Open-access UMA ABORDAGEM SISTÊMICA DA SUSTENTABILIDADE - A INTERCONEXÃO DE SUAS DIMENSÕES NAS PRÁTICAS DAS ECOVILAS

Resumo

Existem consideráveis dificuldades em alinhar discursos e ações relativos à sustentabilidade, o que se deve em parte ao tratamento compartimentalizado de suas dimensões. O objetivo deste ensaio é analisar, a partir da literatura existente, de que forma essas dimensões são trabalhadas nas práticas das ecovilas, um tipo de comunidade explicitamente orientado para a sustentabilidade. Observamos que as ecovilas vêm adotando uma perspectiva sistêmica da sustentabilidade, isto é, multidimensional e integrada - o que se evidencia no fato de que suas práticas apresentam simultaneamente funções em diversas dimensões, que se mostram interdependentes. A chamada “sustentabilidade social” (incluindo-se aspectos políticos, econômicos e culturais) envolve desafios muito mais significativos que a chamada “sustentabilidade ecológica”, comumente inviabilizando a continuidade dessas comunidades. A experiência das ecovilas sugere que a sustentabilidade social constitui a própria fundação da sustentabilidade ecológica, no sentido de que as práticas ecológicas são necessariamente mediadas por complexas relações sociais.

Palavras-chave:  Sustentabilidade; Ecovila; Comunidades sustentáveis

Abstract

It is often very difficult to align sustainability-related discourse with practices, partly due to the compartmentalized treatment of sustainability’s dimensions. Building on existing literature, this paper seeks to analyze the way those dimensions are worked out in the practices of ecovillages, a kind of community explicitly oriented towards sustainability. We observe that ecovillages view sustainability in a systemic perspective, adopting a multidimensional and integrated approach. That is apparent in the fact that their practices simultaneously present functions in various dimensions revealing the latter’s interdependency. The so-called ‘social sustainability’ (including political, economic and cultural aspects) involves far more significant difficulties than ‘ecological sustainability’ and it may even render the continuity of such communities unfeasible. The experience of ecovillages suggests that social sustainability constitutes the very foundation of ecological sustainability, insofar as ecological practices are necessarily mediated by complex social relationships.

Keywords:  Sustainability; Ecovillage; Sustainable communities

Resumen

Hay considerables dificultades para alinear discursos e acciones relativos a la sostenibilidad, en parte debido al tratamiento compartimentado de sus dimensiones. El objetivo de este ensayo es analizar, a partir de la literatura existente, de qué forma esas dimensiones son trabajadas en las prácticas de las ecoaldeas, un tipo de comunidad explícitamente orientado a la sostenibilidad. Las ecoaldeas vienen adoptando una perspectiva sistémica (multidimensional e integrada) de la sostenibilidad - lo que se evidencia, por ejemplo, en que sus prácticas presentan simultáneamente funciones en diversas dimensiones interdependientes. La llamada “sostenibilidad social” (incluyendo aspectos políticos, económicos y culturales) involucra dificultades mucho más significativas que la llamada “sostenibilidad ecológica”, y puede mismo inviabilizar la continuidad de esas comunidades. La experiencia de las ecoaldeas sugiere que la sostenibilidad social es la fundación misma de la sostenibilidad ecológica, en el sentido de que las prácticas ecológicas son necesariamente mediadas por complejas relaciones sociales.

Palabras clave:  Sostenibilidad; Ecoaldea; Comunidades sostenibles

Introdução

A ideia de sustentabilidade vem funcionando como um grande “guarda-chuva” para se discutir os problemas socioecológicos contemporâneos. No entanto, há uma enorme dificuldade em transformar os discursos existentes em práticas coerentes - o que se deve, em boa parte, ao fato de que a própria noção de sustentabilidade encontra-se largamente apropriada pelo capitalismo (DIAS et al., 2017), um sistema inerentemente insustentável, na medida em que pressupõe crescimento econômico contínuo para garantir suas taxas de lucro.

A inconsistência da visão capitalista de sustentabilidade evidencia-se no tratamento compartimentalizado e desigual de suas diversas dimensões. Nos modelos dominantes, representa-se a sustentabilidade pelas dimensões ecológica, social e econômica, que, em teoria, teriam igual importância e deveriam ser trabalhadas de forma integrada. No entanto, a dimensão social ainda é negligenciada até mesmo nos discursos (SPANGENBERG; OMAN, 2006; COLANTONIO, 2007; LITTIG; GRIESSLER, 2005; WOODCRAFT, 2012), e as preocupações ecológicas, embora muito “evocadas”, raramente se refletem em ações significativas. Na prática, o que ocorre é que a dimensão econômica prevalece, em detrimento das demais (MCKENZIE, 2004; LITTIG; GRIESSLER, 2005; MAGEE; SCERRI; JAMES, 2012). Cabe notar ainda que os aspectos ‘político’ e ‘cultural’ - embora em teoria estejam “contidos” na dimensão “social” - costumam ficar obscurecidos, empobrecendo os debates sobre sustentabilidade.

