações, mas somente algumas milhares (se isso não for muito) serão discutidas publicamente” (Ibidem, p. 4).

Fica claro que a visibilidade das interpretações dos espectadores – elas mesmas tidas como “o público” da arte – não é algo dado, garantido, visto estar condicionada ao seu incerto reconhecimento por “pares” que, todavia, não partilham do mesmo círculo, repertório e legitimidade culturais. A despeito desses desencontros, dos quais falaremos a seguir, cumpre estipular como condição para a influência das interpretações no debate e historização da arte a necessidade “de serem referidas e sobretudo discutidas por outros que não [apenas os] seus próprios autores” (HONORATO, 2013, p. 4). Reconhecer esse imperativo implica, ao mesmo tempo, compreender que se trata de “uma visibilidade em disputa” (Ibidem, p. 4), processada em meio a hegemonias de diferentes naturezas – epistemológica, de classe, gênero, raça, procedência etc. Iremos nos ater, aqui, à hegemonia de classe.

Assim como as obras propriamente ditas, também as interpretações por elas ensejadas carecem da atenção e consideração daqueles que não somente o interpretante e seu círculo imediato, uma vez que o “ato criador” e a atividade criativa de seu congênere receptivo (o espectador que se engaja em tal ato) ocorrem como que por reverberação, alcançando a posteridade e sedimentando-se na história da arte à medida que, ultrapassando a esfera privada da relação íntima com a obra, logram produzir (ou contribuir com) um circuito público a partir e em torno dela. É o “revezamento das interpretações”, para usar uma expressão de Eco, que conforma tal circuito (ECO, 1986, p. 23). Sua constituição exige, na linha de raciocínio de Honorato, que se indexe, por um lado, “uma empiria de interpretações ou enunciados individuais” e, por outro, “uma instância discursiva de enunciação coletiva, aquela rede em permanente reconfiguração”, fazendo com que uma tome parte na outra, em “mão dupla” (HONORATO, 2013, p. 4).

DISTINÇÃO E INDISTINÇÃO NA ARTE

Porém, uma das dificuldades que esse processo enfrenta reside no fato de que os parâmetros e aptidões – sensíveis, linguísticos e estéticos – subjacentes a esses virtuais circuitos públicos não podem ser presumidos enquanto comuns, no sentido de não serem social e igualmente distribuídos. Esta, aliás, é uma problemática sobre a qual divergem dois autores que, a nosso ver, são cruciais para pensar o papel da recepção no âmbito da arte. Além de Rancière, reportamo-nos a Pierre Bourdieu, sendo que, à reflexão filosófica do primeiro, cabe justapor e confrontar a abordagem sociológica do segundo, a fim de verificarmos as possibilidades e as limitações da cadeia aqui testada. O ponto de discordância entre eles refere-se particularmente à compreensão do lugar social ocupado pela obra de arte e pela disposição em fruí-la, que, para Bourdieu, representam as “realizações mais acabadas da estética dominante” (BOURDIEU, 2013, p. 167).

Contrapondo-se ao que identifica como “ilusão do comunismo cultural”, o sociólogo desenvolve investigação de fôlego – repleta de aferições empíricas – a respeito das formas de “distinção” entre as classes sociais e suas respectivas frações, com ênfase nas práticas culturais adotadas por seus membros, algo que ele condensa na noção de “habitus” (Ibidem, p. 213). Entre as principais contribuições de Bourdieu para a compreensão das sociedades modernas e das lógicas de estratificação que as hierarquizam estão suas formulações em torno do que chama de “economia das práticas”, dando a ver que o pertencimento a uma classe não se deve apenas a questões de renda, posse e poder aquisitivo. Numa dinâmica de diferenciação pautada por “estilos de vida” que elegem determinados objetos e atividades, assim como cultiva certos gostos, os bens culturais e seus modos de apropriação (simbólica e material) funcionam, segundo ele, como instrumentos distintivos dos mais eficazes (Ibidem, p. 211).

