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POR UMA RADICALIDADE CONCRETA: HENRY FLYNT CONTRA A VANGUARDA

FOR A CONCRETE RADICALITY: HENRY FLYNT AGAINST THE AVANT-GARDE

POR UNA RADICALIDAD CONCRETA: HENRY FLYNT CONTRA LA VANGUARDIA

RESUMO

Relegado a notas de rodapé da história do Fluxus e cena pós-Cage de Nova Iorque, Henry Flynt desenvolveu, entre 1960 e 1966, uma abordagem crítica da vanguarda a partir de postura revolucionária, procurando respostas para perguntas que seus contemporâneos artistas aparentemente ignoravam. Trabalhamos aqui com três textos que radicalizam um discurso crítico à vanguarda que vai de uma crítica formalista até uma crítica total de caráter anticolonial e marxista. Estes três momentos são apresentados em rounds , um para cada enfrentamento com a vanguarda, passando por suas estruturas formal, social e política, em um percurso que vai do abstrato ao concreto e se manifesta em uma práxis revolucionária.

Henry Flynt; Arte e política; Música experimental; Neovanguarda; Marxismo

ABSTRACT

Relegated to footnotes in the history of Fluxus and the post-Cage scene in New York, Henry Flynt developed from 1960 to 1966 a critical approach to the avant-garde from a revolutionary stance, looking for answers to questions which his peers apparently ignored. We work here with three texts which radicalized a critical discourse against the avant-garde, going from a formalistic critique to a total critique of Marxist and anti-colonial character. These three moments are presented in "rounds", one for each confrontation with the avant-garde , passing through its formal, social and political structures, in a route that goes from the abstract to the concrete and is manifested in a revolutionary praxis.

Henry Flynt; Art and Politics; Experimental Music; Neo-Avant-Garde; Marxism

RESUMEN

Relegado a notas en pie de página de la historia del Fluxus y a la escena posterior a Cage en Nueva York, Henry Flynt desarrolló, entre 1960 y 1966, un abordaje crítico de la vanguardia a partir de su postura revolucionaria, buscando respuestas para preguntas que artistas contemporáneos aparentemente ignoraban. Utilizamos aquí tres textos, que radicalizan un discurso crítico a la vanguardia que sigue desde una crítica formalista hasta una crítica total de carácter anticolonial y marxista. Esos tres momentos son planteados en “rounds” , uno para cada enfrentamiento con la vanguardia, pasando por sus estructuras formal, social y política, en un camino desde el abstracto hasta el concreto y que se manifiesta en una praxis revolucionaria.

Henry Flynt; Arte y política; Música experimental; Neovanguardia; Marxismo

Apresentamos o percurso teórico-prático do artista Henry Flynt, tão pouco conhecido no Brasil, e suas implicações politico-filosóficas, referenciando quatro textos “Essay: Concept Art” (1963), “ART or BREND?” (1968a), “Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture” (1965) e “Stockhausen - Patrician ‘Theorist’ of White Supremacy Go to Hell!” (1965), na medida em que radicalizam seu discurso crítico à vanguarda – de uma perspectiva formalista até um caráter anticolonial e marxista. Esses momentos são apresentados em rounds , um para cada enfrentamento à vanguarda, diante de suas estruturas formal, social e política.

O texto também pretende desenhar a rede de artistas e pensadores com os quais Flynt se envolveu, e a cena em que suas críticas foram desenvolvidas, o que é muito importante, dado que essas críticas eram reações a esse contexto. Tony Conrad, La Monte Young, John Cage, Georges Maciunas, Simone Forti e o Fluxus são alguns dos personagens envolvidos nessa história, por tanto tempo deixada às margens da narrativa oficial do underground nova-iorquino dos anos 60.

Henry Flynt desenvolveu, entre 1960 e 1966, uma abordagem crítica da vanguarda a partir de uma postura revolucionária, procurando respostas para perguntas as quais seus contemporâneos artistas aparentemente ignoravam. Flynt “procurou rearticular as preocupações da vanguarda dentro de um contexto de identidade e das lutas coletivas de autodeterminação dos povos” ( apud PIEKUT, 2011PIEKUT, Benjamin. Experimentalism Otherwise: The New York Avant-Garde and its Limits. Los Angeles: University of California Press, 2011. , p. 72). Enquanto algumas das questões por ele levantadas tenham se tornado mais comuns alguns anos depois, sua crítica total ao mundo da arte como um sistema suportado por práticas elitistas e racistas foi radical o bastante para o alienar dentro da narrativa mais “oficializada” da cena artística de seu tempo (mesmo estando envolvido com a história do Fluxus, do minimalismo e da arte conceitual, Henry Flynt foi muito recentemente relegado a notas de rodapé ou descrito como um lunático). É importante notar como suas questões apontam diretamente para proposições práticas. Nesse sentido, os textos discutidos aqui têm a forma de panfletos, feitos para serem publicados em meios como revistas e distribuídos antes de palestras e durante manifestações. Como em outros manifestos, os textos de Flynt expõem seus pontos rapidamente e chamam para a ação.

Um artista-músico formado em matemática pela Harvard, Flynt é um caso raro de intelectual/artista. Nascido em uma família de classe média branca na cidade de Greensboro, Carolina do Norte, Flynt ingressa no curso de matemática na Harvard em 1957, aos 17 anos. É nesse meio que ele conhecerá Tony Conrad, que futuramente o acompanhará no meio da avant-garde nova-iorquina, tanto o apresentando a La Monte Young como tomando seu partido nos protestos contra Stockhausen e aquilo que chama de “cultura séria”.

Seus estudos o levam a uma forma de empirismo radical que assume a matemática analítica e sistemas de lógica como estruturas sustentadas por dogmas sem relação com a experiência. Essa desconfiança com as estruturas que sustentam sistemas fechados acompanhará sua crítica ao lugar da vanguarda e à cultura eurocêntrica nos anos seguintes, mas acima de tudo denota um compromisso ético de Flynt para com a experiência do sujeito. Vai ser apesar de, e não por causa deste empirismo radical, que Flynt irá se associar à esquerda marxista, uma vez que vem a entender que, para seu próprio projeto filosófico ser viável, é preciso conquistar uma nova forma de sociedade.

havia um motivo sincero [para me afiliar à esquerda]: eu já tinha me tornado um revolucionário extremo antes mesmo de tentar fazer qualquer tipo de afiliação com a esquerda oficial por causa da minha desilusão com o mundo acadêmico. [...] Então eu já tinha decidido que era necessário reorganizar completamente a sociedade apenas para que eu possa fazer o que eu quiser. ( FLYNT, 1979FLYNT, Henry. [Entrevista concedida a Robert Horvitz] . 1979. Disponível em: https://ubu.com/papers/Flynt-Henry_Interview_1979.pdf. Acesso em: 29 mar. 2021.
https://ubu.com/papers/Flynt-Henry_Inter...
, p. 2, tradução nossa)

O contexto que Flynt vai chamar de vanguarda é o que Burger (1974)BURGER, Peter. Teoria da vanguarda . São Paulo: Ubu Editora, 1974. chama de neovanguarda. Para Burger, as vanguardas históricas (surrealismo, dadaísmo, futurismo e construtivismo russo) buscavam superar a ruptura entre arte e vida (ou sociedade, cultura) estabelecida na arte burguesa. Essa superação da arte nunca ocorreu de fato, sendo a própria vanguarda institucionalizada e neutralizada como projeto político. Contemporânea a Flynt, a neovanguarda apresenta-se no cenário pós-John Cage, um artista que, podemos dizer, promove articulações entre o alto modernismo da primeira metade do século XX e seus desdobramentos posteriores. Em 1960, nos Estados Unidos, o artista de vanguarda não é mais um pária dentro do sistema de arte e possui inclusive status especial, como diz Burger: Jackson Pollock, Andy Warhol, Merce Cunningham, Robert Rauschenberg, John Cage, todos grandes nomes das neovanguardas americanas têm lugar social garantido na instituição, podendo mesmo serem vistos como parte do star-system de inspiração hollywoodiana.

