Acessibilidade / Reportar erro

Autor-criador e autor-modelo: possíveis (des)aproximações entre Mikhail Bakhtin e Umberto Eco

RESUMO

A morte do autor foi um ensaio publicado em 1967 por Roland Barthes. Dois anos depois, Michel Foucault pronunciou em uma conferência que o autor não tinha morrido: estava apenas em um incessante processo de desaparecimento. Todavia, para Mikhail Bakhtin e Umberto Eco, o autor sempre esteve e estará vivo no texto. Sobre esse aspecto, o teórico russo e o escritor italiano tinham visões semelhantes quando procuravam compreender a essência do autor a que Barthes se referia. Nas suas principais características, Mikhail Bakhtin concebera o autor-criador; já Umberto Eco elaborara o autor-modelo. Frente a essas possibilidades, o objetivo deste artigo foi examinar as diferenças e as semelhanças entre esses dois conceitos: autor-criador e autor-modelo. Ao compará-los, constatamos que são duas figuras ativas, que exercem suas forças criadoras e estratégicas no texto. Este, por sua vez, funciona como relevante fator de aproximação entre o autor-modelo e o autor-criador.

PALAVRAS-CHAVE:
Autor; Leitor; Mikhail Bakhtin; Umberto Eco

ABSTRACT

The Death of the Author was an essay published in 1967 by Roland Barthes. Two years later, Michel Foucault pronounced at a conference that the author had not died: he was only in an unceasing process of vanishing. However, for Mikhail Bakhtin and Umberto Eco, the author has always been and will always be alive in the text. On this aspect, Bakhtin and Eco had similar points of view when they sought to understand the essence of the author to whom Barthes referred. Mikhail Bakhtin had conceived of the author-creator; Umberto Eco had already elaborated the author-model. Given these possibilities, this article examines the differences and similarities between these two concepts: author-creator and author-model. When comparing them, we find that they are two active figures, who exert their creative and strategic forces in the text, and this functions as a relevant factor of approximation between these concepts.

KEYWORDS:
Author; Reader; Mikhail Bakhtin; Umberto Eco

Introdução

Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação.

Mikhail Bakhtin

O texto aí está.

Umberto Eco

Na conferência O que é um autor? proferida para a Société Française de Philosophie, em 1969, Michel Foucault proclama, com visões de oráculo, que a figura do autor sofria um processo de desaparecimento. Um fenômeno “que não cessa [e] encontra-se submetido ao bloqueio transcendental” (Foucault, 2009FOUCAULT. Michel. O que é um Autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa, 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 264-298., p. 271), responsável por apagar o autor na sua individualidade e criar a função autor, uma das especificações da função sujeito. Todavia, dois anos antes dessa conferência de Foucault, Roland Barthes já afirmava, em 1967, no seu sugestivo ensaio A morte do autor, que “o autor estava morto”.

Na percepção de Barthes, a crítica literária era quem praticava o “assassinato do autor”, não importando que, ao mesmo tempo, isso a condenasse à destruição:

[...] não é de admirar, portanto, que, historicamente, o reinado do Autor tenha sido também o do Crítico, nem tampouco que a crítica (mesmo a nova) esteja hoje abalada ao mesmo tempo que o Autor (Barthes, 2004BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64., p. 63).

Isto é, o autor morre, mas a crítica contemporânea não quer sucumbir junto com ele; e, para sobreviver, acolhe em seu lugar o leitor. Leitor esse que:

[...] jamais a crítica clássica se ocupou dele; para ela não há outro homem na literatura a não ser o que escreve. Estamos começando a não mais nos deixar engodar por essas espécies de antífrases com as quais a boa sociedade retruca soberbamente a favor daquilo que ela precisamente afasta, ignora, sufoca ou destrói; sabemos que, para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o mito: o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor (Barthes, 2004BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64., p. 64).

Vale frisar que, mesmo diante dessas considerações iniciais, o presente estudo não seguirá essa linha crítica, que acredita na morte do autor e analisa, em seu lugar, o leitor - o seu “substituto”, segundo Barthes (2004)BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64.. Tampouco defenderá o desaparecimento actu continuu do autor e o aparecimento da função autor. Pretendemos, sim, atestar a vida dessa figura escorregadia, provocadora de tantos embates acirrados e que é conceituada, qualificada e descrita de variados modos.

Em suma, o objetivo deste trabalho é encontrar as similaridades e as não similaridades entre dois conceitos de autor: o autor-criador, instituído por Mikhail Bakhtin, e o autor-modelo, concebido por Umberto Eco. Do teórico russo, recorreremos a ensaios da coletânea Estética da criação verbal (2011BAKHTIN, Mikhail. A forma espacial da personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 21-90.), a Os gêneros do discurso (2016), a O autor e a personagem na atividade estética (2023BAKHTIN, Mikhail. A relação entre o autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 45-65.) e a Notas sobre literatura cultura e ciências humanas (2017BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57-79.). Do escritor e filósofo italiano, incluiremos apontamentos alusivos às obras Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), Os limites da interpretação (2015) e Lector in fabula (2004).

Assim, analisaremos produções pontuais de ambos os teóricos, a fim de buscarmos a essência dos dois termos, para, posteriormente, fazermos as devidas aproximações, visando destacar pontos em comum e/ou possíveis desacordos.

1 Autor-criador: Mikhail Bakhtin e o autor como criador

Para Bakhtin, o autor não inexiste e sua morte não é proclamada em nenhum momento dos seus textos. Como deixa claro Paulo Bezerra,

[os] conceitos de autor primário, autor secundário e imagem de autor como imanentes à estrutura do texto literário, especialmente do romance, é a resposta de Bakhtin para a chamada crise da autoria (Bezerra, 2019BEZERRA, Paulo. O fechamento de um grande ciclo teórico. In: BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 113-133., p. 133).

Logo, quem pretende defender a morte do autor poderá se apoiar em qualquer estudioso que afirma tal ideia, menos em Bakhtin. Isso porque, ao contrário, para o teórico russo o autor é tão caro e relevante, que ele idealiza diferentes termos, a fim de abarcar a sua verdadeira essência.

