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Sobre as ciências humanas: diálogos entre Ernst Cassirer e Mikhail Bakhtin

RESUMO

Muitos estudos, visando analisar as raízes filosóficas das ideias do chamado “Círculo de Bakhtin”, têm mostrado algumas convergências entre o pensamento do filósofo alemão Ernst Cassirer e as ideias delineadas pelos autores do Círculo. Sendo assim, procuramos, neste artigo, comparar as teorizações de Cassirer sobre as “ciências culturais” com as reflexões tecidas por Bakhtin sobre essas mesmas ciências. Apontamos, ao longo do artigo, semelhanças e diferenças entre as discussões apresentadas pelos dois autores. Destacamos uma nítida semelhança nos modos como os autores (Cassirer e Bakhtin) abordam o objeto das ciências humanas em contraposição ao objeto das ciências naturais, a partir da ideia de “personificação” e “coisificação” (Bakhtin) e conhecimento do “outro” e conhecimento da “coisa” (Cassirer). Concluímos que essa semelhança seria decorrente da leitura que ambos os autores teriam feito das obras de Scheler, Dilthey e Rickert.

PALAVRAS-CHAVE:
Ciências humanas; Mikhail Bakhtin; Ernst Cassirer

ABSTRACT

Many studies, aiming to analyze the philosophical roots of the ideas of the so-called “Bakhtin Circle,” have shown some convergences between the thought of the German philosopher Ernst Cassirer and the ideas outlined by the Circle’s authors. Therefore, in this article, we seek to compare Cassirer’s theories about “cultural sciences” with Bakhtin’s reflections on these same sciences. Throughout the article, we point out similarities and differences in the discussions presented by the two authors. We highlight a clear similarity in the ways in which the authors (Cassirer and Bakhtin) approach the object of human sciences as opposed to the object of natural sciences, based on the idea of “personification” and “thingification” (Bakhtin) and knowledge of the “other” and knowledge of the “thing” (Cassirer). We concluded that this similarity would be due to the reading that both authors would have made of the works of Scheler, Dilthey and Rickert.

KEYWORDS:
Human sciences; Mikhail Bakhtin; Ernst Cassirer

Introdução

Muitos estudos, visando analisar as raízes filosóficas das ideias do chamado “Círculo de Bakhtin”, têm investigado convergências e influências entre o pensamento de filósofos contemporâneos de Mikhail Bakhtin, Pavel Medviédev e Valentin Volóchinov e o pensamento do Círculo. Nesse sentido, várias pesquisas (Marchezan, 2019MARCHEZAN, Renata Coelho. Bakhtin e a “Virada linguística” na filosofia. In: BRAIT, Beth; PISTORI, Maria Helena Cruz; FRANCELINO, Pedro Farias (orgs.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). São Paulo: Pontes, 2019. p. 261-291.; Faraco, 2009FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2009.; Grillo, 2017GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Marxismo e filosofia da linguagem: uma resposta à ciência da linguagem do século XIX e início do século XX. In: VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila V. C. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 7-79.; Brandist, 1997BRANDIST, Craig. Bakhtin, Cassirer, and Symbolic Forms. Radical Philosophy, v. 85, p. 20-27, 1997. Disponível em: https://www.radicalphilosophy.com/article/bakhtin-cassirer-and-symbolic-forms. Acesso em: 09 fev. 2024.
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, 2012BRANDIST, Craig. O dilema de Volóchinov: sobre as raízes filosóficas da teoria dialógica do enunciado. In: BRANDIST, Craig. Repensando o círculo de Bakhtin: novas perspectivas na história intelectual. Tradutoras Helenice Gouvea e Rosemary H. Schettini. São Paulo: Contexto, 2012. p. 35-63.; Lofts, 2000LOFTS, Steve G. Translator’s Introduction: The Historical and Systematic Context of The Logic of the Cultural Sciences. In: CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000, p. xiii-xliii., 2016) têm mostrado algumas convergências entre o pensamento do filósofo alemão Ernst Cassirer e as ideias delineadas pelos autores russos supracitados.

Lofts (2016LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 1, p 77-98, jan./abr. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/. Acesso em: 09 fev. 2024.
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), ao analisar o trabalho inicial de Mikhail Bakhtin, especificamente o ensaio Para uma filosofia do ato, argumenta que Bakhtin estava “sintonizado” com o espírito intelectual de seu tempo e com a filosofia do Século XX. Há, segundo Lofts (2016, p. 82), uma “harmonia intelectual” entre o pensamento de Bakhtin e algumas teses de Ernst Cassirer, pois ambos os autores buscam “conciliar duas posições filosóficas antitéticas dominantes no início do século XX: a filosofia transcendental de Kant, o Neokantismo e o Lebensphilosophie de Simmel, Bergson e Heidegger”. Assim, Lofts (2016), em seu artigo, procura não tanto mostrar prováveis influências que o autor alemão Ernst Cassirer exerceu sobre a filosofia de Bakhtin, mas analisar a “harmonia intelectual” entre os dois pensadores.

Adotando essa tese de uma “harmonia intelectual” entre Bakhtin e Cassirer, buscamos, neste artigo, comparar as teorizações de Cassirer sobre as “ciências culturais” com as reflexões tecidas por Bakhtin sobre essas mesmas ciências. Apontamos, ao longo deste texto, semelhanças e diferenças nas discussões apresentadas pelos dois autores.

A ciência, como se sabe, é um dos objetos de teorização de Ernst Cassirer. Sua primeira obra, Substância e função [2010]1 1 E. Cassirer, Substanzbegriff und Funktionsbegriff: Untersuchungen über die Grundfragen der Erkenntniskritik. Berlin. Verlag von Bruno Cassirer, 1910. trata dos modos como as ciências exatas (mais especificamente a Física, a Química e a Matemática) constroem seus objetos. O autor critica a “tradicional doutrina lógica do conceito” (Cassirer, 2020, p. 89) e apresenta, nessa obra, o conceito de “função”, que fundamentará seu trabalho subsequente - os três volumes de A filosofia das formas simbólicas. O último desses três volumes dedica-se à fenomenologia do conhecimento, debruçando-se sobre a constituição do objeto da Física e da Matemática.

Após a publicação do terceiro volume de A filosofia das formas simbólicas, Cassirer produz, em sua fase de exílio na Suécia, o livro The Logic of the Cultural Sciences (Cassirer, 2000)2 2 No original, em alemão: Zur Logik der Kulturwissenschaften. Para a escrita deste artigo, tivemos acesso à tradução da obra em língua inglesa. . Nessa obra, analisa a lógica das ciências culturais, evidenciando, em cinco estudos, as particularidades dos modos como essas ciências constroem seus métodos e objetos.

Bakhtin, embora não tenha se dedicado propriamente a uma análise epistemológica, traz importantes contribuições para o pensamento das ciências humanas em seus “ensaios inacabados” (referimo-nos, aqui, aos textos “Fragmentos dos anos 1970-1971”; “Por uma metodologia das ciências humanas”; “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”). Nesses ensaios, reflexões inspiradoras sobre as “ciências do espírito” são traçadas.

Neste artigo, discutiremos uma “curiosa harmonia” (para nos apropriarmos da expressão utilizada por Lofts, 2016LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 1, p 77-98, jan./abr. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/. Acesso em: 09 fev. 2024.
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) entre a forma como os autores contrapõem o objeto das ciências humanas (as “ciências culturais” ou “ciências do espírito”, segundo a terminologia da época) ao objeto das ciências naturais. Ambos os autores - Cassirer e Bakhtin - opõem a “coisificação”, própria das ciências naturais, à “personificação”, típica das ciências da cultura.

