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A “IMAGEM-SINTOMA” EM GEORGES DIDI-HUBERMAN* * Este artigo é derivado de um capítulo de minha dissertação de mestrado intitulada “Imagens em Georges Didi-Huberman”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte, da Universidade de São Paulo, em 2023. DOI:10.11606/D.93.2023.tde-22052023-104858.

THE “IMAGE-SYMPTOM” IN GEORGES DIDI-HUBERMAN

LA “IMAGEN-SÍNTOMA” EN GEORGES DIDI-HUBERMAN

RESUMO

Este artigo apresenta uma introdução ao pensamento de Georges Didi-Huberman, no que se refere à sua leitura do conceito de “sintoma”, de “figurabilidade” e de outros aspectos da psicanálise freudiana, como chave de interpretação crítica às noções de representação, semelhança e imitação, bem como ao método iconológico de matriz panofskiana. O artigo demonstra como esses conceitos são operados pelo autor, colocando em questão o dispositivo mimético e reivindicando uma abertura no regime de visibilidade da pintura que dê lugar à sua figuralidade. Ao evocar a ideia de uma “imagem-sintoma”, Didi-Huberman propõe uma ruptura com os esquematismos da crítica e da historiografia da arte.

PALAVRAS-CHAVE
Georges Didi-Huberman; Sintoma; Figurabilidade; Representação mimética

ABSTRACT

This article presents an introduction to Georges Didi-Huberman’s thought, focusing on his interpretation of the concept of “symptom”, “figurability”, and other aspects of Freudian psychoanalysis, as a critical interpretation of notions of representation, resemblance and imitation, as well as of the Panofsky’s iconological method. The article demonstrates how these concepts are operated by the author, questioning the mimetic device and claiming an opening in the regime of painting’s that gives way to its figurability. By evoking the idea of an “image-symptom”, Didi-Huberman proposes a rupture with the schematisms of art criticism and historiography.

KEYWORDS
Georges Didi-Huberman; Symptom; Figurability; Mimetic Representation

RESUMEN

Este artículo presenta una introducción al pensamiento de Georges Didi-Huberman, en lo que respecta a su lectura del concepto de “síntoma”, “figurabilidad” y otros aspectos del psicoanálisis freudiano, como clave de interpretación crítica a las nociones de representación, similitud e imitación, así como al método iconológico de Panofsky. El artículo demuestra cómo estos conceptos son operados por el autor, cuestionando el dispositivo mimético y reivindicando una apertura en el régimen de visibilidad de la pintura que dé lugar a su figurabilidad. Al evocar la idea de una “imagen-síntoma”, Didi-Huberman propone una ruptura con los esquematismos de la crítica y de la historiografía del arte.

PALABRAS CLAVE
Georges Didi-Huberman; Síntoma; Figurabilidad; Representación mimética

A formação acadêmica do filósofo, crítico e historiador da arte, Georges Didi-Huberman (1953-) se insere no contexto do pensamento artístico francês dos anos 1970, estreitamente vinculado à investigação do “inconsciente freudiano”, tal como comenta o autor no posfácio de Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière (2015b), livro resultante de sua tese de doutorado orientada pelo filósofo Hubert Damisch (1928-2017). Trata-se de um período em que sociólogos e semiólogos da arte começaram a articular a teoria lacaniana, questionando “o estatuto da interpretação simbólica”, interpretado por Didi-Huberman como uma união particular entre a “obra de Freud com a iconologia de Erwin Panofsky”. Paralelamente, a teoria psicanalítica também seria evocada pelo filósofo Jean-François Lyotard (1924-1998), compreendendo a produção artística a partir do ponto de vista de uma “economia libidinal”. Estas abordagens, juntamente com a fenomenologia, notadamente de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e Henri Maldiney (1912-2013), constituiriam as bases teóricas de Didi-Huberman, culminando em seu projeto inicial de doutorado, dedicado a investigar as chamadas “regiões baixas do sintoma”, isto é, as “formas corporais de transgressão”, tais como “bocas ao mesmo tempo abertas e tapadas” e “corpos atolados que se debatiam com impotência e furor”, presentes nas obras do pintor e gravador espanhol Francisco de Goya (1746-1828) (DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 396).

No entanto, após Damisch ter rejeitado seu projeto original, Didi-Huberman o substituiu pelo estudo sobre fotografias de mulheres internadas no hospital Salpêtrière, que apresentavam, segundo o autor, uma espécie de “dor em ação”: “movimentos rememorativos”, que evocavam deslocamentos, reversões e substituições; gestos sutis ou “contorções espetaculares”; uma forma de sofrimento “de reminiscências”; “agitações, repetições, recalcamentos e posterioridades”. Evocando já nesse momento a abordagem psicanalítica e fenomenológica para compreender um tema transversal em sua obra, a saber, o tema da lamentação e do páthos nas imagens, essas fotografias não retratavam uma dor sublimada, mas deveriam ser compreendidas como “imagens-sofrimento”, surgidas “de um plano de imanência - gestual, orgânica e psíquica - chamado ‘contratura’, em particular, ou ‘atitude passional’ [...]: algo que podia ser chamado de sintoma em geral”. (DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., pp. 396- 397).