Portanto, embora esses conceitos estejam todos interligados e correlacionados, para conseguirmos entender o autor-criador teremos que, antes, passear por outras conceituações bakhtinianas, indo além das que foram mencionadas por Bezerra (2019)BEZERRA, Paulo. O fechamento de um grande ciclo teórico. In: BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 113-133..

O primeiro termo a ser averiguado é a imagem de autor. Como um adendo, é relevante esclarecer que o conceito surgiu primeiramente nos trabalhos de Viktor Vinográdov (apudBezerra, 2023BEZERRA, Paulo. O autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 286-305.), sendo inicialmente refutado por Bakhtin “sob o argumento de que o autor é o criador de todas as imagens da obra, logo, não pode ser imagem” (Bezerra, 2023BEZERRA, Paulo. O autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 286-305., p. 299). Porém, depois de algum tempo, ele adota o termo “como equivalente de autor secundário” (Bezerra, 2023BEZERRA, Paulo. O autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 286-305., p. 299).

Após esta adoção o conceito de imagem do autor aparece em algumas obras do teórico russo, como na pergunta retórica “Em que medida é possível falar de ‘imagem’ de autor?” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 80), feita no capítulo “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica”, presente no livro Os gêneros do discurso (2016). Para responder sua própria indagação, Bakhtin afirma que o autor:

[encontramos] (percebemos, compreendemos, sentimos, temos a sensação dele) em qualquer obra de arte. [...] Em termos rigorosos, a imagem de autor é um contradictio in adjecto. Em verdade, a chamada imagem de autor é uma imagem de tipo especial, diferente de outras imagens da obra, mas é uma imagem e esta tem o seu autor, que a criou (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 80; itálico do autor).

Assim, o autor é sentido em tudo como um princípio representador puro, mas não como imagem representada (visível). Dessa forma, esse autor - que cria a imagem do autor - é, na teoria bakhtiniana, o autor puro (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107.), o portador do princípio puramente representativo, que desenha no texto a imagem de um ser; este, por sua vez, será reconhecido pelo leitor como autor. Porém, a sua imagem não será na integralidade desenhada dentro da obra pelo autor puro: ela será apenas “parcialmente representad[a], mostrad[a] [...] [na] obra como parte dela” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 80).

Relacionada a essas duas1 1 Citando Ferraresi, Umberto Eco também informa três fases ou estágio de autor: “Ferraresi (1987) sugeriu que entre o autor empírico e o Autor-Modelo (...) existe uma terceira figura, um tanto espectral, que ele batizou de Autor-Limiar, ou autor ‘na soleira’, a soleira entre a intenção de um dado ser humano e a intenção linguística exibida por uma estratégia textual” (Eco, 2015, p. 85). instâncias autorais, existe ainda outra figura, superior, que Bakhtin denomina de autor-homem, ou seja, o objeto específico de representação a partir do qual é mensurado e determinado:

[a] imagem do narrador na narração na pessoa do eu, a imagem da personagem central nas obras autobiográficas (autobiografias, confissões, diários, memórias, etc.), o herói autobiográfico, o herói lírico etc. (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 80; itálico do autor).

Em outras palavras, o autor-homem é o autor empírico, o ser social que sustenta, dá estrutura e rigidez à obra, mas que, ao mesmo tempo,

[...] nunca pode vir a ser uma das imagens da própria obra. Tal autor está nela como um todo, e ademais em grau superior, mas nunca pode vir a ser parte componente figurada (objetal) da obra (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 81).

Em resumo, o autor-homem é a genuína “natura creans et non creata [natureza criadora e não criada]” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 81); o autor puro é a “natura naturata et creans [natureza geradora e criadora]” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 81); e, por fim, o autor representado como imagem é a “natura creata [natureza criada]” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107., p. 81).

Compreendemos, deste modo, que o autor-homem (ou seja, o autor empírico, real) é o parâmetro, o filtro por onde passa toda a criação feita pelo autor puro. No entanto, o autor puro não pode ser confundido com o autor-homem, mesmo que dependa dele para existir no todo da obra.

Ainda nesse complexo universo de camadas criadoras e elaboradas por Bakhtin, existe a silhueta representada no texto da imagem de autor, isto é, um narrador ou personagem, que se diz o autor da história. Ou seja, uma terceira entidade, que atua como uma representação da figura autoral no interior da criação textual. Portanto, não é nem o autor-homem nem o autor puro, pois esses não entram na obra.

Frente a esse esclarecimento e distinção quanto à essência dos conceitos de autor-homem, autor puro e imagem do autor, examinamos agora duas outras definições também concebidas por Bakhtin e que foram mencionadas na citação de Paulo Bezerra (2019)BEZERRA, Paulo. O fechamento de um grande ciclo teórico. In: BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 113-133.: os conceitos de autor primário e autor secundário.

No livro Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas (2017BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57-79.), especialmente no texto “Fragmentos dos anos 1970-1971”, encontramos algumas linhas que o teórico russo dedica a elucidar o que são, para ele, as figuras de autor primário e autor secundário. O primeiro é o autor não criado, a natura creans et non creata responsável por criar a figura do autor secundário; já este é uma natura creata. Nas palavras de Mikhail Bakhtin:

[o] autor primário não pode ser imagem: ele escapa de qualquer concepção figurada. Quando tentamos imaginar em termos figurados o autor primário, nós mesmos criamos a sua imagem, isto é, nós mesmos nos tornamos autor primário dessa imagem [secundária]. O criador de imagem (isto é, o autor primário) nunca pode entrar em nenhuma imagem por ele criada (Bakhtin, 2017BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 21-56., p. 46; itálico do autor)

Dostoiévski foi o responsável por engendrar, na composição do gênero romanesco, essas duas figuras de autor primário e autor secundário. Quando escrevia Os demônios, obra que parte de um acontecimento trágico ocorrido no conturbado mundo político russo de 1869 - o assassinato de um estudante russo por líderes da organização clandestina Naródnaia Rasprava (Justiça Sumária do Povo) -, Dostoiévski se depara com um impasse: o de conciliar na estilização da obra os fatos reais tirados da imprensa russa - alusivos ao julgamento do caso e das sentenças proferidas pelo tribunal -, com a forma literária de conceber esses fatos da maneira mais verossímil possível. A solução encontrada pelo escritor russo foi elaborar um autor distante da narração e um autor imanente à estrutura textual.

