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A entrada dos egressos de licenciaturas da educação superior na docência

La entrada de graduados de educación superior en la enseñanza

Resumo

Este artigo analisa a relação entre as diferenças qualitativas na formação dos graduados dos cursos de licenciatura da educação superior e os resultados que os egressos obtêm no emprego formal no Brasil. Utilizamos os dados do Enade 2011 e RAIS 2014 para investigar dois tipos de resultados dos graduados no mundo do trabalho: (1) entrada no emprego formal; e (2) emprego na ocupação típica de docência. A análise indica desigualdades nos resultados por gênero, raça e, sobretudo, nível socioeconômico dos egressos, além de mostrar que as diferenças qualitativas na educação superior importam para o seu destino ocupacional.

Palavras-chave:
educação superior; formação docente; mercado de trabalho para docentes; educação básica; estratificação social

Resumen

Este artículo analiza la relación entre las diferencias cualitativas en la formación de graduados de los cursos de grado de educación superior y los resultados que los graduados obtienen en el empleo formal en Brasil. Utilizamos los datos de Enade 2011 y RAIS 2014 para investigar dos tipos de graduados en el mundo del trabajo: (1) entrada al empleo formal; y (2) empleo en la ocupación típica de la enseñanza. El análisis indica desigualdades en los resultados por género, raza y, sobre todo, el nivel socioeconómico de los graduados, así como para mostrar que las diferencias cualitativas en la educación superior son importantes para su destino ocupacional.

Palavras clave:
educación superior; formación de professores; ocupación docente

Abstract

This article analyses the relationship between qualitative differences in the education and training of graduates from higher education teaching programmes and the outcomes they achieve in formal employment in Brazil. We used data from Enade 2011 and RAIS 2014 to investigate two types of outcomes for graduates in the labour market: (1) entry into formal employment; and (2) employment in typical teaching occupations. The analysis indicates inequalities in outcomes by gender, race, and above all, socio-economic level of graduates, as well as showing that qualitative differences in higher education are important for their occupational destiny.

Keywords:
higher education; teacher training; teacher labor markets; basic education; social stratification

1 Introdução

A formação de professores na educação superior desempenha papel central em políticas educacionais voltadas para a melhoria da qualidade e equidade do exercício da docência em sala de aula. Ainda que a simples titulação acadêmica seja insuficiente para avaliar a eficácia do professor, a realização de curso de graduação compatível com a área em que leciona está associada a fatores de importância reconhecida para os resultados educacionais dos estudantes, sobretudo aqueles mais carentes, como o domínio do conteúdo e a adoção de métodos e recursos didáticos eficazes (PAUL; BARBOSA, 2008PAUL, Jean-Jacques; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Qualidade docente e eficácia escolar. Tempo Social, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 119–133, ago. 2008.; CARVALHO et al., 2021CARVALHO, Priscila Laranjeira et al. Competências genéricas auto referidas por universitários brasileiros. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, Arizona, USA, v. 29, n. 14, p. 1-22, jan./july. 2021. DOI: https://doi.org/10.14507/epaa.29.5315
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). Não é por acaso, portanto, que a ampliação da formação específica de nível superior para professores da educação básica esteja consagrada na meta 15 do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014BRASIL. Lei Nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 jun. 2014.), e que iniciativas recentes de regulação da formação docente, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) (BRASIL. MEC, 2019BRASIL. MEC. Portaria MEC Nº 2.167, de 19 de dezembro de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez. 2019.), tenham como objetivo qualificar a formação dos professores.

Entretanto, há uma distância entre a conclusão de cursos de formação de professores de nível superior e o efetivo exercício da docência que afeta não apenas a composição do quadro de professores da educação básica, como os resultados que esse grupo alcança em sua inserção e trajetória profissionais. Em primeiro lugar, assim como ocorre em outros países latino-americanos, a carreira docente padece de carências estruturais no Brasil, como remuneração insatisfatória e más condições de trabalho, que afugentam graduados que receberam formação inicial de qualidade (VAILLANT, 2006VAILLANT, Denise. Atraer y retener buenos profesionales en la profesión docente: políticas en Latinoamérica. Revista de Educación, Espanha, v. 340, p. 117-140, maio/ago. 2006.; LOUZANO et al., 2010LOUZANO, Paula et al. Quem quer ser professor? Atratividade, seleção e formação do docente no Brasil. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v. 21, n. 47, p. 543-568, dez. 2010.). Em segundo, por ser carreira predominantemente feminina, as decisões relativas à inserção profissional são fortemente influenciadas pelas opções familiares, tais como aspectos que envolvem nupcialidade e fecundidade (ALVES et al., 2016ALVES, Raphael et al. Ser ou não ser professor da Educação Básica? Salário esperado e outros fatores na escolha ocupacional de concluintes de licenciaturas. Rio de Janeiro: Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE), 2016. Texto para Discussão, n. 120. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/cede/tds/TD120.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.
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). Por último, as mesmas razões que reduzem a atratividade da carreira também levam a que muitos professores procurem empregos adicionais ou trabalhem em mais de uma escola, o que prejudica os resultados escolares dos alunos (ELACQUA; MAROTTA, 2019ELACQUA, Gregory; MAROTTA, Luana. Do multiple school jobs affect teacher performance?: Evidence from Brazil. Inter-American Development Bank, Washington, 2019. p. 18. IDB Working Paper, n. 1051. Disponível em: https://publications.iadb.org/en/do-multiple-school-jobs-affect-teacher-performance-evidence-brazil. Acesso em: 23 jun. 2021.
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).

O estudo da inserção profissional dos egressos de cursos de formação de professores é capaz de iluminar também aspectos da expansão do sistema de educação superior no país e da sua relação com desigualdades no mercado de trabalho de graduados. As intensas transformações que ocorreram tanto no âmbito normativo quanto na evolução do número de matrículas na educação superior desde a década de 1990 não podem ser entendidas sem se observar o comportamento da área de Educação, que foi profundamente afetada por mudanças legislativas e normativas referentes à formação e carreira do professor (HONORATO; VIEIRA; ZUCCARELLI, 2018HONORATO, Gabriela; VIEIRA, André; ZUCCARELLI, Carolina. Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995- 2015). In: HERINGER, Rosana. Educação superior no Brasil contemporâneo: estudos sobre acesso, democratização e desigualdades. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação da UFRJ, 2018. p. 31-85.; VAILLANT; MANSO, 2022VAILLANT, Denise; MANSO, Jesús. Formación inicial y carrera docente en América Latina: una mirada global y regional. Ciencia y Educación, Republica Dominicana, v. 6, n. 1, p. 109–118, mar. 2022.). As questões acima ganham um interesse ainda maior quando consideramos que essa mesma área de formação vem sendo relegada aos espaços menos prestigiados do sistema (BROCK; SCHWARTZMAN, 2004BROCK, Colin; SCHWARTZMAN, Simon. The Challenges of Education in Brazil. Oxford: Symposium Books, 2004.).

O presente estudo se beneficia dessa literatura para discutir em que medida a formação dos professores na educação superior está associada a diferentes pontos de entrada no mercado de trabalho formal e de que forma as origens socioeconômicas dos graduados condicionam essa transição. Assim, buscamos dar um passo adicional em relação a estudos anteriores voltados para o universo de graduados da educação superior no Brasil (VIEIRA; HONORATO; RODRIGUES, 2022VIEIRA, A. de H. P. Desigualdades sociais na entrada no emprego formal entre graduados da educação superior. Tempo Social, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 131-158, abr. 2023.; VIEIRA, 2023VIEIRA, A. de H. P. Desigualdades sociais na entrada no emprego formal entre graduados da educação superior. Tempo Social, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 131-158, abr. 2023.), ao examinarmos de que maneira as diferenças qualitativas específicas a uma carreira superior importam para os resultados profissionais dos egressos.

Partimos do pressuposto de que para entendermos melhor o efeito das características dos professores no desempenho e na progressão dos alunos da educação básica é fundamental analisar a formação inicial destes professores, que se dá crescentemente na educação superior. Para tanto, utilizamos os dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de 2011, que permitiram pela primeira vez na série histórica da avaliação identificar concluintes em 14 diferentes cursos de licenciatura, e os dados sobre inserção no emprego formal provenientes da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2014.