Nesse estudo inaugural sobre a iconografia fotográfica do asilo La Salpêtrière, Didi-Huberman (Cf 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 15) está interessado em interrogar os discursos, as relações de poder, os desejos e o imaginário envolvidos na produção dessas imagens espetaculares de “histeria”, que se manifestavam como um verdadeiro sintoma. Entretanto, a psicanálise freudiana é incorporada, desde o início de suas pesquisas, não como uma abordagem clínica, mas como uma perspectiva crítica, isto é, interessando-se não pela manifestação do sintoma da cultura na imagem (como fazia a iconologia de Erwin Panofsky [1892- 1968]),1 1 Didi-Huberman também destaca que a abordagem psicanalítica da arte entende os sintomas não como um conceito crítico que demonstra um conflito numa imagem, mas como meros “detalhes”, que denunciam um sentido e que devem ser decodificados por chaves interpretativas iconográficas (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 411). mas em demonstrar que o sintoma é uma noção que pode ajudar a compreender o conflito inerente nas imagens e em nosso olhar. Ou seja, por sintoma, Didi-Huberman busca apontar aquilo que a imagem nos devolve e “o que resiste nela” (PIC, 2018PIC, Muriel. Qu’est-ce que s’orienter dans les images ? Revue Littéraire Mensuelle Europe, Paris, n. 1069 - Georges Didi-Huberman, maio de 2018. , p. 8), como um conflito visual paradoxal; conflito que teria sido observado por Sigmund Freud (1856-1939) em relação às gesticulações “histéricas”:

Num caso que observei [não estou longe de pensar, aliás, que Freud esteja falando de uma observação feita na época de sua temporada em Paris], a doente apertava o vestido contra o corpo com uma das mãos (como mulher), enquanto com a outra, tentava arrancá-lo (como homem). Essa simultaneidade contraditória [diese widerpruchsvolle Gleichzeitigkeit] condiciona, em grande parte, o que há de incompreensível [die Unverständlichkeit] numa situação tão plasticamente representada [so plastisch dargestellten Situation] no ataque, e por isso se presta perfeitamente à dissimulação da fantasia inconsciente que está em ação [Verhüllung der wirksamen unbewussten Phantasie] (FREUD apud DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 398).

Essa descrição de Freud seria a própria descrição de uma imagem-sintoma, isto é, uma imagem paradoxal e em estado de tensão, cuja intensidade plástica busca antes dissimular um conflito interno do que sublimá-lo. Na leitura proposta por Didi-Huberman, a ênfase concedida à noção de “sintoma” como conflito, em detrimento da noção de “subl.0imação”, é central. Pois, ao contrário de uma sublimação compreendida como destinação apaziguadora de pulsões, a ideia de uma imagem-sintoma, Didi-Huberman (2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., pp. 398-400) remete a uma “simultaneidade contraditória”, assimilada enquanto crítica da representação. Assim, diferente da sublimação, a imagem-sintoma resiste à reconciliação, ou síntese, do paradoxo visual, passando a ser definida por uma exposição de conflitos.

A afinidade de Didi-Huberman com a psicanálise não se restringe apenas ao contexto do pensamento francês, mas também é elaborada a partir de sua filiação teórica ao historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) e ao filósofo Walter Benjamin (1892-1940), referências centrais em seu pensamento. Além da remissão explícita de Benjamin à psicanálise, Didi-Huberman (2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 424) traça paralelos entre Freud e Warburg, devido ao próprio interesse deste último pela psicanálise e devido ao interesse de ambos sobre a cultura em sentido ampliado, considerando não apenas a dita alta-cultura, mas também seus “mal-estares” e “sintomas”. No entanto, o contato indireto entre Freud e Warburg, visto que eles nunca chegaram a se conhecer, restringiu-se a algumas cartas trocadas entre o psicanalista e o psiquiatra Ludwig Binswanger - diretor do Sanatório de Kreuzlingen, onde Warburg ficou internado - nas quais fazem observações e comentários acerca do caso clínico do historiador da arte (Cf. WARBURG et al., 2005WARBURG, A. et al. La guarigione infinita: storia clinica di Aby Warburg. Vicenza: Neri Pozza, 2005.).

Nesse sentido, a aproximação teórica entre Freud e Warburg proposta por Didi-Huberman (2015aDIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens / trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2015a., p. 424), é justificada a partir de elementos presentes na própria obra de Warburg. Este teria inclusive se identificado como um “psico-historiador”, utilizando ideias da psicanálise, como a expressão “‘forças destinais’(Schicksalsmächte) das imagens”, que, segundo Didi-Huberman, seria análoga ao termo “destino das pulsões” (Triebschicksale) de Freud. Além disso, a ponte entre os dois parece ser construída seguindo a própria definição de sintoma em Freud e a teoria das imagens delineada em Warburg. Na conferência intitulada “Os caminhos da formação de sintomas”, Freud compreende o surgimento do sintoma “[...] como derivado bastante desfigurado da realização de desejo inconsciente libidinal, uma ambiguidade engenhosamente escolhida, com dois significados mutuamente contraditórios” (FREUD, 2014FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 13: conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917) / trad. Sergio Tellaroli; revisão da trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 478). Esta noção de sintoma enquanto uma desfiguração marcadamente ambígua, que carrega sentidos em contradição mútua, parece crucial para essa aproximação entre Freud e Warburg. Neste ponto, Didi-Huberman destaca como a visão de Warburg sobre as imagens está diretamente relacionada a uma “economia psíquica”, isto é, a uma

(...) economia do inconsciente da qual, seguramente, as imagens são veículos privilegiados (...) por outro lado, a obra de Warburg bem poderia esclarecer o que Freud apreende do mundo cultural - às vezes com instrumentos históricos e antropológicos cuja obsolescência os comentaristas muitas vezes observam - através da dialética dos ‘mal-estares’ e das ‘sublimações’: justamente o que Warburg chamava de ‘psicomaquia’ dos monstra e dos astra (DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., pp. 424-425).