Este artigo está dividido em quatro partes, além desta introdução. No tópico “A percepção da coisa versus a percepção do outro”, trataremos das teorizações feitas por Cassirer sobre o fenômeno perceptivo, centrando-nos nas discussões do autor acerca de dois tipos distintos de experiência perceptiva: a experiência da coisa e a experiência do outro. Em seguida, no tópico “A lógica das ciências culturais”, abordaremos como Cassirer retomou as discussões sobre a experiência perceptiva na obra The Logic of the Cultural Sciences (Cassirer, 2000), a fim de fundamentar distinções nos modos como as ciências naturais e as ciências culturais constroem seu objeto de análise. No tópico subsequente, “A especificidade das ciências humanas na visão de Bakhtin”, discutiremos as reflexões tecidas por Bakhtin a respeito das ciências humanas, comparando essas reflexões com aquelas que foram feitas por Ernst Cassirer. Considerações finais são apresentadas no último tópico.

1 A percepção da coisa versus a percepção do outro

Para entendermos as diferenças que Cassirer apresenta entre as ciências naturais e as ciências humanas, devemos pontuar, inicialmente, a ênfase conferida, pelo autor, aos diferentes modos de experiência perceptiva. Com efeito, essa última - a experiência perceptiva - fundamenta conceitos centrais do autor, como o conceito de formas simbólicas em seus modos de configuração de sentidos. O mito, a linguagem e a ciência, enquanto formas simbólicas que tendem para os polos da expressão, da representação e da significação pura, são entendidas também como diferentes maneiras de construção da percepção humana.

No terceiro volume de A filosofia das formas simbólicas, o autor (Cassirer, 2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), ao justificar a análise da função expressiva, afirma que o mundo não nos é dado de antemão em classes fixas; em consequência, há diferentes modos de simbolização do mundo. O filósofo explica a diferença entre dois tipos básicos de experiência perceptiva: a experiência da coisa e a experiência do outro. Argumenta que o mundo empírico e mesmo o mundo teórico não são vivenciados “originalmente como um conjunto de corpos físicos, dotados de certos atributos e qualidades físicas” (Cassirer, 2011, p. 108). Anteriormente a esse tipo de experiência da realidade, há, segundo Cassirer, outra forma de experiência, outro modo de percepção, em que o ser das coisas não é apreendido como objeto, “mas sim como um tipo de existência de sujeitos vivos” (Cassirer, 2011, p. 108).

A “experiência da coisa” pauta-se na vivência do mundo empírico a partir da segmentação do mundo em coisas e atributos e em relações causais. A língua e a ciência são formas de simbolização que nos trazem ao estado de “coisas”. A língua é responsável por inicialmente fixar o real experienciado em coisas e atributos, por meio do ato da denominação. Este - o ato de denominar o mundo - interrompe o fluxo incessante de experiências perceptivas, “fixa” certo estado de coisas que são, então, destacadas da torrente experiencial pela recognição de caracteres constantes (Cassirer, 2001CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.). A língua nos conduz, pois, a um processo de “objetificação progressiva” (Cassirer, 2012, p. 217), um processo contínuo de fixação e estruturação da realidade empírica.

A constância - do Eu e das coisas -, isto é, a percepção dos sujeitos e dos objetos como algo uniforme, como seres reconhecíveis e destacáveis em diferentes situações experienciais, é um requisito básico da “experiência da coisa”. No volume 3 de A filosofia das formas simbólicas, Cassirer afirma (2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 133) que “[s]omente no meio da língua, a infinita, diversificada e flutuante multiformidade das experiências expressivas começa a se fixar”. A ciência, por seu turno, continua o trabalho iniciado pela língua. Em ambas as formas de simbolização - língua e ciência -, temos a atuação do logos. No entanto, a língua ainda é uma forma simbólica eivada de ambiguidade representativa, de atuação de modos expressivos e de faculdades intuitivas em suas construções lógicas. No capítulo “Língua e ciência: signos de coisas e signos de ordens”, constante do terceiro volume de A filosofia das formas simbólicas, o filósofo continua discussões, iniciadas ainda no volume 1, sobre o modo como a língua institui o processo de objetificação do mundo por meio dos “signos de coisas” (isto é, os signos linguísticos), “preparando o terreno” para um novo órgão de simbolização, representado pelos “signos de ordens” da ciência.

A percepção da coisa (conferida inicialmente pela língua e intensificada pela ciência) não é, porém, conforme argumenta Cassirer, o modo único de “viver”, de “experienciar” o real. Há, por assim dizer, uma camada anterior, um substrato primeiro de experiência do mundo. Para argumentar sobre essa possibilidade de outras formas de experiência do mundo, o filósofo (2011) cita a experiência mítica - na vivência mítica, não há propriamente essa “experiência da coisa”, uma vez que o mundo mítico não é estruturado em coisas e atributos e em relações causais. Predomina, no mundo mítico, uma fluidez das formações do ser e não uma divisão estrita em classes e gêneros. O autor (Cassirer, 2011, p. 106) argumenta que essa fluidez do mundo mítico não seria apreendida “se a percepção imediata” contivesse em sua essência uma divisão em classes. Se o mundo fosse condicionado por tal divisão estrita, o modo de experiência mítica seria fruto da alucinação ou de um estado de “loucura”.

Todavia, conforme apresenta no segundo volume da sua A filosofia das formas simbólicas (Cassirer, 2004CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Segunda parte. O pensamento mítico. Tradução Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.), o mito é um modo perfeitamente funcional e estruturado de simbolização - modo esse que não obedece, evidentemente, às leis de funcionamento da lógica da ciência natural, mas que não é, por outro lado, destituído de sua própria lógica. Ademais, o autor (Cassirer, 2011; 2003) argumenta que o mito nunca desaparece por completo, embora modificado pela ciência teórica.

Se, na percepção mítica de mundo, não há essa divisão estrita do ser em coisas e atributos, o filósofo defende haver, ao lado da percepção da coisa, outro modo perceptivo que constituiria a visão mítica. Para sustentar essa tese, cita estudos (Cassirer, 2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.) que comprovam que, sob o ponto de vista genético - seja a filogênese ou a ontogênese -, não há primeiramente uma percepção da coisa em si; outro modo de percepção prevalece nos estágios iniciais da vida: um modo de percepção em que predomina uma visão muito mais “viva” e “emocional” do mundo. O autor denomina esse modo de percepção como “percepção do outro”3 3 “Como seria possível tal experiência de sujeitos alheios, uma experiência do ‘outro’?” (CASSIRER, 2011, p. 108-109). em oposição à “percepção da coisa”.

A “percepção do outro” consiste em um modo singular de percepção que tende a conferir “vida” ao fenômeno experienciado. Observemos o trecho abaixo:

[...] o que o aprofundamento no puro fenômeno da percepção nos mostra é o seguinte: que a percepção da vida não se reduz à mera percepção de coisas, que a experiência do “outro” nunca pode ser simplesmente dissolvida na experiência da mera “coisa”, ou reduzida a ela por meio de mediações conceituais ainda mais complexas. [...] Quanto mais avançamos na reconstituição da percepção, tanto mais a forma do “outro” obtém nela a precedência sobre a forma da “coisa” [...] (Cassirer, 2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 109; destaques nossos)

O excerto acima muito nos lembra, conforme discutiremos adiante, as considerações que Bakhtin faz acerca das ciências humanas, em oposição às ciências naturais: a percepção do mundo não como coisa, mas como algo personificado - isto é, os dois limites do conhecimento, “a pura coisa morta” (Bakhtin, 2003a, p. 393), como um extremo; o conhecimento do indivíduo, “o diálogo, a interrogação, a prece” (Bakhtin, 2003, p. 394), em um segundo extremo.

Nesse segundo “extremo”, temos, segundo Bakhtin (2003aBAKHTIN, Mikhail. Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003a. p. 367-392., p. 395; destaques do autor), “o ser expressivo e falante”. Esse “ser” não pode, portanto, ser percebido como coisa, como “mera coisa muda”. Nele, sempre ressoam vozes, sentidos.