A nossa análise está organizada em duas etapas. Na primeira, examinamos o ingresso dos graduados dos cursos de Educação no emprego formal, com o objetivo de descrever padrões de seletividade na inserção na posição ocupacional em foco neste estudo. Em seguida, calculamos a relação entre origem social e características da formação acadêmica e as chances de estar empregado em ocupações consideradas típicas ou não para a área de Educação.

2 Estudos Anteriores e Hipóteses de Trabalho

Apesar de os cursos de licenciatura tradicionalmente ocuparem espaços subordinados na educação superior brasileira, a expansão dessa etapa nas últimas décadas recoloca o problema clássico da literatura sobre estratificação social e sobre a igualdade de oportunidades por meio da escolarização. O caráter tradicional e patrimonial da nossa educação superior (PRATES; BARBOSA, 2015PRATES, Antonio Augusto Pereira; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. A expansão e as possibilidades de democratização do ensino superior no Brasil. Caderno CRH, Salvador, BA, v. 28, n. 74, p. 327–340, ago. 2015.) indica dificuldades para a ampliação dessa igualdade, o que contribui para que a distribuição dos estudantes esteja mais fortemente associada à sua origem social, do que ao seu mérito acadêmico ou vocação ocupacional. Os efeitos dessa abertura limitada aparecem com clareza na perspectiva dos jovens estudantes, que valorizam imensamente sua entrada na educação superior ao mesmo tempo em que percebem que ela não significa necessariamente a realização de seu sonho (BARBOSA; DWYER, 2016BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; DWYER, Tom. Higher Education in crisis: Critical voices from emerging countries. In: COTÉ, James; FURLONG, Andy. Routledge handbook of the sociology of Higher Education. New York: Routledge, 2016. p. 315-327.).

Considerando-se a importância dos cursos de formação de professores para a educação superior brasileira, tanto a sua caracterização institucional, incluindo em quais tipos de instituições, modalidades e turnos os cursos são ofertados, quanto a composição socioeconômica das matrículas, são elementos fundamentais para entendermos em que medida a expansão do sistema pode resultar em alguma democratização. As matrículas dos cursos de licenciaturas apresentaram o segundo maior crescimento da educação superior entre 1995 e 2015, que pode ser caracterizado por três processos (HONORATO; VIEIRA; ZUCCARELLI, 2018HONORATO, Gabriela; VIEIRA, André; ZUCCARELLI, Carolina. Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995- 2015). In: HERINGER, Rosana. Educação superior no Brasil contemporâneo: estudos sobre acesso, democratização e desigualdades. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação da UFRJ, 2018. p. 31-85.): (1) a multiplicação de matrículas em instituições privadas; (2) o aumento da oferta de cursos sobretudo nas regiões Norte e Nordeste; e (3) o crescimento exponencial da modalidade de educação à distância (EaD). Mantendo-se o quadro atual, as próximas gerações de professores brasileiros serão formadas na modalidade à distância, principalmente em IES privadas (SANTOS; LIMA; CARVALHAES, 2020SANTOS, C. T.; LIMA, R. G.; CARVALHAES, F. O perfil institucional do sistema de ensino superior brasileiro após décadas de expansão. In: BARBOSA, M. L. O. (org.) A expansão desigual do ensino superior no Brasil. Curitiba: Appris, 2020. p. 27-56.).

Assim como ocorre em outros sistemas de educação superior (GERBER CHEUNG, 2008GERBER, Theodore P.; CHEUNG, Sin Y. Horizontal Stratification in Postsecondary Education: Forms, Explanations, and Implications. Annual Review of Sociology, EUA, v. 34, n. 1, p. 299– 318, ago. 2008.), os cursos de formação de professores no Brasil atendem tradicionalmente a grupos socialmente desfavorecidos de estudantes-trabalhadores, mulheres e pessoas de baixo desempenho escolar prévio. Diversas análises têm mostrado que a área de Educação está entre aquelas nas quais estudantes oriundos de famílias de menor renda e menos escolarizadas têm maiores probabilidades de se graduarem, sugerindo que esse público é “desviado” pelo sistema para os cursos de menor valor social (BARBOSA; VIEIRA; TAGLIARI, 2017BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; VIEIRA, André de Holanda Padilha; TAGLIARI, Clarissa. Institutional and social factors of performance and completion of higher education. Trabalho apresentado à 30º CHER Annual Conference, Jyväskylä, 2017.; KNOP; COLLARES, 2019KNOP, Márcia; COLLARES, Ana Cristina Murta. A influência da origem social na probabilidade de concluir os diferentes cursos de ensino superior. Sociedade e Estado, Brasília, v. 34, n. 2, p. 351–380, maio 2019.; CARVALHAES; RIBEIRO, 2019CARVALHAES, Flavio; RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional. Tempo Social, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 195–233, abr. 2019.). Ainda assim, há diferenças qualitativas importantes entre os concluintes dos vários cursos de licenciaturas, com os de Pedagogia tendo origem familiar mais desfavorecida do que aqueles dos demais cursos de licenciatura, sobretudo Matemática e Ciências da Natureza (HONORATO; ZUCCARELLI; VIEIRA, 2018HONORATO, Gabriela; VIEIRA, André; ZUCCARELLI, Carolina. Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995- 2015). In: HERINGER, Rosana. Educação superior no Brasil contemporâneo: estudos sobre acesso, democratização e desigualdades. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação da UFRJ, 2018. p. 31-85.).

Além da literatura sobre desigualdade de oportunidades no acesso e conclusão dos cursos de licenciatura, a nossa análise também se baseia em duas tradições de pesquisa complementares: a primeira sobre mecanismos que explicam os retornos econômicos da educação superior; a segunda sobre oferta de professores e mercado de trabalho de docência. Ambas as linhas de estudos podem ser articuladas considerando-se que a autosseleção social para os cursos de licenciatura que discutimos nos parágrafos anteriores está diretamente relacionada aos baixos retornos monetários e sociais dos graduados no mercado de trabalho. Esses trabalhos, em conjunto com as características do mercado de trabalho dos docentes no Brasil, informam as nossas hipóteses.

Os estudos voltados a entender os mecanismos associados aos resultados dos graduados no mercado de trabalho têm indicado a importância de características da formação acadêmica, como a área de estudos e as habilidades adquiridas, e da trajetória profissional dos graduados, como a experiência de trabalho durante os estudos, como fatores explicativos dos retornos aos diplomas de graduação (VIEIRA; HONORATO; RODRIGUES, 2022VIEIRA, A. de H. P.; HONORATO, G.; RODRIGUES, L. Educação superior e resultados no mercado de trabalho no Brasil: uma revisão da literatura e dos dados disponíveis. Revista Brasileira de Sociologia - RBS, Porto Alegre, v. 10, n. 25, 25 out. 2022.). Em linha com a teoria do capital humano, a literatura prévia indica que as habilidades dos egressos, sobretudo aquelas que são bem específicas e ligadas a perfis técnicos bem definidos, explicam uma parcela substancial dos salários no mercado de trabalho (e.g. BOL; HEISIG, 2021BOL, Thijs; HEISIG, Jan Paul. Explaining wage differentials by field of study among higher education graduates: Evidence from a large-scale survey of adult skills. Social Science Research, USA, v. 99, p. 1-16, set. 2021.; VAN DE WERFHORST, 2002VAN DE WERFHORST, H. G. Fields of Study, Acquired Skills and the Wage Benefit from a Matching Job. Acta Sociologica, v. 45, n. 4, p. 286–303, dez. 2002.). Alguns estudos mostram que principalmente habilidades econômicas e técnicas e relativas a atividades práticas do trabalho estão associadas a recompensas maiores, quando comparadas às habilidades culturais (VAN DE WERFHORST; KRAAYKAMP, 2001VAN DE WERFHORST, Herman; KRAAYKAMP, Gerbert. Four field-related educational resources and their impact on labor, consumption, and sociopolitical orientation. Sociology of Education, [S. L.], v. 74, n. 4, p. 296-317, out. 2001.). As teorias da sinalização, por outro lado, sugerem que a experiência de trabalho pode ser recompensada no mercado por indicar ao empregador, além de maior produtividade, menores custos de treinamento (AINA; CASALONE, 2020AINA, Carmen; CASALONE, Giorgia. Early labor market outcomes of university graduates: Does time to degree matter?. Socio-Economic Planning Sciences, USA, v. 71, p. 1-17, set. 2020.). Em relação ao efeito da origem social sobre os salários, estudos anteriores mostram que os recursos familiares compensam parcialmente as falhas de sinalização de áreas de estudo menos específicas em termos ocupacionais, sobretudo na entrada dos egressos no mundo do trabalho (JACOB; KLEIN, 2019JACOB, Marita; KLEIN, Markus. Social origin, field of study and graduates’ career progression: does social inequality vary across fields? The British Journal of Sociology, Londres, v. 70, n. 5, p. 1850–1873, dez. 2019.).