A aproximação entre os dois é uma abordagem inédita na literatura psicanalítica francesa, que só raramente menciona Warburg. Nessas raras menções, Warburg seria frequentemente retomado para evocar “‘o ideal de pureza’ característico da figura da Ninfa como ‘corpo sublimado’” (DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 425), numa interpretação que ignora aquilo que, para Didi-Huberman, seria essencial no pensamento warburguiano: os “monstra”, a intensidade, a polaridade das forças, a dialética sem proposição de síntese, nem sublimação. Como observa Didi-Huberman (2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 425), a “Ninfa” warburguiana, assim como a “Gradiva” freudiana, é “uma figura sintomática por excelência” ou uma “imagem sobrevivente”, para falar nos termos de Warburg, pois atesta o recalcamento (ou a sobredeterminação dos tempos) retornando sempre transformada, ora em sua forma visual ora em seu sentido simbólico. Esta transformação é observada por Didi-Hubermanna obra Crucificação (c. 1470), de Bertoldo di Giovanni (ca.1440-1491), discípulo de Donatello (1386-1466). Na obra, Madalena, que se lamenta na base da cruz enquanto arranca seus cabelos em gesto intenso de dor, figuraria a sobrevivência da “mênade pagã” na produção artística medieval:

O manto tradicional que a cobre pudicamente, na iconografia medieval, transforma-se num véu transparente que revela sua nudez, se não sua obscenidade; sua cabeça virada manifesta um gozo selvagem, bem como a dor ritualizada das lamentações; a grossa mecha de cabelos que ela exibe lamentando ao pé da cruz, tanto oferece o sinal extático de seu luto quanto a lembrança dos pedaços de carne crua que as mênades devoram avidamente em suas festas dionisíacas. Recalcamento houve, sem dúvida, para que tal formação de impureza fosse possível e tolerada na Florença dos anos 1485 (embora saibamos que algumas esculturas de Donatello, dentre elas a célebre Dovizia, em forma de ídolo pagão, foram destruídas pela censura católica) (DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., pp. 425-426).

Ou seja, nesta obra, Didi-Huberman observa que o luto de Madalena encarnaria parcialmente elementos formais e simbólicos de rituais dionisíacos das mênades pagãs da antiguidade clássica. Assim, contrariando a interpretação psicanalítica de que a arte corresponderia a processos de sublimação, no sentido de uma destinação e certo apaziguamento das pulsões, Didi-Huberman retoma o caráter paradoxal e irreconciliável da noção de sintoma, complementando-a com as de impureza e sobrevivência trabalhadas na obra de Warburg, para demonstrar o caráter ambivalente (e, portanto, sintomático por excelência) de toda a imagem, que possibilita a produção de “uma verdadeira teoria crítica - logo, conflituosa - da cultura” (DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 426).

O SINTOMA COMO “RASGADURA” DA IMAGEM

Didi-Huberman encontra na obra de Warburg e de Freud ferramentas para uma crítica do conhecimento no âmbito da história da arte. A esse respeito, o autor afirma que faltaria à disciplina da história da arte uma revisão acerca das “escolhas teóricas” (DIDI-HUBERMAN, 2015aDIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens / trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2015a., p. 71) que legitimam seus objetos de estudo, e a propõe a partir de dois grandes eixos: em primeiro lugar, fazendo uma revisão do conceito de semelhança, haja vista que este conceito teria fundamentado o discurso da história da arte com base no pensamento de Vasari; e, em segundo lugar, fazendo uma crítica à filosofia kantiana (ou neokantiana), que teria se sobreposto à tradição vasariana, no momento de refundação da história da arte como disciplina científica nas universidades europeias, no século XIX. Tendo isso em vista, abordaremos brevemente estas duas críticas de Didi-Huberman, na medida em que ajudam a entender como elas propiciam a formulação de sua crítica ao conceito clássico de representação, a qual é posteriormente articulada junto à psicanálise freudiana.

