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UM ENSAIO SOBRE ENSAIOS VISUAIS

AN ESSAY ON VISUAL ESSAYS

UN ENSAYO SOBRE ENSAYOS VISUALES

RESUMO

Os ensaios visuais têm ganhado cada vez mais espaço em revistas acadêmicas e até mesmo em revistas comerciais. Este ensaio procura trazer um pouco do contexto histórico dos ensaios visuais no campo das publicações de artista, com destaque para as revistas brasileiras publicadas a partir dos anos 1970. As reflexões sobre o ensaio visual foram realizadas ao analisar alguns exemplos selecionados e podem auxiliar no estabelecimento de critérios para a avaliação dos ensaios visuais, de modo que um dia sejam reconhecidos como produção intelectual com o mesmo peso de um artigo acadêmico.

PALAVRAS-CHAVE
Ensaio visual; Arte para a página; Revista de artista

ABSTRACT

Visual essays have been gaining more and more space in academic journals and even in commercial magazines. This essay seeks to bring some of the historical context of visual essays in the field of artist publications, with emphasis on Brazilian magazines published from the 1970s onwards. Some selected samples were used to reflect on the visual essay as structure. This analysis can help in establishing a criteria for evaluating visual essays, so that one day they are recognized as intellectual production worth the same as an academic article.

KEYWORDS
Visual Essay; Page Art; Artists’ Magazine

RESUMEN

Los ensayos visuales han ganado cada vez más espacio en revistas académicas e incluso en revistas comerciales. Este ensayo busca traer un poco del contexto histórico de los ensayos visuales en el campo de las publicaciones de artistas, con énfasis en las revistas brasileñas publicadas a partir de la década de 1970. Las reflexiones sobre el ensayo visual se llevaron a cabo analizando algunos ejemplos seleccionados y pueden ayudar a establecer criterios para evaluar los ensayos visuales, para que algún día sean reconocidos como una producción intelectual con el mismo peso que un artículo académico.

PALABRAS CLAVE
Ensayo visual; Arte para la página; Revista de artista

O ensaio, enquanto gênero literário, possui elementos de diversos outros gêneros, o que dificulta fornecer uma simples definição. O mesmo acontece com os ensaios visuais, que compartilham características de obras de artes gráficas, de poesia visual, da publicidade, da arte conceitual. No entanto, a maioria das pessoas parece reconhecer um ensaio quando se depara com um, enquanto os ensaios visuais estão em uma espécie de limbo, um lugar indefinido, de modo que eles se confundem facilmente com a ideia de ilustração ou divulgação de um conjunto de trabalhos que, de algum modo, se relacionam. Ao ler a palavra “ensaio visual” associada às imagens, o leitor se vê obrigado a acreditar que um grupo de colagens, uma série de pinturas ou uma sequência de fotografias são, de fato, um ensaio visual, mesmo que não entenda porque são assim chamados.

Os ensaios visuais, que apareceram primeiro em revistas experimentais editadas por artistas e poetas, tornaram-se comuns em revistas acadêmicas brasileiras na área de artes visuais, principalmente nos programas de pós-graduação que possuem a linha de pesquisa em poéticas visuais. No entanto, não existe muita pesquisa ou reflexão a respeito desse tipo de trabalho artístico, que ainda não recebeu a devida atenção. Este ensaio procura trazer um pouco do contexto histórico dos ensaios visuais no campo das publicações de artista, com destaque para as revistas brasileiras publicadas a partir dos anos 1970. As reflexões sobre o ensaio visual como forma são realizadas a partir de alguns exemplos selecionados.

Qual seria o número mínimo de páginas que um texto deve ter para que possa ser chamado de ensaio? De acordo com o escritor Richard Kostelanetz, organizador de uma coletânea de ensaios experimentais, eles podem “variar de uma página até um livro inteiro” (Kostelanetz, 1975Kostelanetz, Richard. Introduction to Essaying Essays: alternative forms of Exposition. New York: Out of London Press, 1975. , p. 2), como é o caso do poema concreto de Carl Andre, chamado justamente “An essay on sculpture” (1964). A palavra ensaio no título da obra parece estar em sentido figurado, como tentativa de definição, uma aproximação ao tema ou algo que está em processo. O ensaio de Carl Andre poderia também ser considerado um ensaio visual?