Cassirer (2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), ao abordar esses “dois extremos” da percepção - concebidos, pelo filósofo alemão, como modos perceptivos que igualmente fundamentam a apreensão do objeto das ciências naturais e das ciências humanas, conforme discutiremos em tópico posterior -, pontua, de modo muito similar ao ensaio Metodologia das ciências humanas, de Bakhtin (2003aBAKHTIN, Mikhail. Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003a. p. 367-392.), que a percepção da coisa tende a apreender o ser como algo “morto”, destituído de expressividade. A percepção do outro, por seu turno, apreende o ser como algo expressivo, algo em que, a todo momento, a vida ressoa. Em suas palavras: “Se, em certas experiências perceptivas não se revelasse um sentido expressivo, a existência para nós permaneceria muda” (Cassirer, 2011, p. 127).

Destacamos a ideia de que a percepção do outro, a percepção advinda do fenômeno puro da expressão, apreende o ser não como algo “mudo”, mas como um ser expressivo, que “fala”, isto é, um ser no qual ressoam sentidos, porque essa ideia muito nos lembra as teses bakhtinianas, sobretudo os ensaios do autor russo, que abordam a metodologia das ciências humanas (“Fragmentos dos anos 1970-1971”; “Por uma metodologia das ciências humanas”).

Os escritos de Cassirer, porém, focalizam muito mais o caráter fenomenológico da percepção, tendendo a caracterizar os dois modos básicos de apreensão da realidade - “coisificação” e “personificação” - que, em última instância, fundamentam as formas simbólicas: o mito, como uma forma simbólica que tende à expressão; a linguagem como uma forma simbólica que se baseia na “coisificação”, mas que nunca abandona, por completo, o fenômeno expressivo; a ciência (pensando-se as ciências exatas) como um modo de simbolização que tende à coisificação pura. Todavia, segundo discutiremos adiante, na obra The Logic of the Cultural Sciences, o autor (Cassirer, 2000), ao centrar-se especificamente no modo de configuração das ciências “culturais”, as “ciências do espírito”, utiliza esses dois modos de apreensão do real para caracterizar essa última ciência em oposição às ciências naturais ou exatas. E, certamente, algo muito similar faz Bakhtin em seus ensaios sobre as ciências humanas, notadamente nos ensaios Apontamentos de 1970-1971” e “Metodologia das ciências humanas” (Bakhtin, 2003a; 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107.).

Ainda na citação destacada acima, é importante ressaltar que, para Cassirer (2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), o fenômeno expressivo está na base, na “alma”, de toda percepção. Esse fenômeno expressivo é o que nos permite apreender o mundo não como mero objeto, como um “o quê”, mas, sobretudo, como um mundo de sentidos, que nos seduz ou que nos repele; que nos parece familiar ou assustador etc.

Cassirer (2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.) contrapõe-se ao empirismo, de modo geral, e à Psicologia empirista, de forma específica, que aborda a percepção humana como simples soma de qualidades dadas pelos órgãos do sentido, a partir de categorias (em sua visão) simplistas, como “associação”. O filósofo (Cassirer, 2011) cita, no terceiro volume de A filosofia das formas simbólicas, estudos de Kofka e de Bühler, para argumentar que a nossa apreensão do mundo não se dá pela soma de caracteres sensuais, em uma direção que vai do “simples para o complexo”. Cassirer (2011) utiliza esses estudos para argumentar que o caráter expressivo do fenômeno é geneticamente anterior à percepção da pura coisa em si.

As distinções entre os dois modos de experiência perceptiva - experiência da coisa e experiência do outro - feitas no volume 3 de A filosofia das formas simbólicas (Cassirer, 2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), são retomadas por Cassirer na obra The logic of the cultural sciences. Essas distinções fundamentam a análise da especificidade das ciências culturais em oposição às ciências naturais, conforme discutiremos a seguir.

2 A lógica das ciências culturais

Na obra The Logic of the Cultural Sciences, Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000., p. 38) questiona qual seria a essência das ciências culturais. Para responder a esse questionamento, afirma que devemos nos voltar para a própria percepção, com o objetivo de observarmos o seu desenvolvimento posterior. O autor, então, retoma as discussões apresentadas no volume 3 de A filosofia das formas simbólicas, acerca da dupla face da experiência perceptiva. Reforça que essa última é constituída por dois elementos, “que são intimamente fundidos, mas que não podem ser reduzidos um ao outro4 4 No original, em inglês: “It contains two elements that are intimately fused in it, but neither can be reduced to the other”. (Cassirer, 2000, p. 39) ” (Cassirer, 2000, p. 39). Trata-se da percepção da coisa ou do “isso” (“it”) e da percepção do outro, ou “percepção do você” (perception of you).

A ciência teórica constitui-se a partir da negação e mesmo da eliminação dos resquícios da “percepção do você”, considerando que, historicamente, essa forma de conhecimento teve de consolidar-se a partir da negação do mito, cujas raízes são fincadas na experiência perceptiva da expressão pura. Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000., p. 40) argumenta que a ciência constrói seu mundo substituindo as qualidades expressivas que são vivenciadas na percepção do outro5 5 Utilizamos, aqui, a expressão “percepção do outro” seguindo a tradução, para o português, do volume 3 de A filosofia das formas simbólicas (Cassirer, 2011). Na obra The Logic of the Cultural Sciences (Cassirer, 2000), em inglês, encontramos a expressão “perception of you”. - as qualidades de “confiável”, “aterrorizante”, “amigável” etc - por qualidades puramente sensíveis (como cores, tons etc.), e que mesmo essas últimas devem ser reduzidas (ou eliminadas) no posterior desenvolvimento da ciência.

O autor trata, então, do domínio do fisicalismo e do mecanicismo na ciência e na filosofia, que, além de negar completamente a percepção do outro, o colorido expressivo dos fenômenos perceptivos, reduz o objeto a uma determinação física e a um sistema de proposições. Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000., p. 41) cita Carnap, que considera ser a ciência um “sistema de proposições intersubjetivamente válidas”, para contrapor-se ao fisicalismo desse último autor, ao abordar a especificidade do objeto das ciências culturais.

Para Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.), as ciências exatas e as ciências culturais constituem seus objetos tendendo a dois polos distintos da experiência perceptiva. Nas ciências exatas, temos o polo da percepção da coisa, a partir da proposição de leis universais nos termos pensados por Carnap, e da análise do fenômeno com base na causalidade. Nas ciências culturais, por outro lado, não obstante tenhamos, evidentemente, a constituição de um objeto teórico (um “it”), devemos entender que, nesse objeto, ainda ressoa o “colorido” do fenômeno expressivo. Não se trata da “pura coisa morta” (e, aqui, tomamos a liberdade de nos apropriarmos da expressão bakhtiniana) determinada por leis causais. Os objetos culturais são constituídos não por essas leis causais, mas pelos conceitos de forma e estilo.

O objeto das ciências culturais tem uma especificidade, no sentido de que ele é um objeto físico, histórico e psicológico, sem se reduzir à Física, à História e à Psicologia. O objeto cultural é, com efeito, segundo argumenta Cassirer, uma síntese desses três aspectos.

Sobre a constituição física, Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) destaca que o objeto cultural - a língua, os objetos artísticos, como a pintura, a escultura etc. - é, evidentemente, um objeto físico, concreto. Todo objeto cultural tem seu lugar no espaço e no tempo. Mas, ao mesmo tempo em que ocupa essa posição espaço-temporal, algo “a mais” emerge dessa fisicalidade. Nas palavras do filósofo (Cassirer, 2000, p. 43): “não apenas o físico ‘existe’ e se ‘torna’, mas nesta existência e nesse se tornar algo a mais aparece”6 6 No inglês: “Not only does the physical ‘exist’ and ‘become’, but in this being and becoming something else appears”. .

