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Anotações de um integrante de bancas examinadoras: teses e dissertações defendidas recentemente na área de Ciências Ambientais

ESTADO DA ARTE / STATE OF THE ART

Anotações de um integrante de bancas examinadoras teses e dissertações defendidas recentemente na área de Ciências Ambientais

José Augusto Drummond

Ph.D, Pesquisador Associado, Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília

NOTA INTRODUTÓRIA

Nessa oportunidade, eu apresento uma resenha-ensaio sobre teses e dissertações de ciência ambiental recentemente defendidas, de cujas bancas participei. Convido outros professores que venham participando regularmente de bancas da área de ciências ambientais escreverem textos sobre as teses e/ou dissertacões orientadas/avaliadas e a enviá-los para Ambiente e Sociedade, para apreciação e eventual publicação. A única exigência é que cada texto aborde pelo menos três dissertações e/ou teses denfendidas recentemente. Esperamos assim contribuir para melhor divulgar as produções discentes e para disseminar entre a comunidade das ciências ambientais as reflexões e os aprendizados dos profissionais engajados nesta particular frente de trabalho - orientação e/ou exame de teses e dissertações - uma frente estratégica, mas um tanto ''obscura''.

INTRODUÇÃO

OBJETIVOS, MATERIAIS E MÉTODO DE EXPOSIÇÃO

Ao longo dos anos 2000, 2001 e 2002, tive oportunidade de participar de 17 bancas examinadoras de teses e dissertações, defendidas em programas na área de Ciências Ambientais, ou em outros programas nos quais alguns alunos trabalharam com temas sócio-ambientais. Foram seis teses de doutorado e 11 dissertações de mestrado, defendidas entre março de 2000 e setembro de 2002, em seis programas de pós-graduação, filiados a três universidades (Universidade de Brasília, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

Reuni os meus comentários sobre 14 dessas produções (cinco teses e nove dissertações) para compor este artigo (ver o Quadro I). Três dessas dissertações foram redigidas sob a minha orientação e uma sob a minha co-orientação (Solange Maria da Silva Nunes Mattos).1 1 As três produções de cujas bancas participei, mas que não comentei neste artigo, são: (1) a tese de Doutorado de Luís Jorge Manuel Antônio Ferrão, intitulada A Convenção da Diversidade Biológica e a Gestão Comunitária dos Recursos Naturais, defendida no Programa de Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sob a orientacão de Peter H. May (junho de 2002); (2) a dissertação de Mestrado de Mônica Lepri, intitulada Em Busca do Padrão que Liga: Histórias de uma Educação pelo Ambiente, defendida no programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense, sob orientação de Eunice Trein (março 2000); e a dissertação de Mestrado de Mauro Leão Gomes, intitulada A Cultura do Café o Debate Ambiental no Século XIX: O Caso de Cantagalo, defendida no Programa de Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sob orientaçãoo de José Augusto Pádua (fevereiro 2000).


Além da participação nas bancas examinadoras e de orientar ou co-orientar algumas dissertações, tive oportunidade de contribuir com outras dissertações e teses em momentos anteriores e posteriores às suas defesas perante as bancas. Tive, assim, contato com uma amostra razoávelmente extensa da produção discente no campo das investigações científicas sobre as relações entre a sociedade e o meio ambiente natural.

Vejamos alguns detalhes dessa amostra, para atestar a sua riqueza. As 14 produções foram defendidas em seis programas de pós-graduação sediados em três cidades - Brasília (oito), Niterói (quatro) e Rio de Janeiro (dois). Dos 14 autores, oito são do sexo masculino e seis do sexo feminino. Quanto à sua formação de graduação, quatro autores são engenheiros florestais, três são historiadores, dois são biólogos, dois são economistas, uma é antropóloga, uma é engenheira agrônoma e um é sociólogo. Como foi dito, são cinco teses e nove dissertações. Geograficamente, as produções focalizam vários pontos da Amazônia (Amapá, Rondônia, Tocantins) e dos cerrados do Centro-Oeste e Meio Norte, a baía de Guanabara, trechos da Mata Atlântica na Bahia e no Rio de Janeiro, e várias seções do antigo estado de Mato Grosso. Tematicamente, destacam-se as questões fundiárias de unidades de conservação, as questões conservacionistas de assentamentos de reforma agrária, a poluição ou o esgotamento de recursos naturais, reações comunitárias a problemas ambientais, atuação de ONGs ambientalistas, a história do pensamento ambientalista, a história ambiental de diferentes trechos do território brasileiro, a gestão ambiental e a formação dos programas interdisciplinares de pós-graduação na área ambiental no Brasil.

Este artigo reúne comentários sucintos sobre essas 14 produções discentes. O seu objetivo principal é contribuir para a divulgação desses trabalhos e, acima de tudo, assinalar alguns padrões de investigação científica que eles adotam e destacar os campos temáticos, metodológicos e empíricos em curso nas Ciências Ambientais do Brasil. Como se verá, os comentários são em grande parte elogiosos, pois refletem a minha avaliação em geral muito positiva dessas produções. Outro objetivo do artigo é, assim, compartilhar o aprendizado que tive com a sua leitura e compartilhar a minha percepção de que a sua qualidade média é muito boa.

Procurei sistematizar os meus comentários principalmente em torno de cinco aspectos: desenho de pesquisa, rigor metodológico, riqueza empírica, achados originais, e as implicações dos achados. A ordem em que os textos são comentados foi determinada por uma tentativa de agrupar tematicamente as produções. Apesar das marcantes diferenças temáticas entre elas, e de haver algumas que desafiaram qualquer critério de agrupamento, adotei esse fio condutor para dar mais fluência ao texto.2 2 Registro os meus agradecimentos aos orientadores e aos então candidatos a mestre e doutor pelos convites que me fizeram para integrar as respectivas bancas examinadoras. Em alguns casos, os candidatos também me forneceram detalhes complementares sobre as suas produções, os quais aproveitei no texto. No caso dos meus orientandos e de minha co-orientanda, em cujas produções me envolvi de forma mais profunda do que a simples participação nas bancas examinadoras, não cabe propriamente um agradecimento, mas sim assinalar que os méritos de suas produções residem com eles mesmos.

PROBLEMAS FUNDIÁRIOS DE UM PARQUE NACIONAL NO RIO DE JANEIRO

Um primeiro grupo produções focaliza questões fundiárias ligadas a diferentes opções de uso ou não-uso da terra e dos recursos naturais. Vou começar com a dissertação de Leonardo Rocha, engenheiro florestal, funcionário de carreira do IBAMA, lotado no Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ). Trata-se de um estudo sobe a situação fundiária da unidade. É uma dissertação modelar, intitulada Os Parques Nacionais do Brasil e a Questão Fundiária - O caso do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. O PNSO é o segundo mais antigo parque nacional brasileiro - foi criado em 1939 - e no momento conta com menos de um terço de suas terras regularizadas e/ou sob controle efetivo do IBAMA, uma ilustração eloqüente do problema estudado. A grande maioria das UCs brasileiras mais antigas merece estudos semelhantes, pois que elas tipicamente sofrem de problemas fundiários crônicos, raramente tão bem diagnosticados quanto Rocha fez com o PNSO. Aliás, muitas unidades mais jovens também merecem tais estudos, pois os seus problemas fundiários de nascença tendem a se tornar crônicos se não forem enfrentados de forma pró-ativa. No dia em que cada UC brasileira tiver um estudo parecido com este que Rocha escreveu sobre o PNSO, teremos avançado muito na sua consolidação.

O desenho da pesquisa foi muito bem construído e perfeitamente executado. Rocha lança a hipótese de que a crônica incapacidade do poder público brasileiro de controlar as terras públicas e os usos dados às terras particulares leva a um grau muito fraco de controle público sobre as UCs. Para tanto, ele faz uma boa recapitulação dos conceitos internacionais e nacionais de áreas naturais protegidas e da legislação fundiária brasileira. Estabelecido que o conceito brasileiro de parque nacional requer controle público e virtual exclusão de atividades privadas de uso direto dos recursos naturais, Rocha em seguida enriquece o seu quadro analítico com um exame geral da situação fundiária sistematicamente insatisfatória das UCs brasileiras.

Depois disso, ele examina o caso do PNSO, mostrando a longa trajetória de pendências fundiárias originais e o surgimento de numerosos outros usos conflitivos - dentro e no entorno da unidade - ao longo das suas seis décadas de existência, comprovando amplamente a sua hipótese. Por último, Rocha apresenta (a) excelentes e originais mapas temáticos que plotam as principais pendências fundiárias da unidade e (b) sugestões factíveis de medidas que podem facilitar a sua regularização fundiária, muitas das quais válidas para outras UCs brasileiras. Essas sugestões, a meu ver, são tão bem fundamentadas que estão destinadas a serem adotadas pelo IBAMA e pelos órgãos estaduais e municipais que gerenciam UCs.

