Resumos
O presente artigo busca apresentar relações entre as formulações do Círculo de Bakhtin e os debates contemporâneos que ocorrem no âmbito da chamada Linguística Aplicada (LA). Para tanto, se fará um breve panorama histórico da LA, serão apresentadas concepções basilares do pensamento do Círculo de Bakhtin e serão construídos possíveis diálogos entre as formulações dos pensadores russos com as questões centrais do debate contemporâneo em LA.
Linguística Aplicada; Círculo de Bakhtin; Vozes; Interdisciplinaridade; Metalinguística
This article aims at presenting the relations between the theoretical formulations of the Bakhtin Circle and the current discussion on the scope of the so called Applied Linguistics (AL). In order to do that, we will briefly outline the history of AL, present the main conceptions of the Bakhtin Circle's thought, and build possible dialogues between the theoretical formulations of the Russian thinkers and the main issues of the current debate in Applied Linguistics.
Applied Linguistics; The Bakhtin Circle; Voices; Interdisciplinarity; Metalinguistics
ARTIGOS
O Círculo de Bakhtin e a Linguística Aplicada
Newton Duarte MolonI; Rodolfo ViannaII
IProfessor da Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, São Paulo, Brasil; ndmolon@yahoo.com.br
IIDoutorando da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, São Paulo, São Paulo, Brasil; CNPq; rodolfovianna@yahoo.com.br
RESUMO
O presente artigo busca apresentar relações entre as formulações do Círculo de Bakhtin e os debates contemporâneos que ocorrem no âmbito da chamada Linguística Aplicada (LA). Para tanto, se fará um breve panorama histórico da LA, serão apresentadas concepções basilares do pensamento do Círculo de Bakhtin e serão construídos possíveis diálogos entre as formulações dos pensadores russos com as questões centrais do debate contemporâneo em LA.
Palavras-chave: Linguística Aplicada; Círculo de Bakhtin; Vozes; Interdisciplinaridade; Metalinguística
ABSTRACT
This article aims at presenting the relations between the theoretical formulations of the Bakhtin Circle and the current discussion on the scope of the so called Applied Linguistics (AL). In order to do that, we will briefly outline the history of AL, present the main conceptions of the Bakhtin Circle's thought, and build possible dialogues between the theoretical formulations of the Russian thinkers and the main issues of the current debate in Applied Linguistics.
Keywords: Applied Linguistics; The Bakhtin Circle; Voices; Interdisciplinarity; Metalinguistics
Introdução
O presente artigo busca apresentar relações entre as formulações do Círculo de Bakhtin e os debates contemporâneos que ocorrem no âmbito da chamada Linguística Aplicada. Para tanto, e de forma despretensiosa, é necessário inicialmente montar um breve panorama histórico da evolução da Linguística Aplicada (LA, sigla amplamente utilizada para se referir à Linguística Aplicada), para que, ao analisar esse trajeto, seja possível mapear as questões centrais debatidas e o surgimento de alguns importantes nós teóricos para a área.
Esse breve levantamento não pretende ser um resumo histórico da LA, mas sim a compreensão do seu surgimento e seu posterior desenvolvimento enquanto área do conhecimento, para que, a partir dele, se possa compreender quais são seus objetivos teóricos e práticos nos dias atuais e, assim, criar pontes com o pensamento do Círculo de Bakhtin.
Em um segundo momento, serão apresentadas algumas formulações basilares do Círculo de Bakhtin, que, também não querendo esgotar toda a teoria presente em suas obras, servirão de pilares dos quais partirão as conexões a serem feitas com a LA, seguindo o objetivo do presente artigo. Esses pilares são: a interação verbal, o enunciado concreto, o signo ideológico e o dialogismo.
Nas terceira e quarta partes deste estudo serão demonstradas as articulações possíveis entre os dois arcabouços teórico-metodológicos aqui evocados. Partindo de questões levantadas por linguistas aplicados, o intuito será instaurar o diálogo entre eles por meio das formulações de vozes e posicionamento, assim como da metodologia de estudo do discurso denominada de metalinguística por Bakhtin.
1 Breve panorama da Linguística Aplicada
A Linguística Aplicada em seus primórdios pode ser entendida como a aplicação da Linguística. Longe de uma mera inversão retórica, essa constatação reflete os caminhos iniciais que solidificaram a disciplina. E é no processo de se afastar dessa compreensão de mera aplicação que se encontra o percurso desenvolvido por linguistas aplicados até a atual caracterização da LA.
