Open-access O ATIVISMO ALIMENTAR NA PERSPECTIVA DO LOCAVORISMO

Resumo

O artigo apresenta um estudo conceitual sobre o Locavorismo, sua dimensão socioambiental e econômica, as discussões sobre qualidade e riscos dos alimentos locais e a relação entre o movimento, o Vegetarianismo e o Feminismo. Serão abordadas categorias como "local próprio" e "local alheio", "alimento local", "alimento com identidade local" e "alimento tradicional" que aparecem como homogêneas. O Locavorismo pode ser uma estratégia de promoção da agricultura familiar e evidencia práticas alimentares que dialogam com os princípios da sustentabilidade. O estudo aponta a necessidade de se desenvolver estudos empíricos que possam investigar novas formas de articulações com o local.

Palavras chaves: Local; Ativismo alimentar; Locavorismo; Agricultura sustentável

Resumen

El artículo presenta un estudio conceptual sobre lo Locavorism, su dimensión social, económica y ambiental, las discusiones sobre la calidad y el riesgo de los alimentos locales y a relación entre el movimiento, el vegetarianismo y el feminismo. Serán tratados categorías que aparecen como homogéneas como "lugar propio" y "lugar de los demás", "comida local", "alimentos con identidad local" y "comida tradicional". El Locavorismo puede ser una estrategia para promover la agricultura familiar y sus prácticas de alimentación señalun diálogo con los principios de sostenibilidad. El estudio apunta a la necesidad de desarrollar estudios empíricos que puedan investigar nuevas formas de articulaciones con el local.

Palabras clave: Local; Activismo alimentar; Locavorismo; Agricultura sostenible

Abstract

The article presents a conceptual study of Locavorism and discusses its economic and environmental dimensions; debates about the quality of and risks associated with local foods; and the relationship among Locavorism, vegetarianism and feminism. Categories typically presented as homogeneous, including 'one's own place', 'others' place', 'local food', 'locality food' and 'traditional food', will be analysed. Locavorism can be used as a strategy to promote family farming and food practices that are in dialogue with the principles of sustainability. This research indicates the need to develop empirical studies that can investigate new ways to relate to one's locality.

Keywords: local; food activism; Locavorism; sustainable agriculture

Introdução

O presente artigo tem como objetivo explorar conceitualmente o Locavorismo, movimento alimentar que emergiu nos últimos seis anos e que incorpora as noções de food miles i e de alimento local. Food miles é um termo cunhado por Tim Lang no início dos anos 1990 que refere-se a distância percorrida pelos alimentos durante seu processo produtivo e seus impactos ambientais. Locavore ii é a pessoa interessada em comprar e consumir alimentos produzidos localmente.

Tais conceitos são transversais às discussões sobre agricultura e consumo alimentar sustentáveis e processos decoloniais, bem como em perspectivas que abordam a territorialidade dos hábitos alimentares e da gastronomia a partir da sua tendência ecossocial contemporânea que percebe a culinária local como estratégia de reforço da identidade cultural dos povos e como apoio à agricultura familiar.

A proposta aparece cercada de certa efervescência no ativismo alimentar da América do Norte, considerado por Rudy (2012) como um dos mais vibrantes movimentos sociais da atualidade. Para essa autora, o Locavorismo conecta novamente os cidadãos estadunidenses com o material mais básico e necessário para sustentar a vida e vai além da questão da distância percorrida pelos alimentes presente na perspectiva das food miles. Preocupa-se não somente onde a comida é produzida, mas como e por quem e também quem a comercializa, inserindo na discussão os farmer´s markets e os pick your own farms - feiras e comércios organizados por agricultores em regiões próximas as cidades ou dentro das propriedades onde o consumidor compra seu produto e chega até a colher ou coletar seus alimentos.

Dessa forma, o movimento busca o estreitamento das relações entre o consumidor e o agricultor e, implicitamente, entre o meio urbano e o rural, alimentando um tipo de 'confiança face a face', discutida por Portilho e Castañeda (2011) em estudo realizado em uma feira orgânica brasileira.

Além disso, assumindo a premissa dos jornalistas John e Karen Hess (2002, p.8) de que a "história da alimentação americana é a destruição do seu sabor" - o Locavorismo se propõe a recuperar o prazer de comer e ainda mais:

(Locavorismo...) não se preocupa somente sobre a localização, mas sim, aponta a esperança e o sonho compartilhado que podemos recuperar uma relação equilibrada com a natureza através de nossas escolhas alimentares (RUDY, 2012, p.28, parêntesis do autor).

Sem pretender esgotar as ideias que rondam um movimento que se propõe a ser tão abrangente, os objetivos dessa revisão bibliográfica é apresentar alguns conceitos e relações presentes nessa instigante discussão e estimular pesquisas empíricas sobre a temática ainda pouco estudada no Brasil.

Este artigo apresenta, inicialmente, o conceito de alimento local e as estratégias de viabilização do Locavorismo, principalmente a partir de dois relatórios do governo estadunidense organizados por Martinez et al. (2010) e Johnson, Aussenberg e Cowan (2013). Depois, o estudo apresenta as questões socioambientais e econômicas que perpassam o movimento, a discussão sobre qualidade e os riscos dos alimentos locais, além da relação entre o Locavorismo, o Vegetarianismo e o Feminismo.