Os achados, embora originais, não são propriamente surpreendentes para quem segue a literatura científica (ainda escassa) e o grande volume de relatórios, planos e diagnósticos pertinentes. O estudo tem ainda as virtudes de boa fundamentação conceitual e de adequado detalhamento empírico. Aliás, um dos aspectos notáveis da pesquisa de Rocha é o uso de documentação administrativa da própria unidade - relatórios, ofícios, memorandos, planos, recibos de despesas efetuadas etc. -, ainda uma raridade em estudos sobre UCs brasileiras, até mesmo pelo acesso tipicamente difícil a esse tipo de fonte. Esses documentos inéditos, compulsados pela primeira vez pelo próprio autor, geraram informações que ilustraram plenamente os problemas fundiários e de gestão apontados por uma literatura histórica, analítica e administrativa mais genérica, ajudando a comprovar a sua hipótese e a produzir sugestões de grande valor para o sistema brasileiro de unidades de conservação.

OS PRIMEIROS PASSOS DE UMA REFORMA AGRÁRIA ''VERDE'' NO ACRE

Raissa Miriam Nascimento Guerra, bióloga, em É Possível Atingir a Sustentabilidade nos Assentamentos da Reforma Agrária na Amazônia Legal? O Caso do PDS São Salvador no Estado do Acre, também estuda um aspecto da relação entre a questão fundiária e a conservação ambiental. O seu ângulo é inteiramente diferente do de Rocha, no entanto, pois ela focaliza o tema muito mais espinhoso da reforma agrária ou, mais exatamente, da possibilidade de as atividades produtivas de assentamentos de reforma agrária na Amazônia serem conduzidas de uma forma ambiental e socialmente sustentável.

Guerra não trabalha propriamente com uma hipótese investigativa, e sim com uma sondagem conceitual - como sugere o tom interrogativo do título - explorando a viabilidade de um novo marco ''sustentável'' no âmbito da reforma agrária brasileira, na forma de uma nova modalidade de assentamento - o PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável) - criada recentemente pelo INCRA. Eles representam uma reação do INCRA às críticas recebidas por criar assentamentos em áreas de floresta primária na Amazônia, contribuindo para elevar os elevados índices de desmatamento na região.

Para fazer isso, a autora estudou o primeiro PDS criado no Brasil e na Amazônia, no município de Mâncio Lima, no oeste do estado do Acre. Ela contextualiza o seu estudo com uma eficaz recapitulação dos esforços mais recentes de realizar reforma agrária e colonização na Amazônia e no próprio Acre, enfatizando as dificuldades comumente registradas na literatura. Destacam-se nessa discussão (a) a questão dos obstáculos (principalmente para os colonos vindos de outras regiões) de realizar uma produção agro-pecuária sustentada dentro do quadro natural amazônico e (b) a estreita correleção encontrada pela autora entre as taxas de desmatamento acumulado no Acre e área acumulada dos 61 assentamentos de reforma agrária criadas no estado entre 1978 e 2000.

Considerando a necessidade de avaliação dos PDSs nas dilatadas escalas de tempo compatíveis com os requisitos da sustentabilidade, Guerra propõe um conjunto de indicadores para monitorar o desempenho futuro deste e de outros assentamentos de tipo PDS. Fez um provocativo exercício de aplicação desses indicadores no assentamento estudado - embora seja patentemente cedo demais para fazer um julgamento sobre a sua sustentabilidade ou falta de sustentabilidade. Ela conclui com uma série de sugestões bem fundamentadas para a criação, o monitoramento e a gestão desse e de outros PDSs na Amazônia

Um detalhe interessante é que uma porção substancial dos assentados nesse PDS, mesmo oriunda da região, se interessa mais por atividades agro-pecuárias, mesmo quando teve experiência com diversas formas de extrativismo florestal. Isso mostra que ao menos esse PDS reuniu assentados bem diferentes das pessoas beneficiadas pelas reservas extrativistas e pelos próprios PAEs (Projetos de Assentamento Agro-extrativista) do INCRA - existem várias reservas extrativistas e 11 PAEs no Acre. Assim, esses assentados tenderão a usar e talvez mesmo ampliar as áreas desmatadas nos seus lotes, a não ser que os planos de uso e a assistência técnica previstos para os PDS permitam que eles usem de forma mais produtiva as áreas já desmatadas. Esse tema das tensões entre extrativismo, agro-pecuária e desmatamento aparece também na dissertação de Sacramento sobre reservas extrativistas, comentada abaixo.

A conclusão de Guerra é que o conceito dos PDSs de fato inova as políticas distributivistas do INCRA e as torna mais compatíveis com os imperativos de uma política de uso racional ou sustentável dos recursos naturais. No entanto, fica claro que a execução do conceito coloca importantes desafios tanto para a cultura institucional do INCRA e dos sistemas de extensão rural quanto para a cultura tecnológica dos próprios assentados.

O texto resulta da combinação de um eficaz desenho de pesquisa desenvolvido com uma base diversificada, atualizada e rica de informações oriundas do trabalho e das observações de campo, de entrevistas com comunitários e funcionários governamentais, de inventários sociais e de recursos naturais, de relatórios de consultoria, de imagens de satélite e da literatura acadêmica. Guerra combina e analisa esses dados todos de forma sintética e muito bem organizada. Produziu um trabalho que será referência sobre o assunto por muito tempo.

REFORMA AGRÁRIA E DESMATAMENTO EM TOCANTINS

Ainda dentro do tema das relações entre questões fundiárias e ambientais, consideremos a dissertação da engenheira florestal Luciana de Oliveira Machado, Reforma Agrária e Desflorestamento na Amazônia: uma Relação de Causa e Efeito?. A sua dissertação é ''irmã'' da de Raissa Guerra.3 3 As duas mestras são colegas no projeto de pesquisa intitulado Monitoramento Estratégico das Tranformações Ambientais da Amazônia, realizado no âmbito do CDS-UnB, trabalhando sob a direção do seu orientador, Richard Pasquis. Vale destacar que as duas mestrandas realizaram os seus trabalhos de dissertação com o apoio de uma eficaz parceria institucional entre o CDS-UnB, o CIRAD e o PP-G7 (este último através de fornecimento de duas bolsas de estudo do MCT para as então mestrandas). As duas produções, além de uma certa afinidade temática, compartilham as virtudes de bom desenho de pesquisa, exposição sintética e muito bem organizada, riqueza empírica, excelentes gráficos e mapas, fontes de informação fartas, atualizadas e variadas, análises percucientes e resultados consistentes.

Machado abordou o tema do título focalizando seis assentamentos ''tradicionais'' de reforma agrária, localizados num recanto florestado do noroeste o estado de Tocantins, no município de Araguaína. A sua hipótese é que, adotando um desenho de pesquisa de ''antes e depois'' da criação dos assentamentos, encontraria mudanças significativas nos padrões locais de desmatamento. O INCRA desapropriou algumas grandes e médias propriedades para a criação dos assentamentos estudados; assim, os assentados se instalaram em terras marcadas pelos usos feitos pelos antigos proprietários.

Machado se interessou em descobrir se teria havido mudanças nos padrões de desmatamento depois que os assentados passaram a desenvolver as suas próprias práticas agro-pecuárias. Com base principalmente na análise de séries de imagens de sensoriamento remoto, complementada por observações de campo, ela com efeito constatou que os desmatamentos anteriores ao assentamento eram mais extensos. Os desmatamentos adicionais, feitos pelos assentados, foram via de regra de menor extensão e, individualmente, atee desafiam a capacidade de detecção dos equipamentos instalados no satélite Landsat. Cumulativamente, no entanto, eles podem assumir dimensão suficiente para serem registrados remotamente.

Esse padrão de desmatamentos menores causados por pequenos proprietários e posseiros na Amazônia é conhecido na literatura, sendo constatado principalmente pelo trabalho de campo, e em escala muito local. A importância desse desmatamento dos ''pequenos'' tem sido tanto desprezada quanto contabilizada como responsável por até 25% do desmatamento total anual da Amazônia contemporânea. A dissertação de Machado parece ser um dos primeiros registros em que o sensoriamento remoto e o trabalho de campo foram usados de forma conjunta para caracterizar e analisar esse tipo de desmatamento em vários assentamentos vizinhos, com a comparação explícita entre desflorestamentos de ''grandes'' e ''pequenos''. Assim, ela produziu um marco importante na literatura.