Se não existe um número mínimo de páginas, como diferenciar um poema concreto, uma obra para página e um ensaio visual? A poesia concreta faz uso do espaço gráfico da página como um elemento do poema, tornando o leitor mais consciente de que o poema é uma forma no espaço. Nesse sentido, o poema concreto é uma arte para a página (page art). Qualquer trabalho de artes gráficas também é arte para a página e poderia ser chamado de ensaio gráfico ou ensaio visual, o que tornaria inútil o uso do termo, pois, se pode ser aplicado a qualquer coisa, ele não serve para definir ou explicar nada. O ensaio visual é um tipo particular de arte para a página e, por este motivo, um poema concreto não é um ensaio visual.

A meu ver, o que justifica um trabalho ser chamado de ensaio visual é o encadeamento das ideias apresentadas, utilizando a estrutura das páginas, cuja unidade mínima é a página dupla. É o que permite que seja usada a lógica do ideograma, em que o sentido é produzido pela justaposição de elementos diferentes. É um tipo de pensamento analógico, que procede por metáforas sucessivas, mais do que um pensamento linear, que procede por relações de causa e efeito para atingir um fim determinado.

E se o artista publica uma fotografia ou desenho que ocupa as duas páginas, continua sendo um ensaio, mesmo formado por uma única imagem? Voltamos para a pergunta do parágrafo anterior, trazendo mais um ponto de reflexão: o contexto poderia ser mais um elemento que distingue o que é um ensaio visual e o que é a reprodução de uma obra. Se olharmos para um projeto como o Dupla Central (2016-2018), da editora Ikrek, que ocupou as páginas de uma revista de passatempos (A Recreativa) com proposições artísticas originais (mas nem todas inéditas), percebemos uma pluralidade de abordagens, desde um desenho em formato horizontal, em que a página dupla funciona como uma única página, até os trabalhos que são baseados em diálogo, com elementos diferentes em cada página, mas que interagem ou se complementam.

Figura 1
Ana Dias Batista, “on/off”, A Recreativa, nº 356, 2017. Offset, 31 x 23 cm (aberto).

O ensaio visual (também conhecido como ensaio gráfico) é um tipo de obra impressa em que o artista cria um trabalho para ocupar uma sequência de páginas em uma revista ou em um livro/catálogo de exposição. É um tipo de encarte, e sua inclusão em revistas e jornais tem como objetivo aproximar as obras de artistas contemporâneos do grande público, que não costuma frequentar museus e galerias. É uma forma de inserir a arte no cotidiano, misturando-se com produtos da sociedade de consumo, dissolvendo a fronteira entre cultura erudita e cultura de massa.

Assim como o livro de artista, o ensaio visual conjuga elementos espaciais (a página) e temporais (a sequência). Qual seria então a diferença entre um ensaio visual e um livro de artista? Algumas pessoas podem pensar que a diferença está em sua extensão, um ensaio é mais curto, ocupa poucas páginas, enquanto o livro possui certa quantidade de páginas para formar um volume. Mas isso não é uma regra quando se trata de publicação de artista: um ensaio visual pode ser extenso, chegando a ocupar um caderno de 36 páginas, como é o caso de a vida, o amor, a morte, trabalho de Jean-Luc Moulène publicado em edição especial do jornal Valor Econômico por ocasião da Bienal de São Paulo em 2002. Um livro de artista pode ocupar uma única folha dobrada ao meio, como fez Eric Watier em seu Un livre, un pli (2001).

Por outro lado, um livro de artista pode ser constituído por um ensaio visual que ocupa toda a sua extensão ou pode conter um ou mais ensaios visuais. Alguns artistas que se interessam por narrativas fotográficas, como o casal britânico Telfer Stokes e Helen Douglas, publicaram pequenos livros que são constituídos por diversos ensaios curtos (Chinese Whispers, 1976) ou que possuem um único ensaio visual (Real Fiction: an Inquiry into the Bookeresque, 1987). Podemos dizer que a principal distinção entre o livro de artista e o ensaio visual está em sua forma de apresentação, em um caso, uma publicação autônoma e, em outro, como um acontecimento dentro de uma publicação.