Também foram levantados alguns ruídos implícitos nas categorias de 'local próprio' e 'local alheio' que tendem a se mesclar no movimento e merecem ser analisadas. Para tal, foram utilizados autores de diferentes áreas que se debruçam sobre o Locavorismo, seus impactos socioambientais e econômicos e sua dimensão cultural. Foram incluídos também autores que abordam as temáticas do desenvolvimento rural, da gastronomia regional e da qualidade alimentar. Boa parte das discussões ainda está disponível somente na internet, disponíveis em sites de instituições e ONGs voltadas para o ativismo alimentar e constituíram um material importante de análise.

Explorando o Local

Desde a década de 1990, diversos autores e áreas vêm discutindo o conceito de local para além do espaço físico e de um simples recorte político-operacional. As concepções mais porosas convergem para a ideia de lugar e território como categorias de análise social em construção e espaços onde ocorrem interações sociais e culturais, relações econômicas mais justas, processos de emancipação de indivíduos, experiências afetivas e pessoais ligadas à promoção de valores e construção coletiva da cidadania e do processo civilizatório (RAFFEATIN, 1993; SOUZA, 2002; HAESBAERT, 2002; BONNEMAISON, 2002; SEN, 2004; AKERMAN, 2005).

A definição de alimento local não é tão clara e não parece haver consenso nem mesmo com a proximidade geográfica mínima que deve haver entre a produção e o consumo de modo a incorporar tal qualidade ao alimento. Johnson, Aussenberg e Cowan (2013) mostram que na percepção dos consumidores norte-americanos, alimentos locais são produzidos em pequenas propriedades vizinhas. Alguns conceitos remetem à distância - geralmente abaixo de 160 km, mas que pode chegar até 440km. Já na Europa, Ilbery, Watts e Simpson (2006) definem alimento local como aquele produzido, processado e vendido dentro de um raio compreendido entre 48 a 80 km da sua origem. Outro conceito incorpora o limite geográfico do estado e um terceiro ainda considera regiões que incluem diversos estados. Um estudo de Dunne et al. (2011), por exemplo, demonstra que o conceito também varia significativamente entre lojistas que comercializam produtos locais.

O perfil dos locavores estudados nos Estados Unidos apresenta certa variedade, mas suas motivações para comprar o alimento local são similares. Alguns estudos citados por Martinez e colaboradores mostram consumidores com níveis variados de educação e renda, enquanto outros encontraram consumidores locais com renda e nível educacional superiores do que a média estadunidense. Indivíduos que gostam de cozinhar, que cultivam hortas em casa, que frequentam lojas de produtos naturais e que compram alimentos orgânicos tendem a buscar também alimentos locais. A preocupação com a qualidade dos alimentos frescos e pouco processados foi o principal incentivo para a compra entre os pesquisados. Mas as preocupações ambientais, a rastreabilidade dos produtos e o apoio aos agricultores locais aparecem em todos os estudos como fatores motivadores de consumo de alimentos locais.

Estudo com chefs e donos de restaurantes que compram produtos locais mostra que os mesmos consideram os alimentos qualitativamente superiores e mais frescos. Além disso, para tais entrevistados, a opção agrada aos clientes, cria um diferencial para seu próprio negócio e apoia os agricultores locais (PAINTER, 2008).

Outro canal de comercialização pesquisado foi o mercado institucional - escolas, prisões e asilos para idosos. Para Starr et al. (2003), o foco dessas instituições foi a qualidade dos alimentos locais, livres de agrotóxicos, e sua preocupação com a saúde das crianças (no caso das escolas); o preço não se constituiu um empecilho para esse mercado.

Para minimizar a dificuldade de definir o alimento local, percebe-se o empenho em definir os tipos de mercado desses produtos, o que facilita a avaliação dos mesmos. O Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) assume que os sistemas alimentares locais e regionais referem-se aqueles nos quais os alimentos são comercializados diretamente para os consumidores, restaurantes, instituições, escolas ou comércios varejistas locais ou através de sistemas em que a identidade da propriedade onde o alimento é produzido é, de alguma forma, preservada (farm identity-preserved marketing). O mercado de alimentos locais aparece quase sempre vinculado a pequenas propriedades localizadas perto de municípios metropolitanos (JOHNSON; AUSSENBERG; COWAN, 2013;MARTINEZ et al.; 2010).

Na perspectiva do locavore, o alimento local é percebido como mais saboroso e fresco e sua produção deve dignificar os agricultores familiares, promover a agricultura urbana, os sistemas agroalimentares sustentáveis e o bem estar animal, além de estimular a economia local através da venda direta ao consumidor. O movimento endossa ainda a ideia de comer menos carne e mais vegetais da época seguindo a sazonalidade, bem como valoriza a 'comida feita em casa' (homemade food), promovendo assim uma discussão com os movimentos vegetariano e feminista.

O conceito de comida local também pode se estender a quem produziu o alimento e incorpora preocupações com a personalidade e a ética do agricultor e seu modo de vida, o enraizamento social, as conexões sociais e a confiança - fatores que compõe a "história por trás da comida" como definem Thompson, Harper e Kraus (2008, p. 4).