Além desse achado importante, alcançado por métodos inovadores, Machado, escreveu instrutivos e instigantes capítulos de revisão crítica da legislação e das sucessivas políticas de reforma agrária, especialmente na Amazônia. Entre outras coisas, ela mostra que, ao contrário do que muitos pensam, até 1994 a importância dos assentamentos da reforma agrária na Amazônia foi irrisória no panorama nacional, em números de projetos, em números de assentados, e em área. No entanto, cruzando dados do INPE sobre o desmatamento acumulado na Amazônia desde a década de 1970 e os dados do INCRA sobre o número acumulado de assentamentos de reforma agrária criados na região durante o mesmo período, Machado compõe duas retas quase paralelas - um importante achado original de sua pesquisa (recorde-se que Guerra achou o mesmo para o Acre). Isso sugere que os assentamentos na região, mesmo que tenham sido relativamente pouco numerosos durante grande parte do período, não podem ser descartados como fontes de pressões em favor do desmatamento regional.

Embora a autora não rejeite nem confirme a relação de causa e efeito referida no título (o que ela constatou foi que a reforma agrária causou uma mudança no padrão de desmatamento), os seus achados indicam a possibilidade de uma forte relação causal, tanto local quanto agregada (em termos regionais), merecedora de outros estudos. Nesse ponto, os estudos de Machado e de Guerra têm um importante ponto de encontro, já que Guerra focaliza o primeiro assentamento em que o INCRA tenta explicitamente conter o desmatamento adicional efetuado pelos beneficiários da reforma agrária.

O EXTRATIVISMO SE SUSTENTA? ANÁLISE DE UMA RESERVA EXTRATIVISTA EM RONDÔNIA.

A dissertação de Maurício Ferreira do Sacramento, engenheiro florestal, intitulada Extrativismo versus Agropecuária na Reserva Extrativista de Ouro Preto - Guajará Mirim/Nova Mamoré - RO: Diferenciais de Renda e Perspectivas de Sustentabilidade, focaliza uma unidade de conservação (embora de uso direto), tal com a de Rocha, e trata basicamente de pequenos produtores residentes numa área florestada da Amazônia, como as de Guerra e Machado. Se a questão fundiária praticamente não com parece na produção de Sacramento - já que a unidade está sob adequado controle púbico e comunitário - a questão do desmatamento causado por pequenos produtores é o pano de fundo do seu estudo (tal como nas dissertações de Guerra e Machado). Afinal de contas, ele pergunta se as atividades propriamente extrativistas - que preservam a cobertura florestal - de uma reserva extrativista estão sendo suficientes para sustentar os seus moradores-gestores. A resposta, um tanto desanimadora, mas insofismável, é negativa.

Sacramento trabalha com a hipótese de que existem diferenças entre as atividades produtivas dos habitantes da reserva extrativista em foco, localizada em Rondônia. Ele comprova a hipótese em pelo menos duas dimensões cruciais: distância/acesso aos mercados consumidores e importância relativa das diferentes atividades produtivas. Aplicando métodos estatísticos avançados, o autor estuda as relações entre quase 30 variáveis sócio-econômicas. Os testes geram medições que comprovam os dois tipos de diferenças. A primeira é que o acesso diferencial (representado pela distância ate a cidade de Guajará-Mirim) ao mercado faz com que os extrativistas mais isolados se dediquem a um mix de atividades produtivas notavelmente diferente daqueles que vivem mais próximos da cidade.

A segunda diferença, mais importante do ponto de vista ambiental, é que existe no conjunto da reserva uma notável correlação entre os maiores índices de pobreza e a maior dedicação a atividades extrativistas. Em outras palavras, Sacramento mostra que, quanto mais os habitantes da reserva se dedicam ao extrativismo (principalmente da castanha e da borracha), mais pobres eles são, e que quanto mais se dedicam à agro-pecuária (em especial a produção de farinha de mandioca), menos pobres eles são. Assim, a produção de mandioca e da farinha, que em outras áreas rurais brasileiras é quase sempre um indicativo de pobreza relativa, se transforma em fator de distinção positiva dos habitantes mais bem aquinhoados de renda - em termos simples, os agricultores têm renda significativamente maior que os extrativistas.

É importante notar que os diferenciais de renda tiveram como referencial o perfil interno da comunidade da reserva. Ou seja, a renda dos extrativistas ''puros'' ou ''quase puros'' foi considerada baixa não em relação à de grupos sociais rurais diferentes da mesma região ou de outra região, mas sim em relação à dos colegas comunitários que investem mais tempo, mais terra e mais mão-de-obra na produção de farinha de mandioca (e também à pecuária). Isso assinala uma clivagem interna à comunidade, clivagem essa que poderá se ampliar ao custo de maiores desmatamentos (para fins agro-pecuários) e de crescentes diferenciais de renda Essas três tendências - clivagem social, maior desmatamento e diferenciais de renda - são contrárias aos objetivos expressos das reservas extrativistas de manter a floresta de pé e de promover justiça social com base na coesão de comunidades tradicionais.

Os achados de Sacramento confirmam outros existentes na literatura, como os de Alfredo Homma, pesquisador da EMBRAPA. No entanto, eles têm o valor especial de (a) terem sido constatados numa reserva extrativista que vem recebendo apoio técnico, financeiro e político - numa ordem de grandeza de alguns milhões de dólares, no âmbito de um projeto do PP-G7, o maior programa ambiental multi-lateral do mundo - e (b) serem baseados em recenseamentos (abrangendo 100% dos comunitários) muito bem feitos pela própria entidade responsável pela gerência das reservas extrativistas (o CNPT - Conselho Nacional de Povos Tradicionais, do IBAMA). Aliás, esse foi o primeiro uso acadêmico desta valiosa base de dados.

Quero registrar ainda a coragem intelectual de Sacramento de fazer essa investigação e publicar os seus achados. A sua dissertação não agradará os numerosos (e influentes) cientistas, gestores e ambientalistas que defendem incondicionalmente - como artigo de fé - os extrativistas amazônicos. Em geral essas pessoas exigem que todas as atividades de todos os demais atores sejam exaustivamente examinados quanto aos seus impactos ambientais, mas preferem eximir os extrativistas de exames similares, baseados em medições rigorosas. Os achados de Sacramento não significam que as reservas extrativistas sejam inviáveis nem equivocadas, e sim que práticas tecnológicas, mecanismos de mercado e políticas públicas precisam se combinar para resgatar o extrativismo das desvantagens intrínsecas que ele experimenta - na Amazônia e em qualquer outro lugar do Brasil e do mundo. O modelo das reservas extrativistas precisa, pois, de ajustes profundos.

A base de dados do CNPT, usada pioneiramente por Sacramento, é acessível ao público e permite que sejam feitos estudos similares para três outras reservas extrativistas amazônicas apoiadas pelo PP-G7. A dissertação mostra que os dados disponíveis permitem que se vá além das declarações genéricas de intenção, dos diagnósticos sempre ''preliminares'' e das avaliações meramente impressionistas para argumentar a sustentabilidade de empreendimentos produtivos e de outras iniciativas. De fato, a literatura está necessitando urgentemente superar o marco daquilo que é desejavelmente sustentável para o marco daquilo que é ou não é comprovadamente sustentado.

FATORES DE SUCESSO DE PROJETOS COMUNITÁRIOS FINANCIADOS NO CERRADO

Mônica Celeida Rabelo Nogueira, antropóloga, em Pequenos Projetos de Desenvolvimento Sustentável no Cerrado: Uma Abordagem Comparativa, escreveu outra apreciação bem fundamentada sobre a sustentabilidade de empreendimentos produtivos concebidos como sustentáveis. Tal como Guerra, Machado e Sacramento, Nogueira focaliza pequenos produtores, desta feita residentes áreas de cerrado, envolvidos em projetos produtivos de diversas naturezas, combinando agricultura, pecuária, coleta vegetal, industrialização e artesanato. A relação desses projetos com unidades de conservação, no entanto, é escassa ou inexistente. Os projetos estudados se espalham pelo bioma do cerrado (nos estados de Goiás, Tocantins, Piauí, Maranhão, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Roraima e no Distrito Federal). Eles têm o apoio financeiro e técnico do Programa de Pequenos Projetos da Global Environmental Facility, programa esse gerenciado no Brasil pela ISPN, uma ONG ambientalista baseada em Brasília.4 4 Esta dissertação também contou com um interessante esquema de apoio institucional: a mestranda, vinculada ao CDS-UnB, contou com apoio do próprio ISPN. Este é certamente o estudo mais abrangente já feito no Brasil sobre essa modalidade de projetos sócio-ambientais, que eu chamo de ''projetos comunitários financiados''. Pelo seu desenho, pelo apoio institucional recebido e pelos resultados, a dissertação está destinada a se tornar uma referência.