Para os vanguardistas, a característica dominante da arte na sociedade burguesa é o seu descolamento da práxis vital […] O gesto de protesto da neovanguarda padece de inautenticidade. Tendo-se provado irresgatável, sua pretensão de protesto não mais se sustenta […] A neovanguarda institucionaliza a vanguarda como arte e nega, com isso, as genuínas intenções vanguardistas. ( BURGER, 1974BURGER, Peter. Teoria da vanguarda . São Paulo: Ubu Editora, 1974. , pp. 115-122)

É interessante ler estes trechos escritos por Flynt sobre o legado de John Cage para situarmos este lugar onde se encontrava Flynt e seus pares:

Cage era de uma geração mais velha que seus colegas. Ele teve uma carreira como compositor de orquestras de ruído que durou até os anos 40. No final dos anos 40, encontramos sua busca por um sistema de organização total baseado em outras fontes além do serialismo. Na sucessão veloz, Cage teve encontros com a música hindustani, as palestras de Suzuki sobre o Zen e o I Ching. Cage, de alguma forma, juntou essas referências ao precedente do Dadá, […] e chegou ao programa pelo qual ele é agora conhecido. […] Cage coloca questões que eclipsam a escola serialista [...] Cage alegou que seu programa era infinitamente novo e radicalmente insuperável. Que ele transitou até o fim da eternidade. […] Como Cage logo anunciaria, seu objetivo era confrontar o ouvinte com ruídos acidentais inventados. [...] Seja como for, Cage pretendia submeter o ouvinte ao objeto acústico, em vez de validar a personalidade do ouvinte. O objetivo de Cage era o ser humano perfeitamente estéril, o ser humano sem desejos ou preferências.

[...]

Ao considerar a carreira de Cage, é preciso concluir que Cage adorava ser o renegado da música. Sem esse papel carismático, ele não saberia o que fazer consigo mesmo. Ele persistiu em uma vida profissional que não podia ser conciliada com seus próprios pronunciamentos. Para não ser excessivamente sutil sobre isso, a ocupação de Cage era fornecer a música para uma companhia de balé cujos cenários eram às vezes fornecidos pelo pintor Rauschenberg. Este trabalho envolveu a manutenção de uma forma de arte especificamente europeia. (FLYNT in FLEMING; DUCKWORTH, 1996FLEMING, Richard; DUCKWORTH, Willian (org.). Sound and Light: La Monte Young, Marian Zazeela. Nova Jersey: Bucknell Review, 1996. , pp. 45, 47, tradução nossa)

Neste trecho, Henry Flynt aborda especificamente a famosa peça silenciosa de Cage 4'33'' , de 1952 (quando o intérprete apresenta quatro minutos e meio de silêncio, pontuados em três movimentos), de forma que identifica sua articulação com as estruturas que sustentavam a arte como instituição elitista.

O que 4'33'' foi, na verdade, foi uma quebra de etiqueta em relação à tradição da música de concerto. Não foi infinitamente nova e radical; não foi um pouco nova e radical; se você não tivesse problemas com a tradição, era algo que você não se incomodaria em fazer. Cage assumiu o papel do renegado e tocou com um violino. Um público que investiu na pompa da música séria prestou atenção às suas violações da ettiquette, gritando ‘Shock me again, baby!’ . Enquanto isso, ano após ano, Cage trabalhou como diretor musical da companhia de balé. (FLYNT in FLEMING; DUCKWORTH, 1996, pFLEMING, Richard; DUCKWORTH, Willian (org.). Sound and Light: La Monte Young, Marian Zazeela. Nova Jersey: Bucknell Review, 1996. , p. 47, tradução nossa)

O silêncio como recurso artístico na música de arte ocidental apenas impôs-se como possibilidade por convenções sociais como a etiqueta de concerto. De qualquer forma, fora do espaço neutro do concerto, o silêncio seria quebrado pelos ruídos do público e da vida cotidiana. Em muitas outras culturas musicais não ocidentais e seculares, o silêncio contemplativo não é um fato dado para o público; na cultura musical árabe, espera-se que as pessoas incentivem e aprovem o artista em momentos de grande emoção com expressões especificas, também é esse o caso dos gritos de arrebatamento durante a performance dos spirituals , cantados pela comunidade negra nos Estados Unidos, entre outras tradições.

No relato “La Monte Young in New York, 1960-62”, Flynt (in FLEMING; DUCKWORTH, 1996FLEMING, Richard; DUCKWORTH, Willian (org.). Sound and Light: La Monte Young, Marian Zazeela. Nova Jersey: Bucknell Review, 1996. ) acusa Cage de valer-se da etiqueta de conceito para peças como 4'33” , sendo esta um dos maiores símbolos das práticas disciplinadoras da música, que ele dizia condenar e da qual dizia fugir. Cage ataca as estruturas de controle presentes na música até onde seu embate poderia afetar seu status como artista: seu lugar de “gênio” que, para Flynt, é essencialmente um local politicamente construído por um sistema maior.

No entanto, é esse tipo de peça conceitual que, de formas distintas, abrirá caminho e motivará o percurso crítico de Flynt à vanguarda, conforme pretendemos apresentar. A primeira forma, que veremos a seguir ao falar sobre o texto “Essay: Concept Art” (1963), diz respeito ao fato de, ao se valer da etiqueta de concerto e das formas musicais da música erudita ( 4'33” possui três movimentos, devidamente notados em uma partitura de acordo com os procedimentos padrão e notação convencional), a peça de Cage assume as regras formais de linguagem de seu meio como matéria prima, de modo que o seu único elemento “concreto” é a linguagem (na medida em que a única coisa que pode ser de fato analisada da peça é sua partitura, na qual consta apenas um registro conceitual). A segunda forma, que irá se relacionar com a crítica de Flynt no texto “ART or BREND?” (1968a), se dará pelo papel que é assumido pelo público em uma peça como 4”33' , onde, pela total ausência de material sonoro por parte do compositor, resta ao público o papel de construir o significado da obra do zero. A peça construída aleatoriamente não pressupõe a necessidade de uma leitura correta das propostas do artista: não há intenções, o público está livre para construir seus próprios significados. O que será questionado é a forma como esses métodos composicionais, mesmo após teoricamente eliminarem a presença do autor da obra e emanciparem o público como cocriador, continuam a existir no mesmo lugar social e cultural, ao invés de seguir demolindo as hierarquias. Flynt apontará como o lugar do artista na sociedade é assegurado por uma série de estruturas sociais elitistas, estruturas estas imunes a questionamentos por parte do campo da arte.

PRIMEIRO ROUND: “ESSAY: CONCEPT ART”

O verdadeiro inimigo de Flynt [...] era a noção de forma como qualquer componente de uma ação [...] que pode ser extrapolada da existência material da ação em si.

( JOSEPH, 2011JOSEPH, Branden W. Beyond the Dream Syndicate: Tony Conrad and the Arts After Cage. Cambridge, MA: Zone Books; MIT, 2011. , p. 121, tradução nossa)

Ainda em Harvard, Flynt já havia começado a compor “música séria”, sendo um violinista classicamente treinado e interessado em composição moderna. Em 1959, ele seria apresentado a La Monte Young e à cena experimental de Nova Iorque. No cenário pós-Cage, La Monte Young vinha desenvolvendo peças musicais baseadas em curtas partituras verbais, que circulariam muito graças ao Fluxus. Essas pequenas partituras, muitas vezes semelhantes a poemas, lidavam com elementos não musicais em seus extremos mais radicais. No conjunto Compositions 1961 , de Young, encontra-se o centro da discussão levantada por Flynt. A composição #2 (“Faça um pequeno fogo”) lidava com a ideia de sons muito diminutos como peças musicais, e a composição #6 (“Deixe voar uma borboleta (ou um grupo de borboletas) pelo local da performance”) propunha um evento sem sons audíveis pelo homem e não lidava com nenhum tipo de amplificação. Outras, como a composição #10 (“desenhe uma linha reta e a siga”), passavam diretamente para o plano conceitual, e sua execução poderia variar radicalmente entre uma abordagem musical e não musical. Essas composições passaram a integrar a estética neodadá, lírica e apolítica do Fluxus, em muitas variações, de haikus a jogos de palavras e lógica ( PIEKUT, 2011PIEKUT, Benjamin. Experimentalism Otherwise: The New York Avant-Garde and its Limits. Los Angeles: University of California Press, 2011. ). Entretanto, Flynt também chama a atenção para a própria forma como Compositions 1961 era apresentada, desafiando a lógica temporal ao datar as peças arbitrariamente e as exibindo antes da sua, suposta, criação.