A literatura sobre mercado de trabalho de docência tem identificado uma série de fatores, financeiros ou não, associados às escolhas individuais dos potenciais professores, que incluem salários e benefícios, condições de trabalho e localização da escola (BETÉILLE; LOEB, 2009BÉTEILLE, Tara; LOEB, Susanna. Teacher Quality and Teacher Labor Markets. In: SYKES, Gary; SCHNEIDER, Barbara; PLANK, David. Handbook of Education Policy Research. Nova Iorque: Taylor & Francis, 2009. p. 596-612.). Esses fatores afetam as decisões dos concluintes dos cursos de licenciatura de escolher o magistério como profissão e, caso o façam, onde buscarão lecionar. Embora estudos sobre docentes no Brasil e América Latina apontem para características que podem aumentar a atratividade da carreira docente, como flexibilidade de carga horária, tempo de férias, baixas taxas de desemprego e sentimento de altruísmo associado à carreira (OECD, 2006OECD. Teachers matter: attracting, developing and retaining effective teachers. Paris: OECD Publications, 2006.; VEGAS, 2005VEGAS, Emiliana. Incentives to improve teaching: lessons from Latin America. Washington: The World Bank, 2005.), há poucos incentivos financeiros para que os melhores alunos do ensino médio escolham a ocupação de professor no Brasil (LOUZANO et al., 2010LOUZANO, Paula et al. Quem quer ser professor? Atratividade, seleção e formação do docente no Brasil. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v. 21, n. 47, p. 543-568, dez. 2010.). Reforçando esse quadro, pesquisas mostram que o trabalho em ocupações típicas por profissionais recém-formados em cursos de licenciaturas não estava associado a rendimentos maiores nem a cursos de maior qualidade (MACIENTE et al., 2015MACIENTE, Aguinaldo Nogueira et al. A inserção de recém-graduados em engenharias, medicina e licenciaturas no mercado de trabalho formal. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2015. Radar, n. 38, p. 16. Disponível em: http://www.ipea.gov.br. Acesso em: 18 abr. 2019.
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)1 1 Os autores consideraram como ocupações típicas para a área de formação aquelas que, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), são normalmente (ou exclusivamente) exercidas por profissionais formados nas respectivas áreas. .

Estudos nacionais e internacionais sobre oferta de professores e carreira docente têm indicado a relação entre a formação acadêmica dos docentes e um diverso leque de resultados profissionais, entre os quais dois nos interessam em particular: (1) a escolha entre a docência e outras carreiras e (2) o tipo de escola para exercício do magistério. Os estudantes que optam por ou declaram o desejo de lecionar tendem a ser menos proficientes academicamente (GOLDHABER; LIU, 2003GOLDHABER, Dan; LIU, Albert. Occupational choices and the academic proficiency of the teacher workforce. Developments in School Finance, Washington, DC, v. 2, p. 53–75, jan. 2003.; PODGURSKY; MONROE; WATSON, 2004PODGURSKY, Michael; MONROE, Ryan; WATSON, Donald. The academic quality of public school teachers: An analysis of entry and exit behavior. Economics of Education Review, Tennessee, EUA, v. 23, n. 5, p. 507–518, out. 2004.; ALVES et al., 2016ALVES, Raphael et al. Ser ou não ser professor da Educação Básica? Salário esperado e outros fatores na escolha ocupacional de concluintes de licenciaturas. Rio de Janeiro: Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE), 2016. Texto para Discussão, n. 120. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/cede/tds/TD120.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.
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) e, entre aqueles que optam pela docência, os que ingressam na rede pública por meio de concursos são mais propensos a se beneficiar dos recursos culturais de suas famílias (CASTELLAR et al. 2010CASTELLAR, Ivan et al. Uma análise dos determinantes de desempenho em concurso público. Economia Aplicada, Ribeirão Preto, v. 14, n. 1, p. 81-98, mar. 2010.). Os egressos de cursos mais gerais, como Pedagogia, parecem ter mais chances de trabalharem como docentes de escolas públicas do que os seus pares de disciplinas mais específicas (BALLOU, 1996BALLOU, D. Do Public Schools Hire the Best Applicants? The Quarterly Journal of Economics, v. 111, n. 1, p. 97–133, 1 fev. 1996.). Ainda no plano econômico, há evidências de que estruturas uniformes de salários da carreira docente levam à falta de professores em áreas específicas, tais como matemática e ciência, que conseguem acessar oportunidades mais rentáveis de trabalho fora do magistério, incluindo o trabalho por conta própria (MURNANE et al., 1991MURNANE, R. J. et al. Who Will Teach?. Cambridge: Harvard University Press, 1991.; VIEIRA, 2023VIEIRA, A. de H. P. Desigualdades sociais na entrada no emprego formal entre graduados da educação superior. Tempo Social, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 131-158, abr. 2023.). Por último, diversos estudos apontam para a regularidade de que os candidatos à docência mais experientes e com melhor formação acadêmica tendem a escolher as escolas com melhores condições de trabalho e com um perfil de estudantes socialmente favorecidos (GOLDHABER et al., 2014GOLDHABER, D.; KRIEG, J.; THEOBALD, R. Knocking on the door to the teaching profession? Modeling the entry of prospective teachers into the workforce. Economics of Education Review, v. 43, p. 106–124, dez. 2014.; BETÉILLE; LOEB, 2009BÉTEILLE, Tara; LOEB, Susanna. Teacher Quality and Teacher Labor Markets. In: SYKES, Gary; SCHNEIDER, Barbara; PLANK, David. Handbook of Education Policy Research. Nova Iorque: Taylor & Francis, 2009. p. 596-612.; PAUL; BARBOSA, 2008PAUL, Jean-Jacques; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira. Qualidade docente e eficácia escolar. Tempo Social, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 119–133, ago. 2008.).

Com base nas tradições de pesquisa mencionadas e na caracterização do mercado de trabalho docente no Brasil, delineamos algumas hipóteses sobre os resultados dos concluintes das licenciaturas no mercado de trabalho.

(1) Entrada no emprego formal

Podemos esperar que os egressos com origem social mais favorecida, por terem domínio sobre as alternativas mais rentáveis de trabalho ao seu alcance, possam optar por adiar a entrada no emprego formal ou entrar no mercado de trabalho em outras posições mais lucrativas, como empregador ou trabalhador por conta própria (hipótese 1a).

Como preveem as abordagens da sinalização e do capital humano, os egressos que possuem níveis mais elevados de habilidades específicas ou que têm experiência prévia de trabalho são aqueles que possuem maiores chances de conseguir um emprego formal (hipótese 1b).