Nesse contexto, a investigação de experiências concretas voltadas para a sustentabilidade pode oferecer alguns importantes insights. As ecovilas são comunidades que vêm explicitamente buscando a sustentabilidade em diversas dimensões da vida - a própria definição de “ecovila” da GEN (Global Ecovillage Network) cita quatro dimensões, adicionando a “cultural” às três já citadas. O objetivo deste artigo é analisar, a partir de elementos teóricos e dados provenientes de revisão bibliográfica, de que forma as dimensões da sustentabilidade são tratadas nas práticas das ecovilas. Para tal, foram levantados, no portal de periódicos da CAPES, os artigos científicos (busca em português, inglês e espanhol) publicados até dezembro de 2017que utilizavam o termo ‘ecovila’, ‘ecovillage’ ou ‘ecoaldea’ no título ou no resumo, e, dentre eles, selecionaram-se aqueles com enfoque mais social (não tecnológico), dando especial ênfase aos que continham dados empíricos. Utilizamos também alguns livros (inclusive de insiders ao movimento) como apoio. É importante ressaltar que a maior parte dos estudos disponíveis refere-se a ecovilas que são pequenas comunidades intencionais - isto é, grupos de pessoas que deliberadamente escolheram viver juntas por um propósito comum (SARGISSON, 2004) -, localizadas principalmente no norte global, mas não apenas (sobre isso, ver Dias et al., 2017).

Aspectos ecológicos da sustentabilidade em ecovilas

As preocupações ecológicas das ecovilas são evidenciadas desde seu design espacial (KIRBY, 2003): sua organização física costuma ser planejada para preservar espaços verdes, maximizar a eficiência energética e otimizar o uso do espaço e dos materiais (KASPER, 2008) - o que se dá, em boa parte, pelo compartilhamento (LITFIN, 2014) de terras, construções, recursos, equipamentos, ferramentas, etc., associado a um baixo padrão de consumo (MEIJERING; HUIGEN; VAN HOVEN, 2007). As casas costumam ser energeticamente eficientes (LOCKYER, 2010b) e utilizar técnicas de baixo impacto como as de bioconstrução. Ecovilas tendem também a reduzir sensivelmente o uso de transportes poluentes (LITFIN, 2014), assim como a geração de resíduos, através de seu reaproveitamento e tratamento (notadamente dos orgânicos, que se tornam adubo através da compostagem). Praticamente toda ecovila realiza, ainda, a produção local de alguns bens, em especial alimentos e energias renováveis (LITFIN, 2014). No caso dos alimentos, a forma de produção é em geral agroecológica - o que implica manutenção da biodiversidade (policulturas, plantio em consórcio, uso de sementes crioulas, sistemas agroflorestais - SAFs); economia de água (irrigação por gotejamento); não utilização de agrotóxicos ou fertilizantes químicos; e preservação e incremento da fertilidade do solo (adubos naturais, cobertura da terra com matéria morta).

A partir de tais práticas de produção e consumo, as ecovilas tipicamente buscam adquirir algum grau de autossuficiência (LITFIN, 2014; LOCKYER, 2010a) em relação ao sistema de produção e consumo capitalista, considerado por elas insustentável (VETETO; LOCKYER, 2008). Na verdade, atualmente, as ecovilas vêm buscando não tanto se bastar, e sim construir uma interdependência (LITFIN, 2014) em redes locais - o que permite maior controle sobre o que se consome. Por exemplo, muitas ecovilas criam e fomentam em suas regiões modelos de agricultura sustentada pela comunidade (Community Supported Agriculture - CSA) (KIRBY, 2003; LITFIN, 2014; CUNNINGHAM; WEARING, 2013; NEWMAN; NIXON, 2014; LOCKYER, 2010b).

Um aspecto fundamental dessas práticas é a tendência à relocalização - isto é, à valorização e ao fomento de práticas locais e regionais, através do que se reduz a distância entre produção e consumo e, consequentemente, a pegada ecológica3 das cadeias produtivas (LOCKYER, 2010b). Isso tem implicações específicas em relação à localização geográfica das ecovilas: naquelas urbanas, a minimização do uso de veículos automotores tende a ser mais fácil (LITFIN, 2014; KASPER, 2008), por conta das menores distâncias e da malha de transportes públicos. Por outro lado, muitas ecovilas acabam se estabelecendo em áreas rurais por razões que incluem menores custos, menores barreiras legais - relacionadas, especialmente, a impedimentos dos códigos de zoneamento e construção (p. ex. proibições à construção natural, captação de água, banheiros secos, tratamento de águas, uso de formas alternativas de energia, etc.) (KASPER, 2008; ERGAS, 2010; LITFIN, 2014; CHRISTIAN, 2003) - e também ao fato de no campo haver mais espaço para as práticas de produção de alimentos (ERGAS, 2010) e de energia e de tratamento de resíduos.

A partir desse conjunto de práticas, as ecovilas tendem a apresentar modos de vida ecologicamente bem mais sustentáveis que a sociedade em geral. Segundo Litfin (2014), sua pegada ecológica média costuma ser 10-50% inferior à média de seus países, sendo que, individualmente, algumas são ainda mais baixas (de até 10%, como observado por Boyer, 2016). É preciso notar, no entanto, que esses índices são sempre comparativos; dessa forma, mesmo números considerados muito baixos em países centrais do sistema-mundo serão altos em relação aos países periféricos desse sistema. Assim, muito além da redução de índices de impacto ecológico, é importante focar na ‘qualidade’ das práticas alternativas que vêm sendo desenvolvidas nessas comunidades, assim como seus desdobramentos em outras dimensões da vida.