[La Monte] Young estava ameaçando apresentar as peças mais vanguardistas do mundo. Lembro-me de quando ele me disse por telefone como as obras seriam listadas no programa. Como ele ditou, ele veio para a composição # 8, datada de 2 de abril de 1961 [o concerto aconteceria em 31 de março]. Ele realizaria 22 composições antes de serem compostas. Em termos lógicos, ele seguiria uma regra que planejara, mas ainda não existia. Do ponto de vista da explicação convencionalista da existência de abstrações, Young estava introduzindo a viagem no tempo no nível de abstrações dadas existentes ou não. (FLYNT apud BRANDEN, 2008, p. 112, tradução nossa)

Flynt, inspirado pelas possibilidades abertas por esse tipo de partitura “desconectada da matéria”, começa a escrever suas partituras verbais, como a peça Possibly by Henry Flynt , que apenas aparecia no programa dos concertos, e a peça Work as Nobody Knows Whats Going On ; essas duas peças dependiam do fato do público acreditar ou não em sua existência, existindo e não existindo ao mesmo tempo. Essas word pieces de Flynt tentam muitas vezes partir de instruções impossíveis de serem praticadas, existindo apenas enquanto objetos de linguagem. Desta maneira fica claro o que Flynt via como a maior conquista de Young até então:

Nas composições de Cage dos anos 50, o público percebeu um evento do qual nenhuma das intenções do compositor podiam ser inferidas. As pequenas partituras de texto de Young foram além das obrigações da música; e eles manifestaram uma espécie de fantasia – paradoxal e autorreferencial – que foi filosoficamente desafiadora. (FLYNT in FLEMING; DUCKWORTH, 1996FLEMING, Richard; DUCKWORTH, Willian (org.). Sound and Light: La Monte Young, Marian Zazeela. Nova Jersey: Bucknell Review, 1996. , p. 45, tradução nossa).

Além das possibilidades de uma relação criativa com a linguagem, há, para Flynt, uma questão claramente ética: existe sentido em chamar isso de arte? Como ele já havia levantado o conflito entre os processos de Cage e seus resultados sonoros, nas word pieces , percebe-se que:

O ponto do trabalho tornou-se algum tipo de jogo estrutural ou conceitual… O público recebe uma experiência que simplesmente soa como caos, mas de fato o que estão ouvindo não é o caos, mas uma estrutura oculta que está tão escondida que não pode ser reconstruída a partir do som… Então eu senti que a confusão entre se eles estavam fazendo música ou se estavam fazendo outra coisa tinha chegado a um ponto que eu achei perturbador ou inaceitável! (FLYNT apud PIEKUT, 2011PIEKUT, Benjamin. Experimentalism Otherwise: The New York Avant-Garde and its Limits. Los Angeles: University of California Press, 2011. , p. 76, tradução nossa).

Esse será o primeiro embate travado por Flynt dentro da vanguarda. Essas peças apresentam uma ideia como se fosse música, e sem haver mais relação alguma entre os sons produzidos pelas peças e as mesmas. Flynt vai chamar isso de “constituição dissociativa”.

Encontro um princípio percorrendo esses casos que chamo de dissociação constitutiva. A dissociação constitutiva pressupõe um gênero com um protocolo padrão. No gênero, situações são estabelecidos por ordenamentos. (A realidade existe por causa da regra de alguém.) Além disso, é costume no gênero que as situações tenham certos objetivos. Uma situação constitutivamente dissociada ocorre porque o instigador da situação altera os objetivos do gênero dos objetivos habituais, sem declará-lo. Uma vez que os objetivos tradicionais são abandonados, o instigador pode fugir ou substituir o protocolo padrão por um protocolo inescrutável (um enigma inventado). (FLYNT in FLEMING; DUCKWORTH, 1996FLEMING, Richard; DUCKWORTH, Willian (org.). Sound and Light: La Monte Young, Marian Zazeela. Nova Jersey: Bucknell Review, 1996. , p. 85, tradução nossa)

Flynt entra em conflito com a figura do artista como autoridade de seu meio, uma vez que o público confia que há relação entre o som e a ideia apenas pela figura do compositor: “ALGUMA coisa deve estar acontecendo!”, pensa o público. “Essay: Concept Art” propõe uma forma de arte que tem como material de trabalho a linguagem, deixando para a arte a expressão mais direta de emoções, direcionada aos sentidos.

Como os ‘conceitos’ estão intimamente ligados à linguagem, a concept art é um tipo de arte da qual o material é a linguagem. Ou seja, ao contrário de, por exemplo, um trabalho de música, no qual a música propriamente dita (em oposição à notação, análise) é apenas sonora, a concept art apropriada envolverá a linguagem. ( FLYNT, 1963FLYNT, Henry. Essay: Concept Art. 1963. Disponível em: http://www.henryflynt.org/aesthetics/conart.html. Acesso em: jun. 2018
http://www.henryflynt.org/aesthetics/con...
, n.p tradução nossa)

Traçando os antecedentes da concept art com a própria arte ocidental no que ele chama de structure art , Flynt ataca diretamente a arte como instituição histórica e política. A structure art , diz Flynt, é uma herança de tempos em que a arte (em especial a música) ainda se considerava uma forma de ciência e tentava dar contribuição a outras esferas, como a astronomia e a arquitetura, como ocorreu na Idade Média, permanecendo em formas tradicionais como a fuga, e mesmo no modernismo serial de Schoenberg, por exemplo, no qual estrutura é mais importante para a leitura que resultado sonoro. As word pieces de La Monte Young, por exemplo, são apenas possíveis de serem apreciadas como linguagem, mesmo porque não produzem som. No entanto, não deixam de ser apresentadas como som. O problema seria que, ao tentar ser som, a estrutura falha, é uma tradução incompleta. Libertando a estrutura do som, temos a concept art ( FLYNT, 1963FLYNT, Henry. Essay: Concept Art. 1963. Disponível em: http://www.henryflynt.org/aesthetics/conart.html. Acesso em: jun. 2018
http://www.henryflynt.org/aesthetics/con...
).

Agora, há duas coisas erradas na structure art . Primeiro, suas pretensões cognitivas são totalmente erradas. Em segundo lugar, ao tentar ser música ou qualquer coisa (que não tem nada a ver com conhecimento) e conhecimento representado pela estrutura, a estrutura da arte falha, sendo completamente entediante como música, e não começa a explorar as possibilidades estéticas que a estrutura pode ter quando libertada de tentar ser música ou qualquer outra coisa. ( FLYNT, 1963FLYNT, Henry. Essay: Concept Art. 1963. Disponível em: http://www.henryflynt.org/aesthetics/conart.html. Acesso em: jun. 2018
http://www.henryflynt.org/aesthetics/con...
, n.p, tradução nossa)

Ao atacar a structure art como um vício histórico de linguagem, um dogma obscurantista herdado desde a Idade Média até as word pieces , Flynt (1963)FLYNT, Henry. Essay: Concept Art. 1963. Disponível em: http://www.henryflynt.org/aesthetics/conart.html. Acesso em: jun. 2018
http://www.henryflynt.org/aesthetics/con...
coloca toda a cronologia da arte ocidental, o mito modernista do artista-cientista, em xeque. Nesse texto, o artista de vanguarda aparece como ou um charlatão ou um ingênuo, que reproduz formatos de linguagem não adequados aos meios, e quando mais teriam algum tipo de relevância para além de seu status dentro da sociedade.

Flynt é motivado por um compromisso ético e também pela inclinação para o pensamento utópico sobre arte, para além de seus antecedentes. Nesse sentido, é importante entender o lugar que a vanguarda deveria ocupar no mundo, para Flynt. Neste momento, é preciso desconstruir a leitura da própria vanguarda, igualando vanguarda e tradicionalismo por meio do uso de estruturas, formas mortas e herméticas, que amplificam a ruptura entre arte e cultura.

O que Flynt chama de “neo-dadá pós-cage” (in FLEMING; DUCKWORTH, 1996FLEMING, Richard; DUCKWORTH, Willian (org.). Sound and Light: La Monte Young, Marian Zazeela. Nova Jersey: Bucknell Review, 1996. ) não está livre de estruturas e, portanto, das mesmas colunas fundamentais que sustentavam tudo aquilo que eles diziam querer destruir ou negar, a tradição e os sistemas que a propagavam. Mesmo Cage, que dizia escapar das estruturas através da auralidade aleatória, acabava reproduzindo, em termos puramente sonoros, os mesmos resultados do serialismo (Ibidem).

Como Cage logo anunciaria, seu objetivo seria confrontar o ouvinte com o ruído acidental. […] As soluções resultantes não soaram ao ouvinte leigo de todo diferente de um serialismo pontilista. (FLYNT in FLEMMING; DUCKWORTH, 1996, p. 46, tradução nossa)

Os exemplos dados por Flynt em “Essay: Concept Art” de quão boa pode ser a música desprovida de uma estrutura de linguagem são um indicativo claro de quais seriam seus rumos.