Como argumenta Paulo Bezerra (2018)BEZERRA, Paulo. Um romance de tons proféticos. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 689-699., essa criação foi uma revolução no gênero romance, que já complexificava a questão da morte do autor:

[...] ao criar o esboço do que seria Os demônios, ele [Dostoiévski] vive inicialmente uma forte tensão entre o empenho de dar concretude máxima aos fatos e a concepção da forma mais verossímil possível de representá-los. E essa tensão é superada por uma solução composicional que revela uma concepção revolucionária da forma romanesca e antecipa a discussão de um tema que seria muito debatido no século XX: a problematização do estatuto [morte] do autor. Imbuído da plena consciência de que, para atingir o máximo grau de verossimilhança, terá de distanciar-se da narração, Dostoiévski assume a posição daquele que Mikhail Bakhtin chama de autor primário, isto é, aquela figura real que cria a obra, mas está fora dela, e cria também um autor secundário, ou imagem de autor (que é, de fato, um autor imanente à estrutura da obra), ou seja, alguém que integra a obra e de seu interior responde pela construção e condução da narrativa (Bezerra, 2018BEZERRA, Paulo. Um romance de tons proféticos. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 689-699., p. 692; itálico do autor, negrito nosso).

Fica evidente, dessa forma, a similitude entre autor-homem e autor primário, imagem de autor e autor secundário, ao mesmo tempo em que se reforça o aspecto já mencionado de que os conceitos bakhtinianos estão sempre em relações. Dentre essas relações, o que une a imagem do autor e o autor secundário é o fato de serem natura creata, isto é, criações da figura do autor dentro do texto. Já o que aproxima o autor-homem e o autor primário é a noção de serem pessoas físicas, situadas no mundo e que escrevem o texto. Exemplos: o Machado de Assis, que nasceu no Morro do Livramento, em 21 de junho de 1839, e escreveu Dom Casmurro; ou a ucraniana Chaya Pinkhasivna Lispector, que, ao emigrar para o Brasil, adotou o nome de Clarice Lispector e escreveu A hora da estrela. É o que também compreende Paulo Bezerra (2023BEZERRA, Paulo. O autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 286-305., p. 299) ao afirmar:

[à] luz de minha experiência de professor e estudioso de teoria literária, considero autor secundário ou imagem de autor como autor imanente à estrutura da obra, que nela permanece à margem de quaisquer abalos de estruturas e concepções romanescas, isto é, incólume, como é, por exemplo, o caso do defunto autor Brás Cubas, que sobrevive como autor mais de um século após a morte de Machado de Assis, seu criador e autor primário (Bezerra, 2023BEZERRA, Paulo. O autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 286-305., p. 299; itálico do autor).

Frente a essas reflexões, o que seria então o autor-criador no estudo literário bakhtiniano? Ele seria o autor-homem/autor primário ou a imagem do autor/autor secundário? Segundo o próprio Bakhtin, no ensaio “Por uma metodologia das ciências humanas”, da obra Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas (2017BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57-79.), o “autor-criador não pode ser criado na esfera em que ele próprio é o criador. Trata-se da natura naturans [natureza geradora] e não da natura naturata [natureza gerada, originada]” (Bakhtin, 2017BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 21-56., p. 65).

Em outras palavras, o autor-criador, como natureza geradora (natura naturans), é um elemento da obra, que, nas palavras de Bakhtin - no capítulo “O problema do autor”, da obra O autor e a personagem na atividade estética (2023BAKHTIN, Mikhail. A relação entre o autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 45-65.) -, situa-se “na fronteira do mundo que ele cria como seu criador ativo, pois, se invadir esse mundo, ele lhe destrói a estabilidade estética” (Bakhtin, 2023BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 261-284., p. 266). Logo, ele não pode ser equiparado ao autor-homem/autor primário, tampouco pode ser comparado à imagem do autor/autor secundário; pois estes se encontram ou fora da obra - como pessoas vivas situadas no mundo - ou dentro da obra, como imagem aparentes ao leitor.

Entende-se que, assim, o autor-criador é uma figura fronteiriça, que está no texto como força criadora (não como imagem visível) necessária ao leitor, “que o vê não como pessoa, não como outro homem, não como personalidade nem como determinidade do existir, mas como princípio que deve ser seguido” (Bakhtin, 2023BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 261-284., p. 283; itálico do autor).

Para desvendar mais amplamente essa figura do autor-criador, dedicamos este momento para investigar o que Bakhtin entende por criar. Palavra interligada à figura do autor e à gênese textual e que, por isso, abrange na teoria bakhtiniana um sentido diferente do de outros estudiosos. Isso porque, na perspectiva de Bakhtin, criar:

[...] não significa inventar. Toda criação é concatenada tanto por suas leis próprias quanto pelas leis do material sobre o qual ela trabalha. Toda criação é determinada por seu objeto e sua estrutura, e por isso não admite o arbítrio e, em essência, nada inventa, mas apenas descobre aquilo que é dado no próprio objeto. Pode-se chegar a uma ideia verdadeira, mas esta tem a sua lógica, daí não poder ser inventada, ou melhor, produzida do começo ao fim. Do mesmo modo não se inventa uma imagem artística, seja ela qual for, pois ela também tem a sua lógica artística, as suas leis. Quando nos propomos uma determinada tarefa, temos de nos submeter às suas leis (Bakhtin, 2018BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018., p. 73-74; itálico nosso).

Portanto, o ato de criar parte dos limites e determinações do objeto usado, pois é desvendando o que o objeto oferece que o sujeito cria “aquilo que é dado no próprio objeto” (Bakhtin, 2018BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018., p. 73). Dessa forma, não é uma ação inventiva, que se origina no/do nada ou que a nada respeita. Ao contrário, possui uma lógica interna, que obedece tanto às suas próprias leis de criação como as leis do material sobre o qual trabalha.