As áreas menos específicas em termos ocupacionais (ROKSA; LEVEY, 2010ROKSA, J.; LEVEY, T. What can you do with that degree? College major and occupational status of college graduates over time. Social Forces, USA, v. 89, n. 2, p. 389–415, 1 dez. 2010.; JACOB; KLEIN, 2019JACOB, Marita; KLEIN, Markus. Social origin, field of study and graduates’ career progression: does social inequality vary across fields? The British Journal of Sociology, Londres, v. 70, n. 5, p. 1850–1873, dez. 2019.; VAZ; VAZ, 2019VAZ, K. C. DA S. V.; VAZ, F. M. Inserção Profissional dos Jovens Concluintes da Educação Superior. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 19., Florianópolis, SC, 2019. Anais [...]. Florianópolis, 2019.2 2 O grau de especificidade ocupacional é usualmente é medido pela proporção de graduados que trabalham em ocupações correspondentes à sua formação. Os cursos de Humanidades e Artes e grande parte das Ciências Sociais Aplicadas aparecem usualmente entre as áreas menos específicas tanto em estudos nacionais, quanto internacionais. (como Humanidades e Pedagogia) são mais permeáveis à origem social dos egressos, de modo que há nelas maior desigualdade no acesso ao emprego formal (hipótese 1c).

O domínio de competências específicas à carreira nas áreas mais rentáveis (Matemática e Ciências da Natureza, com perfis técnicos bem delineados) pode ampliar o leque de oportunidades de trabalho além do emprego formal, reduzindo a probabilidade de esses egressos buscarem sua inserção imediatamente após a graduação (hipótese 1d).

(2) Emprego em ocupações típicas das licenciaturas

Sendo o salário médio dos egressos das licenciaturas ocupados em carreiras não típicas de nível superior maior que o dos docentes (MACIENTE et al., 2015MACIENTE, Aguinaldo Nogueira et al. A inserção de recém-graduados em engenharias, medicina e licenciaturas no mercado de trabalho formal. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2015. Radar, n. 38, p. 16. Disponível em: http://www.ipea.gov.br. Acesso em: 18 abr. 2019.
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) e alcançado principalmente por egressos socialmente favorecidos, podemos esperar as seguintes relações:

Os egressos de Ciências da Natureza e da rede privada, estes, mais propensos a estarem inseridos no mercado de trabalho ao longo da graduação, possuem maior probabilidade de estar empregados em ocupações não típicas de nível superior do que os seus pares de outras áreas e de instituições públicas (hipótese 2a).

Os egressos com nível elevado de conhecimentos específicos da área de formação têm probabilidade menor de estar empregados como docentes, tipicamente menos rentáveis do que as demais ocupações, em relação aos seus pares com nível baixo de desempenho (hipótese 2b).

Os egressos de famílias privilegiadas têm probabilidade maior de estar empregados em carreiras não típicas de nível superior, em comparação com os graduados de famílias desfavorecidas (hipótese 2c).

3 Metodologia

Nossos dados provêm do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) 2011 e do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2014. O Enade é uma avaliação de desempenho de concluintes dos cursos de graduação, que são divididos em três grandes grupos que se revezam ano a ano na avaliação. Assim, a cada três anos, um mesmo grupo de cursos é reavaliado. No exame, os estudantes concluintes resolvem questões de formação geral, comum a todas as áreas, e do componente específico de cada curso. Em 2011, os cursos que conferiam o grau de bacharel ou licenciatura foram avaliados pela primeira vez de forma separada pelo Enade. A RAIS é um registro administrativo de periodicidade anual e declaração obrigatória para todos os estabelecimentos existentes no território nacional, que contém informações relativas ao universo de empregados formais do país.

Para esta análise, obtivemos acesso às versões restritas das respectivas bases de dados, que permitem identificar os indivíduos por meio de chave única. Foram mantidos nos dados os concluintes que atenderam a duas condições: (1) estavam há dois anos ou menos empregados formalmente; (2) não concluíram cursos de pós-graduação entre o ano da graduação e o ano em que o emprego é mensurado. Os dois filtros foram realizados com o objetivo de tornar a amostra mais homogênea, eliminando possíveis fatores de confusão sobre a relação entre a formação na educação superior e o emprego formal.

Por outro lado, os dados utilizados têm limites conhecidos (OCDE, 2018). Entre os problemas do Enade, merecem menção aqueles relacionados à abrangência e consistência das informações de inscritos, o que impede uma medida precisa da cobertura da avaliação em relação ao universo de concluintes da educação superior. Além disso, a avaliação padece de problemas no desenvolvimento, seleção e uso de itens de teste que implicam dificuldades na interpretação substantiva dos resultados dos estudantes no Enade (SCHWARTZMAN, 2005SCHWARTZMAN, S. O enigma do Enade. Rio de Janeiro: IETS, 2005.; OCDE, 2018).

Tabela 1 Número de inscritos nas áreas de conhecimento selecionadas na edição de 2011 do Enade, representatividade destes no Censo e emprego deles na RAIS
Geral Ciências da Natureza Ciências Hum. e Soc. Linguagens Matemática Pedagogia
Número de inscritos com identificador no Enade 243804 25085 31681 64423 13920 108695
Concluintes com vínculo empregatício três anos após a conclusão do curso (%) 80,3% 72,6% 73,6% 75,2% 84,1% 81%
Concluintes empregados em ocupações típicas de docentes da educação básica (%) 36,7% 37,6% 38,2% 33,9% 47,2% 36,0%
  • Fonte: ENADE, 2011; INEP, 2023INEP. Microdados do Enade 2011. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/microdados/enade. Acesso em: 30 jan. 2020.
    https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-i...
    ; RAIS, 2014; MTEM, 2023MTE. RAIS 2014. Brasília, 2023. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/component/k2/itemlist/category/32-microdados?start=20. Acesso em: 20. Jan. 2020.
    https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/c...
    .
  • Como registro do mercado de trabalho formal, a RAIS não abrange trabalhadores que estão na informalidade, por conta própria ou empregadores, o que impede que os seus resultados sejam interpretados como válidos para o universo dos trabalhadores brasileiros. Por ser um registro administrativo com informações prestadas pelos empregadores, deve ser interpretado com cautela devido a erros e omissões comuns a esse formato de declaração de informação (NEGRI et al., 2001NEGRI, João Alberto de et al. Mercado formal de trabalho: comparação entre os Microdados da RAIS e da PNAD. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2001. p. 29. Texto para Discussão, v. 840. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0840.pdf. Acesso em: 30 out. 2020.
    https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
    ).

    A frequência de informações faltantes, sobretudo, em variáveis do questionário socioeconômico do aluno (como sexo, escolaridade dos pais e raça), são um desafio conhecido para a utilização dos dados do Enade (VIEIRA, 2023VIEIRA, A. de H. P. Desigualdades sociais na entrada no emprego formal entre graduados da educação superior. Tempo Social, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 131-158, abr. 2023.; RODRIGUES, 2024RODRIGUES, L. Estratificação horizontal do ensino superior brasileiro e as profissões imperiais: os concluintes de Medicina, Engenharia e Direito entre 2009 e 2017. Dados, Rio de Janeiro, v. 67, p. e20210118, 13 mar. 2023.). Além destes campos, observamos valores ausentes na variável que indica a situação de trabalho do concluinte e a nota no componente específico do exame. A Tabela 2 descreve o padrão da ausência de respostas por área de formação. As variáveis com missing apresentam percentuais de valores ausentes entre 10% e 25%. De modo geral, os maiores percentuais são observados para os cursos das áreas de Ciências Humanas e Sociais e Linguagens. Para não termos que excluir os casos com informações faltantes, o que poderia afetar a representatividade da amostra, seguimos a estratégia adotada em outros trabalhos (VIEIRA, 2023VIEIRA, A. de H. P. Desigualdades sociais na entrada no emprego formal entre graduados da educação superior. Tempo Social, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 131-158, abr. 2023.; RODRIGUES, 2023RODRIGUES, L. Estratificação horizontal do ensino superior brasileiro e as profissões imperiais: os concluintes de Medicina, Engenharia e Direito entre 2009 e 2017. Dados, Rio de Janeiro, v. 67, p. e20210118, 13 mar. 2023.), optando por imputar os valores das observações faltantes por meio do método Multivariate Imputation by Chained Equations (BUUREN; GROOTHUIS-OUDSHOORN, 2011BUUREN, Stef Van & GROOTHUIS-OUDSHOORN, Karin. Mice: Multivariate Imputation by Chained Equations in R. Journal of Statistical Software, v. 45, n. 1, p. 1-67, 2011.).