Nogueira valeu-se de farta documentação sobre os projetos, incluindo os textos originais das suas propostas e de diversos relatórios de atividades e de avaliação. Fez ainda um meticuloso trabalho de campo em alguns projetos, em chave antropológica, com visitas domiciliares e a unidades produtivas, participação em reuniões de gestão e entrevistas com líderes e responsáveis. Embora faça questão de afirmar que o seu estudo é qualitativo, felizmente a autora apresenta uma grande quantidade de dados numéricos que enriquecem a sua etnografia e a sua análise.

O objetivo de Nogueira foi o de identificar nesses projetos os traços correlacionados com o bom desempenho e/ou com o sucesso. Como ela sabia que as dezenas de projetos de tipo PPP têm tido graus de sucesso diferentes entre si, quis contribuir para que todos os (ou muitos) projetos adotem ou assumam esses traços desejáveis. Embora os projetos não tenham ainda uma vida útil suficiente para que se possa afirmar a sustentabilidade nem dos mais bem sucedidos até o momento, Nogueira perseguiu e alcançou o objetivo intermediário de selecionar os projetos mais bem sucedidos e examinar um conjunto de traços comuns a elesc - como capacidade de articulação, grau de participação comunitária, integração, eficiência, eficácia, dedicação de coordenadores e assesssores etc

Na minha opinião, apesar de identificar de forma convincente esses traços correlacionados com o sucesso, faltou à autora escaloná-los entre si. Assim, deixou um tanto em aberto a viabilidade de que tantos traços possam de fato ser adotados por projetos tão distintos entre si. Parece-me que valeria a pena argumentar dois ou três traços como os mais importantes, e classificar os demais como desejáveis, mas acessórios. De toda forma, o texto alcança plenamente o seu objetivo geral de fazer um diagnóstico conjunto desses projetos com vistas à sua melhor sintonia com os requisitos da sustentabilidade. Esses projetos estão precisando desse tipo de sintonia, já que as agências financiadoras no exterior e o Brasil estão cada vez mais exigentes na concessão de financiamentos: solicitam que os beneficiários apresentem desde o início os caminhos da sustentabilidade e da independência dos projetos, para além dos prazos dos financiamentos solicitados. Embora se possa argumentar, com razão, que prazos de seis meses a 2 anos sejam demasiadamente curtos para garantir a sustentabilidade de empreendimentos e projetos, especialmente quando lidam com recursos naturais e quando são tocados por comunidades carentes, esse tipo de exigência parece ter vindo para ficar. Estudos como o de Nogueira ajudam a viabilizar novos projetos comunitários financiados e a garantir o seu sucesso.

QUANTO VALE UMA LAGUNA? - VALORANDO A LAGUNA DE ITAIPU NO RIO DE JANEIRO

Um segundo grupo de textos trata de questões ambientais em comunidades / localizades litorâneas do estado do Rio de Jandeiro. O primeiro deles, bem distinto dos anteriores no tema, no desenho e na aplicabilidade, é o de Sérgio Mattos Fonseca, intitulado O Valor de Existência de um Ecossistema Costeiro Tropical, Através da Disposição ao Trabalho Voluntário. Economista, Fonseca enveredou pelo caminho polêmico mas ainda pouco explorado da valoração dos bens ambientais. O maior mérito de sua dissertação foi a de introduzir uma original inovação no conhecido método da valoração contingente de bens ambientais, qual seja, a de incorporar ao valor calculado a disposição a trabalhar voluntariamente pela qualidade ambiental, indo além da tradicional disposição a pagar. Trata-se, portanto, de uma importante contribuição teórico-conceitual.

No entanto, não faltou o lastro de um extenso trabalho empírico para embasar essa inovação teórico-conceitual. Depois de uma descrição das características bio-físicas da laguna e de uma recapitulação conceitual sobre ação coletiva, bens públicos, organizações ambientalistas, trabalho voluntário e valoração contingente, Fonseca apresenta os resultados de um exercício de valoração, usando como base um bem ambiental praticamente urbano, a laguna de Itaipu, localizada na periferia da cidade de Niterói. Embora em grande parte afetada por sérias pressões (aterros, poluição orgânica, alteração do canal de ligação com o oceano, desmatamento de orlas etc.) geradas pela expansão urbana mais recente de Niterói, ainda existe em relação a ela e ao bairro do mesmo nome uma memória social e uma imagem contemporânea de beleza cênica, lazer e qualidade de vida.

Fonseca executou um survey de opinião sobre o papel da laguna na qualidade do meio ambiente, usando uma amostra construída rigorosamente com base em dados secundários atualizados referentes aos setores censitários em torno da laguna. O questionário continha, entre outras, perguntas distintas sobre (1) a disposição a pagar e (2) a disposição a trabalhar voluntariamente pela preservação ou recuperação da qualidade ambiental da laguna. Cruzando os dados da disposição a pagar com as rendas médias das diversas faixas de entrevistados preocupados com qualidade ambiental, Fonseca alcançou um total monetário teórico para descrever o valor da qualidade ambiental da laguna. No entanto, ao fazer o mesmo com a disposição a trabalhar voluntariamente, encontrou um total monetário teórico diferente, substancialmente maior. Ou seja, ele descobriu que os vizinhos da laguna estão muito mais dispostos a trabalhar voluntariamente pela qualidade ambiental do que a pagar por ela (seja na forma de impostos ou taxas adicionais, seja na forma de contribuições financeiras para organizações ambientalistas). Esse achado, não obstante a sua originalidade e relevância, não derivou da tentativa de provar essa particular hipótese - o autor buscava descobrir apenas se haveria uma diferença a partir da consideração do valor o trabalho voluntário, mas não tinha idéia do tipo de diferença que encontraria.

De toda forma, esse exercício inovador de medição gerou, além de um avanço metodológico, um achado substantivo com notáveis implicações analíticas e nas políticas públicas. Não se pode garantir - nem Fonseca sugere isso - que essa diferença de valoração ocorra sempre, mesmo porque nem sempre o trabalho voluntário é viável para preservar ou recuperar a qualidade ambiental. No entanto, a dissertação tem a importante implicação de que, em contextos nos quais co-existam preocupação com a qualidade ambiental e uma cultura cívica propícia ao trabalho voluntário, as políticas públicas e as ações comunitárias podem ser calibradas e mutuamente ajustadas de forma mais flexível e conseqüente, com o aproveitamento do ''capital'' representado pela disposição ao trabalho voluntário. Dessa forma, prevejo que a dissertação de Fonseca venha a ser matriz de estudos aperfeiçoados de valoração ambiental e de políticas e práticas comunitárias ambientais mais eficazes.

O CAPITAL SOCIAL ACUMULADO COMO INSTRUMENTO PARA RECUPERAR O CAPITAL NAUTRAL POLUÍDO NA BAÍA DE GUANABARA

A dissertação do cientista social Carlos Artur Felippe, intitulada Capital Social ou Familismo Amoral?- um Balanço do Capital Social Acumulado em Comunidades da Baía de Guanabara, é a menos ''ambiental'' das produções aqui consideradas. Mas ela é relevante para estudos sócio-ambientais, por causa do uso do conceito de capital social e da realização de um inovador exercício de medição dos capitais sociais acumulados em três comunidades afetadas por um desastre ambiental de grandes proporções.

Felippe trabalha com o conceito de capital social, conforme desenvolvido pelo cientista político Robert Putnam. O seu texto tem parentesco com as dissertações de Guerra, Machado, Sacramento e Nogueira que, embora não usem Putnam, buscam entender as dinâmicas sociais de comunidades (rurais) engajadas em atividades produtivas desejavelmente sustentáveis. As três comunidades estudadas por Felippe, ao contrário, são urbanas e não se caracterizam pelo engajamento coletivo dos seus moradores em atividades produtivas locais. São comunidades de residência, carentes, mas os seus traços comuns, do ponto de vista da investigação de Felippe, são (a) a sua sujeição aos efeitos gerados pelo grave desastre ambiental representado pelo derramamento de petróleo nos fundos da baía de Guanabara, em janeiro de 2000, e (b) as expectativas quanto aos investimentos em despoluição e recuperação feitos pelos poderes públicos e por uma rede de ONGs. O autor vinha atuando nas comunidades como educador ambiental, em ligação com uma ONG ambientalista, e percebeu nelas diferenciais de mobilização, organização e disposição de participar e de se beneficiar de recursos e esforços em curso de recuperação ambiental. A sua hipótese foi, portanto, a de que haveria diferenças significativas entre as comunidades. Resolveu, pois, estudar as bases sociológicas desses diferenciais. Esse é o ''gancho'' ambiental desta produção eminentemente sociológica.