A temática também encara a discussão da democratização do ato de alimentar-se frente à monopolização das grandes redes varejistas e, desse modo, o Locavorismo aparece como uma forma de resistência ao processo de globalização. Por fim, Halweil (2003) cita a ONG canadense Farm Folk/ City Folk que defende que a proposta do movimento tem outros benefícios como: economia de combustível, menos impacto de trânsito nas rodovias e redução dos riscos alimentares devido ao fácil rastreamento da produção.

Os mercados de alimentos locais envolvem agricultores familiares (geralmente mais jovens e mais educados do que outros produtores da mesma região) e produção diversificada e circuitos curtos de distribuição nos quais os agricultores assumem funções diversas em todos os âmbitos do sistema agroalimentar: produção, armazenamento, transporte, distribuição, vendas e publicidade (HUNT, 2007; MARTINEZ et al., 2010).

O fato é que a falta de uma definição uniforme de mercado ou alimento local, assim como o caso do ambíguo termo 'agricultura sustentável', pode gerar oportunidades, mas também oportunismos e fraudes no processo de comercialização.

No Brasil, não foram encontrados estudos específicos sobre os agricultores ou mercados locais. Estudos de impacto e avaliação de efetividade de duas políticas públicas - o Programa de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos PAA - que têm nas suas diretrizes o fortalecimento dos agricultores locais, fornecem dados germinais para explorar tal mercado.

Também não há informações sobre os impactos ambientais, sociais e econômicos desse sistema, objeto de estudo dos dois recentes relatórios produzidos pelo governo dos EUA.

Dados desses relatórios mostram que 5% dos agricultores estadunidenses estão engajados em sistemas de alimentos locais e o número de programas de alimentação escolar que utilizam agricultores locais como fornecedores cresceu cinco vezes no período compreendido ente 2004 e 2009. Os mercados locais são estatisticamente pequenos, mas apresentam um crescimento significativo no setor agrícola do país. A venda direta ao consumidor constituiu-se, em 2007, como a atividade com maior retorno financeiro para a agricultura familiar superando outras formas de exploração empresarial no meio rural como agricultura orgânica e turismo rural. Os estudos mostram também o grande interesse em frutos do mar e carnes produzidas localmente que, junto com os alimentos orgânicos e as refeições saudáveis para crianças (healthful kids meals), aparecem como tendências alimentares e apostas do grande mercado varejista de alimentos nos EUA.

Os consumidores que compram alimentos locais têm preocupações com a qualidade e valor nutricional dos alimentos, com os impactos do sistema agroalimentar sobre o meio ambiente e com o bem estar dos agricultores. Os empecilhos para a expansão do mercado de alimento local incluem: restrições de produção para pequenas propriedades; falta de sistemas de distribuição para levar os alimentos locais para os mercados convencionais; pesquisa limitada; falta de treinamento e informação do consumidor para promover a comercialização; e as incertezas relacionadas aos requisitos padronizados de segurança sanitária das agências reguladoras que podem afetar a produção local de alimentos (JOHNSON; AUSSENBERG; COWAN, 2013; MARTINEZ et al., 2010).

Johnson, Aussenberg e Cowan (2013) mostram diferentes propostas de apoio aos produtores locais estadunidenses que permitem que os mesmos permaneçam no mercado através de canais de comercialização alternativos ou de apoio institucional ou associativo. Programas governamentais, federais, estaduais e municipais têm se diversificado para apoiar iniciativas de alimentos locais. Além de políticas de subsídios financeiros aos agricultores locais, de fomento as feiras de agricultores (farmer´s markets), de programas que estimulam a venda de alimentos locais nas cantinas de escolas púbicas (Farm-to-School Programs) e do apoio a diferentes formas de agricultura urbana e hortas comunitárias nas cidades e escolas (Community Gardens and School Gardens) destacam-se os chamados Community-Supported Agriculture ou CSA, os Centros de Alimentação e Agregadores de Mercado (Food Hubs and Market Aggregators) e os Abatedouros Itinerantes (Mobile Slaughter Units ou MSU).

Sumariamente, os CSA, proposta que iniciou na década de 1960 na Suíça e no Japão, são acordos associativos traçados entre produtores e consumidores locais os quais se comprometem a apoiar custos e riscos de produção dos agricultores durante a fase de planejamento, em troca de uma parte da produção anual da propriedade.

Já os Centros de Alimentos e Agregadores de Mercado são armazéns ou instalações localizados perto das propriedades, providos pelo governo local, que agregam os alimentos das fazendas locais e processam alguns produtos (através de empacotamento, pré-lavagem, pré-cozimento, cortes) facilitando as vendas para clientes de atacado ou para os consumidores. Os agricultores também são beneficiados uma vez que os encargos da comercialização não recaem sobre os mesmos, já sobrecarregados pela extensa gama de atividades relacionadas ao ciclo produtivo. Em alguns casos, para promover o empreendedorismo agrícola, os centros oferecem ao agricultor uma gama de serviços educacionais, técnicos, de assistência e extensão, certificação de seguridade sanitária alimentar e capacitação, através de convênios com projetos de extensão propostos por universidades locais.

E, por fim, os Abatedouros Itinerantes, inspecionados pelas agências estaduais de vigilância sanitária, chegam até os produtores que desejam vender sua carne em pequena escala no mercado local, mas não têm acesso aos abatedouros mais distantes ou recursos para o transporte de animais. Os MSUs podem atender a vários pequenos produtores em áreas onde os serviços de abate são inviáveis ou indisponíveis.