Aspectos econômicos da sustentabilidade em ecovilas

As práticas locais de produção e consumo consciente das ecovilas têm também evidentes funções econômicas, na medida em que geram otimização de recursos, barateamento de custos e relações alternativas de trabalho e de trocas de produtos e serviços. Nesse contexto, o compartilhamento apresenta-se, novamente, como um aspecto-chave. As ecovilas, em geral, adotam algum grau de comunalismo econômico (LOCKYER, 2010a) que pode variar bastante. Muitas compartilham a propriedade da terra e das construções, mas nem sempre isso é possível entre todos os moradores; há ecovilas que apresentam uma estrutura social de donos e inquilinos (LITFIN, 2014), e, assim, podem acabar se reproduzindo certos padrões classistas típicos do capitalismo. Como discutimos mais detalhadamente em artigo anterior (DIAS et. al., 2017), a questão da propriedade constitui um importante gargalo socioeconômico, dificultando a inclusão social em ecovilas (embora existam algumas práticas que procuram, até certo ponto, minimizar esse problema). Dentro dessas limitações, Kunze (2012) cita algumas medidas que vêm sendo eficazes para se lidar com potenciais conflitos envolvendo propriedade em ecovilas: a terra pertencer a uma Instituição ou Fundação sem fins lucrativos; a possibilidade de desligamento da comunidade sem perda econômica; e a possibilidade de escolha de cada membro entre manter sua propriedade privada ou incorporá-la ao patrimônio da comunidade. Há, de fato, ecovilas que mantêm uma estrutura de propriedade mais independente, em forma de loteamentos. Nesse caso, porém, pode haver uma tendência de afrouxamento dos laços comunitários e uma aproximação com o formato de ‘eco-condomínios’, em que os lotes podem se tornar sujeitos a leis de mercado.

Como parte da tendência a buscar certo grau de autossuficiência e relocalização de processos, e também visando à geração de renda, as ecovilas com frequência desenvolvem economias internas que extrapolam a produção de bens para consumo próprio. Algumas chegam a incubar “indústrias caseiras” e outros pequenos negócios (LITFIN, 2014) dedicados a atividades bem diversas. Ainda assim, boa parte dos membros precisa trabalhar fora ao menos uma parte do ano (KASPER, 2008; LITFIN, 2014), muitos até em empregos mainstream (MEIJERING; HUIGEN; VAN HOVEN, 2007) - o que pode ser visto, por um lado, como um problema, na medida em que canaliza energia produtiva para o sistema que se pretende subverter, mas, por outro lado, também pode expressar uma saudável interação com o exterior (LITFIN, 2014). De forma geral, os membros de ecovilas buscam trabalhar com assuntos alinhados aos próprios ideais (p. ex., agricultura ecológica, educação alternativa, energias renováveis, construção ecológica, artes, ecoturismo, técnicas de comunicação e autogestão), independentemente da renda inferior - como bem ilustrado no estudo de Ergas (2010). Segundo Litfin (2014), em países afluentes, muitas ecovilas vivem confortavelmente com rendas consideradas abaixo da linha de pobreza - o que, no entanto, não se relaciona a um cenário de pauperização. Mulder, Costanza e Erickson (2006) observaram que, mesmo com uma renda mais baixa, a percepção da qualidade de vida em ecovilas se mostrou superior à de uma cidade universitária que tem este índice altíssimo. Trata-se, evidentemente, do valor que se dá a certos bens. Litfin (2014) sugere que há em ecovilas um “senso de suficiência” enraizado na “satisfação das necessidades humanas reais”, o que gera uma tendência à simplicidade material.

Como vimos, aquilo que não conseguem ou não desejam produzir, as ecovilas tipicamente adquirem em redes econômicas locais, com frequência de economia solidária - isto é, autogestionadas e baseadas em cooperação e respeito socioambiental. Brombin (2015) sugere que as práticas de produção de alimentos, em especial, são meios privilegiados para estabelecer tais redes, seja entre os próprios moradores-membros-donos da propriedade ou entre um espectro mais amplo de atores sociais - como nos modelos de CSA, em que se divide o risco da produção com os agricultores e se estreitam os laços entre produtores e consumidores (LITFIN, 2014), por vezes configurando relações claras de subsídio, como observaram Newman e Nixon (2014). No caso de ecovilas urbanas, é muito comum a criação de grupos de compras coletivas de alimentos. Outras práticas econômicas alternativas frequentes em ecovilas são as permutas e a utilização de moedas sociais/locais (LITFIN, 2014). Por vezes, desenvolvem-se ainda bancos comunitários (que não visam ao lucro), como relatam Swilling e Annecke (2006).