Dois momentos cruciais do nascimento da história da arte conceberiam, cada um à sua maneira, a “semelhança” como uma relação fundante das imagens:2 2 Um nascimento que não possui uma origem nem fonte única, como argumenta Didi-Huberman. Entende-se que o nascimento da história da arte possuiria vários começos, tornando possível sempre refundar esta disciplina, como demonstrado por Didi-Huberman a partir da perspectiva de Plínio, o Velho (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 72). primeiro, em 77, d.C., com a publicação da História Natural, de Plínio, o Velho, e, posteriormente, em 1550 com a publicação de Vidas dos artistas, de Giorgio Vasari. Por um lado, considera-se que a publicação de Vasari inaugura oficialmente a disciplina, orientada por um regime estético e humanista, em que se separam as artes mecânicas das artes liberais. Nessa divisão, a pintura, a escultura e a arquitetura passam a ser consideradas artes mais elevadas, na medida em que representariam a materialização plástica de um conceito, sendo previamente projetadas por um “disegno” e associadas ao fazer intelectual (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2015aDIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens / trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2015a., pp. 73-75). Os grandes artistas, que foram contemplados na publicação das “Vidas dos artistas”, seriam aqueles que teriam sido bem-sucedidos em incorporar este paradigma platônico em suas obras, conferindo maior semelhança às obras produzidas. Portanto, no momento inaugural da disciplina, o conceito de semelhança referia-se a uma relação de imitação óptica: quanto maior o grau de naturalismo alcançado no objeto representado, a partir de regras de perspectiva, maior o grau de semelhança da obra. Assim, a atribuição do estatuto da grande obra de arte estaria balizada pelo efeito de “vivacidade” e “realismo” que aquela obra conseguisse produzir em relação ao objeto imitado.

Por outro lado, Plínio, o Velho, teria oferecido outra chave de compreensão sobre o que seria a semelhança e como ela operaria na formação da imagem. Para Plínio, a arte não se distinguiria segundo um critério estético, mas corresponderia a tudo aquilo que o “homem utiliza, instrumentaliza, imita ou ultrapassa a natureza”, incluindo a pintura, mas também a medicina, a agricultura ou a arte militar, por exemplo. Ou seja, toda manifestação humana relacionada ao mundo social, jurídico e/ou natural (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2015aDIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens / trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2015a., pp. 73-74). Portanto, não havia ainda o status elevado de obra de arte, como passaram a ser consideradas as manifestações das artes liberais, na época de Vasari. Pelo contrário, naquele momento, a palavra “imago” referia-se à matéria e ao suporte utilizados em práticas ritualísticas (como pigmentação, cera e moldes, que transformavam matéria em objeto). Essa compreensão de Plínio, o Velho, seria a prova de que, em sua origem, a formação da imagem não se baseia necessariamente em um processo de “imitação”, como afirma Vasari, mas em um “processo de impressão”. Como no exemplo da produção de máscaras ritualísticas, um molde de gesso era impresso no rosto para obter a “‘expressão’ física” do sujeito, produzindo máscaras não pelo processo de “imitação ótica”, mas a partir de uma matriz (o próprio rosto).3 3 Questão examinada por Hans Belting em Antropologia da Imagem: para uma ciência da imagem (2014) e em A verdadeira imagem (2011). Neste caso, a produção da semelhança (com o rosto humano) é um processo que acontece pelo contato, isto é, pela aderência da matéria ao corpo. Nesse sentido, essa nova relação de semelhança, que é uma relação tão fundamental na tradição da disciplina da história da arte, coloca em questão os princípios de representação visual tradicionais, introduzindo um novo pensamento sobre as imagens, a partir de um viés social e antropológico mais amplo (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2015aDIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens / trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2015a., pp. 80-81).

Nos séculos XVIII e XIX, período no qual a história da arte surgia como uma disciplina autônoma, a filosofia kantiana se expandiu enquanto uma teoria de crítica da razão, cuja tradição teria sido sustentada pela história da arte canônica. A crítica ao legado ou “tom kantiano” na disciplina é incisiva ao longo de toda obra de Didi-Huberman, embora pareça estar direcionada mais a certa leitura ou interpretação da filosofia kantiana produzida pelos chamados “neokantianos”, na disciplina da história da arte. Especificamente, Didi-Huberman critica a sistematização do conhecimento, que se apoiaria na filosofia kantiana para legitimar a produção de um saber “objetivo”, “científico”, “verdadeiro”. No âmbito da história da arte, esta pretensão teria sido carregada pela metodologia iconológica, que possui como seus expoentes Erwin Panofsky e Ernst Cassirer (1874-1945).

O método iconográfico-iconológico, junto à abordagem formalista, integrou as principais correntes da história da arte no século XX (HATT; KLONK, 2017HATT, Michael; KLONK, Charlotte. Art History: A critical introduction to its methods. Manchester University Press, 2017., p. 96). Embora tenha sido originalmente desenvolvida por Warburg, Panofsky ficou conhecido por sistematizá-lo e difundi-lo, apresentando-o como a “antítese” da abordagem formalista. Assim, a iconologia, tal como formulada por Panofsky, é o “ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma” (PANOFSKY, 1991PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais / trad. Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1991., p. 47). Preocupada com o conteúdo das obras de arte, a análise iconológica inclui questões psicológicas e comportamentais de uma sociedade, extrapolando a identificação estritamente formal de determinado objeto ou fenômeno.