De modo geral, as revistas de poesia cumprem uma função além da simples divulgação dos poemas, elas servem como um laboratório para as experimentações de linguagem de poetas - é muito comum que os poemas sejam publicados primeiro em revistas e depois, com alguns cortes ou modificações, sejam incluídos em livro. Em alguns casos, acontece o mesmo com os ensaios visuais: eles podem fazer parte de um conjunto maior de imagens que o artista apresenta em uma revista e só ganhar sua versão definitiva em livro posteriormente. Uma parte da série X-Range, de Regina Vater, publicada em livro em 1977, foi apresentada antes em página dupla do jornal Galeria de Arte Moderna (GAM, 1976).

A relação entre o ensaio visual e o livro de artista fica mais evidente no percurso de Waltercio Caldas, que tem diversos livros de artista publicados, e é um dos pioneiros na publicação de ensaios visuais no Brasil, a começar por sua contribuição para o primeiro número da revista Malasartes (1975), “Leitura Silenciosa”, um grupo de desenhos inscritos em retângulos que ocupavam uma página dupla, como cartas em um jogo da memória. O artista afirma que deve dizer com os meios próprios da arte o que ele tem para dizer1 1 Depoimento ao autor, na residência do artista, em agosto de 2018. , sendo esta sua forma de estar no mundo. No livro Aparelhos, de 1978, o artista desenvolveu uma série de trabalhos a partir de uma reflexão sobre as diferenças entre a fotografia como arte e o registro fotográfico de obras de arte. Ele deu continuidade à sua pesquisa produzindo imagens que foram criadas para serem reproduzidas, resultando no livro Manual da Ciência Popular (1982), com obras novas, que foram concebidas para o livro. Uma produção exclusiva para a revista Guia das Artes (nº 17, Ano 4, 1989, p. 44-49), Is = (the mirror) a veil?, é um ensaio com fotos de Wilton Montenegro, fotógrafo especializado em documentação de obras de arte, que foi publicado como livro autônomo, com o mesmo título do ensaio, em 1998. Para a edição nº 10 da revista Serrote, Waltercio produziu “Ficção nas coisas” (2010), um ensaio que ocupa um caderno inteiro da revista. O artista fez uma separata, uma publicação autônoma, utilizando alguns cadernos extras que foram impressos junto com a revista. Ele criou uma capa para sua publicação, que circulou também como um livro de artista em edição limitada, numerado e assinado.

Figura 2
Waltercio Caldas, Leitura Silenciosa, Malasartes, nº 1, 1975. Offset, 46 x 32 cm (aberto).

O ensaio visual, então, está mais próximo da arte para a página (page art) e do encarte (insert) do que do livro de artista. Em todo caso, não se trata de mera reprodução de um trabalho existente, mas um trabalho original que foi criado para ser reproduzido. Ao menos assim foi na década de 1960, quando artistas como Dan Graham publicaram trabalhos de arte em páginas de revistas comerciais ao lado de anúncios.

Um dos mais conhecidos exemplos de ensaios visuais reunidos em livro é o catálogo da exposição organizada por Seth Siegelaub, reunindo oito artistas minimalistas e conceituais, conhecido como Xerox Book (1968), em que cada artista foi convidado a ocupar 25 páginas do catálogo com uma proposta original, utilizando a copiadora para produzir os trabalhos. A exposição aconteceu apenas nas páginas do livro, não havia trabalhos na galeria.

No caso do Xerox Book, não se trata de um conjunto de trabalhos de cada artista, o catálogo não é um portfólio com uma amostra da produção previamente existente ou com registros das obras no espaço expositivo, mas é o próprio catálogo que se tornou espaço expositivo. É interessante esta ênfase na ideia de que um catálogo pode ser uma exposição portátil que possui uma duração estendida, podendo ser levado para qualquer lugar e acontecendo novamente cada vez que o livro é aberto, diferentemente da exposição realizada em museus e galerias, que possui a duração em um período de tempo definido.

Outro tipo de catálogo de exposição que se relaciona com os ensaios visuais é a tradução gráfica das obras, tal como encontramos em Revista (2009), publicação distribuída por ocasião de uma exposição de Ana Dias Batista, Laura Huzak e João Loureiro. Algumas obras foram transformadas em desenhos feitos com linhas de contorno, sem preenchimento, de modo que o catálogo imita uma revista de passatempo e um livro de colorir. Outros desenhos foram criados especificamente para a publicação, em diálogo com a montagem, dando origem a jogos de associação entre os desenhos e suas legendas.