Dessa forma, pode-se argumentar que as práticas econômicas das ecovilas vêm se afastando consideravelmente da lógica da economia capitalista, ao recusar um funcionamento puramente mercadológico e a busca pelo lucro acima de tudo. Para López e Prada (2015), através da produção local e do consumo responsável, as ecovilas rompem com a intermediação dos mercados globalizados e, dessa forma, com a fetichização mercantil, gerando experiências de comércio não pautadas exclusivamente na monetarização das trocas e “reconstruindo” assim o valor de uso sobre o de troca. Por outro lado, os mesmos autores ressaltam que grande parte das ecovilas assume uma linguagem e práticas que continuam sendo capitalistas para dinamizar suas economias internas - o que parece se relacionar bastante a uma dificuldade de geração de renda a partir destas. De fato, a despeito do bom funcionamento de muitas práticas alternativas, o fator econômico ainda é apontado como um desafio para as ecovilas (LITFIN, 2014). Christian (2003) ressalta que os custos da terra e a falta de opções de financiamento geram importantes limitações, e que muitas comunidades fracassam simplesmente por falta de planejamento financeiro. As relações econômicas de compartilhamento podem também gerar muitos conflitos, ao desafiar nossa arraigada noção de propriedade individual - segundo Litfin (2014), tensões financeiras não resolvidas já desfizeram muitas comunidades.

Apesar dessas dificuldades, é relevante notar que as ecovilas vêm criando formas coletivas de relação com o dinheiro que requerem que se considere o bem comum do grupo além dos desejos individuais (LOCKYER, 2010a). Mulder, Costanza e Erickson (2006) sugerem que membros de comunidades intencionais sustentáveis tendem a “converter” bens privados em bens públicos - uma visão de “bem comum” fundamental para pensar a sustentabilidade. Segundo Litfin (2014), as ecovilas vêm, em última instância, desenvolvendo uma “nova cultura econômica” que corresponde a uma reformulação dos elementos básicos da economia - consumo, produção, propriedade, moeda e satisfação de necessidades. Mas cabe notar que nada disso pode se dar isoladamente, uma vez que as transações econômicas são apenas ferramentas para facilitar as trocas sociais.

Aspectos sociopolíticos da sustentabilidade em ecovilas

Ecovilas costumam promover uma intensificação das interações sociais, o que é favorecido pela existência de espaços comuns (CHITEWERE, 2010; NEWMAN; NIXON, 2014; KIRBY, 2003; KASPER, 2008; LITFIN, 2014) e por formas diversas de encontros sociais (KASPER, 2008; KIRBY, 2003) - dentre os quais se destacam o compartilhamento de refeições (BROMBIN, 2015; KASPER, 2008) e o trabalho coletivo, por exemplo, as práticas de produção de alimentos (NEWMAN; NIXON, 2014; BROMBIN, 2015). Práticas coletivas de expressão cultural são também muito frequentes e contribuem para manter coesão social (LITFIN, 2014). Mulder, Costanza e Erickson (2006) observaram que a alta qualidade de vida relatada pelos membros de ecovilas tem forte ligação com o suporte gerado pela vida comunitária, que se expressa, por vezes, também em uma integração intergeracional, como relatado por Kirby (2003) e Litfin (2014). Litfin notou que, em muitas ecovilas, existe mesmo um afastamento do modelo de família nuclear, e a estrutura social primária passa a ser a própria comunidade. Por outro lado, um convívio social muito intenso pode também causar inconvenientes: no estudo de Kirby (2003), membros de uma ecovila relataram que sua expectativa de uma vida mais simples não se concretizou, pois as facilidades da vida comunitária foram neutralizadas por complicações relacionadas a obrigações sociais. Farkas (2017) sugere que a alta demanda de tempo percebida pelos moradores de ecovilas se deve ao fato de que eles procuram dar conta de tarefas típicas da vida rural e ao mesmo tempo manter um modo de vida “intelectual-urbano” do qual vieram - o que se torna ainda mais complexo considerando as particularidades da vida em comunidade. Torna-se evidente, nesse cenário, a importância de balancear compartilhamento comunitário e privacidade (LITFIN, 2014), necessidades individuais e coletivas.

Em um contexto de vida comunitária intensa, é natural haver conflitos interpessoais, que com frequência emergem a partir de desequilíbrios de poder (SARGISSON, 2004; CHRISTIAN, 2003) e de dedicação aos trabalhos internos (BRINT, 2001), mas também a partir de pequenas divergências pessoais. De acordo com Christian (2003), juntamente com barreiras regulatórias e financeiras, os conflitos internos são o principal motivo pelo qual muitas comunidades intencionais fracassam em perdurar - um exemplo disso foi observado por Cunha (2010). Construir comunidades sustentáveis passará necessariamente, então, pela questão de como lidar com eles. Muitas ecovilas vêm adotando ou desenvolvendo técnicas diversas de comunicação e resolução desse tipo de conflito (KASPER, 2008; LIFTIN, 2014). Para Liftin (2014), a comunicação é o ponto central da questão. Ouvir e se expressar de forma socialmente eficaz de fato atua tanto na prevenção como na resolução de conflitos, mas aspectos organizacionais também têm um inegável papel. Segundo Sargisson (2004), a prevenção de conflitos exige sistemas de gestão e formas de justiça processual - ferramentas formais que evitam a criação de “faccionalismos” e “despersonalizam” as questões (BRINT, 2001).