Como exemplos de criação, Bakhtin relembra os próprios heróis de Dostoiévski, já que, para elaborar seus personagens, o escritor russo escolhia um formato de sujeito e uma forma de representação já dadas no mundo. Desse modo, Maria Boríssovna - uma costureira que se suicidou em Moscou - fundamenta a criação da heroína (também suicida) em A dócil. Por sua vez, o estudante S. G. Nietcháiev - revolucionário que assassinou o seu colega de partido na Rússia de 1869 - respalda a figura de Piotr Stiepánovitch (personagem de Os demônios), o líder de um grupo progressista, com cincos indivíduos, que controla seus membros com perspicácia e a morte.

Assim, ligando-se à lógica interna do material selecionado, Dostoiévski não se distancia do que ele oferece, porque, ao contrário, interroga e provoca-o para criar artisticamente suas obras. Ou, como declara o escritor russo, “o próprio personagem se apresenta, expõe seus pontos de vista e como que deseja esclarecer as razões pelas quais apareceu e devia aparecer em nosso meio” (Dostoiévski, 2009DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009., p. 14).

Bakhtin também expressa o seu entendimento por criar/criação em Estética da criação verbal (2011BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 393-410.), no ensaio “O autor e a personagem”. Ele afirma nesse texto - quando expõe que o caráter criador, produtivo e de princípio do autor é uma resposta total à personagem e suas indagações -, que “toda relação de princípio é de natureza produtiva e criadora” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 4), porém, só quando se acatam certas determinidades. Isto é, ao final, o domínio da invenção e da não criação incidem no fato de que, ao afastarmos

[...] da nossa relação de princípio com as coisas e com o mundo, a determinidade do objeto resiste a nós como algo estranho e independente e começa a desagregar-se, e nós mesmos ficamos sujeitos ao domínio do aleatório (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 4).

Seguindo essa ótica de Bakhtin, o autor-criador seria o portador da ação/força, que somente cria a partir de algo já existente ou que consta no objeto, ou seja, na sua substância formadora. O autor-criador não inventa: apenas obedece às leis do seu ato de criação e do objeto manuseado para conceber o texto. Sua função é a de

[...] agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, [...] [por isso ocupa uma posição] transgrediente2 2 Conforme nota de Paulo Bezerra no capítulo “O autor e a personagem”, presente no livro Estética da criação verbal (2011), “Bakhtin usa esse termo derivado do transgredior latino, que significa, entre outras coisas, ir além, atravessar, exceder, ultrapassar, transgredir” (Bezerra, 2011, p. 7). Nesse sentido, transgrediente refere-se à relação eu-outro, essencialmente, no eu, abrindo-se para o outro e indo além das fronteiras do particularismo rumo a uma visão mais universal. Todavia, conforme citado no capítulo “Metodologia das ciências humanas”, da obra Estética da criação verbal (2011), não podemos esquecer que, ainda assim, existe no eu “um núcleo interior que não pode ser absorvido, consumido, em que sempre se conserva uma distância em relação à qual só é possível o puro desinteresse; ao abrir-se para o outro, o indivíduo sempre permanece também para si” (Bakhtin, 2011, p. 394). a cada elemento particular desta [obra] (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 10).

Em outras palavras, o autor-criador é a consciência criadora, que, na fronteira, concebe ativamente o texto e as personagens. No processo de escrita, por exemplo, quando Dostoiévski estava sentado à sua mesa, redigindo as páginas das suas diferentes obras, ele atuava como um autor-criador; já quando parava de escrever ou terminava uma obra, tornava-se autor homem/autor primário.

Um fator importante na teoria bakhtiniana para o entendimento do vocábulo criar - sendo também substancial para a compreensão do autor-criador -, é a “relação basilar esteticamente produtiva” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 12) da distância do autor (extralocalização)3 3 Para Bakhtin, no capítulo “A relação entre o autor e a personagem” de O autor e a personagem na atividade estética (2023), o autor precisa encontrar fora da obra um ponto ideal para concluir e arrematar a personagem, isto é, uma “extralocalização no espaço, no tempo, nos valores e nos sentidos, que permite abranger integralmente a personagem, [...] até fazer dela um todo” (Bakhtin, 2023, p. 56; itálico do autor). . Essa relação de distanciamento, que não é fácil4 4 Bakhtin deixa claro que a relação de distância entre o autor e a personagem é tensa. Dependendo da posição que o autor deseja assumir nessa relação e do que ele quer da personagem, a tensão aumenta e a batalha torna-se ferrenha. Enfim, “conquista-se a posição, e amiúde a luta não é de vida, mas de morte” (Bakhtin, 2011, p. 13). , garante diferentes formas de concepção e criação da personagem. Como descreve o próprio Bakhtin:

[...] a distância do autor em relação à personagem, a elisão amorosa de si mesmo do campo da vida da personagem, o desbravamento de todo o campo da vida para ela e a existência dela, a compreensão participativa e o acabamento do acontecimento da vida dela por um espectador em realidade cognoscente e eticamente alheio (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 13)

É, portanto, em razão dessa distância ética e cognoscente, que o autor

[...] vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria vida e a vida de outras pessoas - que com ele participam do acontecimento ético aberto e singular da existência -, apreende-a em um contexto axiológico inteiramente distinto (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 13).

A partir dessas palavras de Bakhtin, depreendemos que o autor, ou melhor, o autor-criador, não desaparece ou morre na/fora da obra. Pelo contrário: ele também é um acontecimento da obra - a pulsão criadora -, que, embora não possa ser criado na esfera em que ele próprio é o criador, deixa rastros dentro da sua criação, o que faz com que seja percebido nela e nunca fora dela. Como dito, em Bakhtin o autor vive plenamente: apenas assume diferentes conceituações e distâncias em relação ao texto (o universo por ele criado).

2 Autor-modelo: Umberto Eco e o autor como estratégia e hipótese

Em 1874, foi publicado o segundo romance de Machado de Assis, intitulado A mão e a luva (1962). O livro trata da história de Guiomar, uma mulher de personalidade forte, e suas diferentes relações com três homens: Jorge, Estêvão e Luís Alves.