É interessante observar que, ao abordar essa existência física do objeto cultural, Cassirer cita, entre outros exemplos, o mármore do David de Michelângelo, para argumentar que não é propriamente o valor do mármore em si que “entra em jogo” na constituição da escultura, mas a representação do homem. Lembramos que um exemplo similar é utilizado por Bakhtin, no ensaio O problema do conteúdo, do material e da forma” (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma: a estilística. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70.); por Medviédev (2012MEDVIÉDEV, Pável Nikolaevich. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.), em seu Método formal nos estudos literários; por Volóchinov (2013), no ensaio “Discurso na vida, discurso na arte”. É certamente improvável que os autores russos tenham formulado esse exemplo a partir do livro de Cassirer (2000), considerando a anterioridade cronológica das próprias obras citadas (Bakhtin, 2014 [1924]; Medviédev, 2012 [1928]; Volóchinov, 2013 [1926]. Destacamos, porém, essa “coincidência” nos exemplos apresentados, para ilustrar a “sintonia” entre os pensamentos, que alude a uma certa “harmonia” nos modos como os autores russos e o autor alemão se debruçam sobre a cultura, nos termos em que Lofts (2016LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 1, p 77-98, jan./abr. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/. Acesso em: 09 fev. 2024.
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) trata em seu artigo.

Ainda sobre a existência física do objeto cultural, Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) afirma que ela tem uma dupla característica: o objeto é tanto “físico”, no sentido de ocupar um lugar no espaço e se manifestar em dado tempo, quanto no sentido de representar certas atitudes físicas, que são enfatizadas. Por exemplo, uma escultura pode ter um tamanho desproporcional para engradecer o que está sendo representado; o olhar do personagem representado em uma pintura pode ser considerado intimidador ou convidativo para o contemplador. O físico, em suma, nunca é o “meramente” físico, mas sempre transcende essa pura existência física. O “algo a mais” que emerge da materialidade é, para Cassirer (2000), o valor simbólico.

Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) considera o objeto cultural (exemplificado pela pintura) como uma totalidade. Há três dimensões a serem consideradas nesse “todo”: a existência física (por exemplo, as cores na pintura), o que é objetivamente representado (a “cena” na pintura, que não se encerra propriamente nas cores utilizadas pelo artista) e a expressão pessoal do artista (o diálogo que o artista trava com o contemplador). Essas três dimensões do objeto cultural, para Cassirer (2000, p. 43), são determinantes para analisarmos os fenômenos que resultam do trabalho humano: a arte, a língua, os mitos, a religião etc.

Essas três dimensões do objeto às quais se refere Cassirer (o físico-material, o representado e a expressão autoral) lembram-nos, imediatamente, o ensaio de Bakhtin “O problema do conteúdo, do material e da forma” (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma: a estilística. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70.). Nesse ensaio, o autor russo trata, dentre outros aspectos, das três dimensões do objeto artístico: o material, o conteúdo e a forma. Concebe também o objeto artístico como uma totalidade (um “todo” sistemático), e, assim, como Cassirer (2000, 2001), reclama à filosofia da cultura o papel de analisar esse objeto em suas especificidades. Todavia, é preciso pontuar que Bakhtin (2014), nesse mesmo ensaio, apresenta um “diferencial” em relação a Cassirer - algo que consideramos, em trabalho anterior (Kemiac, 2023KEMIAC, Ludmila. Sobre a unidade da cultura: diálogos entre Cassirer, Medviédev, Volóchinov e Bakhtin. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso,18(3), 2023. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/60006. Acesso em: 09 fev. 2024.
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), como um “avanço” em relação aos estudos cassirerianos -, uma vez que Bakhtin concebe os objetos culturais não apenas em seu valor semiótico, que reduziria a arte à mera tecnicalidade, vendo-os, sobretudo, como fenômenos valorativos. Destacamos, também, que Bakhtin (2014), embora trate do “todo cultural”, seguindo sua visão da cultura como algo que não tem “fronteiras estritamente traçadas”, apresenta uma análise que se centra no domínio estético.

A análise de Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.), por outro lado, centra-se naquilo que o autor denomina como “objetos culturais” em oposição aos objetos das ciências naturais ou exatas. Por “objeto cultural”, o filósofo alemão entende tanto os produtos artísticos (a pintura, a escultura, a música etc.), quanto a língua, os mitos e a religião. A obra The Logic of the Cultural Sciences, segundo aponta Lofts (2000LOFTS, Steve G. Translator’s Introduction: The Historical and Systematic Context of The Logic of the Cultural Sciences. In: CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000, p. xiii-xliii.)7 7 Lofts (2000, p. xix) refere-se ao livro (Mein Leben mit Cassirrer) da esposa de Ernst Cassirer, Toni Cassirer, no qual essa última trata do exílio de ambos na Suécia, período em que o filósofo ter-lhe-ia mencionado que estava trabalhando no volume 4 da sua A filosofia das formas simbólicas. The Logic of the Cultural Sciences foi produzido durante esse período de exílio. Para Lofts (2000), após ter completado a análise da estrutura das ciências matemáticas - análise que se inicia na obra Substância e função - Cassirer tem sua atenção voltada para as “ciências do espírito”. é concebida como o “volume 4” de A filosofia das formas simbólicas, isto é, como uma continuação dos estudos de Cassirer sobre o domínio do simbólico, que culmina, no volume 3, com a análise da ciência. Nesse último volume (Cassirer, 2011), Cassirer debruça-se (mais especificamente na última parte do livro) sobre os modos de constituição simbólica da Física e da Matemática. The Logic of the Cultural Sciences vem, portanto, analisar os modos específicos de simbolização das ciências culturais.

Assim, ao analisar esses modos de simbolização das ciências culturais ou “humanas”, contrapondo-as aos modos de constituição das ciências naturais, Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) considera, segundo mencionamos acima, que os objetos culturais, além de terem uma existência física, não se reduzindo, porém, à mera fisicalidade, têm, também, uma natureza histórica e uma existência psicológica. Passemos às considerações do autor sobre essa historicidade do objeto.

O objeto cultural tem uma historicidade que não pode ser desconsiderada. Mas, ao mesmo tempo, a análise desse objeto não se reduz a investigações históricas em si. Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) afirma que cada ciência da cultura desenvolve conceitos de forma e estilo para constituir seu campo investigativo e definir seu objeto. Os conceitos de forma e estilo, segundo o autor, não são “nem ‘nomotéticos’, nem puramente ‘idiográficos’” (Cassirer, 2000, p. 58). Esses conceitos não são nomotéticos, à medida que não visam ao estabelecimento de uma lei universal, como a lei gravitacional, por exemplo. Ao mesmo tempo, o objeto cultural “não admite ser reduzido a considerações históricas” (Cassirer, 2000, p. 58)8 8 No inglês: “But neither do they admit of being reduced to historical considerations”. .

Para ilustrar a particularidade do objeto cultural e a constituição dos conceitos de forma e estilo nas ciências culturais, Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) cita, primeiramente, a linguística, mais especificamente os estudos de Humboldt. Wilhelm von Humboldt desenvolve o conceito de “forma interna da língua”, por meio do qual pôde agrupar as diversas línguas segundo sua estrutura. Obviamente, cada língua tem sua historicidade, seu desenvolvimento histórico. O conceito de “forma interna”, porém, “estabiliza” o campo de análise, permitindo ao pesquisador analisar o objeto a partir de considerações relativas à estrutura interna da língua.

Outro exemplo apresentado por Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.), que é mais longamente debatido e detalhado, vem da ciência da arte. O autor ilustra suas teses sobre forma e estilo a partir dos estudos de Wölfflin, que desenvolve os conceitos de estilo linear e estilo pictórico. O estilo linear e o estilo pictórico não incidem propriamente sobre a “história” da pintura, uma vez que estão presentes em diferentes tendências ao longo do tempo. Com efeito, esses dois estilos - presentes não só na pintura, mas também em outras artes como a escultura e mesmo a arquitetura - concernem a modos de “ver” o objeto, e, a partir dessa “visão”, a modos de representá-lo. Assim, no estilo linear, o artista centra seu olhar em uma forma “mais fixa” do objeto, ao passo que, no estilo pictórico, há um modo de “ver” que tende a distinguir formas em transmutação. Trata-se, nas palavras de Cassirer, de “diferentes caminhos de apreender relações espaciais, que possuem dois objetivos completamente diferentes9 9 No inglês: “They are two ways of apprehending spatial relations that pursue two completely different goals”. ” (Cassirer, 2000, p. 60).