Por outro lado, estruturas e formas de gestão mal planejadas também podem gerar conflitos. Christian (2003) chama isso de “conflitos estruturais” - isto é, problemas oriundos da falta de explicitação de questões organizacionais (aspectos legais e financeiros, formas de processos decisórios) que tendem a funcionar como “bombas-relógio”, com grande potencial disruptivo. Para evitar isso, as ecovilas costumam elaborar conjuntos de regras e políticas que determinam desde questões de desenvolvimento físico do espaço, como práticas de construção e design de moradias, uso da terra e de recursos, tratamento de resíduos, até aspectos pessoais e sociais de planejamento, como os processos de entrada e saída de membros; muitas vezes essas regras e políticas são claramente explicitadas em documentos comunitários, normalmente elaborados pelos membros fundadores, mas abertos a mudanças consideradas necessárias pelos membros atuais (KASPER, 2008). Kasper observou que a participação na elaboração de políticas, ainda que seja um processo dispendioso, gera um maior senso de co-propriedade e corresponsabilidade entre os membros.

As regras relativas à admissão de membros geralmente definem procedimentos que incluem um período probatório, o que funciona como uma espécie de “seguro” para as comunidades (KUNZE, 2012). De forma geral, quanto mais antigas elas forem, mais longos se tornam os processos de associação; já em comunidades recentes ou em formação, é comum que se aceitem facilmente novos membros - como observado por Fois e Forino (2014). Por outro lado, a ausência de processos de admissão pode gerar problemas no médio ou longo prazo, especialmente se o critério determinante passa a ser o das forças de mercado (LITFIN, 2014). Há ainda outras ferramentas para procurar garantir que se mantenha um comprometimento com a visão e os valores de uma ecovila - por exemplo, restrições à revenda de lotes e a necessidade de que os compradores sejam aprovados pelos moradores (SWILLING; ANNECKE, 2006). Em muitas ecovilas existe mesmo uma impossibilidade de venda de lotes, quando a terra pertence a uma Associação. É preciso cuidado, no entanto, para que as normas e políticas comunitárias não se tornem demasiado rígidas. Kunze(2012) ressalta que as estruturas institucionais precisam ser flexíveis e responsivas às necessidades particulares dos indivíduos.

Outro elemento central na autogestão de uma comunidade são os processos decisórios (CHRISTIAN, 2003), que, em ecovilas, costumam ser participativos, havendo sempre um esforço no sentido de alcançar um consenso (KASPER, 2008). No contexto das ecovilas, o consenso é entendido como um processo de “negociação” em que todos os envolvidos têm oportunidade de se expressar, e a partir daí se procura adequar as demandas de forma que todos se sintam contemplados (SARGISSON, 2004) - o que não significa que todos tenham que concordar em tudo, mas apenas que estão suficientemente satisfeitos para não vetar as decisões do grupo (LITFIN, 2014).Um dos principais ideais subjacentes a esse processo é, claramente, o de igualdade - o que se expressa, por exemplo, no uso sistemático de arranjos circulares nas reuniões comunitárias (LITFIN, 2014; KASPER, 2008). No entanto, o funcionamento adequado (horizontal) do método de consenso depende crucialmente de estruturas de propriedade compartilhadas (KUNZE, 2012; CHRISTIAN, 2003). Quando há donos e inquilinos, geram-se, evidentemente, desequilíbrios de poder - como observado por Ergas (2010). Mesmo quando a terra é compartilhada, hierarquias com frequência acabam se estabelecendo, por exemplo, em favor de membros mais antigos (MEIJERING; HUIGEN; VAN HOVEN, 2007; CHRISTIAN, 2003; ESTEVES, 2017), mais ativos (CHRISTIAN, 2003) ou, ainda, de acordo com o gênero (ERGAS, 2010). Tais desequilíbrios podem gerar graves crises e saída massiva de membros, como relatam Cunningham e Wearing (2013).

Segundo Sargisson (2004) e Christian (2003), é comum haver dificuldades relativas ao equilíbrio de poder nos processos de consenso: membros mais confiantes, mais articulados política ou socialmente ou que detenham mais informações podem acabar dominando os debates. Mas é importante notar que isso não necessariamente é uma atitude deliberada (CHRISTIAN, 2003), e também que o próprio envolvimento individual varia conforme a personalidade dos membros - algumas pessoas ficam satisfeitas em deixar um grupo mais ativo tomar as decisões (CUNNINGHAM; WEARING, 2013). Christian argumenta que o poder - a habilidade de influenciar outros - não só não é negativo como, se estimulado equitativamente, pode beneficiar a todos. Forster e Wilhelmus (2005), por exemplo, observaram, em certa ecovila, o papel-chave de alguns indivíduos como líderes, sem o que a comunidade provavelmente teria se dissolvido em épocas de dificuldade. A questão é que, em ecovilas, as hierarquias em geral são funcionais, e as lideranças, circulares (ou seja, não são fixas).De qualquer forma, para minimizar os problemas de dominância nos processos de consenso, muitas comunidades utilizam estratégias diversas relacionadas à estrutura dos encontros - p. ex., tempo ou número de manifestações limitado por pessoa, sistema de cartas, mediação por facilitador imparcial (SARGISSON, 2004).