A percepção do tempo incorporado na obra acontece pela sucessão de páginas. Um ensaio de Carlos Fajardo, publicado em Guia das Artes (nº 25, 1991), uma escultura em metal fotografada sob dois pontos de vista, de cima e de lado, cada parte sendo mostrada em uma página dupla, transformando um elemento espacial em elemento temporal: é a memória do leitor que faz a junção das partes e forma mentalmente a imagem do todo. Diferentemente do espaço da galeria, em que as imagens podem ser vistas simultaneamente, nas páginas do livro ou revista vemos apenas duas páginas de cada vez, sendo necessário virar as páginas para vermos todo o conjunto em uma sucessão de momentos.

Figura 3
Carlos Fajardo, Guia das Artes nº 25, 1991. Offset, 46 x 32 cm (aberto).

Poder-se-ia dizer que o ensaio visual é um tipo de narrativa gráfica, nome que também é usado para se referir às histórias em quadrinhos, principalmente as que são dirigidas ao público adulto. Os quadrinhos abstratos e os quadrinhos experimentais, em que os elementos de composição se tornam elementos narrativos, são o tipo de quadrinho que está mais próximo do ensaio visual. Boa parte dos poemas e livros-poemas do movimento poema-processo, que fazem uso da sequência, poderiam também ser chamados de ensaios visuais, já que estão em uma região de vizinhança das artes plásticas, dos quadrinhos e do cinema, mais do que da literatura.

Alguns ensaios consistem inteiramente de imagens (desenhos ou fotografias) que “definem certa realidade ou documentam um evento (ao invés de contar uma história)” (Kostelanetz, 1975Kostelanetz, Richard. Introduction to Essaying Essays: alternative forms of Exposition. New York: Out of London Press, 1975. , p. 9), o que poderia incluir nesta categoria as performances para a página de Hudinilson Jr. (Xerox Action, 1978-1982).

E se o ensaio visual for constituído a partir da ideia de “tema e variações”, a simples repetição seria suficiente para causar a percepção de que se trata de uma experiência espaço temporal, mesmo que não exista algum tipo de encadeamento entre as páginas? Essa forma de apresentação do ensaio, como aponta Max Bense, é da ordem do “argumento que se articula discretamente, por meio da repetição incansável” (BENSE, 2014BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. Tradução de Samuel Titan Jr. In: Revista Serrote, IMS, n.16, Rio de Janeiro, 2014.). O arquiteto Minoru Naruto consegue traduzir nova percepção do espaço em “O ambiente se verbaliza”, ensaio publicado na revista Através (Livraria Martins Fontes Editora, janeiro de 1983). São desenhos que compartilham uma estrutura comum, a representação de um ambiente interno, mas a cada vez os elementos figurativos do primeiro desenho são substituídos por elementos diferentes, incluindo letras. Pela repetição das coisas sempre na mesma posição na página, o trabalho provoca a sensação de camadas sobrepostas, como se as folhas de papel tivessem se tornado transparentes.

A apresentação de uma série de imagens que compartilham certas características formais ou temáticas em uma publicação traz um senso de tempo que se estende, que se prolonga e que acompanha o folhear das páginas. A repetição pode ter o efeito de ampliação de uma ideia, como em “A Guerra Incompreensível”, de Alex Flemming publicado na revista Arte em São Paulo (nº 10, setembro de 1982): formado por fotocópias de jornais em japonês, finlandês, árabe, turco, sânscrito e grego, com matérias a respeito da Guerra das Malvinas, o ensaio ora mostra o mapa-múndi, ora um detalhe do mapa da região do conflito, na época em que a Inglaterra reivindicava a propriedade de uma ilha ao sul da Argentina.