Chama-nos a atenção, nos exemplos debatidos por Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.), o destaque conferido à ideia de “visão”, no sentido de “apreensão de mundo”. Primeiro, o conceito de forma interna da língua, de Humboldt, refere-se a um modo a partir do qual as línguas constroem visões de mundo. Já os conceitos, advindos da ciência da arte, de estilo linear e estilo pictórico, também são modos “de ver”, isto é, são formas a partir das quais o artista apreende o seu objeto, enquadrando as relações espaciais percebidas. Com efeito, se voltarmos para o início deste artigo, no qual abordamos os dois modos gerais de percepção dos fenômenos - o conhecimento da coisa versus o conhecimento do outro -, veremos que a ideia de “apreensão”, de visão de mundo, e, por extensão, de representação, é central na filosofia cassireriana, fundamentando o próprio conceito de forma simbólica, como modo específico de apreender o mundo e de simbolizá-lo.

Ao apresentar esses exemplos, Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) busca enfatizar que o objeto cultural resulta de uma história, mas a sua análise não incide no mero “contar” essa história, em simples sucessões temporais. A historicidade do objeto tende a se condensar em uma “direção” geral do olhar.

A história, ademais, não deve ser concebida como historicidade, mas como uma (re) criação, como uma vida nova - um “diálogo” entre o contexto do analista, que está imerso em seu próprio tempo, e a temporalidade inscrita no objeto -, pois a cultura é viva, à medida que ela é o meio através do qual o “eu” e o “tu” primeiramente se constituem a (cf. Cassirer, 2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000., p. 50).

Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.), ao tratar da história, afirma que esta é viva, como o é a própria cultura em si, uma vez que a história do objeto cultural não é mera existência passada - trata-se da compreensão e da ressignificação dos sentidos históricos inscritos no objeto. Em suas palavras, os monumentos que são preservados tornam-se significativos, “uma vez que começamos a ver, nesses monumentos, símbolos não apenas nos quais nós reconhecemos formas específicas de vida, mas em virtude dos quais nós somos capazes de restaurá-los para nós mesmos”10 10 No inglês: “This becomes history for us only once we begin to see in these monuments symbols not only in which we recognize specific forms of life, but by virtue of which we are able to restore them for ourselves”. . (Cassirer, 2000, p. 77).

Essa citação nos “soa” particularmente bakhtiniana, lembrando-nos a ideia do “grande tempo” (Bakhtin, 2003aBAKHTIN, Mikhail. Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003a. p. 367-392.), segundo a qual os sentidos, mesmo os do passado, sempre se renovam. Cassirer sublinha que os monumentos do passado são preservados (os escritos, as pinturas, as esculturas em bronze). Mas esses monumentos adquirem sentido apenas quando não os vemos em sua mera materialidade, em sua mera “monumentalidade”, e sim quando os vemos como símbolos e os ressignificamos para nós mesmos.

No ensaio “Por uma metodologia das ciências humanas”, Bakhtin (2017aBAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017a. p. 57-80.) afirma que não se pode mudar o aspecto material do passado. Mas o sentido pode ser modificado, sendo inacabável. Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.), assim como Bakhtin, sublinha que o aspecto material dos objetos culturais é preservado. Todavia, no momento em que consideramos não a simples matéria, mas o sentido simbólico, a cultura renasce.

Por fim, o elemento psicológico que constitui o objeto cultural (lembrando que este é físico, histórico e psicológico, sem se reduzir à Física, à História e à Psicologia - sendo uma grande “síntese” desses três aspectos) pode ser compreendido, em nossa leitura, como “posição autoral”. Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000., p. 84), ao tratar da arte, destaca o caráter criativo dessa forma simbólica, isto é, a função criativa em virtude da qual o artista distingue o essencial do não-essencial, o necessário do acidental. Não encontramos, porém, esse “essencial”, essa visão de mundo que foi recortada e representada, seguindo o método indutivo das ciências naturais. Aqui, estamos diante da intuição do grande artista - da visão de Homero, Michelângelo, Rafael, Dante, Shakespeare etc. (exemplos apresentados por Cassirer, 2000, p. 84) - que criou a imagem da Grécia antiga, da Itália renascentista, da Inglaterra e assim por diante.

Essa intuição artística, que elege traços essenciais e os seleciona, que julga, que representa algo, é resultado de uma “unidade de visão” de um tempo. Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.) distingue, nesse ponto, o modo através do qual as ciências naturais constroem seu objeto em oposição ao modo como as ciências culturais o fazem. Ambas as ciências, ao constituírem seus conceitos, buscam uma “unidade”, por meio da qual o particular é classificado pelo universal. A subordinação do particular ao universal não ocorre, porém, da mesma forma. Nas ciências naturais, há uma “unidade do ser” constituída a partir do momento em que, partindo-se do elemento empírico, o conceito supera o próprio empírico. O objeto é, assim, determinado por leis universais. Nas ciências culturais, por seu turno, prevalece uma “abstração ideacional” por meio da qual se constitui não uma unidade estrita do ser, mas uma unidade de direção, isto é, uma certa “unidade de visão” de mundo. Nas palavras de Cassirer (2000, p. 72): “Os indivíduos particulares pertencem um ao outro - não porque sejam parecidos ou se assemelhem mas porque eles cooperam em uma tarefa comum”11 11 No inglês: “The particular individuals belong together - not because they are alike or resemble each other but because they cooperate in a common task”. . É a partir dessa “unidade de direção” que se constitui, por exemplo, a imagem do “homem do Renascimento”, que, segundo sublinha Cassirer (2000), não corresponde a um ser empiricamente observável, mas a uma determinada visão, ao “espírito” de uma época.

Cassirer dialoga com seu tempo, com a visão fisicalista que então impera, tecendo críticas ao fisicalismo, que busca estudar tudo, até mesmo os objetos culturais, a partir de leis físicas. Busca, assim, mostrar a singularidade dos objetos culturais e a singularidade das ciências que se debruçam sobre esses objetos, as “ciências culturais”.

No próximo tópico, apresentaremos a visão de Bakhtin a respeito das ciências humanas.

3 A especificidade das ciências humanas na visão de Bakhtin

Nos primeiros escritos de Bakhtin (Bakhtin, 2003bBAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b. p. 3-192.; 2012BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.; 2014), encontramos reflexões iniciais do autor sobre a ciência. Em Para uma filosofia do ato responsávelBakhtin tece uma crítica não propriamente à teorização, mas ao fato de o objeto do conhecimento teórico procurar “se fazer passar como o mundo como tal” (Bakhtin, 2012, p. 50).

No ensaio “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, datado de 1924, Bakhtin apresenta uma definição do domínio cognitivo na unidade da cultura. O autor considera a cultura como um fenômeno concreto e sistemático e aborda a ideia de “valor” como algo central para definir cada um dos domínios de criação cultural (os domínios ético, estético e cognitivo). Nesse sentido, o domínio cognitivo é entendido como uma forma de apropriação/construção do real que “não aceita a avaliação ética nem a formalização estética” (Bakhtin, 2014, p. 31). Diferentemente do domínio estético, que é “benevolente” e “acolhedor” em relação aos valores preexistentes, a ciência constitui-se como um “domínio fechado”, que rejeita a avaliação preexistente e a formalização estética.