Apesar das vantagens em termos de participação social, o consenso não é adequado para quaisquer situações (SARGISSON, 2004). Uma limitação inerente ao processo é que ele se aplica bem à pequena escala, mas não é prático em grandes grupos (SANGUINETTI, 2012); estes tendem a desenvolver formas de decisão menos centralizadas, com menos encontros gerais e mais subgrupos especializados (LITFIN, 2014). Segundo Kunze (2012), existem diferentes estratégias de consenso de acordo com o tamanho da comunidade e o grau de compartilhamento de propriedade - ele pode, por exemplo, ser combinado com outros métodos como voto majoritário ou decisões autônomas de subgrupos. Mesmo em pequenos grupos, por vezes, não se consegue alcançar consensos em um tempo razoável e usa-se o voto majoritário (ERGAS, 2010; CUNNINGHAM; WEARING, 2013) - embora isso possivelmente se relacione também, em parte, a um uso inadequado da ferramenta. O processo de consenso é, de fato, inerentemente custoso em termos de tempo, o que pode ser um problema especialmente nos estágios iniciais das ecovilas, quando há muitas questões (financeiras e de construção) que requerem decisões urgentes (CUNNINGHAM; WEARING 2013; CHRISTIAN, 2003). Sargisson (2004) aponta que o consenso pode não se adequar bem a certas comunidades também por conta de diferenças culturais. Nos casos em que essa ferramenta, por qualquer motivo, não seja indicada, existem outras formas participativas de acordos que usam elementos de maioria, como, por exemplo, os métodos de ‘super-maioria’ (CHRISTIAN, 2003). Algumas ecovilas vêm experimentando, ainda, sistemas complexos como a sociocracia, uma forma de governança descentralizada baseada em ciclos de feedback dentro de subgrupos comunitários e entre eles (LITFIN, 2014).

Cabe notar, por fim, que, em situações de conflito intenso, o consenso provavelmente será inviável (SARGISSON, 2004). Não é à toa que técnicas de autogestão e de comunicação e resolução de conflitos muitas vezes precisam funcionar em conjunto - como observado por Kirby (2003) e Litfin (2014). Enquanto um método, o consenso se revela comumente uma “estrada pedregosa”, podendo haver uma curva de aprendizado acentuada até se desenvolver um governo equitativo (CUNNINGHAM; WEARING, 2013). Quando mal utilizado, pode acabar ocorrendo o que Christian (2003) chama de “pseudo-consenso” ou “falso consenso” (quando se chega a uma decisão sem uma real avaliação crítica dos pontos de vista alternativos) ou, ainda, o problema reverso ao da democracia: uma “tirania da minoria”, em que as propostas são sempre rejeitadas (LITFIN, 2014). Por outro lado, quando bem geridos, os processos de consenso funcionam como uma “filosofia de inclusão” que tende a reduzir consideravelmente os desequilíbrios de poder (CHRISTIAN, 2003), possibilitando uma participação profunda em que as visões das minorias, em vez de serem sobrepujadas pela maioria, são incorporadas em propostas melhores (LITFIN, 2014). Assim, apesar das dificuldades envolvidas, o consenso (sozinho ou em combinação com outros métodos) costuma ser apontado como uma ferramenta essencial de autogestão em ecovilas, pois, na medida em que favorece decisões genuinamente participativas, as legitima e ajuda a fortalecer os laços grupais (SARGISSON, 2004).

Considerando o exposto, parece existir uma estreita ligação entre a possibilidade de desenvolvimento de uma autogestão participativa e a qualidade das relações sociais em uma comunidade. Afinal, viver coletivamente requer muita disponibilidade e inúmeras habilidades. Segundo Litfin (2014), os membros de ecovilas vêm apontando as “relações sociais”, ao mesmo tempo, como o aspecto mais desafiador e também o mais recompensador da vida comunitária.

Aspectos ideológico-culturais da sustentabilidade em ecovilas

Devido, talvez, à sua intangibilidade, a dimensão cultural vem sendo sistematicamente negligenciada nos modelos dominantes de sustentabilidade. Ela constitui, no entanto, um importante pano de fundo para todas as demais dimensões, embasando-as e articulando-as, uma vez que abriga nossos valores, princípios, crenças, visões de mundo. Pode-se dizer que a cultura “se concretiza” em nossas práticas - como sugere Litfin (2014), as transformações sociomateriais e de consciência estão inextrincavelmente entrelaçadas. Isto não significa que seja necessário primeiro ocorrer uma transformação cultural em ampla escala para depois se construírem ações concretas; a relação entre essas duas instâncias é dialética, isto é, as práticas existentes também ajudam a forjar e difundir novas culturas. Nesse contexto, Kasper (2008) argumenta que os maiores desafios que as ecovilas enfrentam são, em última instância, culturais: relacionam-se aos valores e crenças prevalentes na visão de mundo dominante.

Nathan (2012) sugere que o movimento de ecovilas carrega um forte ethos de reflexão crítica, questionando a cultura capitalista ocidental contemporânea especialmente em seus padrões de consumismo e individualismo (ERGAS, 2010; KIRBY, 2003) Suas práticas de compartilhamento, por exemplo, têm evidente relação com tais críticas - e, para Litfin (2014), podem ser vistas como o “princípio básico” da vida em ecovilas. O trabalho agricultural, por sua vez, pode se mostrar diretamente ligado a ideais políticos como soberania alimentar, justiça social, promoção de uma economia baseada em reciprocidade, o direito de viver bem e de administrar livremente as horas de trabalho - expressando, assim, uma forma complexa de resistência à cultura dominante (BROMBIN, 2015).