A propósito, quem disser que obras de música de estrutura têm ocasionalmente valor musical não sabe como é boa a música real (o Goli Dance do Baoule; "Cans on Windows" de L. Young; o hit contemporâneo "Sweets for My Sweets" , pelos Drifters) pode ser. ( FLYNT, 1963, nFLYNT, Henry. Essay: Concept Art. 1963. Disponível em: http://www.henryflynt.org/aesthetics/conart.html. Acesso em: jun. 2018
http://www.henryflynt.org/aesthetics/con...
, n.p., tradução nossa)

A Dança Goli de Baoule é um ritual folclórico-religioso de música e dança do povo Baoule, da Costa do Marfim, uma forma de expressão étnica de um povo não europeu. Cans on Windows se refere a 2 Sounds , de La Monte Young, uma peça de sons contínuos em altíssimo volume. E Sweets for My Sweets , uma canção popular do grupo de rock'n'roll negro The Drifters. Flynt aponta como “música de verdade” aquela que dispensa as estruturas como um todo em favor do puro som (a peça de Young), a expressão cultural de povos não ocidentais (onde dança, música e religião se misturam, de forma totalmente oposta à música de concerto ocidental) e uma canção de rock'n'roll , um gênero urbano e popular recente, um exemplo da mais baixa cultura do momento.

A postura de Flynt neste ponto, em elencar culturas musicais externas à alta cultura como superiores à tradição da música ocidental em geral, é praticamente oposta à abordagem de outras culturas por artistas europeus ao longo de todo o século XX. Enquanto a arte busca o “exótico” e o “primitivo”, procurando em outras culturas elementos para renovar a arte ocidental com formas de expressão “fora da civilização”, para Flynt, essas outras culturas são justamente mais sofisticadas que toda a arte baseada em estruturas que dominam a tradição (e vanguarda) eurocêntrica. A dança dos Baoule e a canção do The Drifters lidam com elementos que estão completamente ignorados dentro da structure art , sendo explorados por suas culturas respectivas há muito mais tempo e, portanto, são mais sofisticados. Fica claro também que Flynt não tem problema com estruturas, desde que estas estejam aparentes no objeto e possam ser lidas no resultado sonoro. Flynt desenvolverá ainda mais essa visão, progressivamente politizando seu olhar frente à relação entre a cultura colonial e povos oprimidos. A peça de La Monte aparece como único exemplo que não provém de uma cultura folclórica ou popular, mas da vanguarda. Ao lidar apenas com o som como matéria, sem estrutura alguma para além da duração desse som, a peça de La Monte também se coloca fora do cânone ocidental enquanto procedimento. Flynt logo questionará o lugar ideológico ocupado por uma obra de vanguarda (qualquer que seja) ao não romper com o sistema de crenças que a sustenta.

SEGUNDO ROUND: “FROM CULTURE TO VERAMUSEMENT”, “ART OR BREND?”, “DESTROY SERIOUS CULTURE!”

Talvez a justificativa mais decadente que o artista possa dar sobre sua profissão seja dizer que ela é de algum modo científica. [...] O artista ou entertainer não pode existir sem oferecer seu produto a outras pessoas. De fato, depois de desenvolver seu produto, o artista sai e tenta ganhar sua aceitação pública, para publicitá-lo e promovê-lo, para vendê-lo, para forçá-lo às pessoas. Se o público não o aceita de primeira, fica desapontado. Ele não abandona, mas repetidamente oferece o projeto a eles.

(FLYNT, 1968a, n.p. tradução nossa)

A concept art liberta a prática artística de suas estruturas de linguagem, enfatizando o valor da expressão cultural e da experiência, e buscando um comprometimento empírico. No entanto, essas estruturas também são reproduzidas devido às expectativas sociais diversas (as estruturas da arte continuam a ser reproduzidas não por um valor intrínseco à forma, mas por essa forma ser socialmente reconhecida como arte), cristalizando-se no que Flynt chama de “cultura séria”, as formas de arte institucionalizadas e socialmente aceitas pelas elites e, consequentemente, pelo resto da sociedade. Os conceitos de Flynt sobre a “cultura acogninitiva”, veramusement ou brend (o nome do conceito oscila, mas acaba se fixando em brend ) estão em embate com essas estruturas sociais da arte, da mesma forma que a concept art confronta as estruturas linguísticas da arte. Em “ART or BREND?” (1968a), Flynt irá propor, novamente, uma forma de expressão que escape dessas estruturas sociais, se concentrado sobre a experiência e percepção do indivíduo.

Enquanto a concept art lida apenas com a linguagem, o brend resume atividades simultaneamente externas à linguagem, ao pensamento e às convenções sociais. Brend é uma atividade exclusiva de cada indivíduo, realizada para seu próprio prazer, porque ele “se sente à vontade para fazer” (Ibidem), e que, se compartilhada socialmente, perde seu sentido (em uma de suas palestras sobre o conceito, Flynt se recusa a dar exemplos, pois uma vez verbalizadas essas atividades deixariam de ser atividades acognitivas). O brend no entanto, uma vez que não passa pela linguagem, é uma atividade perceptiva a ser experimentada apenas pelo executante. Qualquer tentativa de associar significados a uma ação para além de si mesma parece ser para Flynt essencialmente desonesta.

Considere todos os seus feitos, o que você já faz. Exclua a satisfação de necessidades fisiológicas, atividades fisicamente prejudiciais e atividades competitivas. Concentre-se em autodiversão ou brincadeira espontânea. Isso, ao concentrar em tudo que você faz porque você gosta, porque você gosta disso enquanto você faz [...] esses just-likings são seu BREND. (FLYNT, 1968a, n.p., tradução nossa)

O brend pretende emancipar atividades humanas que estariam mesmo “abaixo da baixa cultura” ( JOSEPH, 2011JOSEPH, Branden W. Beyond the Dream Syndicate: Tony Conrad and the Arts After Cage. Cambridge, MA: Zone Books; MIT, 2011. ). O conceito em si não teria nenhum impacto na arte, uma vez que descrevia algo que, aparentemente, sempre existiu enquanto experiência. A questão que permanece é que a “cultura séria” se sustenta sobre falsas premissas: no texto anterior, Flynt apresentava a structure art como baseada em premissas falsas e modelos medievais, falhando tanto enquanto arte como estrutura. A separação das estruturas implica enfatizar expressão cultural e material, mas nos textos sobre o brend e a “cultura acognitiva”, Flynt questiona o lugar social de qualquer expressão artística: muito do que é tido como arte o é baseado apenas em estruturas e convenções e heranças sociais, tomadas por Flynt como sistemas de controle. Se o interesse de Flynt era a construção de novas possibilidades de expressão para além dessas instituições, nenhuma dessas opções é válida; é preciso voltar-se para o indivíduo, para aquilo que parte do indivíduo para ele mesmo, atividades insignificantes tanto intelectual quanto socialmente, que escapam de toda estrutura por ele denunciada. Flynt, em 1968, apresentava o brend como um substituto da arte, uma forma de expressão liberada de convenções sociais e intelectuais. O brend devia ser então promovido, e a arte, eliminada, e é nesse ponto que as atividades de Flynt tomam a forma de militância anti-arte.

O novo conceito de cultura acognitiva de Flynt deveria estar completamente fora de qualquer forma social ou intersubjetivamente reconhecida; não era alta arte (cultura séria), nem baixa arte (entretenimento ou recreação); buscou escapar até à codificação da escrita, gravação, memória e pensamento. ( JOSEPH, 2011JOSEPH, Branden W. Beyond the Dream Syndicate: Tony Conrad and the Arts After Cage. Cambridge, MA: Zone Books; MIT, 2011. , p. 112, tradução nossa)

No conceito de brend , é essencial o associar à percepção e à experiência. A ideia de compor uma música sozinho não é brend , pois a própria ideia de música pressupõe a apreciação por outro, mas o ato distraído de fazer uma concha com as mãos próxima aos ouvidos talvez fosse brend , desde que não compartilhado. O brend parece ser um tipo de expressão pessoal inconsciente, um impulso criativo que surge em momentos de distração e que é satisfatório por si só. O brend é uma atividade expressiva do indivíduo que está, na sociedade, em uma posição ainda inferior à da “baixa cultura”. A ideia de substituir a arte em sua totalidade pelo brend é tão absurda que pode parecer ficção científica, mas, no entanto, suas críticas à arte como instituição social fazem muito sentido. Por um caminho muito torto, Flynt está questionando o marcador universal da arte, e camada por camada apresentando as bases materiais particulares dessa instituição. A proposição do brend é próxima de um exercício de lógica e filosofia especulativa. É curioso também ler a resposta às suas propostas. O documento “Down With Art!” (1968b), escrito por Flynt e publicado por Georges Maciunas, consiste no texto “ART or BREND?” (1968a) seguido de cartas-resposta de outros artistas para quem Flynt enviou suas ideias. Terry Riley é especialmente agressivo, ecoando os mesmos registros deixados pelos antagonistas de Flynt dentro do grupo Fluxus