Emblemas de distinção, as obras de arte corresponderiam a “objetos de uma apropriação exclusiva”, exigindo de seus públicos “disposições e competências que não são universalmente distribuías” (Ibidem, p. 244). Por não ser comum a todas as pessoas, os atributos que autorizam um tipo “legítimo” de fruição da obra artística representam, para a teoria bourdiana, faculdades socialmente “raras”, oriundas do amálgama de um conjunto de capitais (educacional, social, cultural etc.) acessível a parcelas restritas da população, destacadas por suas capacidades sensíveis, cognitivas e linguísticas – tidas como “propriedades” reservadas àqueles que integram classes e frações mais bem providas culturalmente. Aos seus membros competiria o posto de “detentores dos instrumentos de apropriação simbólica” da obra de arte, o que tende a colocar a aposta no “comunismo cultural” em xeque (BOURDIEU, 2013, p. 213).

Esse quesito nos remete de volta ao problema anunciado acima, de que os públicos (mais ou menos assíduos) da arte não participam necessariamente do mesmo círculo cultural, assim como não pertencem à mesma classe social – com todos os acordos tácitos e sinais distintivos que caracterizam tais círculos e classes. As diferenças e divisões daí decorrentes incidiriam não somente nos modos de fruição de espectadores provenientes de estratos sociais diversos, mas também na visibilidade e no reconhecimento das interpretações ensaiadas por agentes sociais cuja familiaridade com os códigos estéticos e cujo trânsito na esfera pública da arte são notadamente desnivelados. Uma das consequências esperadas dessa assimetria é que, embora os membros das classes e círculos tradicionalmente alijados da arena cultural consagrada possam nutrir interesse por seus exemplares, fruindo-os e interpretando-os como o fazem os habitués, ainda assim o que eles têm a dizer a respeito das obras, inclusive no que tange à sua valoração, padeceria da falta de atenção e interesse por parte dos que realmente gozam de influência no campo da recepção e da crítica de arte, permanecendo numa espécie de limbo.

Lidar com o problema por esse viés tem a ver com a busca por desmistificar a “ilusão estética” e a promessa de que todos possam participar de maneira equânime de suas realizações, influenciando-as de algum modo. Na boca de Rancière, entretanto, essa expressão é usada não para endossar a perspectiva de Bourdieu, e sim para sugerir que a oposição categórica a tal “ilusão” bloquearia, por outro lado, a possibilidade de entendimento de uma “forma singular de liberdade e igualdade” inaugurada pela estética há pelo menos dois séculos. Nessa que condiz à terceira intervenção pública evocada por nós neste texto, realizada em São Paulo, no Sesc Belenzinho, em 20057, o filósofo se reporta nominalmente ao sociólogo, associando-o a uma corrente de “desmistificadores” que, ocupados em “nos dizer a verdade sobre a ilusão estética”, teriam se furtado ao trabalho de “examinar o paradoxo que estrutura o regime estético”, qual seja, a vigência de um comum politicamente fundado na “indiferença radical” (RANCIÈRE, 2005b, p. 3, grifo no original).

Cabe-nos, por ora, tentar compreender o que Rancière, ao falar da estética, chama de “igualdade indiferente” (Ibidem, p. 2). Nas antípodas da análise que Bourdieu faz do lugar hierárquico ocupado pela obra artística e pela disposição estética que lhe corresponderia, o filósofo se pauta inversamente pela ideia de “indistinção”, defendida por ele como aspecto inerente à arte no regime estético. Neste, o reconhecimento e a valoração da obra já não se encontrariam submetidos a critérios estipulados a priori, como os princípios gerais de produção, os gêneros temáticos mais e menos nobres, as linguagens e códigos identificados com a arte e a seletividade em sua destinação. Num enfoque despido de regras fixas e de gradações hierárquicas, as obras passariam a figurar

como habitantes iguais de um novo tipo de sensorium comum onde os mistérios da fé, os grandes feitos dos príncipes e heróis, um albergue de aldeia holandesa, um pequeno mendigo espanhol ou uma tenda francesa de frutas ou de peixes são propostos de maneira indiferente ao olhar do passante qualquer [...]. (Ibidem, p. 2)