Por fim, no ensaio “O autor e a personagem na atividade estética”, o pensador russo (2003b) define os domínios ético, estético e cognitivo tomando como conceito central a “consciência” em interação. Assim, o domínio estético caracterizar-se-ia por instituir-se a partir de, no mínimo, duas consciências que não podem estar no mesmo plano valorativo, uma vez que a consciência-autor ocupa uma posição exotópica em relação à consciência-personagem. No domínio ético, por seu turno, temos consciências que se encontram no mesmo plano valorativo. O domínio cognitivo, finalmente, caracteriza-se pelo “reinado” de uma só consciência: “quando, porém, não há nenhuma personagem, nem potencial, temos um acontecimento cognitivo (um tratado, um artigo, uma conferência)” (Bakhtin, 2003bBAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b. p. 3-192., p. 20).

Nesses três ensaio iniciais supracitados, o autor busca definir o domínio cognitivo e a atividade do sujeito cognoscente em relação ao objeto cognoscível. Há de se destacar que as reflexões de Bakhtin não se centram propriamente na ciência em si, uma vez que seu objeto de estudo é a literatura (O autor e a personagem; O problema do conteúdo). Todavia, sua visão da cultura como uma totalidade concreta e sistemática, leva-o a analisar o objeto estético a partir das relações estabelecidas com os demais domínios de criação.

Em linhas gerais, podemos perceber que a ciência, nesses ensaios, é considerada como um domínio de criação cultural “fechado” em relação a outros domínios (no sentido de que não aceita os valores preexistentes) e instituída a partir de uma relação “cognoscente-cognoscível”, em que uma só consciência existe (o cognoscente). O objeto cognoscível é algo - devido à sua natureza de “objeto” - inconsciente em si.

Em ensaios posteriores (principalmente Fragmentos dos anos 1970-1971”; “Por uma metodologia das ciências humanas”; “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”), ao abordar a ciência, Bakhtin parece buscar o que denominamos, em trabalho anterior (Kemiac, 2022KEMIAC, Ludmila. Considerações sobre a ciência nos escritos de Mikhail Bakhtin. Discursividades, 11(2), 2022, e1122213. https://doi.org/10.29327/256399.11.2-9. Disponível em: https://revista.uepb.edu.br/REDISC/article/view/1383. Acesso em: 09 fev. 2024.
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), como o elemento “libertário”. Com efeito, o teórico, ao tempo em que define e analisa diferentes elementos culturais, procura, em vários de seus escritos, aquilo que “libertaria” a existência do elemento analisado. Assim, a polifonia, por exemplo, seria o elemento que libertaria o romance do reinado da consciência do autor. O riso, por seu turno, libertaria a vida dos vários autoritarismos que cerceiam a existência. As ciências humanas (enquanto “heterociência”) seriam, finalmente, o elemento que libertaria o objeto de uma existência coisificada, “muda”.

Os três últimos ensaios citados (“Fragmentos dos anos 1970-1971”; “Por uma metodologia das ciências humanas”; “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”), embora sejam textos inacabados, mostram-nos essa busca constante pelo elemento libertário da cultura (da vida, da arte e da ciência). É interessante notar, inclusive, como esses três temas - polifonia (o elemento libertário da arte), riso (libertário da vida) e ciências humanas (elemento libertário do domínio cognitivo) - perpassam os textos.

O ensaio “O texto na linguística, na filologia…”, segundo nos informa o tradutor, Paulo Bezerra, foi publicado “na coletânea Estética sloviésnovo tvórtchestva (Estética da criação verbal, Moscou, Iskusstvo, 1979)” (Bezerra, 2017, p. 7). Nessa tradução, Bezerra nos informa que aboliu a expressão “O problema do”, que constava no título da tradução de 2003. Já o ensaio “Fragmentos dos anos 1970-1971”, segundo Bezerra (2017, p. 7), foi escrito no final da vida de Bakhtin, e publicado “na coletânea Estética da criação verbal (…), com organização e notas de Serguei Botcharov”. “Por uma metodologia das ciências humanas”, conforme nos informa o tradutor, originou-se a partir de um ensaio esboçado entre fins dos anos 1930 e início de 1940.

Nas primeiras linhas de “Por uma metodologia das ciências humanas”, Bakhtin, para caracterizar as ciências humanas, centra-se em dois modos de construção do conhecimento: o conhecimento da coisa e o conhecimento do indivíduo (Bakhtin, 2017a, p. 57). A “coisa” é o objeto, impessoal, “pura coisa morta”. Aproxima-se, portanto, do objeto da ciência sob um viés positivista. O conhecimento do indivíduo, por seu turno, pressupõe “o diálogo, a interrogação, a prece” (Bakhtin, 2017a, p. 57-58). O indivíduo não é a pura coisa morta, mas algo “vivo” - trata-se de uma consciência ou de fenômenos conscientizados, de algo que não se revelaria, portanto, na linguagem fisicalista de Carnap, criticada por Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000., p. 41).

O conhecimento da coisa e o conhecimento do indivíduo são, porém, caracterizados por Bakhtin, como “limites”, isto é, como tendências do conhecimento: “A coisa morta não existe no limite, é um elemento abstrato (convencional); em certa medida, qualquer totalidade (a natureza e todas as suas manifestações relacionadas à totalidade) é pessoal” (Bakhtin, 2017a, p. 58). Também Cassirer concebe o conhecimento da coisa e o conhecimento do outro como tendências, como direções do conhecimento. Não há, para ambos os autores, uma unilateralidade na apreensão do real.

Bakhtin ressalta que, em essência, toda experiência “é pessoal” (Bakhtin, 2017aBAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017a. p. 57-80., p. 58). A pura coisa morta resulta de um trabalho de abstração que tende ao limite. Cassirer, por sua vez, considera o conhecimento do outro, que se alicerça no fenômeno da expressão, como um estrato primário do conhecimento. O conhecimento da coisa resulta em um progressivo trabalho do espírito na instauração de relações cada vez mais abstratas. O fenômeno expressivo, segundo discutimos anteriormente, nunca desaparece por completo.

As ciências humanas, para Cassirer (2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000.), conforme mencionamos no tópico anterior, resultam de uma síntese entre o conhecimento da coisa e o conhecimento do outro; têm como objeto o homem em suas manifestações culturais. Diferentemente das ciências da natureza, nas quais prevalece, no objeto, uma unidade do ser (a identidade, no limite: a = a), nas ciências humanas, o objeto caracteriza-se por uma unidade de direção, isto é, o objeto é uma síntese de certa forma de apreensão do mundo; resulta de um “espírito” de um tempo.

Bakhtin, ainda no ensaio “Por uma metodologia das ciências humanas”, afirma que “[o] objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado” (Bakhtin, 2017a, p. 59). O objeto dessas ciências, portanto, não pressupondo coincidência consigo mesmo (a = a), distancia-se do objeto das ciências naturais. Todavia, mais que o resultado de um “espírito de um tempo”, o objeto das ciências humanas tem como peculiaridade o fato de “ser” uma consciência, não ser a “pura coisa morta”, a pura coisa “muda”. Sendo uma consciência, esse objeto instaura a necessidade de diálogo: “o ser da expressão é bilateral: só se realiza na interação de duas consciências (a do eu e a do outro)” (Bakhtin, 2017a, p. 60).

O objeto das ciências humanas é, a priori, um fenômeno de consciência, porque os produtos culturais (principalmente a obra literária, objeto de estudo de Bakhtin) resultam do trabalho de assimilação da voz do outro. Essa voz, assimilada, “esquecida” (em sua origem primeira), institui um fundo dialogizante. O autor trata da constituição da voz autoral a partir da assimilação da palavra do outro. Essa palavra do outro constitui o fundo dialogizante da obra, pois, uma vez assimilada, é “ouvida” como a voz de um tempo, do povo, da “natureza”, “voz de Deus” (Bakhtin, 2017a).