O contato de Panofsky com a iconologia de Warburg ocorre nos anos 1920, a partir de um encontro com Fritz Saxl (1890-1948) e Ernst Cassirer - assistentes da biblioteca de Warburg em Hamburgo. O método divide-se em três etapas, interpretando o “significado” de uma obra a partir da sua análise formal, de seus motivos artísticos e alegorias presentes na literatura, de sua cultura e de seu repertório simbólico. Considerando o estudo da forma, da cultura simbólica e do contexto histórico, a iconologia almeja uma interpretação precisa sobre o conteúdo e o significado de uma obra de arte. Na crítica de Didi-Huberman, as limitações desse método não se devem apenas ao fato de ignorar as obras de arte que não possuem um sentido decifrável, mas porque, em última instância, institui um regime de legibilidade, segundo o qual só podemos ver aquilo que pode ser lido ou, nos termos do autor, segundo o qual só é “visível” aquilo que é “legível”. A pretensão de cientificidade desse discurso teria permitido consolidar a disciplina da história da arte sob a premissa de que seus conceitos e ferramentas metodológicas poderiam garantir a inteligibilidade absoluta da imagem, eliminando qualquer possibilidade de dúvida ou silêncio sobre ela. Em contrapartida, toda imagem que não pudesse ser lida, isto é, codificada segundo um sistema de signos e, portanto, decifrada, também não poderia ser compreendida, pelo menos não dentro da chamada “síntese” iconológica, no sentido de Panofsky.

Essa apropriação da filosofia kantiana pela disciplina da história da arte teria levado a um movimento totalizante de síntese do saber, estipulando “categorias a priori” nas quais todos os fenômenos estariam subsumidos (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 141). Didi-Huberman denomina de “tom kantiano”, ou “neokantiano”, a pretensão de síntese ou de “unidade do conhecimento” que paira sobre a disciplina da história da arte, reduzindo o sensível ao inteligível; a imagem a um conceito; a experiência a uma “forma simbólica” (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 169-170 e 176-179).

Nesse sentido, a revisão proposta por Didi-Huberman renuncia à subordinação da imagem à linguagem, não reduzindo a representação ao discurso do sujeito do saber. Ou seja, segundo Didi-Huberman, a imagem não se reduz a um mero um objeto especular, nem a “representação” ao discurso. Se, por um lado, isso parece implicar uma perda da unidade da razão, por outro, Didi-Huberman defende que a razão e a lógica não devem constituir a totalidade da visão e do saber. Logo, não se trata de renunciar à razão, mas propor uma dialetização entre o discurso que legitima a imagem e a falha de sentido que se impõe sobre o ato do ver (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 185-186 e 190).

Em última análise, o que Didi-Huberman propõe é uma “rasgadura” do conceito clássico de representação e de mimese, baseando-se, sobretudo, nas reflexões sobre o sintoma e o sonho desenvolvidas por Freud. Para o psicanalista, o sonho se constitui como rasgadura, porque ele não é uma representação figurativa de sentido bem definido, e sim um “rébus”, isto é, um enigma figurado, uma justaposição de fragmentos visuais e de significados. Nesse sentido, a interpretação de um sonho não poderia ser extraída baseando-se na aplicação de um sistema de códigos pura e simplesmente, haja vista que a imagem de sonho não possui “a transparência representativa dos elementos figurados” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 192). Ao contrário, ela é sempre uma imagem lacunar, que se apresenta apenas enquanto “vestígio” ou “rastro” daquilo que foi armazenado no inconsciente (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 191-194).

O sonho não sendo nem uma tradução visível do que ele apresenta em imagens, nem uma tradução legível do sentido vulgar que ele pode a princípio evocar, seria um “trabalho de condensação” e de “deslocamento”, tanto do visível quanto do legível. Ele não representa relações lógicas, no sentido de tornar visível e legível, mas “apresenta”, justapondo elementos, que ao mesmo tempo podem “dizer a coisa e seu contrário” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 195). Para Didi-Huberman, o sonho funciona como um paradigma fundamental da imagem, que impõe à prática historiográfica a necessidade de revisão, na medida em que propõe outro modo de pensar, pela justaposição ou pela montagem, sem, contudo, renunciar à lógica linear, à causalidade, ao esquematismo etc. Num sonho, as diferenças não estão necessariamente em oposição, mas podem coexistir numa mesma imagem (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 194-195), e, como no sintoma permite a sustentação do conflito.

Se a representação, na tradição vasariana, equivale a uma imitação naturalista, a imagem do sonho corresponde a uma semelhança não identitária, pensada enquanto exercício criativo e lúdico (Cf. GAGNEBIN, 1997GAGNEBIN, Jeanne M. Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997., p. 84), ou seja, a uma semelhança que não comporta a “unidade formal e ideal de dois objetos, de duas pessoas ou de dois substratos materiais separados”, mas que é constituída por um processo de produção de pontos de contato (e até mesmo de colisão) de realidades ou elementos distintos, destruindo a “dualidade” ideal que equipara dois objetos (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 198). Nesse sentido, o paradigma do sonho proporciona uma crítica da noção de representação clássica, compreendendo a semelhança, tal como propõe Didi-Huberman, como o oposto da identidade; a alteridade. Em termos pictóricos, o autor refere-se a palavras como “desfiguração” ou “deformação”, como equivalentes a uma falha ou falta de expressão. Assim, falar em semelhança significaria falar em “figurabilidade”, em vez de representação, desvinculando-a da ideia de produção de um outro idêntico, formada por um trabalho de “deslocamento” e de condensação (tal como o sonho) (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 199-201 e 203). O conceito clássico de representação mimética é revisado nessa proposta de Didi-Huberman, dando lugar à figuração, a qual, como um “sintoma”, coloca em crise a representação.