Quando se menciona a palavra “narrativa” para se referir a publicações, seja um livro de artista ou um fotolivro, a maioria das pessoas associa com uma sucessão linear de coisas ou eventos, uma pequena história, algo com início, meio e fim bem definidos. Mas o ensaio visual pode também ser antinarrativo. É o que apontam os trabalhos seriais de Sol LeWitt, que faz uso de estruturas e sistemas, por vezes adotando uma grade ortogonal como forma de apresentação das imagens na página, como em Photogrids (1977), uma série de fotografias coloridas de padrões de grelha encontrados na arquitetura, em estampas de tecidos e outras estruturas, arranjadas em padrões de 3x3, com 9 imagens quadradas em cada página. O grid é antinarrativo porque é não-hierárquico, a posição dos elementos não destaca sua relevância em relação aos outros - o primeiro ou o que está no centro não é o mais importante. Em muitos de seus livros e ensaios a sequência é indiferente, as páginas podem ser reordenadas sem alterar o significado, como em Geometric Figures & Color (1979), formado por seis figuras geométricas planas reproduzidas em três cores primárias, cada vez sobre um fundo amarelo, vermelho ou azul, em todas as suas combinações possíveis.

Todo ensaio visual é constituído apenas por imagens? Alguns dos primeiros ensaios visuais imitavam o estilo de artigos científicos, com o texto em duas colunas e diversas ilustrações como uma demonstração do texto. É o caso de “Domain of the Great Bear”, uma colaboração de Mel Bochner e Robert Smithson, publicada na revista Art Voices em 1966. A dupla apresenta um texto inexpressivo, repleto de absurdos institucionais sobre o American Museum of Natural History e Hayden Planetarium, em Nova York (Ver RORIMER, 1999RORIMER, Anne. Siting the Page: Exhibiting Works in Publications - Some Examples of Conceptual Art in the USA. In: NEWMAN, Michael; BIRD, John (ed.). Rewriting Conceptual Art. London: Reaktion Books Ltd., 1999, p. 123-139.).

A escolha tipográfica, a composição do texto na página e outros recursos gráficos podem ser combinados para comunicar ou revelar uma ideia que não seria possível usando a linguagem convencional. Podemos chamar de ensaio visual uma obra que é apenas verbal? Considerando a “virada linguística” da arte nos anos 1960, em que muitas obras são exibidas como informação textual, qual o limite entre o ensaio literário e o ensaio visual? Qualquer tipo de texto pode ser um ensaio visual ou apenas os textos em que sua forma gráfica é um elemento significante, que faz parte do sentido, que não pode ser apresentado de outra maneira? Depende só da intenção do artista, depende do contexto ou a obra é uma entidade autônoma e sua interpretação deve se basear em sua forma de exposição? Entendo o ensaio visual como um tipo de informação estética, no sentido dado por Max Bense, uma informação que incorpora sua forma de apresentação como parte da mensagem. Ou como diria o teórico da informação Marshall McLuhan, cujas ideias muito influenciaram os artistas que fizeram uso das mídias de massa: “o meio é a mensagem”.

Um ensaio que é formado por imagens deve sempre vir acompanhado de um texto introdutório? Tal prática se baseia em uma falta de confiança na capacidade intelectual do leitor, fenômeno típico de uma sociedade logocêntrica que perdeu a capacidade de análise e interpretação das imagens e se baseia nos comentários de especialistas mais do que nas próprias percepções. Ainda nos anos 1940, o pintor Ad Reinhardt (1913-1967) fez uma paródia dessa necessidade de apresentar as imagens sempre acompanhadas de comentários verbais na série How to look, uma página ilustrada sobre arte moderna, frequentemente usando diagramas para explicar, de modo bem-humorado, conceitos complexos.

As intervenções em classificados de jornal e as obras para revistas publicadas nos anos 1960 e 1970 não eram associadas a nenhum texto explicativo, causando surpresa, espanto, perplexidade, indignação ou indiferença nos leitores. A série de anúncios lacônicos de Steven Kaltenbach, publicados na revista Artforum, de novembro de 1968 a dezembro de 1969, são provocativos: “Smoke”, “Tell a Lie”, “Start a Rumor”, “Teach Art”, “Expose Yourself” ou “You Are Me”. Os ensaios visuais são herdeiros dessas intervenções e, a não ser que o texto faça parte do trabalho, não deveria ser necessário nenhum tipo de texto para mediar sua recepção.