O “passante qualquer”, no caso, é o visitante anônimo do museu de arte, equipamento cultural bissecular em cujas galerias se encontram agrupadas obras procedentes dos mais diversos tempos e lugares. Deslocadas de seus ambientes originários e destituídas de suas funções primeiras, elas agora aparecem recontextualizadas, dispostas mediante outra lógica de exibição – que preconiza sua dimensão estética. Mais do que isso, como aponta o filósofo, as obras ressurgem encarnando uma “nova forma de existência”, desimpedidas dos propósitos e compromissos que as geraram (Note-se que, à ambiguidade dos significantes da obra e ao seu “coeficiente artístico”, soma-se, aqui, mais uma torção, agora relativa à sua migração contextual).

Do mesmo modo que essa “vida nova” da obra reorienta a vocação e a destinação que a guiavam anteriormente, também os seus públicos, ao se depararem com ela no espaço de indiferenciação do museu, achariam oportunidade para suspender momentaneamente suas próprias condições, deslocando-se de uma identidade particular e de um lugar predefinido na sociedade. Esse sujeito temporariamente desidentificado, atraído pela coleção não em função da classe social a que pertence, mas como “um qualquer”, performaria papéis alheios aos de sua realidade material, funcional e sociocultural, ao passo que se relaciona com exemplares da arte tornados, eles mesmos, índices de uma redistribuição indistinta. É o que propõe Rancière quando afirma que a revivescência indiscernida da obra de arte no museu “se dá num modo de visibilidade que confunde materialmente a distribuição dos lugares e das funções”, promovendo com isso “uma experiência que confunde a relação funcional das identidades sociais” (RANCIÈRE, 2005b, p. 2, 4). Para ele, a arte seria o lugar não de reiteração da lógica distintiva, mas de uma virtual relativização e desordenação dos marcadores utilizados para estabelecer as posições de sujeitos e grupos na pirâmide social.

PÚBLICOS DOS PÚBLICOS

Ainda que, sobre as divergências entre as concepções de Rancière e Bourdieu, pese o fato de os autores desenvolverem suas teses em domínios diferentes do conhecimento, mediante o uso de critérios e procedimentos não coincidentes, ambas nos subsidiam, cada uma a seu modo, com novos elementos para pensarmos a pertinência da cadeia artista-obra-público-história da arte. Se, como propõe Duchamp, quem medeia a relação da obra com o mundo e com a história é, sobretudo, o público, então é necessário indagar, através de abordagens como as do filósofo e do sociólogo, o quão disposto e habilitado esse público se encontra para cumprir tal responsabilidade.

Como o “público” não deve ser tomado como uma abstração genérica, totalizante, cabe considerar sua pluralidade e, também, os desníveis que subsistem no interior dessa categoria, sem que, por outro lado, deixemos de tirar proveito dos oportunos embaralhamentos propiciados pela arte no regime estético. Em lugar de diluir as incompatibilidades entre as visões de Bourdieu e Rancière, cumpre, isto sim, sustentar as divergências e tensões que advêm do confronto entre seus pensamentos, inclusive como forma de evitar a aceitação (ou recusa) pura e simples da cadeia de elos até aqui delineada – do gesto inicial do artista até a inserção da obra na história, intermediada pela atuação dos públicos.

