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A crise da autocomprensão espécie humana

RESENHA BOOK REVIEW

A crise da autocomprensão espécie humana

Thales de Andrade

Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-Campinas e editor executivo da revista Ambiente & Sociedade

O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal?

Jürgen Habermas

Tradução de Karina Jannini, São Paulo: Martins Fontes, 2004, 160 p.

Na virada do século XXI, a questão das biotecnologias e da engenharia genética são assuntos que mobilizam pensadores das mais diversas áreas, como direito, filosofia, teologia, sociologia e biologia, entre outras. A possibilidade de novas formas de terapia genética trazidas pelas células-tronco, assim como as condições de reprodução humana in vitro, são exemplos das múltiplas implicações desse conhecimento no dia a dia do cidadão moderno. As abordagens se multiplicam e o calor das discussões aumenta progressivamente, à medida em que novas leis são sancionadas e a pesquisa científica promete novos benefícios para a saúde humana.

A chamada medicina pós-humana e uma série de experiências na área de engenharia genética e nanotecnologias vêm colocando sérios questionamentos acerca da existência ainda de uma concepção natural de homem. Alguns autores falam de uma condição trans-humana, outros se reportam para o Além-do-Humano enquanto sintomas de uma ruptura irreversível em relação à conformação de uma identidade única do humano.1 1 .Sobre essa discussão, ver SANTOS (2003).

Dentro desse amplo conjunto de reflexões e posicionamentos polêmicos sobre a matéria, que podem ser levantados em artigos de jornais, sites, reportagens de televisão, periódicos científicos e livros, uma pequena obra se sobressai: o livro de Jürgen Habermas, O futuro da natureza humana.

Nesse breve ensaio, o filósofo alemão, um dos principais expoentes do humanismo moderno e que dispensa grandes apresentações, traça uma análise clara, e ao mesmo tempo extremamente densa, das implicações do uso das novas tecnologias em intervenções terapêuticas e formas assistidas de reprodução. Nos limites de uma resenha, não temos condições de levantar todas as questões suscitadas no livro, mas tentaremos demonstrar a extrema relevância da contribuição que Habermas propicia a esse debate ao articular a problemática da ética da espécie humana aos contornos da prática tecnológica.

No interior das infindáveis polêmicas em torno da disponibilidade dos recursos genéticos para fins de instrumentalização do corpo humano e alterações de suas qualidades originais, Habermas defende que é fundamental estabelecer uma distinção entre: de um lado, a dignidade humana e, de outro, a dignidade da vida humana. Essa diferenciação é básica para se situar os riscos por que passa a nossa capacidade de auto-compreensão como membros de uma mesma espécie, e portanto situados em um mesmo contexto discursivo entre pessoas iguais.

A dignidade humana representa uma condição moral ou jurídica que marca as relações entre sujeitos portadores de direitos e deveres, mutuamente imputáveis e circunscritos a um mesmo contexto normativo. A dignidade humana faz, portanto, sentido na contingência dos acordos estabelecidos no interior de uma comunidade composta por seres morais dotados de relações simétricas e responsáveis, ou seja, dentro de formas concretas de vida coletiva.

A dignidade da vida humana, por seu lado, transborda os limites das práticas morais acordadas e remonta tanto a estágios pré-pessoais, em que os indivíduos estão ainda em formação, quanto a condições em que a vida se esvaiu. A vida humana antecede a construção dos contextos morais de interação e solicita uma concepção de dignidade própria, mais abrangente e menos específica que o termo definido como dignidade humana.

A partir dessa distinção, Habermas aponta que a utilização de biotecnologias que intervêm na herança genética dos seres humanos pode significar a primazia do justo em relação ao bom, o que colocaria em suspenso

...saber se a tecnicização da natureza humana altera a auto-compreensão ética da espécie de tal modo que não possamos mais nos compreender como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos. (HABERMAS, 2004: 57).

Essa crise da nossa autocompreensão como espécie está em consonância com a consolidação de novas práticas de eugenia e seletividade social, não mais ancoradas em projetos políticos autoritários, como o nazi-fascismo, mas dentro das regras de mercado que, por sua vez, estipulam os investimentos em biotecnologia.

Para Habermas, a eugenia liberal em curso possui a característica de depositar na esfera familiar, mais especificamente na escolha paterna, os rumos que a espécie humana poderá adotar em termos genéticos, mediante justificativas terapêuticas e de aperfeiçoamento. Essa possibilidade tende a interferir decisivamente no status dos indivíduos portadores de modificações genéticas, que não se constituirão como autores únicos de sua trajetória de vida pessoal.

Esses indivíduos poderão sofrer uma heterodeteminação irreversível, que não se situa simplesmente na relação dos direitos compartilhados pelos seres morais. A heterodeterminação aludida por Habermas possui um caráter externo à comunidade moral vivenciada pelos agentes, e remonta ao estágio de vida pré-pessoal.