    Tabela 2
    Percentual de valores ausentes em cada variável, por área de formação

    3.1 Variáveis dependentes

    Com base nos dados da RAIS, operacionalizamos dois tipos de variáveis dependentes: (1) uma variável dummy indicando se os egressos possuíam ou não um vínculo de emprego formal três anos após o fim da graduação; e (2) o tipo de ocupação do emprego principal do egresso com quatro categorias: “ocupação típica de docente”, “outra ocupação típica”, “ocupação não típica de nível superior” e “outra ocupação não típica”.

    Para a classificação das ocupações consideradas típicas, utilizamos os códigos de oito dígitos da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) da RAIS. Seguindo a estratégia de Vaz e Vaz (2019)VAZ, K. C. DA S. V.; VAZ, F. M. Inserção Profissional dos Jovens Concluintes da Educação Superior. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 19., Florianópolis, SC, 2019. Anais [...]. Florianópolis, 2019., além dos requisitos técnicos de formação e experiência descritos no manual da CBO para o exercício das ocupações, baseamo-nos também na frequência relativa com que cada ocupação apareceu por área de estudo. Conforme estudos anteriores (FERNANDES; NARITA, 2001FERNANDES, R.; NARITA, R. D. T. Instrução superior e mercado de trabalho no Brasil. Economia aplicada, Ribeirão Preto, v. 5, n. 1, p. 7-32, jan. 2001.; MENEZES-FILHO, 2012MENEZES-FILHO, N. Apagão de mão de obra qualificada? As profissões e o mercado de trabalho brasileiro entre 2000 e 2010. BraIn Investimento e Negócios, São Paulo, 2012.), consideramos professores da educação básica como ocupação típica de docência para todas as áreas de formação. As demais ocupações típicas das licenciaturas, que incluem diretores e gerentes de instituição de serviços educacionais, professores da educação superior, professores de educação especial, e programadores, avaliadores e orientadores de ensino, foram classificadas como “outras ocupações típicas”. As outras ocupações restantes do grande grupo 2 da CBO, composto pelos “Profissionais das ciências e das artes”, constituíram a categoria de “ocupação não típica de nível superior”. As ocupações não classificadas nas categorias anteriores formaram o grupo “outra ocupação não típica”.

    3.2 Variáveis independentes

    Na Base Nacional Comum Curricular, as etapas do Ensino Fundamental e Ensino Médio estão organizadas, respectivamente, em cinco e em quatro áreas do conhecimento. Cada área do conhecimento estabelece competências específicas, cujo desenvolvimento deve ser promovido ao longo da formação do estudante. Além de nortear a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares de todo o país, a BNCC também serviu de base para o Parecer CNE/CP nº 22/2019, que atualizou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e instituiu a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Assim como a BNCC, a BNC-Formação também estabelece competências gerais e específicas, dessa vez para os docentes.

    Considerando a organização das áreas de conhecimento da BNCC, reclassificamos os cursos de graduação da área de Educação em cinco categorias: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Sociais e Pedagogia. Como os cursos de Pedagogia têm tido, tradicionalmente, o objetivo de formar, além de pesquisadores e especialistas em educação, professores de educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, optamos por mantê-los separados dos demais cursos de licenciaturas. Dessa forma, os cursos foram assim classificados:

    • i. Linguagens: Letras, Artes Visuais, Música e Educação Física.

    • ii. Matemática: Matemática.

    • iii. Ciências da Natureza: Biologia, Química e Física.

    • iv. Ciências Humanas e Sociais: Geografia, História, Ciências Sociais e Filosofia.

    • v. Pedagogia: Pedagogia.

    Neste ponto, como estratégia de aproveitamento da classificação utilizada pelo INEP, não foram feitas distinções disciplinares mais profundas, como é usual nos estudos sobre profissões (ABBOTT, 2003ABBOTT, Andrew. Chaos of disciplines. Chicago: University of Chicago Press, 2003.). No entanto, como se trata de um estudo sobre a carreira docente, o destaque para a Pedagogia em oposição às demais áreas agregadas fornece uma aproximação bastante razoável do impacto do tipo de conhecimento dominado pelo grupo profissional. Isto é: foram separados os conhecimentos propriamente pedagógicos dos diversos tipos de conhecimento específico das outras áreas.

    As variáveis independentes estão listadas a seguir. As bases das variáveis dummy são a primeira categoria listada em cada variável. As estatísticas descritivas da amostra são apresentadas na Tabela 3.

    Tabela 3
    Estatísticas descritivas da amostra
    • – Sexo: feminino, masculino.

    • – Cor: negros/indígenas, incluindo pretos, pardos e indígenas e brancos/amarelos, agregando brancos e amarelos.

    • – Escolaridade dos pais: menos que ensino médio, ensino médio e educação superior.

    • – Quartil de desempenho no componente específico do Enade.

    • – Trabalho no final da graduação: não trabalha, trabalha em período parcial e trabalha em período parcial.

    • – Faixa de idade na conclusão do curso superior: 18 a 24 anos, 25 a 34 anos, 35 a 54 anos e 55 anos ou mais.

    • – Dependência administrativa da instituição de educação superior do curso: pública, privada.

    • – Região do curso: as cinco macrorregiões políticas do IBGE, base Nordeste.

    • – Áreas de estudo: Pedagogia, Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas e Sociais.

    3.3 Modelos

    A nossa análise desdobra-se em duas seções. Na primeira, examinamos o padrão de ingresso dos graduados dos cursos de Educação no emprego formal, salientando sobretudo as diferenças entre as áreas de formação na probabilidade de acessarem o emprego formal versus não estar empregado. Na segunda, estimamos a relação entre as características da formação e trajetória acadêmicas dos concluintes de cada área de formação e as chances de estar empregado em ocupações típicas de docência, em comparação com os demais grupos ocupacionais (outras típicas, não típicas de nível superior e não típicas que não requerem diploma superior). Como o nosso objetivo é captar a influência da formação dos egressos dos cursos de formação de professores sobre a sua alocação ocupacional no mercado de trabalho formal, usamos modelos adequados para o tratamento de variáveis binárias e categóricas. Optamos por utilizar modelos logísticos para a análise das chances de estar empregado e multinomiais para examinar o emprego nos diferentes grupos ocupacionais.

    Os modelos de análise foram ajustados para o teste de cada hipótese apresentada na seção anterior. Apresentamos os resultados dos modelos logísticos ou multinomiais em razões de chances para facilitar a interpretação.

    4 Resultados

    4.1 Entrada dos egressos das licenciaturas no emprego formal

    A Tabela 4 mostra os resultados do modelo geral que estima as chances de os egressos possuírem um emprego formal. Como prevê a nossa hipótese 1, os graduados de cursos de licenciaturas que são homens, negros e vêm de famílias pouco escolarizadas têm chances maiores de estarem empregados formalmente quando comparados aos seus pares que são mulheres, brancos e egressos com pais mais escolarizados. As menores chances encontradas para as mulheres podem estar associadas ao fato de que são mais propensas a continuarem estudando do que os homens (CONNOR; POLLARD, 1996CONNOR, Helen;. POLLARD, Emma. What Do Graduates Really Do?. IES Report 308, Institute for Employment Studies, University of Sussex, 1996.DUBET, François; DURU-BELLAT, Marie; VERETOUT, Antoine. As desigualdades escolares antes e depois da escola: organização escolar e influência dos diplomas. Sociologias, Porto Alegre, v. 14, n. 29, p. 22-70, jan./abr. 2012.; IESALC, 2021UNESCO IESALC. Women in higher education: has the female advantage put an end to gender inequalities?, UNESCO International Institute for Higher Education in Latin America and the Caribbean (IESALC), mar. 2021.VAILLANT, Denise. Atraer y retener buenos profesionales en la profesión docente: políticas en Latinoamérica. Revista de Educación, Espanha, v. 340, p. 117-140, maio/ago. 2006.) e a se afastarem da força de trabalho em virtude da maternidade ou outras atividades relacionadas a cuidados na família (TEICHLER, 2000TEICHLER, U. Graduate Employment and Work in Selected European Countries. European Journal of Education, v. 35, n. 2, p. 141–156, jun. 2000.).