A Linguística Aplicada começou seu desenvolvimento no interior da Linguística, numa relação de dependência comum e natural entre uma ciência teórica em expansão e sua aplicação incipiente (KLEIMAN, 1992). Essa aplicação caracterizava-se, num primeiro momento, pelas tentativas de conjugação dos conhecimentos advindos da Linguística aos estudos e práticas do ensino/aprendizagem de língua estrangeira. Rajagopalan é enfático ao relacionar esse impulso inicial que caracterizou a Linguística Aplicada aos esforços de guerra do governo estadunidense entre meados da década de 40 e início da década de 60 do século XX: "além da demanda acentuada de professores de língua estrangeira para ministrarem cursos-relâmpagos a milhares de soldados designados para servir em lugares longínquos, os linguistas foram convocados a se dedicar a projetos de pesquisa relacionados aos esforços bélicos daquele país" (RAJAGOPALAN, 2008, p.151). Essa demanda representou aportes financeiros consideráveis para o desenvolvimento da área.
A relação entre Linguística Aplicada com ensino/aprendizagem de língua estrangeira marcou e continua marcando significativamente a concepção que se tem dessa área de conhecimento, por mais que tenha deixado de ser o seu único interesse a partir da década de 90 do século XX. Celani (1992) aponta três concepções epistemológicas distintas, porém não sucessivas, na história do desenvolvimento da Linguística Aplicada: a da Linguística Aplicada entendida como ensino/aprendizagem de línguas; a da Linguística Aplicada entendida como consumo, e não como produção de teorias, pela qual a LA "seria um medidor entre descrições teóricas e atividades práticas diversas" (CELANI, 1992, p.18); e, por fim, a da Linguística Aplicada entendida como área interdisciplinar, pela qual a LA é tomada como "área autônoma que constrói seus próprios princípios a partir da experimentação e de modificações na solução de problemas", sendo ela o "ponto, então, onde o estudo da linguagem se intersecciona com outras disciplinas" (CELANI, 1992, p.19).
Se a Linguística Aplicada surge pela demanda de aplicação das teorias provenientes da Linguística tradicional em processos de ensino e aprendizagem de língua estrangeira, é dessa mesma aplicação que surgirão os primeiros nós teóricos com os quais a LA se confrontará e para os quais a Linguística tradicional em nada, ou em muito pouco, ajudará a desatá-los. Como afirma Angela Kleiman (1992), a mudança do objeto de estudo das línguas a serem ensinadas para os processos de ensino e aprendizagem dessas línguas ampliou o campo de pesquisa da Linguística Aplicada e contribuiu para a multidisciplinaridade da área, ou, segundo Serrani (1990), para a transdisciplinaridade da mesma.
Fatores antes desconsiderados pela Linguística ganham relevo nas investigações científicas quando o foco de estudo passa a ser o processo de ensino e aprendizagem. "Uma teoria linguística pode fornecer uma descrição mais acurada de um aspecto linguístico do que outra, mas ser completamente ineficiente do ponto de vista do processo de ensinar/aprender línguas" (MOITA LOPES, 2008, p.18). A multi, inter, trans ou indisciplinaridade passam a fazer parte, a partir da década de 1990, da centralidade do debate sobre a caracterização (ou não) da Linguística Aplicada, uma vez compreendida sua área de inserção autonomamente em relação à Linguística tradicional.
É curioso notar que a LA surge da aplicação da Linguística em situações de ensino e aprendizagem, mas essa mesma aplicação engendra problemas teórico-práticos que a própria Linguística não dá conta de resolver. Assim, se fez necessária uma reformulação epistemológica do quadro conceitual dos estudos científicos: o que era antes formulado pela Linguística teórica e aplicado em situações específicas passa a ser formulado concomitantemente ao processo da aplicação, deslocando, portanto, o eixo epistemológico. É esse deslocamento epistemológico que transforma a antes aplicação da Linguística em Linguística Aplicada: "a compreensão de que a LA não é aplicação da Linguística é agora um truísmo para aqueles que atuam no campo" (MOITA LOPES, 2008, p.17).