Estêvão, na adolescência, apaixona-se por Guiomar; porém, por ele ter caráter fraco e vacilante - e por ter nascido mais para derrotas do que para vitórias -, desiste do seu amor. Depois é a vez de Jorge amá-la; entretanto, o seu amor é “pueril e lascivo”, como define o próprio Machado de Assis. Já Luís Alves, que pela convivência duradoura passa a admirar a protagonista, é um homem resoluto e ambicioso, isto é, o oposto dos outros dois. Dos três pretendentes mencionados, Guiomar escolhe o último, o único que conseguiu transpor os muros da sua forte personalidade, alcançando o seu coração.

Como podemos perceber, o mote da história é bem simples, sem muitas complexidades no enredo. Todavia, dentro dessa trama romanesca criada por Machado de Assis existe uma peculiaridade interessante, característica marcante do escritor brasileiro, que são as intervenções do autor. Este, a fim de guiar e orientar o leitor nos caminhos possíveis da leitura, insere-se na narrativa por meio de um jogo de insinuações, apontamentos e dicas. Isso fica bem patente em trechos como:

Guiomar disse isto com tanta graça e singeleza, que a madrinha não pôde deixar de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almoço chamou-as a outros cuidados, e a nós também, amigo leitor. Enquanto as três almoçam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald (Assis, 1962ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1962., p. 58; itálico nosso).

Guiomar havia já alguns minutos que não atendia à interlocutora; tinha o ouvido afiado e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguém a observava; mas é privilégio do romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem aquilo que as outras não vêem ou não podem ver. No rosto de Guiomar podemos nós ler, não só o tédio que lhe causava aquela opinião unânime contra o projeto da baronesa, mas ainda a expressão de um gênio imperioso e voluntário (Assis, 1962ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1962., p. 154; itálico nosso).

Eu disse-compadecia-e esta só palavra, desacompanhada de outra coisa, pode fazer crer ao leitor que, durante aqueles dias em que a perdemos de vista, tornara-se Guiomar uma criatura desditosa. Nada disso; a situação era a mesma, não a mesma anteriormente à carta de Jorge, mas a mesma da noite em que ela a recebeu, situação, decerto, assaz sombria e carregada para um coração que receia ser constrangido, mas não desesperada nem angustiosa (Assis, 1962ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1962., p. 163; itálico nosso).

Se quiséssemos seguir o conselho do samurai japonês Miyamoto Musashi - e partíssemos “do superficial para o profundo, procurando atingir o imo das coisas” (Musashi, 2015MUSASHI, Miyamoto. O livro dos cinco anéis. Tradução do japonês por José Yamashiro. São Paulo: Novo Século Editora, 2015., p. 51) -, confirmaríamos no romance de Assis a estratégia denominada por Umberto Eco como autor-modelo? Acreditamos que sim: as referidas passagens são uma prova disso. Porém, o nosso intento neste estudo não é este5 5 Caso queira saber mais sobre a figura do autor-narrador, em A mão e a luva, sugerimos a leitura do artigo de Alex Alves Fogal, que se chama “O narrador de Machado de Assis e a desconstrução do romance romântico em A mão e a luva”. , haja vista que recorremos ao exemplo da obra machadiana para iniciarmos a análise a respeito do conceito de autor-modelo instituído por Umberto Eco.

A exemplo da alegórica viagem ao Inferno (na obra A divina comédia), em que Dante é guiado pelo poeta romano Virgílio, ao lermos o livro Seis passeios pelos bosques da ficção (1994) fomos guiados por Umberto Eco e, nos percursos investigativos, mapeamos diferentes reflexões desenvolvidas pelo teórico e escritor italiano. Entre os assuntos estudados por Umberto Eco, detivemo-nos no conceito de autor-modelo, que o escritor define como a

[...] voz que nos fala [como leitores] afetuosamente (ou imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como leitor-modelo (Eco, 1994ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 21).

Isto é, o autor-modelo é uma estratégia textual, um “objeto linguístico que os Leitores-Modelo têm sob os olhos (o que os permite seguir em frente independentemente das intenções do autor empírico)” (Eco, 2015ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 95) e que os orienta em suas caminhadas interpretativas. Nesse sentido, sua função é a de direcionar o ato de leitura do leitor-modelo, com o objetivo de que ele tenha êxito em um determinado fio da história, até porque “[toda] história tem mais de um fio [e] todo fio é uma história de divisão” (Vuong, 2020VUONG, Ocean. Sobre a terra somos belos por um instante. Tradução Rogerio W. Galindo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020., p. 15).

Assim, compreendemos que, para Umberto Eco, o leitor é extremamente importante, pois, para o escritor italiano, sem o leitor o “conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial” (Eco, 2004ECO, Umberto. Lector in fabula. Tradução Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 45, itálico do autor) não é concretizado, o que ocasionaria a morte do texto. O leitor é, portanto, o polo oposto ao autor-modelo, que deve atualizar na leitura a(s) potencialidade(s) permitida(s) e jogar o jogo textual sugerido.

Após essa imersão pelo bosque de Umberto Eco, compreendemos que tanto o autor quanto o leitor-modelo são estratégias textuais, que, em cooperação e atualização, sobrevivem apenas no texto. Mesmo que o autor-modelo seja uma estratégia mutável, insinuando-se de diferentes maneiras, ele sempre existirá até “no mais pífio dos romances pornográficos para nos dizer que as descrições apresentadas devem constituir um estímulo para nossa imaginação e para nossas reações físicas” (Eco, 1994ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 23). Nesse cenário, cabe ao leitor-modelo o papel de captar essas mudanças.

Para detalhar e esclarecer esse ponto, retornamos novamente à obra A mão e a luva (1962), de Machado de Assis. Conforme mencionado, há nesse romance uma estratégia (autor-modelo), que “descaradamente se revela aos leitores” (Eco, 1994ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 23) para aguçar a sua curiosidade e pastorear a leitura. É o que se observa, por exemplo, na passagem:

Mas em que pensava ele, se não era em Estevão, nem nos autos, nem também, por agora, nas suas esperanças eleitorais? Paciência, leitor; sabê-lo-ás daqui a nada. Contenta-te com a notícia de que, ao cabo de vinte minutos daquela abstração, Luís Alves volveu a si (Assis, 1962ASSIS, Machado de. A mão e a luva. São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1962., p. 145; itálico nosso).