Das contribuições do sociólogo, importa reter o entendimento de que a fruição da obra artística, e a correlata disposição para tal, exigem capacidades e instrumentos desigualmente distribuídos entre os atuais e potenciais espectadores, conforme suas condições de classe – que envolvem, entre outros, aspectos como a assiduidade de acesso aos bens culturais, a quantidade e a forma de uso do tempo livre, o grau de iniciação aos códigos e rituais das artes e a experiência com estados de concentração. Além disso, mesmo que haja interesse e disponibilidade dos membros das classes e frações desfavorecidas (em termos de capital cultural) para fruir as obras artísticas integrantes da arena consagrada da arte, ainda assim suas interpretações e veredictos comumente sofrem da falta de atenção e reconhecimento por parte daqueles mais familiarizados com o objeto estético e mais apropriados dos protocolos institucionais da arte. Tal circunstância impediria a repercussão dessas formulações para além do interpretante e de seu círculo imediato, restando impotentes diante da necessidade de serem aludidas e debatidas por outros (habitués, curadores, artistas, educadores, jornalistas, críticos etc.), para que possam participar dos rumos da arte e de sua historização, de acordo com o diagnóstico de Honorato.

As reflexões de Rancière, por sua vez, oferecem uma importante chave para lidarmos de forma não monolítica e nem fatalista com esse cenário, pois nos levam a apostar numa zona de indistinção instaurada pela própria arte – esta que, em princípio, funcionaria como ferramenta de distinção social. Ou seja, o mesmo dispositivo que, em tese, contribui para manter posições e privilégios também abre espaços, nas maneiras como as obras são fruídas e interpretadas, para a performação de papéis e para a manifestação de enunciados que confundem essas prerrogativas. Assumir tal ambivalência solicita-nos, ademais, levar a sério e adiante a constatação de Honorato de que a visibilidade do público – leia-se: de suas formas plurais de recepção e interpretação – é algo “em disputa”. Envolver-se nessa disputa de natureza narrativa pressupõe a disposição de nos fazermos, enquanto mediadores culturais, públicos dos públicos.

Nesse papel, direcionamos nossa atenção para os públicos nas ocasiões em que estes se relacionam com as obras, a fim de encontrar, nas situações concretas, lastro para a verificação do “ato criador” como algo que não se restringe ao artista. Se a afirmação em torno da não exclusividade do ato de criação da obra é realmente factível, então quais seriam de fato as contribuições dos públicos para a consecução desse gesto coletivo, fundado na alteridade? Tentar sondá-las e repercuti-las condiz a sustentar a proposição duchampiana, nela investindo e, assim, evitando que se embote como simples retórica. Significa, em última análise, conferir-lhe consequência. Atuar nessa direção requer, da parte do mediador cultural, um estado de abertura e curiosidade diante da singularidade das interpretações dos públicos encarados em sua multiplicidade, abrangendo suas parcelas “não especializadas” e, também, “não iniciadas”, o que permitiria tratar seus enunciados como matéria de interesse e discussão em circuitos que, cumpre pontuar, necessitam ser criados e fomentados.

A adoção desse papel solicita, inevitavelmente, a inclusão de mais um elo em nossa cadeia, que, ao incorporá-lo, aparece munida de uma prática vocacionada a ampliar o espectro de contribuições dos públicos no processo de recepção e incorporação da obra pelo mundo e, quiçá, pela história: artista-obra-público-mediação cultural-história da arte. Com “mediação cultural” designamos uma instância colocada de permeio entre o “público” e a “história da arte”, caracterizada pela predisposição em considerar e repercutir tanto os efeitos produzidos pelas obras nos espectadores como as respostas destes aos estímulos por elas propiciados, que justamente os convidam para um envolvimento interpretativo e inventivo, assim como valorativo.

MEDIAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO

Um exemplo pontual desse tipo de disponibilidade pode ser encontrado na publicação que documenta o processo da exposição “A marquise, o MAM e nós no meio” (2018), com curadoria de Ana Maria Maia em colaboração com o Educativo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) e com O grupo inteiro – iniciativa na qual o time procura criar situações de intercâmbio entre o museu e a marquise do parque Ibirapuera, mais especificamente entre os códigos e práticas vigentes nesses ambientes (MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO, 2018). Nas páginas reservadas à reprodução das obras expostas – pertencentes, em sua maioria, à coleção do museu – os propositores trazem, em vizinhança aos registros fotográficos das peças, enunciados interpretativos provindos dos públicos e agentes envolvidos com o projeto, incorporando à edição preocupações convergentes às da mediação cultural. Nessa seção aparecem excertos de leituras produzidas a partir das obras por frequentadores da marquise, educadores e estagiários do Educativo MAM, estudantes, seguranças do museu, artistas, curadores e, ainda, pela bibliotecária da instituição. Entre esses registros, destacam-se os comentários de Caio Zanutto, ator e bailarino, acerca de Umbigo da minha mãe (da série Dor/Adversus Aestus) (1993), fotografia da artista Vilma Slomp:

A primeira vez que eu vi essa obra, eu achei que era uma pintura de uma caverna, ou de uma coisa saindo de outra coisa. Quando eu cheguei perto, identifiquei que era o umbigo da mãe da artista, e a imagem me “pegou”. A minha sogra é de Florânia, na região do Seridó, no sertão do Rio Grande do Norte. Eu tenho uma ligação forte com o centro dela e com as raízes dela no Nordeste. A foto do umbigo me faz pensar em vínculo e me leva a perceber que sou mais próximo da minha sogra do que da minha mãe, que nasceu no interior de São Paulo. (MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO, 2018, pp. 130-131)

Chama atenção, no relato acima, o modo como o fruidor é atraído pela imagem – e pelo umbigo retratado em close-up e em preto e branco –, com ela se relacionando, no primeiro momento, pela chave do enigma e, na sequência, por um viés declaradamente afetivo. Ao associar o motivo da fotografia com o vínculo pessoal que mantém com a sogra, o interpretante faz de sua leitura “a própria obra”, algo que na reflexão de Eco aparece como uma das faces da apropriação simbólica do signo estético. Identificada como “interpretação definitiva”, a leitura idiossincrática tem como sua contraparte a provisoriedade, no sentido de que sempre poderá ser revista e incrementada. Seu caráter “definitivo” a faz paralela e independente das demais interpretações, enquanto a condição “provisória” a expõe ao cotejamento com outras leituras sem negá-la, mas apontando para a complexidade da possível rede de interpretações em torno da mesma obra (ECO, 1986, pp. 64-65). Lidar com a oscilação entre os estatutos interpretativos “definitivo” e “provisório” corresponde, de algum modo, a fomentar a indexação defendida por Honorato entre as “intepretações e enunciados individuais” e a “instância discursiva de enunciação coletiva”, caracterizada pela “permanente reconfiguração”.

Com a inclusão de uma plataforma mediativa destinada a indexar, de um lado, as interpretações individuais/definitivas e, de outro, as leituras coletivas/provisórias, a dinâmica representada por nossa cadeia passaria a contar com um dispositivo destinado à visibilização e à discussão pública de interpretações oriundas dos diversos agentes, círculos e classes. Desse modo, acreditamos que a mediação possa intervir no cenário de assimetrias descortinado por Bourdieu, desnaturalizando as invisibilidades que o caracterizam e produzindo situações favoráveis à publicização de vozes e formulações que, de outro modo, não chegariam a circular para além de seu próprio núcleo – mas que, em linha com o raciocínio de Rancière, não deixam de ser proferidas por aqueles a quem supostamente não caberia especular sobre as questões da arte. Referimo-nos a um tipo de mediação de viés documentário8, dedicado a exercícios de escuta, registro, edição e veiculação de discursos engendrados pelos públicos na interação com obras artísticas e com as ofertas institucionais responsáveis por difundi-las.