A leitura de Didi-Huberman não se debruça diretamente sobre a estética de Freud, nem especificamente sobre sua reflexão acerca da arte ou da criação artística, apropriando-se das noções de sintoma e de figurabilidade do sonho para repensar a noção de representação e as imagens. O autor detém-se na cisão entre a representação consciente e a figurabilidade onírica, compreendendo a imagem a partir de uma suspensão tanto do paradigma soberano da representação figurativa (dominada pelo estado consciente de vigília) quanto do paradigma soberano do sonho (no qual o sujeito está adormecido). Nessa suspensão, as imagens de arte (reais, manipuláveis, compartilhadas) diferem-se das imagens de sonho (subjetivadas, ininteligíveis, fragmentárias), pelo estado de consciência diante dessas imagens. Diante das imagens de arte, impera “a força do nosso ver”, momento em que se está desperto. Diante das imagens de sonho, impera “a força do nosso olhar”, momento de adormecimento. O que se obtém dessa suspensão, seria justamente uma imagem que emerge no estado do despertar, isto é, justamente na passagem do estado de adormecimento para a vigília. Segundo Didi-Huberman (2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 204-206), é nesse estado de cisão, momento também do “esquecimento do sonho” (em que só nos resta um vestígio daquilo que sonhamos e em que lembrança e esquecimento se sobrepõem), que podemos conceber outra relação com o que é visto, observando que aquilo que vemos também pode retribuir nosso olhar.

O caráter “residual” e fragmentário das imagens, que emergem como “um resto”, ou “uma marca de esquecimento” do estado pleno de vigília (e dos dispositivos de representação que normalmente o sustentam), corresponderiam ainda, de acordo com Didi-Huberman (2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 208), a um “trabalho de esquecimento” e a uma “desfiguração parcial” nas imagens, exigindo, assim como com o sonho, uma interpretação igualmente parcial, isto é, que não almeje uma síntese ou interpretação única. (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 206-207). Embasado pela teoria psicanalítica freudiana, Didi-Huberman ressalta o inacabamento interpretativo em toda análise. Nesse ponto, a abordagem psicanalítica se revela como “ferramenta crítica” (e não clínica) para as “ciências humanas em geral” e, de maneira radical, para a própria “posição do sujeito do conhecimento”, oferecendo uma crítica ao saber totalizante e à posição do sujeito do saber, em direção a uma revisão epistemológica da disciplina (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 211).

Como mencionado anteriormente, o saber totalizante dentro da disciplina da história da arte corresponderia ao método iconológico de matriz panofskiana. Contudo, o conceito de sintoma e de inconsciente também são utilizados por Panofsky, no contexto de sua compreensão do “conteúdo intrínseco das obras de arte” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 214). A diferença da iconologia panofskiana para a abordagem crítica de Didi-Huberman estaria na maneira como os conceitos foram empregados por Panofsky, referindo-se ao sintoma como uma espécie de inconsciente coletivo representado nas imagens. Nesse sentido, para Panofsky, ainda que um artista estivesse consciente daquilo que quisesse representar em sua obra, algo sempre extrapolaria suas intenções, manifestando-se como um conteúdo inconsciente e sintomático de sua cultura, devendo a análise iconográfica ocupar-se em identificar e interpretar este “sentido ‘mais profundo’” escondido nas obras (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 217-218).

Dessa maneira, uma das diferenças entre a iconologia panofskiana e a leitura didi-hubermaniana relaciona-se ao sentido atribuído ao conceito de sintoma. Por um lado, Panofsky compreende que o sintoma se expressaria em termos de um “sentido homogêneo”, correspondendo, por exemplo, ao espírito do tempo, ou à “mentalidade” de um povo ou de uma época, particularizado na representação visual. Este sintoma seria menos visível, mas passível de ser extraído e interpretado a partir de códigos simbólicos compartilhados pela cultura (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 219-220). Por outro lado, para Didi-Huberman o sentido do sintoma é heterogêneo, recusando a interpretação dedutiva e a estabilidade de um sentido sintético e/ou coerente com a determinação histórica (cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 223-224), impondo uma “ incerteza quanto ao meu saber do que vejo ou acredito perceber” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 238).

ESTUDO DE CASO: TRÊS PINTURAS DE VERMEER

Vejamos então como estes conceitos são operados na leitura de Didi-Huberman. No apêndice do livro Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte, intitulado, “Questão de detalhe, questão de trecho”, Didi-Huberman analisa, entre outras obras, três pinturas de Johannes Vermeer: A Rendeira, ca. 1665, Moça do chapéu vermelho, ca. 1665 e Vista de Delft, ca. 1658-60. A questão central dessas análises concentra-se na oposição entre a noção de “trecho” e a de “detalhe”. Sua argumentação busca demonstrar como “a intensidade pictórica”, isto é, o próprio depósito do pigmento sobre a superfície da tela, “tende a desfazer a coerência mimética” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 332), isto é, que o jorro de tinta seria capaz de rasgar a representação pictórica, apresentando-se como um sintoma.