    Tabela 4
    Modelos logísticos com as chances de emprego formal dos egressos das licenciaturas

    O resultado para o grupo de egressos brancos e, sobretudo, provenientes de famílias mais escolarizadas, que têm 25% menos chances de estarem empregados do que os seus pares sem ensino médio, pode ser em parte explicado pelo fato de que o grupo dos graduados socialmente favorecidos é aquele que tipicamente dispõe de mais recursos para adiar a entrada no mercado de trabalho, seja para dar continuidade aos estudos ou aguardar melhores oportunidades de emprego, como forma de garantir vantagens no mundo do trabalho ou evitar mobilidade descendente. Embora não disponhamos de dados que permitam asseverar o destino educacional ou ocupacional desse grupo, a nossa hipótese explicativa tem encontrado respaldo em outros contextos caracterizados por baixa atividade econômica no mercado de trabalho para graduados (REIMER; NOELKE; KUCEL, 2008REIMER, D.; NOELKE, C.; KUCEL, A. Labor market effects of field of study in comparative perspective: an analysis of 22 European Countries. International Journal of Comparative Sociology, [S. L.], v. 49, n. 4–5, p. 233–256, ago. 2008.).

    Os egressos que tiveram a experiência de trabalhar durante a graduação têm chances maiores de serem empregados que os seus pares que não trabalhavam. O aumento consistente das chances de emprego de acordo com o crescimento do desempenho em competências específicas sugere que ambas as variáveis podem ser proxies adequadas para as habilidades dos graduados para o trabalho. Uma vez que retiramos da amostra aqueles egressos que já estavam no emprego mensurado na RAIS quando da conclusão da educação superior, reforça-se a possibilidade antecipada pela nossa hipótese 1b, de que outras formas de trabalho durante a graduação importam em sinalização de maior produtividade para os empregadores, aumentando as chances de conseguirem um emprego formal.

    Os padrões encontrados variam de acordo com as áreas de estudo. A área de Matemática é aquela na qual os egressos têm, em média, mais chances de serem empregados formais, seguida de Linguagens e Pedagogia, o que é consistente com os estudos que indicam serem essas as áreas em que há maior demanda por professores (PINTO, 2014PINTO, J. M. de R. O que explica a falta de professores nas escolas brasileiras? Jornal de Políticas Educacionais, Curitiba, v. 8, n. 15, 2014.). Esse dado é reforçado pelo fato de que cerca de metade (47,2%) dos graduados de Matemática da nossa amostra estavam empregados como professores de educação básica. Além disso, a diferença observada entre os matemáticos e os demais graduados é coerente com a literatura que aponta que os empregadores são mais propensos a disputar os egressos das “áreas duras”, independentemente de que seja para cargos de docentes ou não, para as quais tende a haver falta de candidatos qualificados. Por outro lado, as áreas ocupacionalmente menos específicas oferecem aos graduados a oportunidade de acessarem uma gama maior de vagas de trabalho, não necessariamente relacionadas à área de formação (ROKSA; LEVEY, 2010ROKSA, J.; LEVEY, T. What can you do with that degree? College major and occupational status of college graduates over time. Social Forces, USA, v. 89, n. 2, p. 389–415, 1 dez. 2010.).

    Embora os padrões observados para as características socioeconômicas dos egressos sejam, em geral, reproduzidos nas diversas áreas de formação, há algumas variações importantes, mostradas na Tabela 4. A Pedagogia aparece como a única área em que os egressos brancos e amarelos têm vantagem, ainda que pequena, na probabilidade de estar empregado, em relação aos negros e indígenas. Os resultados apontam, portanto, para desigualdade racial no acesso ao emprego formal mesmo naquela área que é mais acessada pelos grupos socialmente vulneráveis. Diferentemente da nossa hipótese 1c, não encontramos maior desigualdade por origem social nas áreas menos específicas. A ausência de diferença significativa nas chances de emprego formal entre os egressos de famílias mais e menos escolarizadas na área de Matemática pode estar associada à maior seletividade nessa área, em virtude de estar ligada aos empregos com maior remuneração média.

    Conforme esperado em nossa hipótese 1d, o desempenho elevado em competências específicas no Enade entre os egressos de Matemática e Ciências da Natureza está associado a chances menores de emprego formal. A experiência do trabalho em tempo integral no fim da graduação aumenta de modo consistente as chances de emprego formal em todas as áreas de formação. E a graduação em instituições privadas aumenta as chances de emprego apenas entre os egressos de Matemática e Ciências da Natureza.

    Tabela 5 Modelos logísticos com as chances de emprego formal dos egressos das licenciaturas por área de estudo (um para cada área)
    Linguagens Matemática Ciências da Natureza Ciências Hum. & Soc. Pedagogia
    Intercepto 2.53 (0.038) *** 3.13 (0.077) *** 1.663 (0.053) *** 1.917 (0.046) *** 2.245 (0.04) ***
    Masculino 1.013 (0.019) 1.188 (0.049) *** 1.37 (0.031) *** 1.18 (0.026) *** 1.23 (0.032) ***
    Branco 0.905 (0.022) *** 0.981 (0.055) 0.931 (0.032) * 0.925 (0.031) * 1.044 (0.02) *
    Ensino Médio 0.962 (0.026) 0.927 (0.061) 0.981 (0.035) 1.002 (0.044) 0.952 (0.024) *
    Superior ou mais 0.774 (0.028) *** 0.939 (0.07) 0.749 (0.037) *** 0.758 (0.044) *** 0.807 (0.028) ***
    25-34 anos 0.814 (0.021) *** 0.996 (0.055) 1.052 (0.031) 0.866 (0.03) *** 0.669 (0.023) ***
    35-54 anos 0.594 (0.029) *** 0.697 (0.072) *** 0.831 (0.057) ** 0.481 (0.042) *** 0.414 (0.025) ***
    55 ou mais anos 0.129 (0.088) *** 0.133 (0.17) *** 0.155 (0.213) *** 0.091 (0.102) *** 0.096 (0.056) ***
    CE: 2º Quartil 1.114 (0.032) ** 1.119 (0.069) 1.029 (0.043) 0.987 (0.036) 1.135 (0.032) ***
    CE: 3º Quartil 1.176 (0.031) *** 0.97 (0.086) 0.972 (0.047) 1.051 (0.04) 1.364 (0.031) ***
    CE: 4º Quartil 1.3 (0.03) *** 0.805 (0.105) * 0.869 (0.054) * 1.013 (0.043) 1.731 (0.031) ***
    Trabalho integral 1.835 (0.03) *** 2.283 (0.068) *** 2.494 (0.044) *** 2.161 (0.041) *** 1.962 (0.025) ***
    Trabalho parcial 1.46 (0.021) *** 2.031 (0.061) *** 2.134 (0.036) *** 1.812 (0.035) *** 1.648 (0.024) ***
    Privada 1.002 (0.021) 1.291 (0.063) *** 1.219 (0.033) *** 0.963 (0.031) 0.853 (0.024) ***
    Região Norte 1.128 (0.034) *** 1.02 (0.068) 0.933 (0.051) 1.705 (0.049) *** 1.238 (0.035) ***
    Região Sudeste 1.565 (0.027) *** 1.517 (0.071) *** 1.549 (0.041) *** 2.567 (0.035) *** 2.412 (0.029) ***
    Região Sul 1.565 (0.032) *** 1.902 (0.092) *** 1.562 (0.051) *** 2.129 (0.042) *** 1.828 (0.03) ***
    Região Centro-Oeste 1.669 (0.036) *** 1.768 (0.095) *** 1.712 (0.052) *** 1.864 (0.048) *** 2.148 (0.04) ***
  • Nota: “+ p < 0.1, * p < 0.05, ** p < 0.01, *** p < 0.001”.
  • 4.2 Emprego dos egressos em ocupações típicas ou não típicas

    A Tabela 6 apresenta o modelo multinomial completo que utilizamos neste artigo para estimar as chances de os egressos estarem empregados nos diferentes tipos de ocupação, considerando a docência como categoria de referência. O modelo mostra que a graduação nas áreas de Linguagens e Ciências da Natureza está associada a um aumento (de quase 4,5 e 2,6 vezes mais, respectivamente) nas chances de estar empregado em ocupações não típicas de nível superior, em relação à área de Pedagogia. Também é digno de nota que a área de Matemática é aquela com as maiores chances de ter egressos empregados como docentes.