Como se pode perceber por seus objetivos, o Locavorismo tende a ser ambicioso e suas interfaces aparecem, inevitavelmente, cercadas de controvérsias e polêmicas, como será visto a seguir.

O local ambiental e socioeconômico

O jornalista Michael Pollan (2007) afirma que sete a dez calorias de combustíveis fósseis são usadas para produzir uma caloria de energia alimentícia, sendo que somente 1/5 dessas calorias vai para a produção dos alimentos propriamente dita. O restante é destinado para beneficiamento e transporte desses alimentos.

Para Halweil (2003), o barateamento dos custos de gasolina facilitou essa expansão no transporte e o valor do comércio internacional de alimentos triplicou desde 1960, sendo que o volume de alimentos transportados quadriplicou nos EUA. No Reino Unido os alimentos viajam distâncias 50% mais longas do que há duas décadas.

Mitttal (2008) também mostra que o aumento no uso de combustíveis fósseis no sistema agroalimentar dominante contribui para o aumento no custo da produção de alimentos. Porém, a autora defende que o gasto com transporte é somente um dos fatores, ao lado dos gastos relacionados à mecanização, aos sistemas de irrigação e de aquecimento em estufas e granjas, aos fertilizantes e insumos em geral e aos plásticos usados nas estufas. Mesmo assim, entre várias recomendações de ordem política e de incentivos estatais para amenizar a crise da produção de alimentos, Mittal indica o incentivo aos mercados locais de produtores familiares e o estímulo as diferentes propostas de agricultura sustentável.

Diferentes autores citados no relatório neozelandês de Saunders, Barber e Taylor (2006) concordam que as food miles são uma maneira muito simplista de medir o impacto ambiental de um sistema agroalimentar que deve considerar o total dos gastos energéticos envolvidos nas diferentes etapas produtivas.

Outros autores apontam diferenças nos grupos de alimentos e na composição da dieta que podem ter implicações ambientais no sistema agroalimentar. Stănescu (2010), por exemplo, aborda o que ele chama de 'mito do Locavorismo' sob a perspectiva do vegetarianismo. Esse ativista vegetariano discorda que o transporte de alimentos seja determinante nos custos e impactos ambientais, defende que produção animal é a verdadeira vilã dos impactos ambientais do sistema agroalimentar e critica o consumo da chamada 'carne feliz', termo citado em Rudy (2012 p. 28) e utilizado, ironicamente, por vegetarianos que criticam o rastreamento do manejo e do abate dos animais que serão consumidos. Tal prática, realizada normalmente em fazendas locais, tem sido incorporada por alguns chefs e foodies (pessoas que gostam de novidades gastronômicas, comidas, bebidas e restaurantes). Stănescu também questiona a posição de alguns locavores que afirmam que "ser vegano é mais prejudicial para o meio ambiente do que comer animas abatidos localmente" (2010, s/p). A crítica atinge fazendas locais que criam animais e os usam de forma instrumental, como objetos e não sujeitos.

Weber e Matthews (2008) mostram que mesmo que as distâncias médias percorridas pelos alimentos nos EUA sejam longas, a fase de produção dos alimentos contribui com 83% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) contra 11% das emissões totais relacionadas ao transporte dos mesmos (4% são relacionadas aos processos finas de entrega).

O estudo defende ainda que a produção de carnes bovina, suína e ovina têm um gasto energético superior do que a produção de frangos e peixes (150% mais emissões de GEE) e aponta a mudança para uma dieta predominantemente ovo-lacto-vegetariana, com consumo eventual de carnes, como uma proposta mais eficaz para reduzir a pegada de carbono do que o consumo de alimentos locais. Essa proposta de caráter socioambiental tem sido difundida em campanhas como a 'Segunda sem Carne'iii, através de apelos vegetarianos nas redes sociais e nas ONGs e associações vegetarianas.

Resumidamente, os estudos empíricos sobre o impacto ambiental dos sistemas locais ainda não apresentam consenso. Em alguns casos, os estudos mostram que tais sistemas alimentares são mais eficientes e a distância é um fator importante na determinação dos impactos ambientais do transporte.

Outras pesquisas endossam estudos acima demonstrados e sinalizam que a distância não é uma medida de impacto adequada ou relevante, uma vez que o transporte é responsável por uma parcela relativamente pequena do consumo de energia e das emissões GEE no sistema alimentar. O relatório da USDA também assume que o gasto energético total e as emissões de gases de efeito estufa são afetados por diferenças nas práticas de produção, no uso de insumos e fertilizantes utilizados em cada segmento da cadeia alimentar e nos rendimentos das culturas (Martinez et al., 2010).

Outros apelos ambientais do Locavorismo incluem a preservação da diversidade genética de espécies alimentares e a promoção da qualidade do meio ambiente uma vez que as propriedades locais são espaços de moradia dos agricultores que possuem uma racionalidade ecológica própria de alguns segmentos da agricultura familiar. Essa racionalidade se ajusta à complexidade do meio rural e remete à manutenção da identidade cultural construída pelos agricultores a partir do seu ambiente.