Outra questão difícil: um trabalho deve ser criado especificamente para o meio impresso para que seja considerado como um ensaio visual? Qual é a medida que separa um ensaio visual da mera reunião de desenhos/pinturas/colagens/fotografias, tal como encontramos em um portfólio? Considerando os desenhos de Guto Lacaz, publicados em Guia das Artes (nº 24, 1991), diria, mais uma vez, que a forma de apresentação é uma característica que define o ensaio visual. Neste caso, os desenhos foram distribuídos de modo aleatório dentro de um grid, ocupando três páginas duplas. Olhando com atenção, percebemos que alguns elementos se repetem em cada dupla, comparando as páginas, percebemos no canto inferior direito, como uma chave de leitura, o último elemento da série, a figura de uma família utilizando diferentes meios de transporte (carro, navio, foguete) como se estivesse saindo da página e apontando para a página seguinte. A página que tem o navio mostra desenhos de objetos relacionados com água, animais marinhos; a página que tem o foguete mostra figuras no ar, uma mulher levitando.

O editor pode interferir no trabalho artístico, adaptando-o ao formato da publicação? Muitas vezes, ao ver o seu trabalho publicado, o artista se depara com situações que escapam ao seu controle, como o aumento da margem ou a presença de margens ou molduras em uma imagem que deveria ser sangrada. Em certos trabalhos, até mesmo o texto de cabeçalho ou rodapé e a numeração da página podem atrapalhar a apreciação da obra, que passa a ser tratada como ilustração para a revista e não como uma obra de arte para a página. E se a imagem foi concebida para ser reproduzida na página direita e o editor decide reproduzir na página esquerda?

O artista deve levar em consideração o tamanho ou a proporção da página ao criar o seu trabalho? Entendo os ensaios visuais como um tipo de page art, que, por sua vez, é um tipo de obra site specific, uma obra concebida para a página. Um bom exemplo é o trabalho de Mary Dritschel, “Duas folhas, quatro lados”, publicado na revista Corpo Estranho (1983): caso o editor tivesse escolhido apresentar o trabalho como duas páginas duplas, arruinaria a relação frente/verso proposta pela artista.

O contexto pode se referir ao lugar em que foi publicado (em uma revista) ou ao local (uma imagem em uma página específica). Ele também pode ser dado pela inclusão de um título na própria imagem, como na série A Ilustração da Arte, publicada por Antonio Dias em livros e revistas no Brasil, na Itália, na Argentina e na Alemanha, na década de 1970. Destaco uma colaboração para a revista Kunst Nachrichten, edição de abril de 1973, em que Antonio Dias apresenta lado a lado, em uma página dupla, duas fotografias que mostram figuras com formato semelhante, o topo de uma montanha e a mão de uma pessoa com um punhado de areia que escapa entre os dedos, formando um pequeno monte, com o título The Illustration of Art no topo de cada imagem, trazendo uma reflexão a respeito das escalas, de como a reprodução fotográfica permitiu colocar em uma página algo imensamente grande ou muito pequeno, modificando nossa percepção do mundo.

Figura 4
Mary Dritschel, “Duas folhas, quatro lados”, Corpo Estranho, 1983. Offset, 22 x 20 cm (aberto).

Figura 5
Antonio Dias, “The Illustration of Art”, Kunst Nachrichten, 1973. Offset, 25 x 36 cm (aberto).

Os termos ensaio visual e ensaio gráfico são equivalentes? Em algumas situações, os dois são usados de modo indistinto, apesar de suas diferenças. Entre os fotógrafos, já é bem conhecido o termo “ensaio fotográfico” para se referir a uma sessão de fotografias no estúdio, ou um conjunto de fotos que possuem características formais semelhantes ou que possuem o mesmo tema. Entre os gravadores, ensaio gráfico tem sido usado para nomear uma série de gravuras, o que, em outra época, seria apresentado como um álbum. Entre os profissionais de artes gráficas, ensaio gráfico pode ter outro sentido: as características da imagem são o resultado do processo de impressão utilizado, apresentando cores e texturas que não podem ser obtidos de outro modo, como na revista Klaxon Extra-Texto (2013), um projeto feito em parceria por Fabio Morais e Marilá Dardot, em que cada página foi impressa oito vezes, as sobreposições produzem uma cor preta que é mais densa e que possui mais nuances do que as camadas de um arquivo digital.