É nesse cenário que as ecovilas vêm adotando, como valor central, o ideal de sustentabilidade, abordado em suas diversas dimensões. Embora as preocupações com a sustentabilidade ecológica sejam ubíquas, aspectos entendidos como “sociais” podem se mostrar ainda mais importantes como motivação para os membros de ecovilas (KIRBY,2003): Meijering, Huigen e Van Hoven (2007) observaram a existência de uma intensa busca por um “senso de comunidade”, e outros estudos empíricos relatam a valorização de fatores como cooperação, compartilhamento, confiança, reciprocidade, apoio/cuidado social, respeito, igualdade, responsabilidade, estilo de vida social mais íntimo, democracia e diversidade (ver, por exemplo, Kirby, 2003; Chitewere, 2010; Meijering, 2012; Sargisson, 2004; Brombin, 2015; Veteto e Lockyer, 2008; Kasper, 2008). Note-se que o “social”, aí, engloba diversas questões político-econômicas.

As motivações mais pragmáticas para se escolher viver em uma ecovila podem incluir aspectos como ambiente seguro e saudável, custo acessível, boa atmosfera para crianças (KASPER, 2008) e o fato de haver uma forte agricultura interna (NEWMAN; NIXON, 2014). Há ainda motivações de cunho nitidamente ético, como uma busca por viver “da maneira certa” (KASPER, 2008) ou por experiências de vida significativas, que tragam crescimento pessoal e autorrealização (KIRBY, 2003). Kasper sugere que há, nos membros de ecovilas em geral, uma espécie de “compulsão” para agir de acordo com seu entendimento das coisas, ou seja, uma necessidade de que suas ações correspondam a seus ideais - e essa é provavelmente a razão pela qual alguns deles realizam transformações de vida multifacetadas e, por vezes, radicais. Parece se tratar, em última instância, de uma busca por coerência entre discurso e prática (BOSSY, 2014), o que fica bem ilustrado nas expressões “ser a mudança que se procura” (ERGAS, 2010) ou “walk the talk”, comumente utilizadas na linguagem própria dos ecovileiros. Tal postura tem importantes consequências psicossociais, ao gerar um senso de consonância entre identidade e comportamento (KIRBY, 2003), e parece se relacionar também à busca das ecovilas por alcance social (KASPER, 2008) - como discutido em artigo anterior (DIAS et al., 2017), elas geralmente procuram influenciar a sociedade através da demonstração de modos de vida mais sustentáveis (ERGAS, 2010; MEIJERING, 2012; BOYER, 2015; BOSSY, 2014; LITFIN, 2014; LOCKYER, 2010a, b).

Assim, apesar de uma ênfase mais explícita na sustentabilidade ecológica, muitos autores vêm sugerindo que isto não é suficiente para caracterizar as ecovilas. Kasper (2008) considera que o aspecto social, na verdade, seria a mais importante força motriz por trás do movimento; Kirby (2003), Chitewere (2010) e Wagner (2012) argumentam que o que distingue as ecovilas de outras comunidades é justamente a união das preocupações ambientais e sociais; Kirby enfatiza a importância do fator espiritual, e Meijering (2012) adiciona a isso o fator político. É possível sugerir, então, que um elemento-chave no movimento das ecovilas é justamente esse tratamento integrado das dimensões da sustentabilidade - o que se evidencia, por exemplo, na ampla adoção, nessas comunidades, da permacultura (LITFIN, 2014), um sistema que explicitamente articula princípios éticos a princípios de design aplicáveis a diversas áreas da vida.

A interdependência das dimensões da sustentabilidade em ecovilas

Apesar do esforço analítico que fizemos neste artigo para separar os aspectos relacionados a cada dimensão da sustentabilidade, esperamos ter tornado evidente que elas estão, na verdade, estreitamente interconectadas e, em muitos momentos, interdependem e até se superpõem. Por exemplo, muitas práticas “ecológicas” são claramente, também, “econômicas” - poderíamos talvez chamá-las de “ecológico-econômicas”. Litfin (2014) observou que os desenvolvimentos em uma dimensão da sustentabilidade em ecovilas comumente geram consequências nas demais: por exemplo, o foco ecológico funcionando como base para a vida social; o foco espiritual levando ao desenvolvimento de práticas ecológicas, econômicas e sociais; a busca por eliminar a pobreza gerando um aumento da saúde das comunidades e ecossistemas. Burke e Arjona (2013) também notaram que, através do foco econômico, desenvolveram-se habilidades de trabalho de grupo e solidariedade e também alguma infraestrutura ecologicamente sustentável em uma ecovila do sul global.