Para Ikerd (2005), a expansão de sistemas alimentares locais pode ajudar na manutenção do capital social em uma comunidade e a conter o desenvolvimento das franjas urbanas de alta densidade demográfica, preservando áreas rurais que seriam destinadas à urbanização. Martinez et al. citam diversos autores que defendem os sistemas locais e a consequente eliminação de múltiplos atores e processos intermediários entre o produtor e o consumidor. Ikerd (2005) afirma que somente a eliminação dos custos de embalagens e da publicidade, por exemplo, pode baratear os alimentos em até 20%.

A compra direta de alimentos locais é percebida como um processo de democratização alimentar, uma declaração de independência do império mantido pelos supermercados, nos quais a metade dos seus trinta mil itens disponíveis é monopolizada por cerca de dez corporações transnacionais, consideradas como czares da época contemporânea.

Parte dessas empresas interfere na política global de produção de alimentos que favorece os interesses de grandes nações do hemisfério norte em detrimento de países mais pobres. Nessa mesma lógica econômico-ambiental, manter a diversidade da cultura e a produção local diminui a dependência de insumos e maquinários produzidos por grandes empresas, além de produzir impactos positivos sobre a diversidade alimentar, o autoconsumo e a soberania e segurança alimentar e nutricional (HALWEIL, 2003).

O clamor 'alimento local, dinheiro local' assumido por esse mesmo autor, ou seja, a geração de riquezas e postos de trabalhos locais a partir do Locavorismo é outra questão de caráter econômico (e controversa) que transpassa o movimento. Halweil (2003) afirma que o dinheiro investido localmente não é desviado para o transporte, armazenamento e taxas para agentes intermediários. Isso é importante na medida em que se sabe que os agricultores que atuam sob a perspectiva do local e que produzem os alimentos para consumo nem sempre recebem a mesma parcela de subsídios do Estado que os grandes produtores que abastecem o grande agronegócio de exportação.

Para defender sua afirmação, Halweil (2003) menciona estudo da New Economics Foundation, iv em Londres, que mostra que cada dez libras gastas em uma loja de alimentos varejista local equivale a vinte e cinco libras para a região. Quando se gasta esse valor em um supermercado o valor que retorna para a área é somente catorze libras. Ou seja, um dólar, uma libra ou um real gasto localmente gera duas vezes mais renda para a economia local.

Já pesquisas produzidas e apoiadas pela Co-operatives UK, órgão de comércio nacional inglês que ajuda a promover e desenvolver empresas cooperativas, mostram que não basta apenas gastar o dinheiro localmente para que ele seja revertido para a região. A premissa é que para se tornar o que se denomina de 'sticky money' é essencial considerar onde as pessoas que recebem o dinheiro pago localmente reinvestem; ou seja o estudo revela a essencialidade do dinheiro gasto em comércio local cooperativo. Um estudo específico promovido pela mesma organização mostra que, desse modo, a cada cem libras gastas em uma cooperativa, gera-se um adicional de quarenta libras para fornecedores locais, clientes e funcionários, proporcionando um verdadeiro impulso para a economia local (SACKS, 2012).

Mesmo associada à facetas democratizantes do ponto de vista econômico, a prática de consumir alimentos locas ainda é considerada excludente, elitizada e permitida apenas a uma parte da população que pode arcar com os custos do alimento local. Existe a crítica de que grande parte desses alimentos é destinada a indivíduos urbanos afluentes, interferindo inclusive no autoconsumo dos próprios agricultores locais (JOHNSON; AUSSENBERG; COWAN, 2013).

Ressalta-se que a organização do comércio local de alimentos no Brasil ainda não tem sido pesquisada, e, assim, não é possível transferir essa análise para a realidade nacional. O próprio conceito de alimento local não é muito utilizado e essa menção ao alimento elitizado transpassa aqui o conceito de alimento orgânico.

Riscos Locais

O artigo não aprofundará a discussão de riscos alimentares explorada por diferentes autores que envolvem riscos que acompanham a humanidade há muito tempo, como a escassez de alimentos e as contaminações biológicas, além dos riscos globais que surgiram na modernidade, decorrentes da contaminação química dos alimentos e do uso de novas tecnologias aplicadas à produção e transformação dos alimentos (AZEVEDO, 2011; GUIVANT, 2001).

Apesar do apelo de que os alimentos locais tendem a sofrer menor contaminação, os riscos relacionados aos transgênicos e aos contaminantes químicos - agrotóxicos, fertilizantes, aditivos sintéticos e drogas veterinárias - escapam da alçada de discussão do Locavorismo a não ser que o movimento se proponha a incorporar formas de produção orgânica.

Já o estudo de Peter et al. (2008) que defende a redução dos riscos de contaminação biológica dos alimentos locais devido à facilidade de rastreabilidade dos mesmos e as inúmeras possibilidades de contaminação entre os quilômetros viajados pode ser questionada a partir da defesa de que os alimentos industrializados, produzidos pelos padrões do sistema agroalimentar moderno, são mais seguros, uma vez que se inserem nas normas padronizadas de controle das agências reguladoras da segurança sanitária dos alimentos.