As intervenções gráficas realizadas por artistas em uma publicação também são um tipo de ensaio gráfico, como em Vulgata, trabalho de Wallace Masuko, que ocupa todas as 516 páginas de uma edição especial da revista acadêmica Ars (2022). Com uma abordagem mais próxima da crítica institucional, ele sobrepôs aos diversos artigos e ilustrações da revista o roteiro de um filme de Júlio Bressane, que se diferencia dos outros textos pelo seu tamanho (letras em corpo maior), pela cor (em vermelho sobre o texto preto) e pela forma das letras.

Qualquer sequência de páginas com desenhos ou fotografias pode ser um ensaio visual? Também são os livros infantis sem palavras, chamados de livro-imagem? E as páginas iniciais de uma edição de luxo de uma obra literária, que funcionam como uma continuidade da folha de rosto em certos livros projetados nos anos 1950 pelo designer francês Robert Massin? Faz sentido usar esse termo para se referir a trabalhos anteriores ao surgimento do conceito? Ele serve para se referir a trabalhos de ilustração, artes gráficas e design editorial ou é exclusivo do campo das artes visuais?

Cada vez é mais comum a ideia de design autoral, em que o produto não é apenas resultado de uma prestação de serviço, mas um trabalho autônomo, criado por iniciativa própria. Neste tipo de trabalho, o profissional atua mais parecido com um artista do que um designer - seus métodos e os seus propósitos podem ser diferentes, mas os resultados são semelhantes. Então, o ensaio visual, que é um tipo particular de obra das artes visuais, pode ser uma obra criada pelo designer que fez o projeto gráfico de um livro ou revista?

Quem define se um conjunto de páginas é ou não um ensaio visual? Basta o autor reivindicar a obra? E se o autor não se pronuncia, o editor é quem tem a palavra final? Um trabalho que foi criado como ilustrações avulsas para um livro e que teve sua publicação póstuma em outro contexto, com novo projeto gráfico, formando uma narrativa que antes não existia, continua sendo um conjunto de ilustrações ou se tornou algo novo, criado a partir de imagens existentes?

A autoria do ensaio visual é da pessoa que produziu as imagens ou de quem compôs a sequência? Um exemplo radical é a obra do alemão Hans-Peter Feldmann, que fez uma cópia de uma revista de notícias semanal austríaca (Profil nr. 6 vom 07.02.2000, ohne Worte). Ele removeu todos os anúncios e todo o conteúdo verbal, manteve o layout original, deixando apenas as imagens fotográficas. A revista “sem palavras” é um múltiplo em edição ilimitada, contrariando a ideia de que a obra de arte deve ser única ou exclusiva. As fotografias, antes isoladas em seus contextos, separadas por colunas, fios tipográficos e caixas de texto, usadas para ilustrar matérias diversas, passam a se relacionar umas com as outras e também com o espaço em branco da página, produzindo novos significados.

Se qualquer pessoa pode fazer um ensaio visual com imagens prontas, se até mesmo a composição e a sequência podem ser feitas por outra pessoa, estamos diante de um novo conceito de autoria, que não implica virtuosismo ou domínio técnico, mas o domínio da linguagem, seja verbal ou visual. O poeta Décio Pignatari já dizia que o poeta é um designer da linguagem (Pignatari, 2005Pignatari, Décio. O que é comunicação poética. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.), o que talvez explique porque a leitura do ensaio visual é mais parecida com a leitura de um poema do que de um texto em prosa.

REFERÊNCIAS

  • BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. Tradução de Samuel Titan Jr. In: Revista Serrote, IMS, n.16, Rio de Janeiro, 2014.
  • Kostelanetz, Richard. Introduction to Essaying Essays: alternative forms of Exposition. New York: Out of London Press, 1975.
  • Pignatari, Décio. O que é comunicação poética. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
  • RORIMER, Anne. Siting the Page: Exhibiting Works in Publications - Some Examples of Conceptual Art in the USA. In: NEWMAN, Michael; BIRD, John (ed.). Rewriting Conceptual Art. London: Reaktion Books Ltd., 1999, p. 123-139.
  • 1
    Depoimento ao autor, na residência do artista, em agosto de 2018.
  • 2
    Este ensaio faz parte da pesquisa Pequenas Utopias: revistas de artista no Brasil, realizada com apoio da Fapemig.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2023
  • Aceito
    13 Maio 2024
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