Um dia, um garotinho levantou-se e olhou para seus brinquedos, avaliou-os e decidiu que eles não tinham valor para ele, assim os abandonou. Vendo os outros cegamente e alegremente apreciando seus brinquedos, ele lhes ofereceu uma longa e radical “nova teoria” de “pura recreação” para o prazer, mas antes de entrar para esta altamente secreta “teoria revolucionária”, eles devem seguir seu exemplo e participar de uma pequena iconoclastia do século 20. (RILEY apud FLYNT, 1968b, n.p., tradução nossa)

O desenvolvimento teórico de Flynt já apontava para um rompimento ainda maior com o mundo da arte e da vanguarda. Suas ideias tomaram corpo político no plano social quando, organizados por Flynt, protestaram em frente ao MoMA de Nova Iorque ele, Tony Conrad e o cineasta Jack Smith portando placas com os dizeres “DESTRUA A CULTURA SÉRIA!”, “DESTRUAM OS MUSEUS!”, “ABAIXO A ARTE!” enquanto distribuíam folhetos de seu texto “From Culture to Veramusement”. Em “Down With Art” (1968b), temos também uma descrição da palestra dada por Flynt no dia seguinte, que ajuda a contextualizar a natureza de seu projeto.

Na quinta-feira à tarde, 28 de fevereiro, no loft de Walter de Maria, Henry Flynt deu uma longa palestra onde expunha a doutrina base. Entrando na sala, o visitante encontrava-se pisando sobre uma reprodução da Mona Lisa utilizada como capacho. De um lado havia uma exibição das fotos da demonstração e assim por diante. Atrás do palestrante havia uma grande imagem de Vladimir Maiakovski, enquanto do outro lado tínhamos os cartazes utilizados na demonstração. […] O palestrante primeiro apresentou o sofrimento causado pelo elitismo esnobe da Cultura Séria, suas tentativas de forçar indivíduos a se alinharem a coisas que supostamente deveriam ter uma validação objetiva, mas, na verdade, representam gostos subjetivos externos [ao indivíduo] sancionados pela tradição. Ele então demostrou como as categorias se desintegraram, e que sua retenção caiu no obscurantismo. […] Finalmente, na parte mais intelectualmente sofisticada da palestra, ele demonstrou a superioridade do veramusement de cada um […] sobre as atividades de lazer institucionalizadas (que impõem gostos externos sobre o indivíduo) e realmente sobre toda a “cultura” que a palestra estava discutindo. Após sua exposição, Flynt demonstrou como sua doutrina havia sido antecipada por algumas ideias pouco conhecidas de Maiakovski, Dziga Vertov e seu grupo. (FLYNT, 1968b, n.p., tradução nossa)

É uma aposta cega, mas que acerta. O projeto de Flynt identifica-se com os textos de artistas soviéticos como Maiakovski e Vertov e aponta um percurso, uma práxis por uma nova cultura, uma práxis que a vanguarda sozinha não dá conta. Com a implosão das categorias de arte, primeiro pelo dadá, e depois por Cage, em que o mundo e a experiência em geral poderiam ser incorporados em uma obra de arte, o que impede que todas formas de expressão possíveis possam ser não apenas incorporadas na prática artística, mas de fato consideradas arte? Flynt está questionando por que, estando aparentemente demolidas as fronteiras entre o que é e não é arte, permanecem as barreiras entre alta cultura e baixa cultura?

O questionamento sobre a separação entre alta (que Flynt chama de “cultura séria”) e baixa cultura não é exclusividade de Flynt, sendo um lugar-comum no Fluxus e na neovanguarda em geral (Rauschenberg, Warhol…), mas Flynt vai além da obra, indagando porquê artistas “sérios” poderiam se apropriar do que é chamado de “baixa cultura” enquanto os produtores dessa “baixa cultura” não seriam considerados artistas “sérios”. Ao estabelecer o fato de, apesar de teoricamente a vanguarda artística ter rompido todas as fronteiras sobre o que poderia ou não ser considerado arte, ainda existir uma distinção presente sobre o que é “cultura séria” e o que não é, Flynt abre espaço para interpretar essa instituição como a arte ocidental em sua totalidade histórica e política. Diferente de uma oposição entre posturas estéticas progressistas (a vanguarda) e conservadoras (o tradicionalismo), a crítica à “cultura séria” de Flynt vai se voltar para a oposição entre posturas políticas revolucionárias e conservadoras (na qual a vanguarda, sob a ótica de Flynt, é enquadrada por não romper com as estruturas sociais e a ideologia que garante seu status ).

No seu ativismo anti-arte, Flynt destruirá todos seus trabalhos artísticos, composições e uma grande parte de registros, no seu compromisso pelo fim da “cultura séria”. Ele vai buscar encontrar formas de expressão artística (culturais) que também escapam do escopo da “cultura séria”. No seu capítulo sobre Flynt, Piekut (2011)PIEKUT, Benjamin. Experimentalism Otherwise: The New York Avant-Garde and its Limits. Los Angeles: University of California Press, 2011. comenta a influência do pensador e poeta negro Amiri Baraka e seu livro Blues People nos desdobramentos da teoria do brend em direção à sua prática musical posterior.

O blues era uma música que surgia das necessidades de um grupo, embora se assumisse que cada homem tivesse seus próprios blues e que os cantaria. Como tal, a música era privada e pessoal. [...] Supunha-se que qualquer um poderia cantar o blues . (PIEKUT in JOSEPH, 2011JOSEPH, Branden W. Beyond the Dream Syndicate: Tony Conrad and the Arts After Cage. Cambridge, MA: Zone Books; MIT, 2011. , p. 85, tradução nossa)

Diferentemente de como ocorre dentro da arte e, em parte, da indústria cultural, é comum que os maiores expoentes de uma forma de expressão popular ou folclórica sejam de fato amadores, não profissionais. Como no brend , o blues em suas origens e desenvolvimentos, carrega este elemento de “ just-liking ”, “aquilo que é feito apenas porque você gosta conforme o faz” (FLYNT, 1968a, n.p.), sem, no entanto, se retrair do campo social para uma prática hiper-individualizada. A música negra ao mesmo tempo estava fora da “cultura séria” e se opunha à arte europeia, com suas estruturas de linguagem e status . Mesmo em “ART or BREND?”, Flynt já aponta essa direção:

Existem exceções. A arte às vezes se torna o único canal para a dissensão política, a única arena na qual as relações sociais opressivas podem ser superadas. (FLYNT, 1968a, tradução nossa)

O conceito de brend , tirado do lugar radical do texto original e aproximado do amadorismo da expressão artística popular de Baraka, articula-se com o pensamento de Marx sobre a arte e a expressão artística em A ideologia alemã:

A concentração exclusiva do talento artístico em indivíduos particulares, e a sua supressão na massa mais ampla que está ligada a esse fato, é uma consequência da divisão do trabalho. Se, mesmo em determinadas condições sociais, todas as pessoas fossem excelentes pintores, isso não excluiria a possibilidade de cada um deles ser também um pintor original, de forma que também aqui a diferença entre o trabalho “humano” e o “único” acumula-se próxima a falta de sentido. Em qualquer caso, dentro de uma organização comunista de sociedade, desaparece a subordinação do artista a estreiteza local e nacional, que surge puramente da divisão do trabalho, e também a subordinação do artista a alguma arte definida, devido a qual ele é exclusivamente pintor, escultor etc., o próprio nome da atividade expressando adequadamente a estreiteza de seu desenvolvimento profissional e sua dependência da divisão do trabalho. Em uma sociedade comunista, não existem pintores, mas pessoas que se engajam na pintura entre outras atividades. ( MARX, 1932MARX, Karl. A ideologia alemã . São Paulo: Editorial Boitempo, 1932. , p. 381)

Enquanto a linguagem de estruturas da vanguarda eurocêntrica depende da existência de especialistas que possam traduzir a importância de determinados códigos, as formas de expressão que Flynt chama de autóctones não dependem nem ao menos de que seus intérpretes sejam especialistas, ao contrário da vanguarda.

Ao tomar frente contra a “cultura séria”, Flynt também assume um compromisso de evitar que as formas fora da “cultura séria” sejam assimiladas pela mesma. Mas diferentemente de uma abordagem purista em busca de práticas culturais preservadas dos conflitos sociais (a busca pelo verdadeiro blues , pela música popular mais pura etc.), Flynt vai procurar pelo ponto de maior contradição: o rock'n'roll negro, que ele apresentará no seu texto “Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture!” (1965) como o caso de uma música popular com origem étnica que consegue se aproximar suficientemente da indústria cultural para se apropriar de seus meios e tecnologias, superando assim as suas origens pré-industriais e tomando um lugar de força dentro do contexto capitalista.