Nessas sociedades crescem progres-sivamente tendências violentas de limitação das capacidades decisórias sobre aspectos íntimos da pessoa humana e que deveriam ser intranferíveis. Segundo Habermas,

"As intervenções eugênicas de aperfeiçoamento prejudicam a liberdade ética na medida em que submetem a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros, que ela rejeita, mas que são irreversíveis, impedindo-a de se compreender como autor único de sua própria vida..." (HABERMAS, 2004: 87).

A oferta crescente de possibilidades de modificações nos padrões genéticos dos indivíduos (o chamado supermercado genético) nas sociedades liberais suscita a questão da seletividade das aptidões e habilidades. A costumeira reciprocidade, que marca a existência dos indivíduos que nasceram de forma semelhante, pode ser brutalmente perturbada, trazendo conseqüências sérias para as relações intra e intergeracionais. Essa reciprocidade era garantida pelos Estados democráticos nas condições em que todos os homens atravessavam um mesmo processo de natalidade mas, agora, por intermédio de intervenções biotécnicas, outros agentes e problemas se imiscuem nessa complexa teia de responsabilidades.

Habermas defende que a capacidade ilimitada de escolha dos pais para aperfeiçoar geneticamente seus filhos não tem, como contrapartida, uma garantia institucional de condições simétricas para que todos os cidadãos desenvolvam autonomamente seus próprios projetos de vida.

O seu grande receio reside em que, por intermédio de argumentos terapêuticos, relacionados à busca de tratamentos antecipatórios de doenças e mal formações, as biotecnologias produzam uma auto-instrumentalização da espécie humana, em que determinados agentes altamente qualificados em termos tecnológicos e discursivos possam estipular as características humanas desejadas para os indivíduos não nascidos.

A problemática da indisponibilidade da vida humana, e da manutenção das condições igualitárias de comunicação entre os seres morais, como garantia da autocompreensão da espécie, representa para Habermas o cerne da questão envolvendo as intervenções das tecnologias genéticas nas sociedades liberais.

Após a primeira publicação do livro, Habermas debateu suas idéias com diferentes filósofos americanos. Na edição brasileira, temos o privilégio de ter contato também com esse debate através do Posfácio, escrito pelo autor no início de 2002.

Segundo Habermas, os autores americanos (Dworkin e Nagel) não aceitam integralmente seus argumentos pois possuem uma crença inquebrantável na ciência e técnica modernas e no liberalismo clássico. Para eles, os direitos individuais dos pais, enquanto consumidores, suplanta as imposições do Estado, e são soberanas. Esses filósofos não conseguem perceber que as intervenções eugênicas modificam o status da futura pessoa, alterando sua auto-compreensão enquanto membro de uma comunidade de agentes iguais.

O espírito do pragmatismo americano, somado às regras do direito liberal, não permitem antecipar os efeitos de longo prazo das práticas eugênicas. Possíveis discriminações e segregações genéticas não ocorreriam necessariamente, uma vez que a todos os indivíduos são imputadas características e disposições voluntárias, através da educação e da socialização. E, também, a um indivíduo modificado geneticamente haveria sempre a possibilidade de intervenções reparadoras.

Quanto a essas ressalvas, Habermas argumenta com segurança que as pesquisas com células tronco e DPGI abrem caminho para uma atitude subjetiva e instrumentalizadora da natureza humana que transcende em muito uma prática clínica desinteressada. Os limites entre as posturas terapêuticas e o design de características humanas se obscurecem à medida em que novas possibilidades de disponibilidade dos embriões se apresentam aos pais e terapeutas.

Foi também publicado na edição brasileira o texto Fé e Saber, que discute a questão da secularização após os atentados de 11 de setembro de 2001. Nesse artigo, Habermas trata dos embates contemporâneos entre as sociedades secularizadas, a religiosidade e o desenvolvimento científico.

Por essa obra, Habermas pode ser visto como o típico representante de uma concepção tradicional de homem, já superada pelas promessas deleuzianas do Além-Humano. Ou um remanescente do pensamento tecnofóbico encarnado na crítica frankfurtiana da mentalidade instrumental. Esses rótulos, a nosso ver precipitados e superficiais, não são capazes de obscurecer a profunda gravidade das questões colocadas pelo livro. O Futuro da Natureza Humana possui todas as condições de servir como um poderoso instrumento crítico de discussão da dignidade da existência humana em uma era de profunda crise política e ética que se aproxima com o século XXI.

NOTAS

SANTOS, L.G. Tecnologia e seleção. Variações sobre o futuro do humano. In: MARTINS, H. & GARCIA, J.L. (orgs.) Dilemas da Civilização Tecnológica, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003.

  • 1
    .Sobre essa discussão, ver SANTOS (2003).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 2005
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