Assim, por um lado, teríamos o “detalhe”, ao qual o historiador da arte positivista ou o semioticista recorre para “ver melhor”. O termo é utilizado como resultado do processo da decupagem ou divisão, ou seja, como aquilo que melhor responderia à demanda de um saber específico. Em outras palavras, o “detalhe” seria o objeto que se alia à metodologia iconográfica, auxiliando na tarefa de esgotar tudo aquilo que se pode descrever e saber de uma obra (cf. DIDI-HUBERMAN, pp. 298-299). Aqui, o “detalhe” é o que “se presta ao discurso: ajuda a contar uma história, a descrever um objeto”. Nas obras de Vermeer, o detalhe poderia corresponder aos ombros, cabeça, mãos e dedos da rendeira, assim como o tear, o chapéu, o muro etc.. Por outro lado, como oposto ao “detalhe”, teríamos o “trecho”, “zona”, ou “pan”, termo utilizado por Marcel Proust para descrever o trecho de muro amarelo na pintura de Vermeer, Vista de Delft. O “trecho”, nesses casos, corresponderia a uma “rajada de cor” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 318) ou “mancha” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 326) que se sobressai, em cada uma das pinturas, como um estilhaço.

A oposição estabelecida entre “detalhe” e “trecho” remete indiretamente a querelas já estabelecidas no campo da história da arte como aquele entre “os partidários da linha e da cor, a qual é inseparável das oposições entre o óptico e o tátil (ou háptico), ou entre a superfície e profundidade” (FABBRINI, 2019FABBRINI, Ricardo N. Muralha de pintura: Frenhofer e Bergotte. In SILVIA, Cintia V. et al. (org.). Estética em Perspectiva. 1a. ed., Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019., p. 170), debatida por célebres historiadores da arte, como Heinrich Wolfflin (1864-1945), Alois Riegl (1858-1905) e Adolf von Hildebrand (1847-1921), sendo ainda retomada por Benjamin em seus ensaios durante os anos 1930. Em linhas gerais, o “detalhe” atrela-se ao sentido óptico, isto é, a uma percepção distanciada da pintura, permitindo que o observador “organize a cena, tomando posse dela” em sua totalidade. O “trecho”, por sua vez, assume uma “função háptica”, no sentido de estimular “as percepções de toque”, aproximando o observador e impedindo qualquer estabilidade do seu olhar sobre a tela (FABBRINI, 2019FABBRINI, Ricardo N. Muralha de pintura: Frenhofer e Bergotte. In SILVIA, Cintia V. et al. (org.). Estética em Perspectiva. 1a. ed., Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019., pp. 170-171).

Nas três obras comentadas, é possível identificar os objetos a que esses trechos se refeririam, dado o contexto representativo de cada um deles: são os fios da rendeira; um chapéu vermelho; um pequeno muro amarelo. No entanto, para Didi-Huberman, a questão é propor outra maneira de olhar, suspendendo a forma e a exatidão iconográfica, em prol da matéria da pintura. Isso não significa abdicar dos signos icônicos, nem dizer que a pintura deveria ser vista apenas enquanto uma massa indeterminada de pigmentação, mas não supor apenas que um quadro deva funcionar “como um texto, e como se todo texto fosse legível e integralmente decifrável” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 310-311). Aqui a proposta de Didi-Huberman coloca-se como uma abertura da visão para a indeterminação da pintura, recusando qualquer “texto preexistente do qual a imagem teria por tarefa compor visualmente o suposto valor histórico, ou anedótico, ou mitológico, ou metafórico” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 311). Nesse caso, os trechos das obras de Vermeer poderiam ser pensados enquanto “um efeito de materialidade”, cuja

intensidade pictórica tende a desfazer a coerência mimética: ele não “se assemelha” mais exatamente a um chapéu, mas a algo como um imenso lábio ou uma asa, ou, mais simplesmente, um dilúvio colorido em alguns centímetros quadrados de tela estendida na vertical, diante de nós (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 332).

Nesse sentido, a noção de trecho não possui valor figurativo, descritivo nem interpretativo, isto é, não se trata de uma questão de “sintaxe” da pintura, mas, analogamente ao sintoma, daquilo “que justamente escapa aos ditames do estilo, às normas da fatura, porque é nele que reside o enigma da imagem” (FABBRINI, 2019FABBRINI, Ricardo N. Muralha de pintura: Frenhofer e Bergotte. In SILVIA, Cintia V. et al. (org.). Estética em Perspectiva. 1a. ed., Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019., p. 166). Aproximando-se mais uma vez de termos da psicanálise, Didi-Huberman compreende o trecho a partir de seu caráter de “indeterminação”, que “se abre subitamente no detalhe, para então, a partir dele, ecoar para a totalidade da tela” (FABBRINI, 2019FABBRINI, Ricardo N. Muralha de pintura: Frenhofer e Bergotte. In SILVIA, Cintia V. et al. (org.). Estética em Perspectiva. 1a. ed., Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019., p. 167). O “trecho” problematiza a unidade da representação pictórica e seus elementos iconográficos, deslocando o olhar voltado para a identificação de objetos e conteúdos na pintura, para compreendê-los como um “acontecimento” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 342), isto é, “como um acidente da representação - a representação entregue ao risco da matéria pintura” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 332).