Entretanto, essa discussão também não progride se não forem abordadas as repercussões da tecnologia alimentar que, embasada pela visão biológica de demonização dos micro-organismos, assume a produção de alimentos considerados mais seguros - esterilizados, pasteurizados, irradiados e aditivados - não sem dano para outro contexto de qualidade que implica no desequilíbrio nutricional e na contaminação química dos mesmos.

As expectativas de dissolver essa controvérsia superam o âmbito da segurança sanitária dos alimentos e instigam a compreender o que se define como segurança e qualidade alimentar que na contemporaneidade incorporam outras dimensões para além de valor nutricional como: toxicidade química e biológica, durabilidade, vitalidade, frescor e caraterísticas sensoriais dos alimentos, além de fatores culturais e socioambientais (CONSEA, 2007; AZEVEDO, 2012). O contexto de qualidade alimentar pode ser ainda mais complexo quando se considera que, para um vegetariano, por exemplo, uma dieta de qualidade deve ser isenta de carne e para quem se preocupa com a obesidade, uma dieta hipocalórica, a base de alimentos light, pode ser qualitativamente superior.

Locavorismo, Vegetarianismo e Feminismo

A ideia implícita no Locavorismo de retorno às origens e revalorização do preparo e do consumo doméstico de alimentos é criticada por Stănescu (2010) que defende que tal clamor pode ser um retrocesso no campo dos direitos feministas. Para o ativista, a proposta de reinserir a mulher na cozinha assumindo as preocupações com a alimentação saudável da família, pode levar a um próximo passo conflituoso que seria o resgate dos papeis tradicionais de gênero e de casal heterossexual que percebia o homem, fora de casa, dedicado à agricultura e à pecuária, enquanto a mulher assumia as tarefas domésticas, com a culinária no centro das mesmas. Seria uma referência à ideia de "divisão burguesa idealizada" de Belasco (2002, p. 7) que separa "a esfera feminina do consumo da esfera masculina de produção" (p. 7).

A crítica pode ser legítima, mas não é consensual que um dos objetivos do Locavorismo é recolocar a mulher na cozinha; o movimento aponta a importância de voltar ao preparo de alimentos em casa - por quem seja capaz de assumi-lo - uma vez que o impacto de se alimentar frequentemente fora de casa e dos alimentos industrializados sobre a saúde humana é bem conhecido.

Ao se referir aos alimentos industrializados, o chef catalão Santi Santamaria menciona um processo de 'pasteurização', uma forma de uniformização das práticas alimentares que exclui os agricultores, pescadores, açougueiros e artesãos. Santamaria aborda também o aspecto político da culinária - voltar a comer em casa como uma forma de resistência à economia de mercado e a globalização, delineando assim a função social do cozinheirov. O chef faz uma alusão à importância de ressuscitar "as mães e avós e as vizinhas" que cozinhavam para que se mantenha o futuro da gastronomia.

Rudy (2012) discute com mais embasamento teórico a questão do alimento local - mais especificamente a carne - sob as premissas dos movimentos feminista e vegetariano. A autora apresenta duas filósofas - Val Plumwood e Donna Haraway - que questionam por diferentes motivos a prática de abstenção de carne na dieta, mas defendem o Locavorismo.

Plumwood propõe a dissolução da fronteira entre os reinos humano e animal considerando que ambos pertencem à segunda categoria e estão sujeitos às mesmas leis e forças. O ser humano seria apenas mais uma espécie entre muitas e, de acordo com essa ideia, ele pode tanto comer outros animais como servir de alimentos para eles. Ou seja, o ser humano é inserido, sem privilégios e imparcialidades, na cadeia de alimentos, sob as premissas de igualdade entre os reinos.

Já para Haraway não é possível retirar o ser humano do inexorável determinismo cultural que o levou a caçar, a domesticar animais e a preparar carnes de formas culturalmente diferenciadas e não existem argumentos éticos que possam derrotar práticas culturais estabelecidas e aceitas. Entretanto, ambas defendem maneiras responsáveis de criar e abater os animais, rejeitam o complexo industrial da carne e se colocam favorável à sistemas agropastoris modernos, defendidos pelo Locavorismo (RUDY, 2012).

O local alheio

Para Hughes et al. (2007), a maioria das discussões sobre os sistemas alimentares locais não foi avaliada sob uma análise rigorosa da ciência regional, um campo de estudos das ciências sociais que se dedica a abordagens analíticas de problemas específicos urbanos, rurais ou regionais. Por isso, o tema aparece cercado de incertezas.

A discussão que envolve o Locavorismo tende a mesclar categorias de 'local próprio' e 'local alheio' e homogeneizar conceitos de 'alimento local', 'alimento com identidade local' e 'alimento tradicional', o que acaba por trazer novas facetas e controvérsias à temática do local.

Apesar da simples menção do termo local remeter a algo positivo e inclusivo, o ativista anti-locavorismo Stănescu (2010) alerta para a possibilidade de o movimento estimular contextos de xenofobia e de exclusão, contra aquele que "vem de fora", sob as bases de um movimento considerado por ele como "conservador e provinciano" (s/p). Resta compreender como essa dimensão do movimento dialoga com a proposta da gastronomia de assumir o local do outro, a partir do fascínio pelas chamadas 'ethnic foods'.

A gastronomia contemporânea vem incorporando condimentos, alimentos e pratos típicos de uma localidade específica e assume cada vez mais essa tendência contemporânea de valorização do local entre chefs e comensais. Mas qual é esse local das comidas étnicas?