Tal como Fonseca, Felippe conduziu um survey de opinião nas comunidades, usando um questionário focalizado na auto-caracterização dos moradores e no inventário dos seus estoques de capital social - organizações comunitárias, meios locais de comunicação, entidades sociais e esportivas, manifestações de confiança entre vizinhos, formas de ação coletiva e de solidariedade, contatos com órgãos públicos, participação em atividades cívicas e comunitárias etc. O seu questionário, basicamente qualitativo, gerou dados que embasaram uma abrangente análise narrativa que compara as diferentes capacidades de cada comunidade de dar resposta aos estímulos do programa de recuperação ambiental. Os dados extraídos dos questionários foram complementados por trabalho de campo propiciado pelas suas atividades de educador informal, permitindo a composição de ricas etnografias de comunidades urbanas carentes. Além disso, Felippe fez um exercício original de quantificação dos seus respectivos estoques de capital social, ilustrando melhor o seu achado de que há diferenças significativas entre elas.

Cruzando os conceitos de cidadania, participação e capital social, Felippe demonstrou empiricamente que as comunidades não são todas iguais perante as políticas públicas e as intervenções de ONGs - mesmo quando há recursos financeiros de sobra para sustentar tais intervenções, como é o caso do Programa de Despoluição de Baía de Guanabara. Algumas comunidades são mais capazes do que outras de tirarem proveito delas e de se envolverem com elas. Saber disso ajuda no desenho e na execução de políticas e programas, ambientais ou não.

O PAPEL PÚBLICO DAS ORGANIZAÇÕES AMBIENTALISTAS NO RIO DE JANEIRO

Recuperação Ambiental na Baía De Guanabara: Avaliação das Principais Contribuições das ONG'S Ambientalistas, 1990-2001, RJ é o título da dissertação de Solange Maria Nunes da Silva Mattos, economista. A produção tem parentesco com as de Fonseca e de Felippe, por focalizar problemas ambientais urbanos e contemporâneos em áreas litorâneas do Grande Rio de Janeiro, em conexão com questões de cidadania e participação. O que individualiza tematicamente a produção de Mattos é a escolha de ONGs ambientalistas - e não comunidades - como protagonistas na execução de políticas ambientalistas.

A autora propõe a hipótese de que as ONGs ambientalistas baseadas no Rio de Janeiro têm sido importantes para a implementação de políticas ambientais, quer executando programas de forma eficaz, quer ampliando o raio de ação de organismos governamentais anêmicos ou erráticos, quer articulando demandas sociais dispersas em comunidades organizadas. Para provar isso, focaliza as sucessivas políticas de recuperação ambiental da baía de Guanabara, desenvolvidas ao longo da década de 1990, com especial atenção para a atuação de oito ONGs engajadas como parceiras ou executoras dessas políticas. Essas ONGs foram escolhidas pela autora a partir das listagens de ONGs ambientalistas credenciadas junto a organismos ambientais e de um levantamento das entidades participantes do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, ora em curso.

Depois de uma discussão conceitual e teórica sobre cidadania, participação e políticas públicas, Mattos apresenta o perfil de cada uma das ONGs selecionadas, usando materiais diversos - entrevistas padronizadas conduzidas com líderes, consultas a projetos, folhetos institucionais, relatórios, sites na Internet, visitas in loco a projetos em andamento, planilhas de desembolso financeiro e execução, etc. - e avalia a sua atuação em diversos programas ambientais. Ela comprova a sua hipótese, mostrando que quase todas essas ONGs estão engajadas em programas em parceria com o poder público, por vezes investindo neles toda a sua capacidade de trabalho. Fica claro também que elas conseguem dar aos programas uma cobertura e uma capilaridade social que os órgãos governamentais não têm sido capazes de alcançar. Embora esse não seja um achado inédito na literatura, ele resulta de um desenho de pesquisa simples e facilmente replicável e de uma pesquisa empírica sólida.

Mattos conclui que a área de políticas ambientais está sendo no Brasil um campo fértil para o desenvolvimento de novas formas de governança, nas quais os poderes públicos funcionam melhor à base de parcerias com entidades não-governamentais capazes de intermediar governantes e cidadãos. A dissertação, ao focalizar essas entidades, chama a atenção, portanto, para a importância do chamado ''terceiro setor'' como um ''costurador'' de programas de ação que melhor aproximem intenções governamentais e necessidades comunitárias.

A SUSTENTABILIDADE E O USO DE RECURSOS NATURAIS NÃO-RENOVÁVEIS - O FIM DA ERA DO MANGANÊS NO AMAPÁ

A questão das relações entre governo, sociedade e ''terceiro setor'', explorada por Mattos, e a questão da reação comunitária a impactos ou deteriorações ambientais, explorada por Fonseca e Felippe, reaparecerem em Órfãos do Manganês - um Estudo sobre Serra do Navio (Amapá), dissertação de Mariângela Póvoas, engenheira agrônoma, embora num contexto político, econômico e geográfico inteiramente diferente. Ela investiga o destino presumível de uma comunidade amapaense - Serra do Navio - que se formou e dependeu durante 40 anos de uma mina de manganês que, exaurida, foi fechada em 1997. Serra do Navio, nascida na década de 1950 como vila operária privada de um grande empreendimento mineral, agora encara o futuro como município autônomo e emancipado da tutela e do suporte financeiro da empresa privada ICOMI. Ou seja, Póvoas aborda a espinhosa questão da sustentabilidade social e econômica de uma comunidade em fase posterior à exaustão de um recurso natural não-renovável. Neste caso, a exaustão do minério faz as vezes da poluição de uma laguna (Fonseca), de um derrame de petróleo (Felippe), ou da degradação de uma baía (Mattos).

A autora investiga a questão adotando um desenho de pesquisa simples, porém eficaz: dado o quadro de fechamento recente da mina e de falta de alternativas visíveis ou imediatas, ela examina os papéis passados e atuais dos atores potencialmente portadores da sustentabilidade - o poder público, a comunidade e a própria empresa. Entrevistou governantes, empregados e ex-empregados da mineradora e líderes comunitários, leu planos e projetos diversos, em complemento a um abrangente diagnóstico da situação municipal a partir de dados secundários sociais, econômicos, e educacionais. Leu a literatura sobre sustentabilidade de empreendimentos mineradores, ponderou sobre a singular transição de Serra do Navio da condição de cidade particular para cidade pública, e a transição dos seus habitantes da condição de empregados privilegiados de uma empresa rica para a de cidadãos comuns de um município pobre.

A autora conclui que nenhum dos três atores realizou o seu potencial. Acrescento que não surgiu no Amapá um quarto tipo de ator, uma ou ONGs independentes, para intervir no processo, tal como ocorre na baía de Guanabara, conforme retratado por Mattos. A empresa mineradora agiu de acordo com a sua lógica privada - esgotado o minério, encerrou o empreendimento. É verdade que anunciou o fechamento com antecedência razoável e até tentou - com algum sucesso - diversificar os seus investimentos produtivos no Amapá e estimular atividades alternativas (eco-turismo, pesquisa científica) para aproveitar a excelente infra-estrutura urbana de Serra do Navio e gerar empregos desligados da mineração que fenecia. O poder público, por sua vez, estadual recebeu milhões de dólares em royalties da mineração, mas os investiu principalmente em outras áreas do Amapá, mesmo porque Serra do Navio era até a década de 1990 uma ilha privada de prosperidade que não precisava desses investimentos. Esse governo pouco mais fez do que isso, embora tenha gasto muita energia na tentativa fracassada de forçar politicamente a empresa a prolongar a vida útil do empreendimento, no que não teve sucesso.

Por sua vez, a comunidade de Serra do Navio, composta até 1992 exclusivamente por empregados da ICOMI, nunca alcançou uma consciência ou uma mobilização suficientes para se preparar para a era pós-mineração, escolhendo implicitamente viver o papel de uma ''órfã'' um tanto passiva do fim da extração do manganês. Como Serra do Navio virou município a partir de 1992, formou-se um poder público local que, no entanto, também não conseguiu ir além das reivindicações por proteção continuada de parte do governo estadual ou da empresa. A autora não explorou explicitamente a falta que pode(m) ter feito uma ou mais ONGs atuantes, mas ela deixa claro que a comunidade, por si mesma, não alcançou capacidade antecipatória ou meramente reivindicativa suficiente para interferir no seu destino. É mais uma dura lição para os que acreditam nas virtudes ou capacidades ''inerentes'' das comunidades, especialmente em face de empreendimentos modernos tocados por grandes empresas.