Bakhtin utiliza a metáfora da música, ao afirmar que “A obra é integrada também por seu necessário contexto extratextual. É como se ela fosse envolvida pela música do contexto axiológico-entonacional, no qual é interpretada e avaliada” (Bakhtin, 2017a, p. 74). Esse contexto extratextual, resultante da palavra do outro que foi assimilada, “vibra”, ressoa na obra. Cabe ao analista, portanto, escutar as notas que ressoam na obra. Esse ato de “escuta” faz com que a análise não reduza o objeto à “pura coisa morta”, mas, ao contrário, personifique esse objeto. Personificar é, pois, entender o processo paulatino de assimilação da voz do outro.

Todavia, assim como posso personificar meu objeto, posso, também, coisificá-lo. Em Por uma metodologia das ciências humanas,Bakhtin (2017aBAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017a. p. 57-80.) afirma que a coisificação leva ao desaparecimento do sentido. Afirma, ademais, que o analista coisifica a obra quando busca explicações biográficas, sociológicas vulgares e causais, bem como quando busca “uma historicidade despersonalizada (a “história sem nomes”)” (Bakhtin, 2017a, p. 68). Observemos, portanto, que não é propriamente o objeto em si que é “coisa” ou algo “personalizado”. A princípio, o objeto das ciências exatas e naturais é a coisa em si. Mas, mesmo a obra literária, típico objeto das ciências humanas, pode ser “coisificada” a depender da atitude do analista.

Em resumo, “personificar” é mais que “ver vida” nas coisas - é conceber o outro como consciência em interação, considerando que o meio material do objeto é sempre o mesmo, mas o sentido muda. O analista deve, portanto, fazer o meio material “começar a falar” (Bakhtin, 2017bBAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b. p. 21-56., p. 71).

Bakhtin admite que a introdução de “métodos matemáticos” e outros métodos (que coisificam o objeto) “é um processo irreversível” (Bakhtin, 2017bBAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b. p. 21-56. , p. 40), mas propõe que se desenvolvam métodos específicos, como o que ele chama de “enfoque axiológico” (Bakhtin, 2017bBAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b. p. 21-56., p. 40-41): “No processo da comunicação dialógica com o objeto, este se transforma em sujeito (o outro eu)”. Propõe, assim, uma heterociência (Bakhtin, 2017bBAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017a. p. 57-80., p. 66). A heterociência trataria da interpretação dos sentidos - concebendo-se que o sentido, diferentemente do meio material, é algo muito “móvel”, pois sempre se renova. Em suas palavras: “A interpretação das estruturas simbólicas tem de entranhar-se na infinitude dos sentidos simbólicos, razão por que não pode vir a ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas” (Bakhtin, 2017a, p. 64).

Observemos que a “estrutura simbólica” a que se refere Bakhtin é o sentido, aquilo que sempre se renova, que tem sempre um “festivo retorno”. As ciências humanas trabalham com símbolos, uma vez que estudam não o meio material em sua mera fisicalidade, mas a renovação “festiva”, a reconfiguração dos sentidos. Para Cassirer, as ciências humanas trabalham com objetos que têm um valor simbólico, concebendo-se essa expressão (valor simbólico) no sentido de algo “a mais” que emerge e transcende a materialidade. O simbólico de Bakhtin, por seu turno, é o sentido, numa relação entre o dado e o novo; o que permanece e o que muda.

O autor russo delimita o caráter simbólico ao campo do “sentido”: simbólico é aquilo que tem sentido, que transcende à materialidade, que se renova ao inscrever-se na história. Assim, a ciência, em termos estritos, é insuficiente para estudar o sentido; sendo, então, necessário o estabelecimento de uma heterociência.

É interessante observar essa proposição de uma heterociência feita pelo autor. Concordamos com Faraco (2009FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2009.), no sentido de que Bakhtin defende a necessidade de criar uma outra ciência, mas não propriamente “cria” essa ciência. Faraco (2009) refere-se às proposições de Bakhtin para o estudo do enunciado. Bakhtin, na obra Problemas da poética de Dostoiévski e no ensaio Os gêneros do discurso, propõe a criação de uma “metalinguística”. Como afirma Faraco (2009), Bakhtin, assumindo a legitimidade da Linguística no estudo da sentença, do sistema sincrônico gramatical, propõe uma outra ciência, a “Metalinguística” ou translinguística para que se estude o enunciado. Analogamente, encontramos o autor russo, em seus ensaios inacabados, formulando, em linhas gerais, a proposição de uma “heterociência”, cujo objetivo seria estudar o aspecto tão “plástico” e fugidio do sentido das obras. Assim, o autor não nega a legitimidade da ciência “tradicional” - essa é necessária e tem seus métodos validados. Todavia, o texto, enquanto objeto das ciências humanas (e, sobretudo, o texto literário), tem certas especificidades que justificam a criação de uma outra ciência, de uma heterociência. Esta não conceberia o objeto como “coisa” em si, mas veria os sentidos que vibram no texto, que o transforma em uma consciência para o pesquisador - e que, assim, “liberta” o objeto de uma existência muda. A heterociência seria, portanto, o elemento “libertário” (ao lado do riso e da polifonia) a que nos referimos anteriormente.

Por fim, devemos destacar que as ciências humanas, para Bakhtin, não são homogêneas: são as ciências “do homem em sua especificidade”, não estudam a “coisa muda ou um fenômeno natural” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 77), mas, ao se constituírem, “agarram pedaços heterogêneos” da realidade. (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 87). No ensaio “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica”, Bakhtin (2016) afirma que o texto é o dado primário das disciplinas rotuladas como “ciências humanas”. Define “texto”, em sentido amplo, como “qualquer conjunto coerente de signos” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 71), e argumenta que o texto estabelece-se em dois polos. No primeiro polo, temos o sistema sígnico que constitui o texto (considerando que o texto pode ser verbal, pictórico, “musical”, isto é, ser constituído por diferentes materialidades sígnicas), “tudo o que é repetido e reproduzido” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 74). No segundo polo, temos o texto como enunciado, isto é, o texto como algo singular, irrepetível. O autor (2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107.) afirma que, entre esses dois polos - o sistema sígnico e o enunciado -, dispõem-se as diferentes disciplinas humanísticas. As disciplinas que constituem as ciências humanas, em suas palavras: “perambulam em diferentes direções, agarram pedaços heterogêneos da natureza, da vida social, do psiquismo, da história, e os unificam por vínculos ora causais, ora de sentido, misturam constatações com juízos de valor” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 87).

Na visão de Bakhtin, as ciências humanas, embora heterogêneas, têm em comum o fato de o seu objeto ser, necessariamente, um “dado semiótico”, isto é, um texto. Afirma assim que, ao estudarmos o homem, “procuramos e encontramos signos em toda parte” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 87). A diferença geral entre as ciências humanas e as ciências naturais residiria nesse caráter semiótico do objeto. Em dado momento do ensaio “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”, o autor afirma: “Se por trás do texto não há uma linguagem, este já não é um texto mas um fenômeno das ciências naturais (não embasado em signo)” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 74).

Encontramos, nesse ponto, uma divergência entre o pensamento de Bakhtin e o pensamento de Cassirer. Para esse último autor (Cassirer), toda ciência necessariamente tem um caráter simbólico, “embasado em signo” (para nos apropriarmos da expressão utilizada por Bakhtin). Cassirer, no primeiro volume da A filosofia das formas simbólicas, ao construir suas teses sobre as formas simbólicas como diferentes modos de objetivação, afirma que a ciência física e matemática foram as primeiras que tiveram consciência do caráter simbólico de seus objetos e instrumentos. No ensaio Critical Idealism as a Philosophy of Culture (Cassirer, 1979), argumenta que o desenvolvimento da ciência natural, no século XX, evidencia que essa forma de conhecimento trabalha com dados simbólicos, uma vez que conceitos básicos da física, como o conceito de “matéria”, não se mantém uniforme.