Sugerimos que as ecovilas vêm colocando em prática, então, uma perspectiva ou abordagem ‘sistêmica’ da sustentabilidade - isto é, multidimensional e integrada. Isso se reflete, por exemplo, no fato de que cada uma de suas práticas costuma apresentar, simultaneamente, funções ecológicas, sociopolíticas, econômicas e culturais. A compostagem de resíduos orgânicos, por exemplo, ao mesmo tempo em que evita o envio de resíduos para aterros sanitários, gera adubo para enriquecer os solos e produzir alimentos de forma agroecológica e evita despesas financeiras com a compra de fertilizantes e outros insumos; a redução do consumo e as práticas de reutilização diminuem o uso de recursos e a necessidade de geração de renda; o desenvolvimento de redes de economia local promove formas de produção ecológica e socialmente responsável, proximidade e solidariedade social e práticas econômicas não predatórias; o compartilhamento (de terras, construções, atividades) reduz o consumo de recursos e o custo de vida e cria um senso de coletividade. Lockyer (2010a) sugere, ainda, que os “experimentos” econômicos das ecovilas, além de levar à sustentabilidade ecológica, têm importantes efeitos sociais ao gerar familiaridade, criando oportunidades para se desenvolver confiança e previsibilidade social. Cada uma dessas práticas tem, também, evidentes implicações culturais - e, assim, os limites entre as dimensões da sustentabilidade se tornam difusos. Pode-se dizer que se trata da busca por uma coerência intrínseca à própria ideia de sustentabilidade, o que pressupõe uma atenção maior às interseções entre suas dimensões do que aos limites entre elas.

Parece ser possível dizer que, a partir dessa visão sistêmica, as práticas das ecovilas vêm também, até certo ponto, subvertendo a lógica capitalista em alguns aspectos - por exemplo, a partir da restauração dos ciclos naturais, a ressignificação do trabalho, o resgate de um senso de coletividade (baseado no compartilhamento e na busca por relações de horizontalidade), a reavaliação das necessidades humanas (levando a uma vida mais simples), o desenvolvimento de relações econômicas não exploratórias (incluindo formas alternativas de produção e consumo e de relação com o dinheiro) e a minimização do antagonismo entre campo e cidade (pela revalorização do local e do rural). Para López e Prada (2015), a própria “recampesinação” promovida pelas ecovilas é, em si, anticapitalista em algum grau. Ergas e Clement (2016) sugerem que se trata de reparar os processos metabólicos nos quais o capitalismo criou “fendas”.

Certo caráter anticapitalista parece constituir uma consequência direta de uma abordagem sistêmica da sustentabilidade. Afinal, não há como problematizar a degradação ecológica sem considerar a degradação social, e ambas em suas relações com o modelo econômico vigente e com os valores culturais a ele associados. Não há como pensar o consumo sem pensar a produção, ou o trabalho sem as relações de poder e de exploração econômica, ou ainda o conjunto desses aspectos sem considerar, por exemplo, o hiperindividualismo prevalente. Estas são, todas, dimensões interdependentes da sociedade. Nessa perspectiva, os chamados “problemas ecológicos”, na verdade, nada têm de ecológicos, no sentido de que suas causas são claramente sociais - mais especificamente político-econômicas (já que as instituições políticas foram capturadas pela economia capitalista).

De fato, em ecovilas, enquanto a chamada “sustentabilidade ecológica” parece ser encarada como um horizonte a ser seguido, ou um processo em que cada comunidade avança conforme suas possibilidades, a chamada sustentabilidade “social” (incluindo-se aí aspectos políticos, econômicos e culturais) envolve dificuldades muito mais significativas (LITFIN, 2014; KIRBY, 2003), podendo mesmo inviabilizar a continuidade dessas comunidades - em especial, conflitos internos e questões financeiras (assim como conflitos oriundos de questões financeiras) frequentemente o fazem. Como ressalta Litfin (2014), “nenhuma comunidade jamais colapsou por falta de banheiros secos, mas muitas falharam quando as relações humanas se romperam” (p 20). Boyer (2016) observou, por exemplo, que os investimentos ativos em competências sociais de comunicação e resolução de conflitos foram um fator crítico para possibilitar os baixos níveis de consumo em determinada ecovila. Outro exemplo interessante dessa dependência das questões “ecológicas” é Masdar City (nos Emirados Árabes Unidos), que, apesar das melhores práticas em sustentabilidade ambiental (não gera lixo, não utiliza carros e é neutra em emissões de carbono), falhou em muitos aspectos por ter desconsiderado as necessidades sociais das pessoas (WOODCRAFT et al., 2012).

Assim, embora permaneçam centrais como ideal norteador, questões “ecológicas” em si não parecem tão determinantes para que uma ecovila (ou outro tipo de projeto voltado para a sustentabilidade) consiga perdurar. Se, por um lado, a sustentabilidade “ecológica” é base para a sustentabilidade “social” - na medida em que a natureza fornece a nossa base material de existência -, por outro lado, considerando que as “questões ecológicas” são necessariamente vistas pela perspectiva humana e refletem problemas humanos, pode-se concluir que todo o debate da sustentabilidade é, em última instância, social, e, portanto, a sustentabilidade social constitui a própria fundação da sustentabilidade ecológica, no sentido de que as práticas ecológicas são necessariamente mediadas por complexas relações sociais. Por constituírem projetos que favorecem - e às vezes exigem - mudanças radicais de modo de vida, as ecovilas vêm sendo capazes de colocar em prática uma perspectiva sistêmica que integra essas diversas questões, oferecendo importantes insights sobre as potencialidades e limitações da busca por sustentabilidade dentro do capitalismo.

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  • 3
    . Do inglês “ecological footprint”, o termo foi primeiramente usado em 1992 por William Rees e se tornou um dos mais conhecidos índices de sustentabilidade ecológica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2018
  • Aceito
    13 Dez 2018
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