A conclusão da autora é que não existe solução fácil ou imediata para a situação de Serra do Navio - e, por extensão, para comunidades dependentes de recursos naturais não-renováveis. Tudo o que poderia ter sido feito para amenizar os efeitos do fim da mineração para a comunidade de Serra do Navio - e a autora apresenta uma lista comentada de tais ações - demandaria planejamento - que nenhum dos atores assumiu a contento - e cooperação - que não foi tentada entre os atores até um momento bem avançado no processo de declínio da mina.

Os empreendimentos intensivos em recursos naturais não-renováveis (mineração, petróleo, gás natural etc.), e mesmo em recursos naturais renováveis (água e florestas, por exemplo), contam hoje com mecanismos compensatórios (sociais, financeiros e ambientais) garantidos constitucional e legalmente, mas o estudo de Póvoas nos faz pensar seriamente sobre uma questão distinta - a da aplicação adequada dos recursos gerados por esses mecanismos. Apesar de a mineração de Serra do Navio ter gerado dezenas de milhões de dólares em royalties, pagos ao governo territorial ou estadual, a comunidade mineradora de Serra do Navio foi escassamente beneficiada por eles. Nesse sentido, a implicação mais importante do estudo de Póvoas me parece ser a seguinte: o crucial não é a compensação em si, mas a maneira pela qual os recursos dela resultantes são aplicados em favor das comunidades dependentes de recursos naturais.

OS PIONEIROS CONSERVACIONSITAS BRASILEIROS RELEMBRADOS.

Quatro outras produções formam um grupo bem distinto dos dois grupos anteriores, combinando história com meio ambiente. A primeira a ser comentada aqui é a tese do historiador José Luiz de Andrade Franco, intitulada Proteção à Natureza e Identidade Nacional: 1930-1940. Trata-se de uma releitura de alguns cientistas brasileiros pioneiros na reflexão sobre a riqueza natural do Brasil e das medidas que eles defendiam para melhor conhecê-la e protegê-la. Esses cientistas, atuantes entre os anos 1920 e 1940, formam uma geração um tanto esquecida de conservacionistas, ''espremida'' entre os administradores e ensaístas mais antigos da Colônia, do Império e do início do República (estudados recentemente por José Augusto Pádua, entre outros) e os estudiosos mais contemporâneos e, por isso, mais conhecidos entre os ambientalistas atuais.

Frederico Carlos Hoehne, Cândido de Mello Leitão, Armando Magalhães Corrêa e Alberto José Sampaio são os quatro autores enfocados por Franco. Foram cientistas produtivos e influentes, contribuindo para a formação e a iniciação profissionais de cientistas mais jovens dotados de preocupações similares - Paulo Nogueira Neto, Luiz Emygdio de Mello Filho, Alceo Magnanini, Harald Edgard Strang, Adelmar Coimbra Filho e Augusto Ruschi são os mais famosos entre os ambientalistas contemporâneos. Os seus livros e artigos, todavia, caíram no esquecimento - apesar de publicados em editoras, coleções e revistas científicas de destaque em sua época -, tornando-se raridades de difícil acesso, mesmo para especialistas. O mérito principal de Franco foi identificar esses autores, ordenar as suas produções, traçar os seus vínculos institucionais e profissionais, para relê-los à luz da ideologia e da engenharia institucional varguista e pára-varguista de construção da nacionalidade brasileira.

Com efeito, Franco busca unificar a sua análise enquadrando as idéias estudadas como parte de uma ideologia mais ampla de construção da identidade e do estado nacionais brasileiros, recuperando conceitos usados por Lúcia Lippi de Oliveira, José Murilo de Carvalho e José Augusto Pádua na análise histórica e macro-política da sociedade brasileira. O elo comum explorado pelo autor é a proposição dos autores de que a exuberante natureza brasileira era simultaneamente um fator marcante de sua identidade e uma fonte de riquezas materiais. Como cientistas naturais, esses pensadores não foram evidentemente os únicos nem os principais elaboradores dessa ideologia - eles foram influenciados, por exemplo, pelo jurista e ensaísta Alberto Torres -, mas contribuíram para a sua disseminação nos circuitos científicos e universitários da biologia e da história natural.

No entanto, hoje eles são mais lembrados (embora muito pouco lidos) pelo caráter supostamente ''naturalista'' de sua reflexão sobre o que hoje chamamos de meio ambiente. Por vezes as suas idéias são desqualificadas com a alegação de que eles teriam pensado apenas numa ''natureza intocada'' e excluído os seres humanos das valorizadas paisagens naturais. Franco mostra que esta noção - que alimenta a corrente atual de ambientalistas ''sociais'' - é equivocada. A formação científica desses autores os levou a concentrar a sua atenção, de fato, na flora, fauna, geomorfologia, geologia, clima, hidrografia etc., mas há nos seus textos inúmeros capítulos e passagens que tratam especificamente do aproveitamento econômico passado, presente e futuro dos recursos naturais. Armando Magalhães Correia, por exemplo, em O Sertão Carioca, mapeou cuidadosamente alguns usos autenticamente ''sertanejos'' dos recursos naturais no entorno imediato do ''civilizado'' Distrito Federal na década de 1920. Mostrou como a população da capital nacional ainda consumia bens de origem natural vindos do seu entorno e produzidos de formas rudimentares por populações que hoje ganhariam o nome de ''tradicionais''. Aliás, de minha parte acrescento que esta exigência de que os cientistas naturais de 60 ou 70 anos atrás tivessem uma reflexão acurada sobre problemas sociais, num momento em que sequer existiam cientistas sociais profissionalizados no Brasil, é um imperativo anacrônico.

Assim, a recuperação das idéias pioneiras desses pensadores esquecidos foi articulada por Franco com uma discussão conceitual relevante para a reflexão ambiental contemporânea, garantindo valor acadêmico-científico e relevância política para a sua tese.

AMAZÔNIA - HISTÓRIA E AMBIENTE

O historiador Kelerson Semerene Costa focaliza o seu estudo de história ambiental na Amazônia. A sua tese se intitula Homens e Natureza na Amazônia Brasileira: Dimensões. De todas as produções comentadas aqui, é a única que não tem uma estrutura tradicional de tese ou dissertação. Pressupostos teóricos, discussão metodológica, diálogo sistemático com e avaliação do estado da arte da literatura, hipótese etc. ou não existem ou estão colocados de forma implícita. No entanto, Costa produziu um texto muito bem pesquisado, bem escrito e de leitura instigante, revendo um amplo espectro de imagens, idéias e usos presentes na história ambiental da Amazônia brasileira em tempos coloniais. O texto funciona mais como um texto virtualmente pronto para publicação do que como uma tese de conclusão de um programa de estudos, pois o autor ousou ir além de uma narrativa que revelasse um processo explícito de aprendizado e tentou produzir uma obra pronta capaz de marcar a literatura. Arriscou e, na minha opinião, conseguiu.

De fato, o texto de Costa se insere com mérito na prolífica série de títulos de produções literárias, estrangeiras e brasileiras, sobre as particularidades bio-físicas e humanas da Amazônia brasileira. Ele recupera e analisa de forma instigante diversos relatos clássicos produzidos a partir das primeiras incursões de europeus na vasta região amazônica, destacando o misto de deslumbramento e temor que a natureza tropical úmida despertava nos aventureiros portugueses e espanhóis, presos a conceitos temperados de natureza. Entre as percepções mais duradouras e influentes desses exploradores pioneiros, destaca-se a crença infundada numa fertilidade infinita das terras amazônicas. Aparentado com essa percepção, esses exploradores desenvolveram também o mito do ''paraíso terrestre'' amazônico, outra concepção de longa duração que até hoje influi no comportamento e nas decisões de muitos atores.

Um capítulo inteiro é dedicado a uma revisão da obra clássica do padre João Daniel, intitulado O Tesouro descoberto no rio Amazonas. Daniel, jesuíta que passou longos anos preso por entrar em conflito com as políticas do Marques de Pombal, escreveu o livro em meados do século XVIII, mas ele foi publicado na íntegra apenas 200 anos depois, na década de 1970. A obra reúne uma ampla descrição do território e da natureza da Amazônia, incluindo rios, clima, plantas, animais, etc. Apresenta sugestões para um grande e original plano de reforma da agricultura (inclusive a eliminação do cultivo da mandioca e a sua substituição pelo trigo), do sistema de organização do trabalho e dos transportes regionais (com aproveitamento intensivo dos rios, usando embarcações adequadas) - Daniel na verdade desenhou o projeto de uma verdadeira colonização de assentamento. Talvez este tenha sido o primeiro ''plano macro-regional'' escrito pensando nas particularidades bio-físicas e humanas da Amazônia, um tipo de projeto muito em voga npos últimos 40 anos. Kelerson destaca ainda a antipatia de Daniel pela vida semi-nômade dos indigenas, mas isso é um traço bastante comum entre missionários cristãos e os colonizadores atuantes em várias partes do mundo.