Celani dirá que do mesmo modo que a LA se torna independente da Linguística, desvencilha-se, também, da falsa identidade única com ensino de línguas, e, particularmente, ensino de línguas estrangeiras. Os programas de estudos pós-graduados mais recentes são testemunhos disso, na diversidade de suas linhas de pesquisa em áreas outras que não o ensino de línguas (CELANI, 1992).
Por fim, vale ressaltar o que aponta Roxane Rojo, que, citando Moita Lopes (1996, 1998), Kleiman (1998) e Eversen (1998), vê nas caracterizações da Linguística Aplicada a partir da década de 1990 do século XX uma "insistência discursiva no tema da solução de problemas contextualizados, socialmente relevantes, ligados ao uso da linguagem e ao discurso, e na elaboração de resultados pertinentes e relevantes, de conhecimento útil a participantes sociais em um contexto de aplicação (escolar ou não-escolar)" (ROJO, 2008, p.258).
É dentro desse balizamento teórico-metodológico que se desenvolve o debate contemporâneo sobre a caracterização da Linguística Aplicada.
2 O Círculo de Bakhtin e a linguagem da vida real
O conjunto da obra do Círculo de Bakhtin possui alguns pilares sobre os quais toda a concepção de linguagem se ergue: a interação verbal, o enunciado concreto, o signo ideológico e o dialogismo.
Utiliza-se a expressão Círculo de Bakhtin porque, para além do pensador Mikhail Bakhtin (1895-1975), as formulações e as obras são produto de reflexão de um grupo que tinha a participação de diversos outros intelectuais. Como lembram Brait & Campos:
A questão das assinaturas e da composição do Círculo tem variado do extremo da negação intelectual de V. N. Volochínov (1895-1936), P. Medvedev (1892-1938), I. Kanaev (1893-1983), M. Kagan (1889-1934), L. Pumpianskii (1891-1940), M. Yudina (1899-1970), K. Vaguinov (1899-1934), I. Sollertinski (1902-1944), B. Zubakin (1894-1937) às dúvidas em torno da autenticidade de determinadas ideias e conceitos considerados genuinamente bakhitinianos (BRAIT & CAMPOS, 2009, p.17).
Não entrando no debate sobre a autoria das obras, as que aqui forem citadas respeitarão as assinaturas presentes nas edições utilizadas.1
O primeiro pilar, a interação verbal, constitui para o Círculo de Bakhtin a "realidade fundamental da língua" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.127). Essa afirmação está ancorada numa concepção de linguagem que toma como sua natureza a de comunicar, a de se dirigir ao outro. No texto Os gêneros do discurso, escrito nos anos de 1952-1953, Bakhtin reafirma a centralidade da função comunicativa da linguagem, criticando concepções que tomam por sua natureza a "função de formação do pensamento, independente da comunicação", esta dirigida especialmente a Wilhelm Humboldt, e, por outro lado, a que vê a língua como "deduzida da necessidade do homem de autoexpressar-se, de objetivar-se", referindo-se aos partidários de Karl Vossler (BAKHTIN, 2006, p.270). Bakhtin critica essas compreensões, pois elas partem do entendimento de que "a essência da linguagem nessa ou naquela forma [Humboldt e Vossler], por esse ou aquele caminho se reduz à criação espiritual do indivíduo" (BAKHTIN, 2006, p.270). Para Bakhtin, portanto, essas duas compreensões deixam a natureza comunicativa da linguagem (obrigatoriamente interindividual, e, consequentemente, social) em segundo plano.
Porém, ao fazer críticas às concepções que colocam a natureza comunicativa da língua em segundo plano, o Círculo de Bakhtin não compartilha do pensamento que toma a linguagem simplesmente como um instrumento de comunicação. Para Clark & Holquist (1984), o Círculo de Bakhtin consagrou sua reflexão ao projeto de desenvolver gradualmente uma filosofia da linguagem alicerçada em seu aspecto comunicativo.