Na entrevista citada acima, o chef Santamaria menciona que a utilização de ingredientes locais minimiza os riscos de homogeneização decorrente da globalização e promove a articulação da culinária contemporânea com a agricultura sustentável, abrindo outras dimensões na prática de assumir o 'local do outro'. Entre muitas questões que emergem é possível perguntar: uma gastronomia sustentável deve usar ingredientes locais de qual local ou região? Comer tacacá na Europa significa fortalecer qual local? Essa é uma questão endereçada aos emergentes chefs de cozinha que tendem a assumir uma postura política em suas práticas alimentares.

Quanto aos alimentos com identificação local, como no caso do 'queijo minas' ou do 'queijo camembert', o governo americano estuda uma forma de inseri-los em um sistema local. Tais alimentos são imediatamente relacionados a uma região específica e aparecem convertidos a valores positivos como 'culturalmente inseridos' e relacionados a um know how particular, mas os mesmos podem ser comercializados em locais muito distantes da origem. Hughes (2007) cita o exemplo de uma parceria entre o governo da Flórida, nos EUA, e uma cadeia de supermercados na Irlanda para promover alimentos frescos desse estado ('Fresh from Florida').

Para resolver essa ambivalência, Holt e Amilien (2007) remetem a Laurence Bérard e Philippe Marchenay que definem alimentos que têm uma marca associada a uma determinada região, mas que podem servir a mercados externos como 'locality foods', algo como 'alimentos com caráter local'. Essas mesmas autoras destacam a especificidade de outro conceito que dialoga com essa categoria - o alimento tradicional que tem o potencial de estabelecer vínculos e estabilizar comunidades tradicionais através da continuidade de suas histórias. Buscar alimentos tradicionais pode levar a uma forma de reinventar a tradição.

O caso da quinoa apresentado por Blytman (2013) no jornal The Guardian traz alguns novos elementos que polemizam a dimensão do 'local do outro'. A jornalista mostra que a trajetória desse grão de alto teor proteico, considerado "o milagre dos Andes" e festejado por amantes da comida saudável e vegetarianos ilustra uma história com final infeliz que pode estar acontecendo em outros territórios. Após grande aceitação entre consumidores de todo o mundo, o preço da quinoa subiu - na verdade, triplicou desde 2006 - com consequências desastrosas para quem plantava e consumia o grão localmente. O apetite dos consumidores de diversos países pressionou os preços do alimento de tal forma que as pessoas mais pobres do Peru e da Bolívia, para quem a quinoa já foi um dia um alimento acessível, já não conseguem arcar com os custos desse alimento tradicional. Hoje, nesses lugares o junk food importado é mais barato. Em Lima, por exemplo, o quilo da quinoa custa agora mais do que o frango de granja. No meio rural o cenário é igualmente perverso. Impulsionados pela demanda externa, os agricultores locais estão sendo pressionados a transformar suas terras onde produziam diferentes alimentos para autoconsumo em monoculturas de quinoa - bem próximo do que já aconteceu com a soja e o fumo no Brasil. Blytman (2013) ressalta ainda que o entusiasmo que envolve a quinoa é mais um exemplo de um tipo prejudicial de intercâmbio de alimentos entre os hemisférios norte e sul que leva consumidores afluentes, preocupados com sua saúde pessoal, com o bem estar animal e com a redução de suas emissões de carbono a comprar alimentos 'locais dos outros', sem a consciência da interferência socioambiental implícita nesse ato.

Outra denúncia que o caso da quinoa aponta é a necessidade de reforçar a discussão sobre segurança (e soberania) alimentar e nutricional dos países e sobre a diminuição da dependência de alimentos importados, olhando, em primeiro lugar para o que pode ser cultivado ou criado por perto. O artigo do The Guardian termina com uma sutil provocação aos vegetarianos ingleses e a fome de proteína de consumidores que desprezam a carne e o leite locais e acabam criando novos problemas longe dali - no 'local do outro'. Entretanto, essa crítica é um alerta também aos consumidores onívoros e pode ser estendida a outros deslocamentos alimentares como, por exemplo, o interesse internacional pelo açaí e outras frutas e castanhas do Norte do Brasil.

O caso do grão andino dialoga com a ideia de "colonialismo cultural alimentar", termo proposto por Heldke (2001) ao se referir a fascinação branca pela comida étnica, elemento já presente na busca de "cada vez mais novas e remotas culturas", assumida pelos primeiros antropólogos, exploradores e colonizadores. Esse aparente encantamento que, segundo a autora, pode ser uma "forma de fazer de mim mesma mais interessante", ameaça tornar-se uma intervenção negativa no local alheio (p. 176-77).

Nesse contexto, destaca-se a relevância de movimentos internacionais que fomentam condições de mercado mais justas entre países consumidores e produtores de países em desenvolvimento como Fair Trade ou Comércio Justo e o Slow Food.