INSTITUIÇÃO ARTÍSTICA: O ELO SUBENTENDIDO DA CADEIA

Esse novo elo inscrito na cadeia acaba chamando atenção para a necessidade de incluirmos ainda mais um, o qual, todavia, já se encontra subentendido no encadeamento em discussão. Trata-se da instituição artística, ela mesma um campo de mediações, relações de poder e produção de visibilidades e invisibilidades. Nela se encontram inter-relacionados – para além dos artistas e de suas obras – os museus, galerias, centros culturais, escolas, universidades, mecanismos de mecenato, colecionadores, curadores, críticos de arte, professores, marchands, jornalistas e arte-educadores, entre outros organismos e agentes, os quais influem diretamente na validação e difusão da produção artística. O público da arte também é parte constitutiva dessa instituição, que, sem ele, não teria razão de existir.

Sobre esse quesito devemos pontuar que “público” é menos um substantivo do que uma condição circunstancial, assumida por qualquer um, temporariamente, em função da atenção dispensada à obra de arte e aos processos a ela associados. Logo, todos os agentes aqui identificados com a instituição artística também performam o papel de público. Além do que, a incorporação da obra pelos organismos citados deve-se, antes de tudo, à sua receptividade por parte de tais agentes, na condição de públicos de “primeira mão”, diríamos.

Por esse motivo, talvez não seja o caso de conectar “instituição artística” e “público” com hífen, já que o segundo se refere a uma instância integrante da primeira – ao menos em parte. Em lugar desse sinal gráfico podemos testar o uso de outro, o til, valendo-nos do seu efeito visual para nossa cadeia:

artista-obra-instituição artística~público-mediação

cultural-história da arte

Ainda que “instituição” e “público” se sobreponham, isso se dá apenas em certa medida, haja vista que a maioria das pessoas que performam a condição de público da arte – os chamados “visitantes” – não chega a exercer influência direta e efetiva sobre a instituição que respalda a produção artística. Isso fica patente, por exemplo, nas escolhas e decisões que balizam as coleções e programas dos organismos de difusão dos bens artísticos. Pode-se, então, designar esse público como sendo de “segunda mão”, por se tratar de uma audiência cujos objetos de fruição passam, antes dela, pelo crivo e deliberação de círculos restritos, formados por públicos/agentes iniciados e especializados. São estes que definem, em relação às obras artísticas, quais, quando e como virão a público, gozando da prerrogativa de produzir seus cenários de aparição (e recepção, portanto).

Nota-se, nesse caso, o quanto a compreensão de Duchamp sobre a recepção como elo de conexão da obra com o mundo e com a história revela-se parcial e, de certo modo, enviesada – embora não deixe de contribuir significativamente com as preocupações e iniciativas da mediação cultural. Isso porque ela acaba pressupondo a instituição artística como instância dada e universalmente acessível, aberta à participação indistinta de todos em seus rumos. Além disso, concebe o “público” como formação genérica e pretensamente coesa. Ao fazê-lo, dá a entender que as interpretações e valorações emitidas pelos públicos da arte, independentemente de quais círculos provenham, têm repercussão irrestrita e peso equivalente na “balança” da posteridade e da história da arte, algo que, conforme buscamos argumentar, não se sustenta.

POR UMA HISTÓRIA DAS RECEPÇÕES

Podemos dizer, para concluir, que os vislumbres de Duchamp – nome incontornável para a compreensão da dinâmica institucional da arte – a respeito do papel exercido pelos públicos na inserção social e histórica da produção artística logram abrir, para a mediação cultural, uma frente dupla de investigação e atuação. Numa delas, nos possibilita encadear as instâncias envolvidas na existência pública da obra de arte, dando a ver a importância da recepção em tal processo. A cadeia aqui delineada resulta, por sinal, da incorporação da posição estratégica imputada aos públicos na vigência da obra para além dela própria. A outra frente é deslindada pelo esforço de reconhecimento das limitações dessa mesma proposição do artista francês. Reconhecê-las corresponde a tentar ampliar o alcance da compreensão duchampiana acerca do lugar da interpretação no jogo aberto pela arte. Se, conforme a derivação metonímica de Honorato, os públicos e seus discursos interpretativos são a posteridade e a história da arte, então como fazer para pluralizá-las, alargando o escopo das vozes e formulações que nelas influem?