O que o Círculo afirma é que a comunicação, tomada como a materialização, a realização concreta da interação verbal/discursiva, é a matriz geradora da linguagem, é a realidade fundamental da língua, conforme já citado anteriormente. A comunicação aqui não é a compreensão de comunicar algo a alguém, pois se assim fosse se aproximaria da compreensão da teoria da expressão que Bakhtin criticou, pois suporia inevitavelmente "um certo dualismo entre o que é interior e o que é exterior, com primazia explícita do conteúdo interior, já que todo ato de objetivação (expressão) procede do interior para o exterior" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.115). O Círculo de Bakhtin toma a comunicação como realização concreta da interação verbal porque entende que toda palavra procede de alguém e se dirige para alguém; toda palavra "serve de expressão a um em relação ao outro" (2009, p.117). Ou seja, a comunicação, por esse entendimento, não é a expressão de algo (pré-existente, interior) por alguém a alguém por meio de palavras o que a caracterizaria como um mero instrumento. A comunicação, tomada como realidade fundamental da língua, é justamente o processo de expressar-se em relação ao outro, e não simplesmente para o outro. É esse em relação, pelo qual o eu só existe em relação ao outro, e só assim pode se expressar, que configura a dinâmica da interação verbal/discursiva.
Não cabe aqui compreender esta chave eu/outro, pela qual o eu só existe em relação ao outro, com os conceitos de eu e o tu estabelecidos pela teoria da enunciação. Não se trata de instauração de lugar de fala (enunciação), mas sim da construção social da consciência e da linguagem pela intersubjetividade.
E por que o outro se torna tão central no pensamento do Círculo de Bakhtin? Porque o interlocutor (real ou presumido) não é passivo. Ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, o interlocutor ocupa simultaneamente em relação ao locutor uma ativa posição responsiva. "Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante" (BAKHTIN, 2006, p.271). Aqui reside uma primeira compreensão do dialogismo, que será tratado adiante.
O que seria a "fala viva" ou o "enunciado vivo" que apareceram na citação anterior? Para responder a essa questão, é necessário discorrer sobre o segundo pilar do pensamento do Círculo de Bakhtin: o enunciado concreto. Se a realidade fundamental da língua é a interação verbal, e a interação verbal se dá na e pela comunicação da forma como foi caracterizada acima, entende-se que qualquer estudo sobre a língua tem que se debruçar sobre sua manifestação real e objetiva, e não em manifestações abstratas ou hipotéticas. A linguagem, portanto, é a expressão de um em relação ao outro num determinado momento sócio-historicamente situado e, assim, marcado na temporalidade como um evento único e irrepetível. A linguagem, cuja realidade fundamental é a interação verbal, é portanto uma atividade que, justamente por só existir em relação ao outro, objetiva-se na realidade concreta compartilhada entre o eu e o outro. E essa atividade, por ser um fenômeno real e concreto, realiza-se num determinado espaço e num determinado momento únicos (já que o tempo não volta), sendo, portanto, irrepetível e sócio-historicamente situada. É justamente a essa atividade realizada que se dá o nome de enunciado concreto.
No texto A palavra na vida e a palavra na poesia: Para uma poética sociológica, assinado por Voloshinov, podermos ler:
Uma enunciação concreta (e não abstração linguística) nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação. Quando nós cortamos o enunciado do solo real que o nutre, nós perdemos a chave tanto de sua forma quanto de seu conteúdo - tudo que nos resta é um invólucro linguístico abstrato ou um esquema semântico igualmente abstrato (a banal "ideia da obra", com a qual lidaram os primeiros teóricos e historiadores da literatura) - duas abstrações que são inconciliáveis entre si porque não há base concreta para sua síntese viva. (VOLOSHINOV, 1997, p.122-123)2.
Vale ressaltar da passagem um aspecto que, mesmo não sendo o foco do presente artigo, é fundamental. Quando Voloshinov diz que tanto a forma quanto o significado do enunciado concreto são determinados basicamente pela forma e pelo caráter da interação social entre os participantes da enunciação, ele aponta a concepção basilar de todas as formulações posteriores sobre gêneros do discurso.
A enunciação concreta, como visto, nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. E esses participantes não são abstratos, são reais (ou presumidos), são sujeitos sócio-historicamente situados. E é por essa constatação, de que os interlocutores da enunciação concreta são reais e sócio-historicamente situados, que se pode compreender o caráter ideológico do signo, o terceiro pilar do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Em Marxismo e filosofia da linguagem encontra-se a passagem:
A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos.
Preliminarmente, portanto, separando os fenômenos ideológicos da consciência individual nós os ligamos às condições e às formas da comunicação social. A existência do signo nada mais é do que a materialização dessa comunicação. É nisso que consiste a natureza de todos os signos ideológicos (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.36).