TERCEIRO ROUND: “COMMUNISTS MUST GIVE REVOLUTIONARY LEADERSHIP IN CULTURE”, “STOCKHAUSEN - PATRICIAN ‘THEORIST’ OF WHITE SUPREMACY GO TO HELL!”

O radicalismo das propostas de Flynt, como o concept art e o brend , quando contrastado com a perspectiva de expressão tão popular como o rock'n'roll abraçado por Flynt, parece adquirir o significado literal de avant-garde ; a força que abre caminho, em direção a um potencial para novas abordagens. A pura linguagem da concept art e a expressão antissocial livre e disforme do brend são ambas estratégias para eliminar as convenções exteriores à própria ação em si. É neste espaço utópico de renovação total, sem o comprometimento com estruturas conceituais ou sociais, que surge a possibilidade para o novo. No entanto, dado o comprometimento de Flynt com o pensamento revolucionário, esse novo deveria ser construído a partir do quê? As formas populares de expressão nunca estiveram longe da atenção de Flynt, e são o foco do texto discutido neste round , no qual Flynt (1965)FLYNT, Henry. Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture . Nova Iorque: World View Publishers, 1965. propõe a música negra urbana como a base para o desenvolvimento de uma cultura revolucionária nos Estados Unidos. Essa forma de expressão estaria simultaneamente distante das estruturas eurocêntricas que ele ataca em concept art e das convenções sociais elitistas da “cultura séria”, apontando para seu valor intrinsecamente político como forma de expressão de uma cultura subjugada que mesmo assim consegue competir com a cultura branca dominante.

Nesse momento, em 1966, Flynt rompeu com a vanguarda artística em seu ativismo anti-arte e filiou-se ao partido marxista-leninista World Workers Party (WWP). Um ano antes de “Communists Must Give...”, Flynt já havia feito seus protestos contra o compositor Karlheinz Stockhausen e publicado folhetos denunciando sua visão elitista e eurocêntrica como uma extensão do imperialismo e colonialismo europeus em uma linguagem marxista e radicalizada:

A dominação da arte plutocrática europeia branca e imperialista condena-o a viver entre massas brancas que têm um medo doente de ser contaminadas pelo “primitivismo” das culturas das pessoas de cor. Sim, e é esse racismo cultural doentio, não a música "primitiva", a verdadeira barbárie. (FLYNT in JOSEPH, 2011JOSEPH, Branden W. Beyond the Dream Syndicate: Tony Conrad and the Arts After Cage. Cambridge, MA: Zone Books; MIT, 2011. , p. 202, tradução nossa).

A crítica de Flynt a Stockhausen vai além das questões levantadas em concept art e em seu ativismo anti-arte ligado ao brend , aqui ele efetivamente associa a arte de vanguarda ao eurocentrismo e à degradação da expressão cultural de povos colonizados. Flynt (1964) acusa Stockhausen de menosprezar o jazz , o blues e a música não europeia como um todo, em favor de um projeto que perpetua o domínio branco/europeu da música séria. Novamente, voltando ao trecho inicial de “ART or BREND?”: “Talvez a justificativa mais doentia que o artista pode dar para sua profissão seja dizer que ela é de alguma forma científica” (FLYNT, 1968a, n.p., tradução nossa). Flynt associa a postura pseudocientífica do modernismo europeu à dominação cultural, Stockhausen, ao produzir leis e conceitos ( “scientific laws” ) para as artes, elevando o modernismo a um tipo de ciência avançada da cultura, perpetuaria os discursos da supremacia cultural europeia e o uso de estruturas criticadas por Flynt em “Essay: Concept Art”, elevado agora a novas alturas de hermetismo.

Nessa crítica à arte ocidental em geral, Flynt (1965)FLYNT, Henry. Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture . Nova Iorque: World View Publishers, 1965. coloca-se ao lado das minorias, contra “these whites” . Especialmente enquanto membro do WWP, um partido alinhado com as lutas anticoloniais e que advogava a luta dos direitos civis do movimento negro como uma luta anticolonial mundial. Neste sentido, denuncia também Cage como perpetrador do discurso oficial de superioridade da alta cultura em suas diversas formas, já que ele era conhecido por menosprezar o jazz com base na “pobreza opressora de um compasso constante” (FLYNT, 1982). Outra crítica de Flynt é o caráter imperialista do olhar que Cage, conhecido por seu apreço pelas filosofias orientais, tem sobre outras culturas, ao se apropriar delas, enterrando-as em um lugar subordinado aos seus próprios projetos

Devemos observar cuidadosamente como Cage usou referências a tradições asiáticas para tecer seu programa – um programa que os asiáticos tradicionais não teriam reconhecido. Em 1946, em uma de suas publicações mais importantes, Cage comparou a música hindustani com Schoenberg: alegando que ambas estavam rigidamente estruturadas. O efeito dessa interpretação foi de assimilar a música hindustani à primazia do sistema organizacional – desconsiderando totalmente a experiência do ouvinte (ou do improvisador) (FLYNT in FLEMMING; DUCKWORTH, 1996, p. 45, tradução nossa).

No texto “Communists Must Give...”, Flynt, junto de George Maciunas, sequestra o papel de dirigente do partido e aponta como deve a militância comunista promover a música negra, sugerindo que troquem suas coleções de discos, ouçam e toquem apenas “street-negro music” em festas e confraternizações, como também que não promovam nada ligado à arte eurocêntrica ou folclórica branca. O texto orienta, de certa forma, uma “revolução cultural” da militância branca.

Em geral, para cada nação há uma cultura musical comum que é a criação espontânea daqueles trabalhadores agrícolas e depois dos trabalhadores da cidade que não são alpinistas sociais e não podem deixar de ser pobres. Na verdade, geralmente é uma fusão de música, dança e poesia – que é feita ou assistida, mas não ‘performada’. [...] Essa música-dança já é o símbolo original dos oprimidos. Em uma frase: “street-negro music”. [...] O que esses brancos temem é, na verdade, um tipo de vitalidade que a cultura desses povos oprimidos tem, que não é nem sonhada por seus mestres brancos. Você perde essa vitalidade. Assim, ninguém que se aferra à dominação da arte europeia patrícia pode ser culturalmente revolucionário – não importa o que mais ele seja. ( FLYNT, 1965FLYNT, Henry. Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture . Nova Iorque: World View Publishers, 1965. , n.p., tradução nossa).

Em “Communists Must Give...”, Flynt assume a música como expressão cultural, e não como arte ( art-music ), e usa o termo music-dance para descrevê-la. A música-dança alinha-se com os exemplos citados em “Essay: Concept Art”, no qual ele aponta o grupo negro The Drifters e a dança Goli dos Baoule. Também há uma questão utilitarista, alinhada com as preocupações de artistas soviéticos como Maiakovski e Vertov: uma música útil deve ser dançável. A importância da dança é interessante, pois é uma forma de expressão em que o público e artista dividem de alguma forma a experiência sonora horizontalmente. Flynt (1965)FLYNT, Henry. Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture . Nova Iorque: World View Publishers, 1965. aponta que é a “street-negro music” (RnB, jazz e o rock'n'roll) uma forma de expressão cultural genuína e completa, originada dentro de comunidades socialmente oprimidas e inserida na indústria cultural, na medida em que seus artistas se utilizam da tecnologia sonora de ponta (efeitos de estúdio e técnicas de gravação avançadas) e estão, como o proletariado, mais próximos dos meios de produção. A apropriação de novas tecnologias não serve para diluir a autenticidade e vigor de uma expressão étnica, mas justamente o contrário: estabelece um lugar de resistência revolucionário, chegando a substituir as formas de expressão brancas “mesmo dentre as massas brancas” ( FLYNT, 1965)FLYNT, Henry. Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture . Nova Iorque: World View Publishers, 1965. .

Ao contrário do jazz , em sua época, o rock não havia sido elevado a outro patamar dentro da hierarquia cultural, o que para Flynt era um ponto positivo, pois significa que ele não se adequou à “cultura séria”. E, ainda, o rock não havia perdido o que Flynt ([1982], 2002) chama de “traços étnicos”, no sentido do gênero ainda trazer uma profunda marca cultural, relacionado diretamente com as condições sociais das comunidades negras nos Estados Unidos. Em “Communists Must Give...”, Flynt não apenas aponta a música urbana negra como a mais coerente com o pensamento revolucionário, mas também ataca a resistência dos próprios comunistas brancos em não reconhecer estas formas de expressão e insistirem em se engajar nas formas eurocêntricas da música erudita e “de protesto” (o folk ).