A resposta a essa pergunta exige um programa cujo desenho e extensão extrapolam os limites deste texto. Ainda assim, cabe deixar registrado, enquanto fulcro da presente proposição, o entendimento de que é nos esforços e estratégias da mediação cultural de vocação documentária que residem, a nosso ver, as possibilidades mais promissoras de amplificação e circulação dos enunciados interpretativos oriundos dos atos de recepção em termos múltiplos – para além daqueles já praticados pelos círculos especializados. A ocupação em torno desse propósito reflete a busca por inscrever esses atos diversos no seu “lugar de direito”, a saber, na história da arte como público. Mas com a diferença de que, para a mediação como a concebemos aqui, a noção de “público” traz consigo desafios aos dispositivos institucionais da arte, especialmente aos mecanismos legitimadores das leituras produzidas acerca de seus exemplares, os quais influem na constituição de sua historicidade.

Colaborar com a inscrição das interpretações forjadas, em chave plural, pelos públicos na trajetória percorrida pela obra de arte entre gerações – transcurso também conhecido como “posteridade” – é fazer jus ao papel receptivo desempenhado por eles (no limite, todos eles) em sua atribuição ao mesmo tempo espontânea e imprescindível: colocar a obra em contato com o mundo exterior, mediante a atenção, a valoração e as respostas dedicadas a ela. O que não significa apenas acumular indiscriminadamente leituras individuais a respeito da obra, mas indexá-las a uma instância coletiva de enunciação, confrontando umas às outras. É desse modo que a condição de “ponto de partida” da obra artística pode adquirir consequências imprevisíveis, funcionando como ensejo privilegiado para o que chamamos de discussões culturais.

Compete à mediação cultural fomentar e moderar essas discussões, lidando com as heterogeneidades e controvérsias que delas possam emergir, inclusive os dissensos. Até porque, dos elos da cadeia aqui traçada, a plataforma mediativa é a única à qual não toca reivindicar um domínio particular, prestando-se, em vez disso, a dinamizar e tornar ainda mais complexas as interações discursivas entre os âmbitos que ela intermedeia: público e história da arte, tendo na obra e na instituição artísticas seus marcos iniciais. Não se confundindo com um “domínio” em si, a mediação incorpora e procura potencializar o “além” intrínseco à própria obra de arte, trabalhando com aquilo que se produz performativa e discursivamente nas adjacências do objeto, portanto fora dele, já no mundo – com a diversidade que o caracteriza.

Passado mais de meio século da conferência apresentada por Duchamp, já é hora de reconhecermos a insuficiência de uma história da arte voltada prioritariamente para a vida dos objetos artísticos, situados e analisados amiúde com base nas experimentações autorais que os geraram. A recente “história das exposições”, por sua vez, parece compartilhar dessa inquietação, ainda que parcialmente, ampliando o leque dos elementos e agentes a serem considerados nas periodizações e avaliações em torno da produção e circulação da arte. Contudo, seus estudos não parecem, ao menos até momento, propensos a se aventurar no terreno incerto, um tanto movediço, das recepções distribuídas da arte, optando por manter-se no solo mais firme das soluções institucionais, curatoriais, arquitetônicas, expográficas e educativas, desenvolvidas por agentes especializados.