O capítulo final recupera evidências dos variados usos humanos dos recursos naturais amazônicos, antes e depois da chegada de europeus. Costa reúne e comenta fatos que ajudam a ver que a Amazônia de hoje - depois de milênios de ocupação indígena e de séculos de usos europeus - está longe de ser um paraíso intocado pelas mãos humanas. Enormes sambaquis comprovam longos processos de coleta de moluscos e peixes nas margens de corpos de água. Tesos - terraços agrícolas construídos em terras inundáveis - são prova de tecnologias agrícolas avançadas e duradouras. Bens extrativos diversos (cravo, salsaparrilha, baunilha, guaraná, óleo de copaíba, castanha do pará, borracha, óleo de ovos de tartaruga etc.), alguns usados milenarmente por povos indígenas, entraram nos modernos circuitos comerciais coloniais, ganhando o nome genérico de ''drogas do sertão''.

Não e possível fazer justiça aqui à riqueza temática do texto de Costa, particularmente neste último capítulo que trata dos usos de recursos naturais. O seu texto se desenvolve como uma análise integrada de percepções, planos, atos e rastros de atos da interação entre a natureza amazônica e muitos tipos de atores, no melhor estilo dos historiadores ambientais.

O PAU-BRASIL E A GESTÃO FLORESTAL COLONIAL-IMPERIAL - UMA VISÃO REVISIONISTA

Carlos Ferreira de Abreu Castro, engenheiro-florestal, em Gestão Florestal no Brasil Colônia, faz um exame histórico dos tratos portugueses e brasileiros com a Mata Atlântica, usando como fio condutor da sua narrativa a extração e exportação do emblemático pau-brasil. A produção de Castro vem na esteira de uma revisão lenta e ainda pouco visível das apreciações sobre as políticas e práticas florestais dos colonizadores portugueses no Brasil. A opinião dominante ainda é que os portugueses foram agudamente destrutivos e imprevidentes nas suas práticas florestais no Brasil-Colônia. Uma visão alternativa - expressa por José Augusto Pádua e Shawn Miller e agora ampliada por Castro - vem sustentando que os portugueses, pelo menos em alguns pontos do território brasileiro, criaram formas eficazes de manejo das espécies arbóreas de maior valor comercial e/ou utilidade industrial, notadamente o pau-brasil, ou ao menos produziram críticas contundentes a práticas destrutivas de muitos donos de terras e fazendas.

Castro trabalha com essa hipótese de gestão florestal eficaz - precursora dos modernos preceitos de produção florestal sustentada - e acompanha o suprimento e a exportação do pau-brasil entre 1500 e a década de 1870 (ou seja, entrando pelo período do Brasil independente e monárquico). Através de uma detalhada revisão das leis, das modalidades de concessão e das práticas comerciais, ele mostra que a documentação existente, embora ainda contenha lacunas, revela que nunca houve uma escassez generalizada nem um encarecimento agudo que inviabilizasse o pau-brasil como mercadoria. A madeira foi deslocada do seu uso industrial tradicional (como fonte de tintura) por causa da sua substituição por tinturas sintéticas, e não pela exaustão ou pelo encarecimento. Evidentemente, esse achado de Castro não desmente as evidências de desmatamento e de práticas destrutivas extensamente documentadas, nem Castro sustenta isso.

No entanto, este achado um tanto perturbador é complementado por uma contra-prova igualmente ''incômoda'' para os partidários da tese de que os brasileiros somos os infelizes herdeiros de uma colossal imprevidência florestal dos portugueses. Castro focaliza uma região razoavelmente extensa do sul da Bahia (um das principais áreas de produção do pau-brasil) e mostra, baseado em mapeamentos cronológicos do desmatamento recentemente elaborados, que o desmatamento em grande escala que caracteriza a área hoje começou praticamente na década de 1940, e prossegue até hoje, sob ''controle'' de uma política florestal inteiramente ineficaz do IBAMA. Evidentemente, não haveria no século XX tanta mata ainda a ser destruída no sul da Bahia se os portugueses e brasileiros tivessem, desde tempos coloniais, explorado o pau-brasil e outras madeiras de uma forma tão destrutiva e imprevidente quanto se alega.

Assim, a tese de Castro abre margem a uma desejável rediscussão sobre o ritmo, as causas, as consequências e a cronologia da destruição da Mata Atlântica brasileira. Entre o fato insofismável de que a extensa Mata Atlântica foi virtualmente eliminada ao longo da história brasileira e os achados de que certas espécies foram produzidas de forma sustentada por mais de 300 anos (e de que os grandes desmatamentos são muito recentes em algumas regiões), há campo fértil para novas pesquisas bem focalizadas e fundamentadas quanto a de Castro.

USOS POPULARES E COMERCIAIS DOS RECURSOS NATURAIS EM MATO GROSSO

Maria Inês Malta Castro, historiadora, escreveu a tese intitulada Natureza e Sociedade em Mato Grosso, 1850-1930. É uma detalhada descrição e análise das paisagens naturais e da exploração de recursos naturais em territórios diversos do antigo estado de Mato Grosso. O objetivo - similar ao de uma renovadora literatura do campo da história ambiental - é o de construir um relato histórico em que se possa perceber o ''movimento recíproco'' entre o ''modo como pensamos, observamos e usamos os elementos naturais''. As suas fontes incluíram relatos de viajantes, empresários, naturalistas, missionários, funcionários governamentais e governantes, além de memoriais, atas, crônicas e uma extensa bibliografia ensaística e científica. Sem incorrer em anacronismo, ela também tenta ver até que ponto as atividades produtivas analisadas foram ou não ''sustentáveis'', ou seja, se cumpriram requisitos modernos de sustentabilidade. Na maioria dos empreendimentos examinados, formas rudimentares de extrativismo, animadas por mercados voláteis, levaram a ciclos nada sustentáveis de crescimento e queda da produção.

Depois de uma longa e original análise das visões ocidentais sobre a natureza em geral - e da natureza americana e brasileira em particular - ao longo dos últimos séculos, M. Castro se debruça sobre as apreciações de diversos autores sobre a natureza e a população de Mato Grosso, optando por distinguir os relatos de estrangeiros dos relatos de brasileiros da região ou de outras regiões. Ela destaca as ''descobertas'', os planos, as propostas e os prognósticos desses observadores da natureza e dos recursos naturais. Os capítulos finais focalizam diversos empreendimentos produtivos, especialmente a extração de recursos naturais (como borracha, poaia e erva-mate) que se destacaram em diferentes momentos pela renda gerada, pelo número de pessoas mobilizadas ou pela extensão geográfica afetada. M. Castro presta atenção também a outros empreendimentos - estradas de ferro, linhas telegráficas, estradas - que afetam direta ou indiretamente a paisagem natural, faciltando comunicação e transportes e dando apoio aos empreendimentos produtivos de escala comercial.

A autora analisa tanto atividades de subsistência quanto as de natureza comercial (dirigidas ao mercado). Num tom de ''etnografia da cultura material'', ela mostra como e para que os mato-grossenses das classes populares rurais usavam uma imensa gama de recursos naturais (flora, fauna, minérios), para alimento, remédio, fontes de energia (calor e luz), ferramentas, material de construção, adornos etc. Em escala comercial, destacavam-se o ouro, a criação de gado bovino, várias cultivos agrícolas (algodão, café, açúcar), a extração da borracha, da ipecacuanha, da poaia e da erva-mate. Ela mostra ainda como os cerrados, desde o período estudado, eram considerados pobres de vegetação e recursos quando comparados às florestas. Essa visão persiste em muitos setores da sociedade regional e brasileira, condenando os cerrados a uma certa ''orfandade'' e à falta de proteção enquanto bioma.