Porém, se tomarmos como segundo parâmetro Clarice Lispector, outro grande modelo na literatura brasileira, observaremos em alguns de seus textos que a estratégia (o autor-modelo) não se revela tão explicitamente: ela se torna turva no jogo narrativo.

No conto de Clarice, “Uma história de tanto amor”, incluído no livro Felicidade clandestina (1998), as ludibriações do leitor começam já nas primeiras palavras, que resgatam a atmosfera dos contos de fadas: “Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas [...]” (Lispector, 1998LISPECTOR, Clarice. Uma história de tanto amor. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 140-143., p. 140). Todavia, se - devido a essas palavras iniciais - o leitor acredita ler um conto de fadas ou uma simples narrativa infantil, com final feliz, há uma quebra de expectativa quando no mesmo período é apresentado o complemento: “[...] que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos.” (Lispector, 1998LISPECTOR, Clarice. Uma história de tanto amor. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 140-143., p. 140). Clarice, dessa forma, brinca com o leitor, e ele “não pode deixar de cair [...] [neste] truque tão catóptrico6 6 Eco usa essa palavra no sentido de jogo de luzes, reflexos que o autor-modelo promove, como um espelho a refratar vários rostos no texto, confundindo/ludibriando o leitor-modelo. ” (Eco, 1994ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 26) que o ilude.

Voltando ao estudo da essência do conceito de autor-modelo, elaborado por Umberto Eco, ainda em seus escritos o escritor italiano argumenta que existe um relevante elemento intimamente ligado à estratégia narrativa, contribuindo na maneira pela qual o autor-modelo manifesta. Segundo Umberto Eco, esse elemento importante é a hipótese. Esta adentra o texto através da cooperação estabelecida entre o autor empírico e o leitor-modelo, o leitor empírico e o autor-modelo. Dessa forma, temos de um lado

[...] o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da própria estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade de sujeito do enunciado, em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual. Mas, de outro lado, também o leitor empírico, como sujeito concreto dos atos de cooperação, deve configurar para si uma hipótese de Autor, deduzindo-a justamente dos dados de estratégia textual (Eco, 2004ECO, Umberto. Lector in fabula. Tradução Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 46).

Dentre essas hipóteses possíveis de serem formuladas, o teórico italiano acredita que aquela formulada pelo leitor empírico é a mais segura e plausível, conforme ele argumenta na passagem quando menciona que

[a] hipótese formulada pelo leitor empírico acerca do próprio Autor-Modelo parece mais garantida do que aquela que o autor empírico formula acerca do próprio Leitor-Modelo. Com efeito, o segundo deve postular algo que atualmente ainda não existe e realizá-lo como série de operações textuais; o primeiro, ao invés, deduz uma imagem-tipo de algo que se verificou anteriormente como ato de enunciação e está textualmente presente no enunciado (Eco, 2004ECO, Umberto. Lector in fabula. Tradução Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 46).

O leitor empírico tem, dessa forma, a garantia do texto, isto é, da presença textual onde é tramada a estratégia do autor. Já o autor empírico precisa deduzir a partir do nada como será o seu provável leitor-modelo. Para Gerson Tenório dos Santos:

Isto implica dizer que o autor empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, hipotetiza um certo leitor-modelo; e ao fazê-lo constrói seu texto como estratégia textual em que se constitui como um dado autor na qualidade de sujeito do enunciado. Por outro lado, também o leitor empírico dever [sic] configurar para si uma hipótese de Autor a partir das estratégias textuais. O importante para Eco é o que se coloca no espaço das estratégicas textuais em que estão hipotetizados autor e leitor-modelo e não as intenções que se podem atribuir ao autor e ao leitor empíricos. A cooperação textual é um fenômeno que se realiza entre duas estratégias discursivas e não entre sujeitos individuais (Santos, 2007SANTOS, Gerson Tenório dos. O leitor-modelo de Umberto Eco e o debate sobre os limites da interpretação. In: Kalíope, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 94-111, jul./dez., 2007. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/kaliope/article/view/3744. Acesso em 18 de julho, 2024.
https://revistas.pucsp.br/index.php/kali...
, p. 101; itálico nosso).

Resumindo as palavras de Santos e sintetizando a essência dos termos desenvolvidos por Eco, o leitor-modelo e o autor-modelo são estratégias textuais/discursivas que, pela colaboração, efetivam-se no texto, e apenas nele, pois “[entre] a inacessível intenção do autor e a discutível intenção do Leitor, está a intenção transparente do texto que contesta uma interpretação insustentável” (Eco, 2015ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 91). Portanto, independente das qualidades e dos estilos, o texto é o espaço possível para as estratégias textuais, que são o autor-modelo e o leitor-modelo.

3 De Bakhtin a Eco: as (des)semelhanças entre autor-criador e autor-modelo

Neste momento da análise, detemo-nos a (des)aproximar os conceitos de autor-criador e autor-modelo, para, desse modo, observar as relações e divergências entre as definições em foco, respectivamente, de Mikhail Bakhtin e Umberto Eco.

Primeiramente, a essência da figura do autor concebida pelo teórico russo - o autor-criador - é a de uma natura naturans (natureza geradora), ou seja, o autor é uma natureza não criada, que cria o todo da obra/do texto, e que depois será desbravado pelo leitor. Tanto é, que, ao iniciar a sua leitura, como afirma Bakhtin no capítulo “O problema do autor”, da obra O autor e a personagem na atividade estética (2023BAKHTIN, Mikhail. A relação entre o autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 45-65.), “[o] autor é dotado de autoridade e necessário para o leitor”, o qual deve vê-lo “não como pessoa, não como outro homem, não como personagem nem como determinidade do existir, mas como princípio que deve ser seguido” (Bakhtin, 2023BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 261-284., p. 283).