Para Cassirer, a ciência (assim como todas as demais formas simbólicas) obrigatoriamente constitui-se a partir de um sistema de signos, não podendo ser concebida fora dessa expressão “semiótica”. Bakhtin, por sua vez, segundo afirma em diferentes momentos do ensaio “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”, concebe que apenas às ciências humanas é dado esse objeto “semiótico”. A especificidade de cada ciência rotulada como “humanística” residiria nos modos como ela dispõe seu objeto ao longo dos dois polos do texto; como as ciências humanísticas recortam o real (isto é, se tendem o seu objeto mais para o polo da pura expressão semiótica ou para o polo do enunciado).

Destacamos, porém, que a “grande questão” para Bakhtin, não está em simplesmente analisar o texto como “dado semiótico”, como “sistema de signos”: a questão de que se ocupa o autor é o estudo do texto como enunciado, como elemento irrepetível, singular, no qual se expressa um autor e que só pode ser entendido na cadeia de textos, ou seja, na interação. Assim, o filósofo russo sublinha: “O espírito (o meu e o do outro) não pode ser dado como coisa (objeto imediato das ciências naturais) mas apenas na expressão semiótica, na realização em texto tanto para mim quanto para o outro” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 75). Destaca, ademais, que o segundo polo do texto está “indissoluvelmente ligado ao elemento da autoria” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107., p. 75), sendo, pois, a expressão de uma visão de mundo singular com a qual o pesquisador entra em diálogo.

Considerações finais

Este artigo propôs-se a comparar as teorizações de Cassirer sobre as ciências humanas (ou “ciências culturais”) com as reflexões tecidas por Bakhtin sobre essas mesmas ciências. Apontamos, ao longo desta pesquisa, semelhanças e diferenças nas discussões apresentadas pelos dois autores.

Destaca-se uma nítida semelhança nos modos como os autores (Cassirer e Bakhtin) abordam o objeto das ciências humanas em contraposição ao objeto das ciências naturais, a partir da ideia de “personificação” e “coisificação” (Bakhtin) e conhecimento do “outro” ou do “você” (“you”) e conhecimento da “coisa” (“it”) (Cassirer, 2000). Acreditamos que a fonte dessa teorização não residiria, porém, em uma provável influência das ideias cassirerianas sobre os escritos de Bakhtin, mas na leitura que ambos os autores teriam feito das obras de Scheler, Dilthey e Rickert. Com efeito, Scheler é longamente resenhado no volume 3 de A filosofia das formas simbólicas (cf. Capítulo II. O fenômeno básico da expressão como fator básico da consciência perceptiva), sendo seu “idealismo psicológico” criticado por Cassirer. Bakhtin também cita, em alguns momentos, Scheler, em seus ensaios inacabados (“Por uma metodologia das ciências humanas”, “Fragmentos de 1970-1971”). Azevedo Júnior (2022)AZEVEDO JÚNIOR, Ivânio. Ernst Cassirer e a objetividade das ciências culturais. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, v. 44, e66947, 2022. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/view/66947. Acesso em: 09 fev. 2024.
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assinala que, antes da publicação da obra de Cassirer (2000) sobre a lógica das ciências culturais, já tínhamos textos de referência sobre a problemática da identidade metodológica dessas ciências. Dilthey e Rickert são autores de referência para Cassirer. A escola de Baden, a qual se filia Heinrich Rickert, fornecera valiosas discussões sobre a questão. Esses mesmos filósofos (Dilthey, Rickert) são também citados nos ensaios inacabados de Bakhtin. Logo, as aproximações que podem ser traçadas entre as considerações de Cassirer e Bakhtin sobre as ciências humanas resultariam de várias leituras em comum e da “convergência” de propósitos de que nos fala Lofts (2016LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 1, p 77-98, jan./abr. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/. Acesso em: 09 fev. 2024.
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) em seu artigo.

Ressaltamos, por fim, o diálogo a partir do qual Cassirer e Bakhtin constroem suas ideias. Ao formular suas teses sobre a especificidade das ciências do espírito, Cassirer debate com o fisicalismo que impera em sua época de produção. Bakhtin, por sua vez, tendo a literatura como seu principal objeto de análise, debate com o Formalismo, de forte influência positivista, que propõe o estudo do objeto literário a partir de postulados da Linguística.

REFERÊNCIAS

  • AZEVEDO JÚNIOR, Ivânio. Ernst Cassirer e a objetividade das ciências culturais. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, v. 44, e66947, 2022. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/view/66947 Acesso em: 09 fev. 2024.
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  • BAKHTIN, Mikhail. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b. p. 21-56.
  • BAKHTIN, Mikhail. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 71-107.
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  • MEDVIÉDEV, Pável Nikolaevich. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.
  • VOLOCHÍNOV, Valentin Nikoláievitch. Palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao problema da poética sociológica (1926). In: VOLOCHÍNOV, Valentin Nikoláievitch. A construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tradução e notas: João Wanderley Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013, p. 71-100.
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    E. Cassirer, Substanzbegriff und Funktionsbegriff: Untersuchungen über die Grundfragen der Erkenntniskritik. Berlin. Verlag von Bruno Cassirer, 1910.
  • 2
    No original, em alemão: Zur Logik der Kulturwissenschaften. Para a escrita deste artigo, tivemos acesso à tradução da obra em língua inglesa.
  • 3
    “Como seria possível tal experiência de sujeitos alheios, uma experiência do ‘outro’?” (CASSIRER, 2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 108-109).
  • 4
    No original, em inglês: “It contains two elements that are intimately fused in it, but neither can be reduced to the other”. (Cassirer, 2000CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000., p. 39)
  • 5
    Utilizamos, aqui, a expressão “percepção do outro” seguindo a tradução, para o português, do volume 3 de A filosofia das formas simbólicas (Cassirer, 2011CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.). Na obra The Logic of the Cultural Sciences (Cassirer, 2000), em inglês, encontramos a expressão “perception of you”.
  • 6
    No inglês: “Not only does the physical ‘exist’ and ‘become’, but in this being and becoming something else appears”.
  • 7
    Lofts (2000LOFTS, Steve G. Translator’s Introduction: The Historical and Systematic Context of The Logic of the Cultural Sciences. In: CASSIRER, Ernst. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. Translated by S. G. Lofts. New Haven and London: Yale University Press, 2000, p. xiii-xliii., p. xix) refere-se ao livro (Mein Leben mit Cassirrer) da esposa de Ernst Cassirer, Toni Cassirer, no qual essa última trata do exílio de ambos na Suécia, período em que o filósofo ter-lhe-ia mencionado que estava trabalhando no volume 4 da sua A filosofia das formas simbólicas. The Logic of the Cultural Sciences foi produzido durante esse período de exílio. Para Lofts (2000), após ter completado a análise da estrutura das ciências matemáticas - análise que se inicia na obra Substância e função - Cassirer tem sua atenção voltada para as “ciências do espírito”.
  • 8
    No inglês: “But neither do they admit of being reduced to historical considerations”.
  • 9
    No inglês: “They are two ways of apprehending spatial relations that pursue two completely different goals”.
  • 10
    No inglês: “This becomes history for us only once we begin to see in these monuments symbols not only in which we recognize specific forms of life, but by virtue of which we are able to restore them for ourselves”.
  • 11
    No inglês: “The particular individuals belong together - not because they are alike or resemble each other but because they cooperate in a common task”.

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O artigo apresenta metodologia adequada, referências bibliográficas atualizadas e conteúdo de pesquisa relevante. O modo como se explora e descreve a proposta sobre a harmonia entre Cassirer é Bakhtin é uma contribuição significativa para a leitura dos textos do autor russo. Por todos esses motivos meu parecer é favorável à publicação. Apenas aponto a necessidade de corrigir algumas palavras, as quais listei em outro espaço. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    07 Fev 2024

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2023
  • Aceito
    02 Mar 2024
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