A história das recepções da arte é o que desponta no horizonte aqui vislumbrado, algo que exige um sensível deslocamento epistemológico: das prerrogativas do fazer – ou seja, da centralidade conferida à inventividade tanto artística como institucional – para a disposição em recolher e trabalhar com as mais diversas formas de apropriação simbólica de seus produtos e iniciativas pelos públicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2013.
  • DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In BATTCOCK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. pp. 71-74.
  • ECO, Umberto. Obra Aberta – Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986.
  • HONORATO, Cayo. Mediação como [prática documentária]. Edital de Mediação em Arte e Cidadania Cultural Centro Cultural São Paulo, 2012. Disponível em: <https://cayohonorato.weebly.com/mediaccedilatildeo-cultural.html>. Acesso em: 10 dez. 2019.
    » https://cayohonorato.weebly.com/mediaccedilatildeo-cultural.html>
  • HONORATO, Cayo. Tem alguém, algo aí? O público, os públicos, um público. Seminário Reconfigurações do Público: Arte, Pedagogia e Participação Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <https://cayohonorato.weebly.com/uploads/8/4/7/3/8473020/2012_ ensaio_seminario-ii_honorato.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2019.
    » https://cayohonorato.weebly.com/uploads/8/4/7/3/8473020/2012_ ensaio_seminario-ii_honorato.pdf
  • MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO. A marquise, o MAM e nós no meio São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2018.
  • RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005a.
  • RANCIÈRE, Jacques. A política da arte e seus paradoxos contemporâneos / trad. Mônica Costa Netto. Encontro Internacional Situação #3 Estética e Política, 17 a 19 de abril de 2005, São Paulo (mimeo.), 2005b.
  • WARNER, Michael. Públicos y contrapúblicos Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona; Servei de Publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, 2008.
  • LAGNADO, Lisette; LAFUENTE, Pablo (org.). Cultural Anthropophagy – The 24th Bienal de São Paulo 1998 (Exhibition Histories) Londres: Afterall, Central Saint Martins – University of the Arts London, 2015.

NOTAS

  • 1
    . O crítico literário Michael Warner constata que “o simples fato de prestar atenção pode ser o suficiente para que alguém seja membro de um público”. O que o leva a afirmar que o público “se cria a si mesmo” na relação com determinado objeto semântico. (WARNER, 2008, p. 18, tradução nossa).
  • 2
    . Nesse estudo, Eco se vale de instrumentos conceituais oriundos da teoria da informação, daí o uso de termos que possam soar estranhos ao debate da arte.
  • 3
    . Esse aspecto da recepção aparece de maneira alegórica no filme Arca Russa (2002), de Aleksander Sokúrov, rodado nas galerias do Museu Hermitage, em São Petersburgo. Nesse plano sequência sem cortes, o misterioso personagem vivido por Sergei Dreiden, um certo Marquês, flana entre as obras da rica coleção, comentando-as, conversando com os demais visitantes, dançando, cantando etc.
  • 4
    . Sobre essa existência exterior a si mesma, a pintura Mona Lisa (1503-1506), de Leonardo da Vinci, talvez represente exemplo máximo na história da arte.
  • 5
    . Ainda que, como detalhado por Eco em Obra Aberta, existam diferentes níveis de abertura da obra, característica que se intensifica com as experimentações artísticas de meados do século XX, nas diferentes linguagens da arte, como a música, a literatura e as artes visuais.
  • 6
    . Esse deslocamento é patente, por exemplo, em nossa atual relação (secularizada e de viés estético) com a tradição pictórica de matriz religiosa.
  • 7
    . Agradecemos à curadora Ligia Nobre, organizadora da conferência em questão, por nos ceder o texto-base da palestra de Rancière (não publicado até o momento).
  • 8
    .“Mediação como prática documentária” é uma noção cunhada por Honorato. Ensaiadas por ele, na condição de mediador, em um projeto desenvolvido no Centro Cultural São Paulo, em 2012, por ocasião do Edital de Mediação em Arte e Cidadania Cultural, suas premissas podem ser conferidas em: https://cayohonorato.weebly.com/mediaccedilatildeo-cultural.html. Acesso em: 12 dez. 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2020
  • Aceito
    26 Out 2020
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