O Fair Trade surgiu no final dos anos 1980 e promove atividades de conscientização tanto dos consumidores quanto dos governos, de forma a regular o acesso justo aos mercados dos agricultores menos favorecidos (KUHLMANN, 2006). O movimento Slow Food, criado pelo italiano Carlo Petrini em 1986, questiona a homogeneização e os efeitos do fast food. Preocupa-se com o desaparecimento das tradições culinárias e agrícolas regionais e com o desinteresse das pessoas por sua alimentação; discute a procedência e a valorização do sabor dos alimentos e o ritmo da vida urbana que influencia na saúde e na qualidade da dieta. E alerta como as escolhas alimentares podem afetar o meio ambiente e a vida dos agricultores. O Slow Food assume a proposta da 'ecogastronomia' que relaciona o prazer de comer com a consciência e a responsabilidade ambiental, estabelecendo conexões entre "o prato e o planeta"vi.

Percebe-se nesses movimentos a concepção de planeta como um ecossistema, no qual 'o fora não existe' e onde uma ação local pode gerar um movimento global. As propostas permitem pensar em riscos e ações socioambientais mais democráticas no sentido que afetam a todos - alguns de imediato, outros a médio e longo prazos.

Considerações Finais

As controvérsias, a efervescência e o sectarismo que rondam o Locavorismo - e muitas práticas de ativismo alimentar - não são novos, assim como também não é inédito incorporar práticas alimentares como uma maneira de discriminar ou distanciar-se de grupos com os quais são mantidos alguns tipos de diferenças ou como uma forma de fortalecer valores coletivos essenciais.

Uma vez que os sistemas locais não têm o objetivo (e nem são capazes) de alcançar a mesma produtividade animal que o sistema convencional. Uma das consequências da difusão e da adoção do Locavorismo deve ser a diminuição do consumo diário de carne na dieta. Essa é uma proposta que já vem sendo assumida por alguns especialistas em Nutrição preocupados com as repercussões negativas da dieta hiperproteica contemporânea sobre a saúde. A proposição deve ser também compreendida como uma politização do ato de alimentar-se que clama pela responsabilidade socioambiental do consumidor.

Percebe-se que a proposta do movimento em si não foi assumida formalmente no Brasil, nem pelos grupos de ativismo alimentar e nem pelas instâncias governamentais, como já aparece em outros países do hemisfério norte.

Em um país com distâncias continentais e graves problemas ambientais, cuja população sofre os efeitos da precariedade das rodovias e da desqualificação da agricultura familiar que produz alimentos para 80% da população brasileira, a discussão do Locavorismo é pertinente e demanda atenção e estudos futuros.

Esses estudos podem se debruçar sobre o perfil de quem consome e produz alimentos locais; sobre a percepção de alimento local dos produtores, consumidores, varejistas e grupos específicos (estudantes, chefs, entre outros); sobre dados acerca da produção e disponibilidade de alimentos locais em cada estado da nação; sobre o impacto ambiental do transporte de alimentos no país e da produção local de alimentos como um todo; sobre iniciativas e condições para promover ou inviabilizar o Locavorismo; sobre impactos regionais decorrentes da comercialização e da exportação dos alimentos locais no Brasil; sobre propostas de gastronomia regional e seu impacto na produção local de alimentos; sobre o impacto no valor nutricional, na segurança sanitária e na qualidade dos alimentos produzidos localmente; sobre as diferentes dimensões de impacto de Programas governamentais que apoiam o uso de alimentos locais, entre outros.

Estudos futuros também podem demonstrar se as diretrizes e os princípios da Agricultura Familiar Orgânica e da Agroecologia no Brasil já não cobrem as demandas e os anseios do Locavorismo.

Na realidade, a perspectiva do alimento local no Brasil é transversal aos princípios e diretrizes da Agroecologia e da Agricultura Orgânica e de algumas políticas públicas como a Política Nacional de Alimentação Escolar, a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e o Programa de Aquisição de Alimentos, mas acredita-se que a disseminação e o fortalecimento desse conceito per si pode resultar em um impulso à agricultura familiar e a todas as formas de agricultura sustentável, bem como fomentar novas políticas públicas que considerem a essencialidade de fortalecer territórios e locais, ação que deve trazer impactos culturais e socioambientais positivos.

Para finalizar, a ideia de resgatar alimentos locais provenientes da região onde se vive não deve interferir na instigante possibilidade de criar pontes com outras culturas através do acesso e do consumo de pratos e alimentos exóticos, prática incorporada por quase todas as sociedades desde o início das grandes navegações. A entrada de alimentos exógenos permite um hibridismo cultural e uma variedade de possibilidades, encontros, oportunidades e aceitação das diferenças. Para Hall (2002), até mesmo o resgate do local ocorre quando o global começa a se tornar expressivo, afinal a globalização caminha hoje junto com o reforço das identidades locais. Em vez de pensar no local como substituto do global, ou vice-versa, seria mais acurado pensar em uma nova articulação entre essas duas categorias.

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    A Fundação contatada assumiu que esse resultado não pode ser generalizado e que os números referem-se a um caso específico. Alertou que os resultados dependem de como o dinheiro é gasto e repassado posteriormente em uma determinada área.
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    Informações disponíveis em entrevista de Santi Santamaria à Folha de São Paulo. O filósofo da Gastronomia, 2013 no site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0602200506.htm Acesso em: 6 Fev 2013.
  • vi
    Informações e citação disponíveis em: http://www.slowfoodbrasil.com. Acesso em: 5 Jun 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2013
  • Aceito
    11 Ago 2014
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