Assim, “o trecho de pintura não designa o quadro visto sob outro ângulo, visto mais de perto, por exemplo; designa verdadeiramente, enquanto sintoma, outro estado da pintura no sistema representativo do quadro: estado precário, parcial, estado acidental” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 340). Ele não é o oposto da semiologia, mas uma crítica das abordagens semiológica (a pintura enquanto “técnica de exatidão”) e fenomenológica (pura experiência ou afecção) (cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 313-315). Nesse sentido, o trecho instaura um paradoxo visual, renovando o olhar em direção a uma percepção da pintura e da matéria enquanto um “trabalho”, “processo”, e não “aspecto”, colocando em crise a exatidão do detalhe (cf. DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 320 e 327). Finalmente, o trecho nos leva de volta ao paradoxo figurativo observado por Freud diante da “histérica” que, durante uma crise, apresentava “movimentos incompreensíveis, contraditórios”, segurando com uma mão o vestido contra o corpo, enquanto a outra mão tentava arrancá-lo:

um acontecimento crítico, uma singularidade, uma intrusão, mas é também a instauração de uma estrutura significante, de um sistema que o acontecimento tem por tarefa fazer surgir, mas parcialmente, contraditoriamente, de modo que o sentido advenha apenas como enigma ou fenômeno-índice, não como conjunto estável de significações. Por isso o sintoma é caracterizado ao mesmo tempo por sua intensidade visual, seu valor de estilhaço e por aquilo que Freud chama aqui a ‘dissimulação do fantasma inconsciente em ação’. O sintoma é, portanto, uma entidade semiótica de dupla face: entre o estilhaço e a dissimulação, entre o acidente e a soberania, entre o acontecimento e a estrutura (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 334-335).

Assim como a cena descrita acima, poderíamos igualmente dizer que o trecho é esta “entidade semiótica de dupla face”. “O trecho é o sintoma da pintura no quadro”, que “histeriza” a pintura (enquanto o detalhe a fetichiza) (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 335). Falar das imagens em termos de sintoma implica, portanto, uma renovação do olhar, assim como uma reconsideração do conceito de representação mimética, não o restringindo apenas a “dispositivos simbólicos, mas também dos acontecimentos, ou acidentes, ou singularidades da imagem pictórica” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., p. 337). Ao colocar em crise o dispositivo mimético, em favor de um “desordenamento da pintura” (abrindo o lugar da “figura” para a “figurabilidade”), produz-se “uma desorientação análoga na crítica e na historiografia da arte, pois traz à luz a inoperância de seus esquematismos (como estilos; gêneros; a oposição entre figura e fundo etc.)” (FABBRINI, 2019FABBRINI, Ricardo N. Muralha de pintura: Frenhofer e Bergotte. In SILVIA, Cintia V. et al. (org.). Estética em Perspectiva. 1a. ed., Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019., p. 180). Em outras palavras, trata-se de uma abertura no regime de visibilidade da pintura e da imagem, dando lugar à sua figurabilidade. Ao enunciar os limites que os esquematismos da história da arte impõem a seu objeto, Didi-Huberman (2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., pp. 189-190) não propõe simplesmente “invocar uma poética da irrazão [...]”, mas “dialetizar” a questão, isto é, “saber permanecer no dilema, entre saber e ver, entre saber alguma coisa e não ver outra coisa em todo caso, mas ver alguma coisa em todo caso e não saber outra coisa...”.

REFERÊNCIAS

  • BELTING, Hans. A verdadeira imagem / trad. Artur Morão. Porto: Dafne editora, 2011.
  • BELTING, Hans. Antropologia da Imagem: para uma ciência da imagem / trad. Artur Morão . Lisboa: KKYM, 2014.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte / trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens / trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2015a.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b.
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  • FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 13: conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917) / trad. Sergio Tellaroli; revisão da trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • GAGNEBIN, Jeanne M. Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
  • HATT, Michael; KLONK, Charlotte. Art History: A critical introduction to its methods. Manchester University Press, 2017.
  • PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais / trad. Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1991.
  • PIC, Muriel. Qu’est-ce que s’orienter dans les images ? Revue Littéraire Mensuelle Europe, Paris, n. 1069 - Georges Didi-Huberman, maio de 2018.
  • WARBURG, A. et al. La guarigione infinita: storia clinica di Aby Warburg. Vicenza: Neri Pozza, 2005.
  • 1
    Didi-Huberman também destaca que a abordagem psicanalítica da arte entende os sintomas não como um conceito crítico que demonstra um conflito numa imagem, mas como meros “detalhes”, que denunciam um sentido e que devem ser decodificados por chaves interpretativas iconográficas (DIDI-HUBERMAN, 2015bDIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria. Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière / trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b., p. 411).
  • 2
    Um nascimento que não possui uma origem nem fonte única, como argumenta Didi-Huberman. Entende-se que o nascimento da história da arte possuiria vários começos, tornando possível sempre refundar esta disciplina, como demonstrado por Didi-Huberman a partir da perspectiva de Plínio, o Velho (Cf. DIDI-HUBERMAN, 2015aDIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: História da arte e anacronismo das imagens / trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2015a., p. 72).
  • 3
    Questão examinada por Hans Belting em Antropologia da Imagem: para uma ciência da imagem (2014BELTING, Hans. Antropologia da Imagem: para uma ciência da imagem / trad. Artur Morão . Lisboa: KKYM, 2014. ) e em A verdadeira imagem (2011BELTING, Hans. A verdadeira imagem / trad. Artur Morão. Porto: Dafne editora, 2011.).
  • *
    Este artigo é derivado de um capítulo de minha dissertação de mestrado intitulada “Imagens em Georges Didi-Huberman”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte, da Universidade de São Paulo, em 2023. DOI:10.11606/D.93.2023.tde-22052023-104858.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2023
  • Aceito
    10 Abr 2024
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