Os rostos dos comunistas voltados para a velha música da burguesia europeia, mesmo que não saibam muito sobre isso; mesmo que eles não possam analisar a Grosse Fuge ou uma Sinfonia de Bruckner – mesmo que nunca tenham ouvido a inserção de sincopações de Sumite Karissimi – ou dos Faugues. Sua ideia de música popular é música popular europeia, música anglo-americana, música Mitch Miller. Eles vão fabricar os sofismas mais tortuosos para provar que a música negra é "corrupção burguesa" – mas é claro que a Missa Solene de Beethoven em Ré não é. Os comunistas derivam o autorrespeito de serem demasiado “orgulhosos” para as danças “vulgares, barulhentas e inúteis”. Eles se sentem ameaçados pela música de rua negra como se fosse um poço sem fundo de alcatrão. ( FLYNT, 1965FLYNT, Henry. Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture . Nova Iorque: World View Publishers, 1965. , n.p., tradução nossa).

Nos textos de Flynt, a questão da dominação colonial e as agressões imperialistas à autodeterminação dos povos se sobrepõem, em parte, às questões de classe, e nesse sentido Flynt não vê problemas em exaltar uma forma de expressão que se desenvolveu dentro da indústria cultural. Sua visão é profundamente dialética, conseguindo compreender as contradições do objeto que observa, dentro de seu movimento. Flynt sustenta, inclusive, que mesmo que ocasionalmente tenha um conteúdo reacionário, a música popular negra está muito mais à frente do que qualquer iniciativa branca engajada, justamente por ser a expressão de um sujeito oprimido. Nesse sentido, mesmo sem o citar em seus textos, podemos associar sua postura ao conceito de contradição interna de Mao Zedong, no qual uma contradição maior (proletário versus burguesia) pode conter em sua composição outras contradições (culturas subjugadas versus imperialismo cultural) sem que estas se anulem; assim, é preciso saber diferenciar as “contradições no seio do povo” daquelas da luta de classes ( STÉDILE, 2019STÉDILE, Miguel Enriques (org.). Mao Zedong e a revolução chinesa: método de direção e desafios da transição ao socialismo. São Paulo. Expressão Popular, 2019. ).

Este ponto é importante, pois, em sua luta contra a “cultura séria”, Flynt está em um embate simultâneo contra não apenas o que seria a cultura burguesa dominante, mas a cultura eurocêntrica dominante. Flynt vê nas formas de expressão populares de outras culturas (e reafirma que a cultura popular europeia, apesar de existir, foi diluída ao nível de não contar com mais nenhum vigor) uma forma de escapar à reprodução incessante de estruturas concebidas pela cultura europeia e imperialista. Flynt propõe uma espécie revolução cultural, mas sem sugerir que a expressão cultural dos subjugados necessita de qualquer forma de melhora ou sofisticação: comparadas às formas dominantes, que ele afirma em “Essay: Concept Art” e “ART or BREND?” serem sustentadas por estruturas sociais e de linguagem, as formas de expressão cultural como o rock e o jazz possuem sofisticação e profundidade genuínas. Anos depois, no texto “The Meaning of My Avant-Garde Hillbilly and Blues Music” (1982), Flynt vai dizer sobre a música étnica:

O melhor das linguagens musicais que incorporam a tradição de experiência das comunidades autóctones é excepcionalmente valioso por sua especificidade de sentimento e paixão, seu envolvimento holístico, sua expressão de possibilidades humanas extraordinárias e elevadas. Elas transmitem algo que não estou disposto a ignorar. (FLYNT [1982], 2002, n.p., tradução nossa)

Antes mesmo de elaborar a relação entre a música negra e o pensamento revolucionário, Flynt já havia colocado a música não ocidental em um alto patamar em relação à cultura erudita europeia. Em “Essay: Concept Art” e “ART or BREND?”, conforme expusemos, isso já está presente. É importante retomar que, antes de se interessar pelo rock’n’roll negro, Flynt já havia sido convertido pelas experiências mais avançadas do jazz , que ele aponta na obra de John Coltrane e Ornette Coleman: o free jazz .

Historicamente, o free jazz estabelece-se como a primeira experiência de rompimento sistemático com sistemas da arte ocidental e europeia a partir de uma expressão cultural de origem popular, o jazz . De diferentes formas, artistas como Ornette Coleman, John Coltrane, Sun Ra e Albert Ayler romperam com as estruturas que definem a música como som organizado para encontrar outras formas e lógicas de expressão. O free jazz rompe com o bebop (de complexidade harmônica, melódica e rítmica cada vez mais intrincada, mas ainda dentro dos 12 tons e da teoria musical europeia em geral) para explorar o som por uma perspectiva calcada na sua experiência como matéria. Ao implodir a teoria musical, o free jazz pode se aproximar da vanguarda enquanto abordagem, sem, no entanto, tomar parte na instituição. Por mais que o resultado sonoro possa se assemelhar ocasionalmente, o free jazz parte de uma prática física e processos outros que pontuam a relação entre o instrumentista e seu som. A crítica que Flynt (1963)FLYNT, Henry. Essay: Concept Art. 1963. Disponível em: http://www.henryflynt.org/aesthetics/conart.html. Acesso em: jun. 2018
http://www.henryflynt.org/aesthetics/con...
formula à structure art pode ser aqui contextualizada. Esses artistas produzem uma música nova e sofisticada, lidando com o som como matéria ainda dentro de sua tradição, perfeitamente reconhecíveis como pertencentes a uma linguagem. Como diz Litweiller (1990)LITWEILLER, John. The Freedom Principle: Jazz after 1958. Cambridge, MA: Da Capo Press, 1990. sobre Albert Ayler, o free jazz está à parte da vanguarda branca:

Antes de Albert Ayler, os artistas de jazz aceitavam – como eles aceitavam a necessidade de respirar – que a música era fundada em ritmo e escalas. Não, disse Ayler; a música começa com o próprio som e, a partir dele, você pode criar as relações que deseja sem a bagagem da teoria. As descobertas de Ayler não têm nada a ver com desenvolvimentos paralelos na música ocidental – minimalismo, música aleatória, as muitas escalas de Partch, composição eletrônica. Essas práticas tendem a resultar de teorias musicais, enquanto a fonte da música de Ayler estava em tocar o saxofone com as mãos e a respiração e os nervos e a mente. (LITWEILER, 1990, p. 170, tradução nossa)

A implosão das escalas e acordes em pura matéria sonora e energia de John Coltrane não emerge de um formalismo pseudocientífico, mas de uma prática intensa e rigorosa de exploração formal dentro da linguagem do jazz . Coltrane elabora sua busca espiritual no fazer artístico para além de um atavismo pré-industrial bucólico, mas para o futuro, assumindo um lugar de exploração formal que não se compromete com ideais de beleza anteriores e, principalmente, ocidentais.

Este é o mundo que Coltrane percebeu. O valor não reside na descoberta, mas na busca e na luta do explorador. A insatisfação é eterna; a beleza do “espiritual” não pode ser desenvolvida em seus próprios termos, mas deve ser violada e depois abandonada; [A composição] "India" também depende do estabelecimento, depois da abolição da beleza. Os reflexos não toleram a pausa que a beleza proporciona, e a nobreza desses temas está além da capacidade do homem moderno de cultivar. Assim, as improvisações subsequentes são fragmentadas e finalmente brutalizadas, como a consciência, vislumbrando a liberdade na liberdade harmônica, combate o inconsciente, com suas batidas e simetrias, pela liberação. (LITWEILER, 1990, p. 955, tradução nossa)

Quando Flynt ([1982], 2002) cita Ornette Coleman e John Coltrane, acena para essa prática híbrida na qual uma forma de expressão cultural (estranha à arte como instituição) consegue estabelecer critérios, apropriando-se da vanguarda enquanto ferramenta crítica da arte burguesa, como aponta Burger (1974). A exploração formal do free jazz ataca as amarras ocidentalizadas do jazz como prática autônoma, em um contexto de resistência à opressão racial. O free jazz busca, ao mesmo tempo, o futuro e o passado no som no lugar de um presente opressor. Assim como diz Flynt (1965FLYNT, Henry. Communists Must Give Revolutionary Leadership in Culture . Nova Iorque: World View Publishers, 1965. , n.p.), a “ street-negro music já é o símbolo vital dos mais oprimidos”.