    Tabela 6
    Modelos multinomiais com as chances de emprego por tipo de ocupação (categoria de referência: “Típica: Docente”)

    Além da área de formação, também observamos a importância de outra dimensão qualitativa, como a dependência administrativa da IES, para as chances de acesso aos diferentes tipos de ocupação. Em particular, a conclusão de cursos de licenciatura na rede privada está associada a um aumento nas chances de estar empregado em ocupações não típicas, sobretudo naquelas que não requerem educação superior, quando comparada à graduação em IES públicas.

    Assim, considerando os resultados para área e setor, as evidências apoiam apenas parcialmente a nossa hipótese 2a. É possível que a oferta de oportunidades de trabalho mais rentáveis fora do magistério para os egressos das Ciências da Natureza, conforme apontado pela literatura, explique parcialmente esse resultado. Em relação à área de Linguagens, especulamos que o caráter pouco específico em termos profissionais dessa área permita que uma proporção relevante de egressos acesse ocupações que não sejam relacionadas ao ensino.

    Esses resultados evidenciam aspectos importantes da formação dos grupos profissionais. Nos dois casos, o grau de codificação (e de abstração) dos conhecimentos dominados por uma profissão é fator importante na delimitação de espaços no mercado de trabalho e do estabelecimento de regras para a entrada nestes empregos específicos (LARSON, 1977LARSON, Magali Sarfatti. The rise of professionalism. Berkeley: University of California Press, 1977.; ABBOTT, 1988ABBOTT, Andrew. The system of Professions: an essay on the division of expert labor. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.). Mesmo no plano das licenciaturas, o conhecimento mais abstrato e codificado da Matemática e das Ciências da Natureza parece conferir algumas vantagens aos seus detentores.

    O resultado observado em relação aos egressos da rede privada, que estariam mais afastados das carreiras docentes do que seus pares de IES públicas, pode estar associado a pelo menos dois fatores combinados: i) o patrimonialismo dominante nas IES públicas faz com que o desenho curricular dos cursos seja mais acadêmico-intelectual do que técnico-profissional; e ii) a situação socioeconômica dos egressos das licenciaturas ofertadas na rede pública, em geral com renda familiar mais baixa e menos inseridos no mercado de trabalho do que os seus pares da rede privada, impede que tenham domínio sobre as alternativas mais rentáveis de trabalho ao seu alcance. Além disso, o fato de que os cursos de licenciatura ofertados pelas IES privadas estejam quase que inteiramente concentrados em Pedagogia, sobretudo na modalidade à distância, adiciona outros contornos para o problema, sobre os quais a pesquisa ainda precisa avançar (TAGLIARI, 2020TAGLIARI, C. Dinâmicas de expansão do ensino superior público, privado lucrativo e privado sem fins lucrativos entre 2010 e 2016. In: OLIVEIRA, Antonio José Barbosa de; HONORATO, Gabriela. Desafios para o ensino superior brasileiro no contexto contemporâneo. Coleção Caderno LEPES, Rio de Janeiro, v. 3, p. 81-99, 2020.). Neste sentido, os fatores relacionados ao modelo institucional da educação superior impactam a inserção profissional dos estudantes.

    Os egressos com maior domínio de competências específicas possuem probabilidades equivalentes de estarem empregados como docentes e em ocupações não típicas de nível superior. Além disso, têm probabilidade maior de estarem ocupados em outras atividades relacionadas ao ensino ou como dirigentes de instituições de ensino, que têm tipicamente salários maiores. Esse resultado, que corrobora parcialmente a nossa hipótese 2b, está em linha com trabalhos mostrando que os estudantes que optam por lecionar tendem a ser menos proficientes academicamente (GOLDHABER; LIU, 2003GOLDHABER, Dan; LIU, Albert. Occupational choices and the academic proficiency of the teacher workforce. Developments in School Finance, Washington, DC, v. 2, p. 53–75, jan. 2003.; PODGURSKY; MONROE; WATSON, 2004PODGURSKY, Michael; MONROE, Ryan; WATSON, Donald. The academic quality of public school teachers: An analysis of entry and exit behavior. Economics of Education Review, Tennessee, EUA, v. 23, n. 5, p. 507–518, out. 2004.) e aponta problemas de pesquisa em várias dimensões, a começar pela qualidade da formação oferecida, que pode estar atendendo, por caminhos tortos, algumas das exigências do mercado.

    Assim, o sistema de educação superior tem um modelo ideal de universidade de pesquisa para a formação de elites. Nas franjas deste ideal, a formação vocacional é desvalorizada, entre elas a formação de professores. Especialmente nas universidades públicas, que oferecem uma variedade maior de licenciaturas e cujos egressos são mais direcionados à docência, os cursos de licenciatura são oferecidos à noite e acolhem pessoas de origem social bastante modesta. Estes seriam os candidatos “naturais” a buscar formação vocacional que lhes permitisse um acesso mais qualificado ao mercado de trabalho. Como não conseguem acesso ou não podem frequentar os cursos de bacharelado nas áreas escolhidas (por exemplo, Física, Química ou Biologia), estes estudantes buscam as licenciaturas. Talvez esta seja uma chave importante para a análise do sistema de educação superior brasileiro: as licenciaturas como formação vocacional em instituições de elite fortemente acadêmicas. Chave esta que também demanda um debate teórico-metodológico sobre as mensurações de conhecimento disponíveis para avaliar a contribuição das instituições no processo de formação dos professores.

    Por último, como esperado em nossa hipótese 2c, os egressos das licenciaturas que provêm de famílias socialmente favorecidas, como indica a variável de escolaridade mais elevada dos pais, têm probabilidade menor de trabalhar como docentes do que seus pares das famílias menos escolarizadas. Esse resultado indica, portanto, que, mesmo considerando os egressos de cursos menos seletivos socialmente, como são as licenciaturas, observamos disparidades sociais na inserção profissional dos graduados nas carreiras com maior retorno salarial.

    5 Considerações finais

    Uma importante agenda de discussão sobre políticas educacionais no Brasil enfatiza problemas na composição da força de trabalho docente no país, passando pela necessidade de atrair os melhores alunos para a carreira docente e de sanar deficiências de qualificação dos atuais professores da rede pública. Como forma de subsidiar esse debate, um conjunto expressivo de estudos tem analisado, de um lado, quem escolhe a profissão docente e, de outro, como se caracteriza esse grupo profissional no mundo do trabalho. Entretanto, pouco se conhece sobre o “meio do caminho”: quais são os egressos dos cursos de formação de professores que estão efetivamente entrando no mundo do trabalho formal no Brasil – em ocupações típicas, como a docência, ou não.

    Neste artigo, procuramos preencher pelo menos parte dessa lacuna, contribuindo para entender como a trajetória acadêmica e a origem social dos graduados dos cursos de licenciaturas estão associadas à inserção no emprego formal e, em particular, no emprego de docente. Em linhas gerais, podemos organizar os resultados encontrados em três grandes blocos.

    Em primeiro lugar, existem desigualdades notáveis na entrada no emprego formal por gênero, raça e, sobretudo, por nível socioeconômico. Os egressos das famílias altamente escolarizadas alcançam as melhores posições ocupacionais, como as ocupações não típicas de nível superior, que possuem os salários mais elevados. Os egressos homens e brancos também se destacam em uma área majoritariamente feminina e negra, tendo vantagens nas ocupações mais rentáveis. Esses resultados questionam, ainda que não de forma conclusiva, a tese do “poder meritocrático” da educação superior, na medida em que parece haver diferenças relevantes nos destinos que os grupos que representam a “elite” desses cursos e os demais egressos ocupam no emprego formal.