Nesse sentido, o autor-criador denominado por Bakhtin não é, por conseguinte, diferente do autor-modelo de Eco, pois ele também pode ser compreendido como a estratégia textual que é atualizada na leitura. Logo, tanto para Eco quanto para Bakhtin, o autor-criador e o autor-modelo são figuras que apenas vivem dentro do texto seja na forma de estilo - “Sim, claro, no final pode-se reconhecer o autor-modelo também como um estilo” (Eco, 1994ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 21) -, seja na forma de princípio/estratégia a orientar os passos interpretativos do leitor.

O leitor, ao contrário, é a figura que desaproxima um pouco os dois teóricos. Enquanto nas reflexões de Eco ela é sempre cara, tornando-se o ponto simétrico7 7 A simetria entre o autor-modelo e o leitor-modelo é assim descrita por Umberto Eco: “Por fim, há uma terceira entidade, em geral difícil de identificar e que eu chamo de autor-modelo, de modo a criar uma simetria com o leitor-modelo.” (Eco, 1994, p. 20). do autor-modelo, nos estudos de Bakhtin não encontramos uma designação que corresponda, em essência, à figura do leitor-modelo. Todavia, mesmo não desenvolvendo uma conceituação própria para o leitor (ou um termo para o designar), o teórico russo projeta-o como uma figura ativa e não passiva, sendo o responsável por seguir ativamente o princípio dado pelo autor-criador, a fim de desvendar os sentidos do texto. Conforme afirma Paulo Bezerra no posfácio “Bakhtin: remate final”, do livro Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas (2017BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57-79.),

Nas reflexões teóricas de Bakhtin sobre o romance, a extralocalização define a posição do autor-criador fora do mundo das personagens, ou melhor, estabelece realidades em tudo diferentes: no mundo das personagens não há autor nem leitor, no mundo do autor e do leitor não há personagens nem as circunstâncias que lhes marcam a vida. Esse conceito evolui na obra de Bakhtin e, em “Fragmentos dos anos 1970-1971”, nós o encontramos como distância ou distanciamento para designar a posição do leitor, que, extralocalizado e distanciado no espaço e no tempo em relação aos contextos antigos que sedimentaram as obras literárias, ou seja, de fora, no grande tempo, lê e interpreta do espaço e da posição de sua cultura as obras do passado e com elas estabelece um diálogo de culturas que amplia e atualiza o valor simbólico que elas irradiam (Bezerra, 2017BEZERRA, Paulo. Bakhtin: remate final. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 81-96., p. 92; itálico nosso)

Assim, por ser ativo nas ações de ler e interpretar - a partir de um espaço, tempo e posição cultural distante e a fim de atualizar o acontecimento da obra -, o leitor proposto por Mikhail Bakhtin assemelha-se ao de Umberto Eco. Por outro lado, o leitor-modelo também é uma figura não passiva, que busca “as intenções virtualmente contidas” (Eco, 2004ECO, Umberto. Lector in fabula. Tradução Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 46) no texto, pois é assim que ativamente projeta, hipotetiza e atualiza em cooperação com o autor-modelo as estratégias textuais.

Considerações finais

Concluímos este estudo, acreditando na aproximação entre o autor-criador, de Mikhail Bakhtin, e o autor-modelo, de Umberto Eco, mesmo quando notamos que ambos os conceitos possuem algumas nuances de diferença. Vale lembrar que as duas definições são frutos de percepções, leituras, interpretações e contextos outros, o que gerou visões específicas sobre a figura do autor. Fato é que a aproximação entre as duas figuras está, segundo compreendemos, no texto.

O autor-criador, na sua essência, é a natura naturans (natureza geradora), que, por ser “o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 10) do texto, deixa marca no interior da sua criação. Por isso, ele se encontra e deve ser buscado no interior do texto como um princípio, que deve ser seguido pelo leitor, haja vista que, “[no] interior da obra, o autor é para o leitor o conjunto dos princípios criativos que devem ser realizados” (Bakhtin, 2023BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 261-284., p. 284). Já o autor-modelo, também na sua essência, é a estratégia que depende e existe necessariamente no texto, pois é através do texto que ele será “plenamente atualizado no seu conteúdo potencial” (Eco, 2004ECO, Umberto. Lector in fabula. Tradução Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 45) pelo leitor-modelo.

Portanto, a semelhança entre os dois termos está no fato de eles dependerem e existirem no texto e somente nele. É no texto que o autor-criador - extralocalizado na sua fronteira - cria a obra artística, conclui as personagens e orienta o leitor, e, de igual modo, é no texto que o autor-modelo está como estratégia textual a ser perseguida e completada pelo leitor-modelo.

Em nossa perspectiva, também é semelhante a essência do leitor pensada pelos dois teóricos. Embora não tenhamos encontrado na natura naturans, de Bakhtin, um equivalente ao leitor-modelo, de Eco, percebemos que ambos consideram o leitor como um ser ativo, que - ao seguir os “princípios criativos que devem ser realizados” (Bakhtin, 2023BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 261-284., p. 284) - recupera, “com a máxima aproximação possível, os códigos do emitente” (Eco, 2004ECO, Umberto. Lector in fabula. Tradução Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004., p. 47). A fusão dessas duas figuras está na interpretação, que também é ativa e criadora, pois “[a] interpretação criadora continua a criação” (Bakhtin, 2017BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 21-56., p. 36) do autor, que no caso é o texto.

Assim, distanciando-se das visões pessimistas de Barthes e Foucault, os teóricos Bakhtin e Eco afirmam a existência, a permanência e a força do autor, uma vez que ele vive plenamente como autor-modelo e autor-criador: essências criadoras e estratégicas que forjam o texto nas suas possíveis interpretações. Como ambos afirmam, “[o] texto aí está” (Eco, 2015ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 93) e nele “[não] existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação” (Bakhtin, 2017BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 21-56., p. 79).