O caminho feito por Flynt nesses três manifestos é um caminho de propostas especulativas, de expansão de perspectivas de liberdade a partir da arte. Em “Essay: Concept Art”, Flynt propõe libertar a linguagem de expectativas expressivas. No conceito de brend , estamos especulando sobre a possibilidade de expressão livre da linguagem. Até aí, nos parece que são propostas bastante estranhas carregam superficialmente algo da excentricidade das vanguardas, almejando liberdade e buscando novos potenciais de futuro. É no “Communists Must Give...” que Flynt vai especular o que, na prática, parece o mais radicalmente imaginativo: quão forte pode ser a expressão cultural do povo oprimido, uma vez livre dessa opressão? Ora, ele vai dizer com todas as letras: esta é a forma cultural mais avançada dos nossos tempos, e é brutalmente suprimida pelo racismo. O que poderá ser? É uma aposta na construção de um futuro, mas baseada em dados materiais e concretos. Através desses ensaios, Flynt vai da abstração ao concreto, em um percurso materialista de construção do conhecimento, trazendo a abstração de volta à terra, por todas as especificidades históricas e relações materiais. Suas propostas de liberdade caminham da linguagem para a experiência, para chegar finalmente às pessoas (negras!) de carne e osso que constroem este mundo com suas mãos. Flynt, de certa forma, percorre o caminho que Louis Althusser vê como a filosofia dentro da luta de classes, no qual o projeto filosófico só pode se desenvolver juntamente com as conquistas materiais da classe e a libertação dos povos:

A batalha filosófica pelas palavras é uma parte da luta política. A filosofia marxista-leninista só poderá concluir sua obra teórica abstrata, rigorosa e sistemática se ela lutar tanto pelas expressões fortemente “acadêmicas” (conceito, teoria, dialética, alienação, etc.) quanto pelas mais triviais (homem, massas, povo, luta de classe). ( ALTHUSSER, 1968ALTHUSSER, Louis. A filosofia como uma arma revolucionária . 1968. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/althusser/1968/02/filosofia.htm . Acesso em: 30 mar. 2021.
https://www.marxists.org/portugues/althu...
, n.p.)

Dados seus limites, também podemos ver no percurso de Flynt o que o marxista francês chama de “revolução do instinto de classe do pequeno-burguês”, o que talvez seja o elemento que causa maior estranhamento na obra de Flynt: a forma como um artista de vanguarda se voltou para o marxismo anticolonial como desdobramento natural de seu projeto filosófico e viu, na luta contra a opressão racial, o caminho incontornável para libertar de fato a expressão artística e filosófica das suas amarras.

Uma posição de classe proletária é mais do que um mero "instinto de classe" proletário. É a consciência e a prática que estão de acordo com a realidade objetiva da luta de classe proletária. O instinto de classe é subjetivo e espontâneo. A posição de classe é objetiva e racional. Para atingir as posturas de classe proletárias, o instinto de classe dos proletários necessita apenas ser educado; o instinto de classe dos pequeno-burgueses (e, logo, dos intelectuais) necessita, por outro lado, ser revolucionado. Essa educação e essa revolução são, em última análise, determinadas pela luta de classe proletária conduzida desde a base pelos princípios da teoria marxista-leninista. (Ibidem, grifos no original)

Posteriormente, Flynt vai se desligar do partido e do marxismo de forma mais geral (apesar de manter-se próximo da ideia do comunismo) e declarar seu envolvimento com o movimento revolucionário mundial como uma aliança muito mais tática do que estratégica. Seus interesses em novas possibilidades de cultura e filosofia, atravancadas pelas estruturas vigentes, precisavam ser desafiadas, e o projeto comunista apresentava uma tradição dedicada justamente a isso. Flynt vai se afastar do partido em 1967, logo após um encontro com Marcuse e a leitura do seu livro Marxismo Soviético.

Senti que minha vida havia chegado a um beco sem saída e havia uma tradição revolucionária com a qual eu havia chegado independentemente a algum tipo de acordo, de maneiras que me afetaram muito pessoalmente. E, portanto, foi uma coisa útil a se fazer, envolver-se com o comunismo. ( FLYNT, 1979FLYNT, Henry. [Entrevista concedida a Robert Horvitz] . 1979. Disponível em: https://ubu.com/papers/Flynt-Henry_Interview_1979.pdf. Acesso em: 29 mar. 2021.
https://ubu.com/papers/Flynt-Henry_Inter...
, p. 2, tradução nossa)

Não é uma questão de apresentar o percurso de Flynt como parte integral do movimento comunista e anticolonial do século 20, mas de poder apreender, dentro de seu caminho especulativo muito original, grandes confluências com as lutas anti-opressão incontestavelmente galvanizadas em torno dos movimentos revolucionários reais de sua época, da China até Oakland com a fundação do Partido dos Panteras Negras. Partindo de questões muito internas às discussões formais sobre a terra arrasada do modernismo pós-Cage, Henry Flynt vai chegar a uma afirmação radical não apenas da necessidade de uma revolução socialista, mas de que é essencial cerrar fileiras, ombro a ombro, com os povos oprimidos do mundo. Em especial, o gueto negro de seu país. Flynt nos parece ser um personagem na narrativa da arte que desafia os lugares comuns do debate de arte e política e mesmo arte e revolução, apontando caminhos e conclusões muito originais e pertinentes, mesmo que em sua excentricidade.

Na sua prática artística posterior a essas reflexões, Flynt irá aplicar as colocações de “Communists Must Give” em um movimento de práxis sonora extremamente coerente. Flynt vai elaborar essa prática a partir da música hillbilly do sul dos Estados Unidos, a música dos agricultores brancos empobrecidos. Uma vez que, apesar de ter nascido na região, ele não se reconhece como parte dessa cultura, Flynt se propõe como um “constructo folclórico”, ou seja, ele apresenta a artificialidade de sua empreitada de forma a possibilitar que as suas descobertas e o desenvolvimento da “linguagem étnica” possam ser reivindicados por essa mesma cultura. Da mesma forma que o free jazz e o rock negro puderam informar toda a tradição contínua da expressão comunitária, Flynt vai tentar elaborar uma abordagem não colonial da cultura dos povos, o que demanda cuidado programático.

É curioso como Flynt vai encontrar, de certa forma, um caminho criativo de volta ao cenário da revolta de Bacon de 1676, na Virginia, que “deu origem a uma rebelião de trabalhadores europeus e africanos, que queimaram Jamestown, a capital da colônia, e forçaram o governador a fugir” ( HAIDER, 2019HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019. , p. 85). Essa aliança inter-racial dos pobres oprimidos pela servidão foi crucial para a formulação da raça branca como categoria legal nos Estados Unidos como forma de impedir alianças entre os explorados e fortalecer uma aliança de classes sob o signo da raça. Flynt vai se voltar para música hillbilly desses mesmos brancos empobrecidos, desenvolvendo sua forma a partir de ferramentas da vanguarda, mas também da música afro-americana e indiana. Como ele coloca, “eu tirei o fascismo do bluegrass ” (FLYNT [1982], 2002, n.p.). Esse caminho também denota em sua prática um percurso do abstrato ao concreto.

Os esforços práticos de Flynt para desenvolver sua prática artística “avant-folk” revolucionária serão em grande medida ignorados até muito recentemente, quando seus discos passaram a angariar grande interesse e a ser reeditados. Suas longas “ragas” de violino rural e free country , seu disco de agit-prop-rock gravado com Walter de Maria, seus experimentos formais e minimalistas com a música caipira, estas abordagens radicalmente híbridas causavam muito mais estranhamento antes do que agora.

Para o autor Grubbs (2014)GRUBBS, David. Records Ruin the Landscape: John Cage, the Sixties, and Sound Recording. Durham: Duke University Press Books, 2014. , a música de Flynt apresenta-se totalmente excêntrica ao período, tanto no campo popular quanto erudito, mas parece estranhamente familiar agora, quando muitas dessas barreiras entre baixa e alta cultura foram superadas do discurso artístico e estudos do pós-colonialismo, por exemplo, já trabalham em desconstruir a superioridade da arte europeia.

No caso de Flynt, o apelo contemporâneo – além do caráter inflamado e geralmente inspirado de sua música e do teor sem concessões de seus escritos e entrevistas – é que sua música não seguiu esquecida por causa de sua natureza “avançada”, mas sim por causa de seu sincretismo. ( GRUBBS, 2014GRUBBS, David. Records Ruin the Landscape: John Cage, the Sixties, and Sound Recording. Durham: Duke University Press Books, 2014. , p. 42, tradução nossa)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2021
  • Aceito
    10 Jun 2021
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