M. Castro narra várias tentativas, mal ou bem sucedidas, de fazer o cultivo comercial dos produtos extrativos, a fim de suprir os mercados de maneira mais confiável do que através do extrativismo. Ela registra ainda percepções entre alguns contemporâneos de que para o Mato Grosso ''não era bastante contar com um território rico em recursos naturais'', pois a economia basicamente extrativa do estado não gerava um crescimento proporcional à grandeza desses recursos. Essas foram visões antecipatórias de que a mera extração dos recursos naturais - ainda mais em bases insustentáveis - não faria do Mato Grosso um estado próspero. Esta é uma entre várias questões que emprestam relevância ao seu texto, nestes tempos de preocupação com os usos sustentáveis e com a qualidade de vida das populações, tradicionais ou ão. M. Castro produziu assim uma narrativa rica, densa, bem escrita e cativante de história ambiental - a meu ver publicável como livro com apenas pequenas revisões e correções.

INTEDISCIPLINARIDADE SÓCIO-AMBIENTAL - COMO FAZER?

Paulo Ernesto Diaz Rocha, biólogo, escreveu a mais singular das produções aqui comentadas, intitulada Interdisciplinaridade e Meio Ambiente em Cursos de Pós-Graduação no Brasil. P. Rocha apontou a sua lente para o campo acadêmico-científico interdisciplinar do meio ambiente, ou seja, para o próprio campo no qual cumpriu o seu doutorado, fazendo um estudo pioneiro da implantação e das bases institucionais e científicas de quatro programas brasileiros de pós-graduação em meio ambiente.

Usando literatura dos campos da história da ciência e das próprias ciências ambientais, Rocha reconstitui um longo e complexo debate sobre interdisciplinaridade ocorrido no mundo e no Brasil nas últimas duas décadas, focalizando críticas ao cartesianismo reducionista e a proposição de diversas fórmulas ''holísticas'' ou multi-, inter- e pluri-disciplinares. A substância de sua contribuição, no entanto, está nos seus ''estudos de caso'' sobre quatro programas de pós-graduação interdisciplinares de meio ambiente, em quatro universidades diferentes (USP, UFPr, UFMG e UFRJ). Para reunir as informações necessárias, entrevistou cerca de 30 professores, coordenadores e alunos e leu estatutos, grades curriculares, ementas, programas de disciplinas, listas de teses e dissertações defendidas, documentos de planejamento e avaliação etc.

Embora não tenha construído a tese para testar hipóteses, Rocha demonstra um ponto importante: que a interdisciplinaridade ambiental, por causa de sua complexidade intrínseca e da ruptura implícita com a estrutura universitária departamentalizada, foi construída nesses quatro programas de formas bem distintas, fortemente correlacionadas com as trajetórias dos grupos de professores que os fundaram. Assim, a grande variedade de abordagens, sínteses e resultados é a marca característica do conjunto de quatro programas. Para o bem ou para o mal, parecemos destinados, por um bom tempo, a formar recursos humanos e a produzir pesquisas muito heterogêneas entre si nos programas brasileiros de pós-graduacão em Ciências Ambientais. O estudo de P. Rocha valerá por um bom tempo como a mais ampla avaliação ''interna'' do conjunto desses programas. Ele deveria ser divulgado pelos membros da comunidade científica do meio ambiente e adotado como parte de um modelo a ser aplicado periodicamente para monitorar o desenvolvimento da área.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Destaco de novo a qualidade média muito boa dessas teses e dissertações. É um sinal animador de que os programas de pós-graduação interdisciplinares de meio ambiente estão cumprindo o seu papel de gerar um saber sólido e diferenciado e de formar profissionais capazes de atuar num mercado de trabalho que, impressionisticamente, me parece estar crescendo aceleradamente. Pela amostra comentada, vemos que esse mesmo impulso influencia parte da produção discente mesmo em programas disciplinares (no caso, ciência política, história e engenharia florestal). Isso indica que a temática ambiental, em clave interdisciplinar, consegue se espraiar para outros tipos de programa.

Outro traço comum a destacar é o uso sistemático de bases de dados originais, variadas, ricas e atualizadas, garantindo um forte valor descritivo às produções e propiciando condições para análises de alta qualidade. Os autores usaram imagens de satélite, mapas temáticos digitalizados, inventários de recursos naturais, recenseamentos gerais e específicos; fizeram entrevistas qualitativas domiciliares e nos locais de trabalho, observações de campo e surveys de opinião; consultaram sites da Internet e documentos administrativos guardados em arquivos institucionais; leram leis, regulamentos, relatos de viajantes, relatórios de gestão e de consultoria, livros raros, relatórios de governos estaduais, registros de transações comerciais; dialogaram com literatura teórica e de pesquisa e com muitos outras fontes.

Em vista desta amostra, não se pode argumentar, portanto, que a área de meio ambiente sofra por causa da escassez de dados para a realização de investigações fundamentadas. A minha impressão pessoal é que, muito ao contrário, a disponibilidade de dados novos (e mesmo antigos) está crescendo mais do que a capacidade instalada da comunidade científica interdisciplinar do meio ambiente de consumí-la. Uma consequência provável - muito benvinda, aliás - dessa abundância de dados é que a literatura de ciências ambientais poderá transitar de textos majoritariamente filosóficos (quando não doutrinários e normativos), teóricos e conceituais de grande escopo para textos direcionados ao teste de hipóteses de pequeno e médio fôlego, à luz de dados, permitindo assim um processo de acumulação de conhecimento. Isso exige rigor metodológico - bons desenhos de pesquisa, diálogo com a literatura pertinente, clarificação conceitual e instrumentos adequados de medição -, auspiciosamente presente em quase todas as produções examinadas. Está mais do que na hora de ingressarmos nesse estágio de produção científica e essas produções discentes indicam que ocorre um movimento nessa direção.

Uma outra característica do meu particular agrado é que nenhuma dessas produções incorre em proposições alarmistas, denúncias infundadas ou em previsões de catástrofes ambientais. O tom crítico é sempre consciente da necessidade de fundamentar achados e previsões e de contextualizar os processos de mudança ambiental e social. Não casualmente, algumas dissertações e teses concluem com sugestões fundamentadas e factíveis quanto à agenda de futuras pesquisas e/ou de ações públicas e comunitárias apropriadas para enfrentar os problemas estudados, combinando, assim, qualidade científico-acadêmica com relevância social.

Por último, é de se esperar que toda essa produção alcance rapidamente os circuitos de bases eletrônicas de dados, revistas científicas, anais de congressos, sites temáticos, coletâneas, textos avulsos e livros, para que as suas contribuições se disseminem mais facilmente entre a comunidade científica e ambientalista e os cidadãos interessados.

Brasília e Rio de Janeiro, setembro-outubro de 2002

NOTAS

  • 1
    As três produções de cujas bancas participei, mas que não comentei neste artigo, são: (1) a tese de Doutorado de Luís Jorge Manuel Antônio Ferrão, intitulada
    A Convenção da Diversidade Biológica e a Gestão Comunitária dos Recursos Naturais, defendida no Programa de Doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sob a orientacão de Peter H. May (junho de 2002); (2) a dissertação de Mestrado de Mônica Lepri, intitulada
    Em Busca do Padrão que Liga: Histórias de uma Educação pelo Ambiente, defendida no programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense, sob orientação de Eunice Trein (março 2000); e a dissertação de Mestrado de Mauro Leão Gomes, intitulada
    A Cultura do Café o Debate Ambiental no Século XIX: O Caso de Cantagalo, defendida no Programa de Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, sob orientaçãoo de José Augusto Pádua (fevereiro 2000).
  • 2
    Registro os meus agradecimentos aos orientadores e aos então candidatos a mestre e doutor pelos convites que me fizeram para integrar as respectivas bancas examinadoras. Em alguns casos, os candidatos também me forneceram detalhes complementares sobre as suas produções, os quais aproveitei no texto. No caso dos meus orientandos e de minha co-orientanda, em cujas produções me envolvi de forma mais profunda do que a simples participação nas bancas examinadoras, não cabe propriamente um agradecimento, mas sim assinalar que os méritos de suas produções residem com eles mesmos.
  • 3
    As duas mestras são colegas no projeto de pesquisa intitulado Monitoramento Estratégico das Tranformações Ambientais da Amazônia, realizado no âmbito do CDS-UnB, trabalhando sob a direção do seu orientador, Richard Pasquis. Vale destacar que as duas mestrandas realizaram os seus trabalhos de dissertação com o apoio de uma eficaz parceria institucional entre o CDS-UnB, o CIRAD e o PP-G7 (este último através de fornecimento de duas bolsas de estudo do MCT para as então mestrandas).
  • 4
    Esta dissertação também contou com um interessante esquema de apoio institucional: a mestranda, vinculada ao CDS-UnB, contou com apoio do próprio ISPN.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2003
    • Data do Fascículo
      2003
    ANPPAS - Revista Ambiente e Sociedade Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP - Brazil
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