  • 1
    Citando Ferraresi, Umberto Eco também informa três fases ou estágio de autor: “Ferraresi (1987) sugeriu que entre o autor empírico e o Autor-Modelo (...) existe uma terceira figura, um tanto espectral, que ele batizou de Autor-Limiar, ou autor ‘na soleira’, a soleira entre a intenção de um dado ser humano e a intenção linguística exibida por uma estratégia textual” (Eco, 2015ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015., p. 85).
  • 2
    Conforme nota de Paulo Bezerra no capítulo “O autor e a personagem”, presente no livro Estética da criação verbal (2011BAKHTIN, Mikhail. A forma espacial da personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 21-90.), “Bakhtin usa esse termo derivado do transgredior latino, que significa, entre outras coisas, ir além, atravessar, exceder, ultrapassar, transgredir” (Bezerra, 2011, p. 7). Nesse sentido, transgrediente refere-se à relação eu-outro, essencialmente, no eu, abrindo-se para o outro e indo além das fronteiras do particularismo rumo a uma visão mais universal. Todavia, conforme citado no capítulo “Metodologia das ciências humanas”, da obra Estética da criação verbal (2011BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 393-410.), não podemos esquecer que, ainda assim, existe no eu “um núcleo interior que não pode ser absorvido, consumido, em que sempre se conserva uma distância em relação à qual só é possível o puro desinteresse; ao abrir-se para o outro, o indivíduo sempre permanece também para si” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 394).
  • 3
    Para Bakhtin, no capítulo “A relação entre o autor e a personagem” de O autor e a personagem na atividade estética (2023BAKHTIN, Mikhail. A relação entre o autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 45-65.), o autor precisa encontrar fora da obra um ponto ideal para concluir e arrematar a personagem, isto é, uma “extralocalização no espaço, no tempo, nos valores e nos sentidos, que permite abranger integralmente a personagem, [...] até fazer dela um todo” (Bakhtin, 2023BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 261-284., p. 56; itálico do autor).
  • 4
    Bakhtin deixa claro que a relação de distância entre o autor e a personagem é tensa. Dependendo da posição que o autor deseja assumir nessa relação e do que ele quer da personagem, a tensão aumenta e a batalha torna-se ferrenha. Enfim, “conquista-se a posição, e amiúde a luta não é de vida, mas de morte” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20., p. 13).
  • 5
    Caso queira saber mais sobre a figura do autor-narrador, em A mão e a luva, sugerimos a leitura do artigo de Alex Alves Fogal, que se chama “O narrador de Machado de Assis e a desconstrução do romance romântico em A mão e a luva”.
  • 6
    Eco usa essa palavra no sentido de jogo de luzes, reflexos que o autor-modelo promove, como um espelho a refratar vários rostos no texto, confundindo/ludibriando o leitor-modelo.
  • 7
    A simetria entre o autor-modelo e o leitor-modelo é assim descrita por Umberto Eco: “Por fim, há uma terceira entidade, em geral difícil de identificar e que eu chamo de autor-modelo, de modo a criar uma simetria com o leitor-modelo.” (Eco, 1994ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 20).

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

REFERÊNCIAS

  • ASSIS, Machado de. A mão e a luva São Paulo: W. M. Jackson Editores, 1962.
  • BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 3-20.
  • BAKHTIN, Mikhail. A forma espacial da personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 21-90.
  • BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 393-410.
  • BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 71-107.
  • BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 21-56.
  • BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57-79.
  • BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.
  • BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 261-284.
  • BAKHTIN, Mikhail. A relação entre o autor e a personagem. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 45-65.
  • BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64.
  • BEZERRA, Paulo. Bakhtin: remate final. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra, São Paulo: Editora 34, 2017. p. 81-96.
  • BEZERRA, Paulo. Um romance de tons proféticos. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 689-699.
  • BEZERRA, Paulo. O fechamento de um grande ciclo teórico. In: BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 113-133.
  • BEZERRA, Paulo. O autor e a personagem na atividade estética: uma obra seminal. In: BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2023. p. 286-305.
  • DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.
  • DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo Tradução, posfácio e notas de Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2017.
  • DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.
  • ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • ECO, Umberto. Lector in fabula. Tradução Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 2004.
  • ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015.
  • FOGAL, Alex Alves. O narrador de Machado de Assis e a desconstrução do romance romântico em A mão e a luva. In: ReVeLe, n.3, Agosto, 2011. Disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/revele/article/view/3916 Acesso em 07 de julho, 2024.
    » http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/revele/article/view/3916
  • FOUCAULT. Michel. O que é um Autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa, 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 264-298.
  • LISPECTOR, Clarice. Uma história de tanto amor. In: LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 140-143.
  • MUSASHI, Miyamoto. O livro dos cinco anéis Tradução do japonês por José Yamashiro. São Paulo: Novo Século Editora, 2015.
  • SANTOS, Gerson Tenório dos. O leitor-modelo de Umberto Eco e o debate sobre os limites da interpretação. In: Kalíope, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 94-111, jul./dez., 2007. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/kaliope/article/view/3744 Acesso em 18 de julho, 2024.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/kaliope/article/view/3744
  • VUONG, Ocean. Sobre a terra somos belos por um instante Tradução Rogerio W. Galindo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O manuscrito apresenta-se em conformidade com os aspectos avaliados: título adequado; objetivo claro e desenvolvimento coerente da discussão teórica em foco; demonstra conhecimento atualizado e bibliografia relevante para a confirmação das hipóteses levantadas; está adequado à linguagem científica, apresentando argumentação clara e precisa em relação aos elementos teóricos em observação (autor-modelo e autor-criador). O texto contribui com os estudos da teoria literária, pois constrói, comparativamente, relações conceituais possíveis, as quais contribuem para acessibilidade e compreensão dos referidos conceitos, bem como para despertar reflexões profundas sobre as relações entre autor-texto-leitor. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    01 Mar 2024

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O artigo é uma boa aproximação do tema, mas poderia ter aprofundado mais alguns conceitos (ficou muito dependente das leituras de Paulo Bezerra) e ter sido mais autoral nas abordagens. É preciso revisar alguns elementos de ABNT, que passaram (uma ocorrência de sobrenome de autor com maiúscula em citação, um erro de nome de editora nas referências). APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    27 Mar 2024

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2024
  • Aceito
    16 Ago 2024
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com