    Segundo, os resultados sugerem a importância da formação e trajetória acadêmica para a inserção profissional dos egressos das licenciaturas. Os egressos mais experientes e com maior domínio de habilidades específicas para a docência têm chances maiores de serem empregados formais e de trabalharem em ocupações típicas.

    Um terceiro conjunto de achados mostra que as diferenças qualitativas entre as áreas de formação importam para que os egressos tenham diferentes pontos de entrada no emprego formal. As áreas de Matemática e Linguagem são aquelas cujos egressos têm maiores chances de estarem empregados formalmente, sendo Matemática a única em que os graduados de origem privilegiada têm chances equivalentes às dos seus pares desfavorecidos. Essa área também é aquela com as maiores chances de egressos trabalharem em ocupações típicas de docência, situação oposta à das áreas de Ciências da Natureza e Linguagens.

    Mesmo com muitas diferenças quanto aos critérios de seleção para entrada e às formas de progressão na carreira, as normas legais e institucionais que regulam a profissão estão estreitamente ligadas à atratividade e capacidade de retenção dos professores no sistema de ensino. Estas normas se associam tanto aos conteúdos exigidos na formação dos professores quanto às competências requeridas e, em alguns casos, às formas de certificação específica (VAILLANT; MANSO 2022VAILLANT, Denise; MANSO, Jesús. Formación inicial y carrera docente en América Latina: una mirada global y regional. Ciencia y Educación, Republica Dominicana, v. 6, n. 1, p. 109–118, mar. 2022.). A indefinição de parâmetros para a carreira docente se reflete no plano da delimitação de competências para o cargo bem como no da posição relativa do grupo profissional. Como indicaram Vaillant e Manso (2022)VAILLANT, Denise; MANSO, Jesús. Formación inicial y carrera docente en América Latina: una mirada global y regional. Ciencia y Educación, Republica Dominicana, v. 6, n. 1, p. 109–118, mar. 2022., a atração e retenção de pessoal qualificado numa profissão que perdeu prestígio e status tornaram-se um problema crucial da agenda pública.

    O foco na atratividade da carreira docente e a diferenciação entre áreas de conhecimento no interior da própria profissão sinalizam a existência de problemas no fundamento social da existência deste grupo profissional. Há poucas dúvidas sobre as demandas que se podem fazer aos médicos. Entretanto, mesmo que se conheça quais são as tarefas atribuídas aos professores, persistem intensos debates sobre como formar estes profissionais e sobre os contornos, limites e o arcabouço do seu papel no sistema de ensino. Os professores fazem parte de um grupo profissional que tem dificuldades em delimitar e controlar os conhecimentos específicos do seu trabalho. O que é o trabalho propriamente docente? Há variações importantes segundo o nível no sistema de ensino e também entre áreas de estudo. Dar aulas de matemática é diferente de dar aulas de português ou biologia. O que é docência/método na aula de química e o que é química? O núcleo de cada profissão se estabelece através das jurisdições (ABBOTT, 1988ABBOTT, Andrew. The system of Professions: an essay on the division of expert labor. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.) ou áreas de conhecimento que um grupo específico controla definindo regras técnicas e sociais de pertencimento ao dito grupo. Ao contrário dos médicos, os professores não definem quais seriam os conhecimentos “pertencentes” ao grupo profissional: o debate sobre a docência como missão ou docência como técnica mostra o grau de dissenso sobre um item tão essencial na construção institucional de um grupo.

    Esta fraqueza pode se traduzir em força social, permitindo maior maleabilidade no exercício profissional e maior adaptabilidade no processo de diferenciação interno à profissão (FREIDSON, 1986FREIDSON, Eliot. Professional powers. Chicago: University of Chicago Press, 1986.). As diferentes profissões tenderiam a distinguir três tipos de posição entre os praticantes: o mais comum e básico seria o profissional técnico, responsável pela execução cotidiana das tarefas da ocupação. Uma segunda posição que se destaca seria ocupada pelos acadêmicos, responsáveis pela pesquisa, ensino e desenvolvimento da ciência/técnica específica associada ao grupo. Finalmente, na terceira posição estaria o contingente profissional que se dedica às tarefas gerenciais necessárias à prática e ao empoderamento do grupo e de suas organizações. Não é difícil perceber os contornos dessa divisão interna de tarefas de um grupo profissional, mesmo no caso dos professores.

    Justamente na posição dos técnicos podem surgir atritos/diferenciais de atratividade entre profissões mais estruturadas (matemáticos, físicos ou químicos, por exemplo) e outras menos estabelecidas, como é o caso dos professores. Estes atritos podem se traduzir em escolha pela ocupação não típica da docência, transformando a licenciatura num canal mais acessível para uma profissão mais bem colocada socialmente.

    O nosso artigo tem várias limitações. Primeiro, os dados disponíveis não contêm informações de natureza individual (e.g. motivações, aspirações, estágio docente), institucional (e.g. seletividade) e contextual (e.g. relação entre salários por área de formação e demais salários) relevantes para a análise proposta. Além disso, algumas das variáveis constantes dos dados, como a experiência de trabalho no fim da graduação, que não especifica a ocupação, condição, duração etc. do trabalho, e o próprio desempenho no componente específico do Enade, carecem de ligações claras com elementos que tipicamente importam nas seleções para o emprego, como experiência na área de formação ou habilidades práticas de docência. Terceiro, a escolha por analisar resultados na entrada dos egressos no mundo do trabalho permite apenas especular sobre variações das relações encontradas ao longo do tempo bem como sobre as trajetórias profissionais dos egressos. Quarto, embora tenhamos selecionado um conjunto de resultados extremamente relevantes para a análise da inserção profissional dos graduados, há inúmeros outros igualmente importantes (e.g. status ocupacional, satisfação laboral etc.) para pesquisas futuras sobre o tema. Por último, a estratégia metodológica utilizada não permite atribuir relações de causalidade às correlações encontradas.

    Este conjunto de observações destaca a complexidade das relações entre os diferentes grupos sociais e a organização da divisão técnica do trabalho (GRUSKY; WEEDEN, 2001GRUSKY, D. B.; WEEDEN, K. A. Decomposition without death: a research Agenda for a New Class Analysis. Acta Sociologica, [s. L.], v. 44, n. 3, p. 203–218, 1 set. 2001.). Verificamos diferenças sociais relevantes nas possibilidades de acesso e de sucesso em áreas de conhecimento distintas. E junto com a necessidade de aprofundamento conceitual, estes dados evidenciam também a existência de zonas cinzentas entre estas áreas de conhecimento, espaço de disputas entre as profissões, cujas mensuração e análise são questionáveis. Neste estudo, o uso das notas obtidas na prova de conhecimentos específicos do Enade limita a análise tanto pela incongruência entre as áreas quanto pela indefinição e baixa legitimidade das competências em cada grupo profissional (PISSAIA et al., 2018PISSAIA, Luís Felipe et al. Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE e o desenvolvimento de competências no ensino superior. Research, Society and Development, Vargem Grande Paulista, SP, v. 7, n. 2, p. 1-13, jan. 2018.).

    • 1
      Os autores consideraram como ocupações típicas para a área de formação aquelas que, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), são normalmente (ou exclusivamente) exercidas por profissionais formados nas respectivas áreas.
    • 2
      O grau de especificidade ocupacional é usualmente é medido pela proporção de graduados que trabalham em ocupações correspondentes à sua formação. Os cursos de Humanidades e Artes e grande parte das Ciências Sociais Aplicadas aparecem usualmente entre as áreas menos específicas tanto em estudos nacionais, quanto internacionais.

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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2023
    • Data do Fascículo
      2023

    Histórico

    • Recebido
      07 Dez 2022
    • Aceito
      27 Maio 2023
    • Revisado
      23 Jun 2023
    Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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