Cabe ressaltar da afirmação acima que não é a consciência individual o arquiteto da superestrutura ideológica, mas apenas seu inquilino, pois, sendo a materialização da comunicação o que dá existência ao signo, e sendo essa comunicação realizada entre sujeitos sócio-historicamente situados, é da natureza do signo, portanto, constituir-se sócio-historicamente, refletindo e refratando a realidade. Grosso modo, esse é o núcleo da concepção do signo como signo ideológico.
A natureza sócio-histórica do signo, por si só, não o caracteriza como signo ideológico. A sua propriedade de refletir e refratar a realidade é central. O signo reflete a realidade, por meio da sua propriedade de referenciar-se, de adquirir sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Mas, como alerta Bakhtin/Volochínov, um signo não existe apenas como parte de uma realidade, ele também reflete e refrata uma outra. "Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la do ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.)" (2009, p.32). Logo, a propriedade de refração do signo é fundamental para caracterizá-lo como ideológico.
Podemos compreender por "critérios de avaliação ideológica" o que, ainda em Marxismo e filosofia da linguagem, aparecerá como orientação apreciativa: "toda enunciação compreende antes de mais nada uma orientação apreciativa. É por isso que, na enunciação viva, cada elemento contém ao mesmo tempo um sentido e uma apreciação" (2009, p.140). Ou seja, o sentido e a apreciação, intrinsecamente articulados, constituem cada elemento da enunciação viva, do enunciado concreto.
Os valores apreciativos, por sua vez, são sócio-históricos, circunscritos na esfera ideológica. Ainda na obra citada, lê-se que "em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir" (2009, p.47).
Os valores apreciativos são intrínsecos ao enunciado concreto porque, como já visto anteriormente, os participantes da comunicação viva não possuem uma postura passiva frente à linguagem. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (concordar, discordar, aceitar, refutar, ponderar, ignorar, etc), todo ouvinte se torna falante, e essa atividade responsiva é permeada, por sua vez, de uma visão de mundo, de uma atitude frente à própria vida real, vivida. No texto O discurso no romance, de 1934-1935 (BAKHTIN, 2010), encontra-se uma passagem que faz alusão a essa responsividade: "a palavra da língua é uma palavra semialheia. Ela só se torna 'própria' quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-a familiar com sua orientação semântica e expressiva" (p.100).
Entretanto, e é importante frisar, a interação verbal não pode ser idealizada. Indivíduos não interagem ao léu ou livres de qualquer tipo de coerção: a enunciação/enunciado concreto "é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.116). Um pouco mais adiante, na mesma obra, pode-se ler que "a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação" (p.117). Os indivíduos são, portanto, homens históricos reais, organizados socialmente, e interagem em condições concretas e materiais de existência.
E seguindo este raciocínio pode-se compreender o quarto e último pilar do pensamento do Círculo de Bakhtin: o dialogismo.
Por finalidade didática o dialogismo aparece como o quarto pilar, depois dos três mostrados anteriormente, mas na verdade ele está na base de todo o pensamento do Círculo, é sua célula mater.
Foi mostrado que, para o Círculo de Bakhtin, a realidade fundamental da língua é a interação verbal, que se materializa pela comunicação verbal por meio da enunciação concreta, que é concreta por ser entre sujeitos reais e sócio-historicamente situados e por ser um evento único e irrepetível. E, por ser realizada entre sujeitos sócio-historicamente situados, a enunciação concreta carrega consigo visões de mundo, acentos valorativos, orientações apreciativas que constroem o significado das palavras, já que sentido e apreciação estão intrinsecamente articulados na linguagem da vida real.
Portanto, se é a interação verbal a realidade fundamental da língua, essa mesma interação estará presente, assim, no enunciado concreto. E o discurso, como conjunto de enunciações concretas, também carregará a qualidade de ser ativamente responsivo, já que "o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir" (BAKHTIN, 2006, p.274). Ainda nesse mesmo texto, Os gêneros do discurso, lê-se:
Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são definidos pela alternância de sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes. Todo enunciado da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados dos outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão) (p.275).
Pode-se entender por dialogismo, grosso modo, a compreensão de que qualquer enunciado é intrinsecamente uma resposta a enunciados anteriores e, uma vez concretizado, abre-se à resposta de enunciados futuros. E por enunciado, aqui, compreende-se uma fala verbalizada entre sujeitos reais, um discurso construído sob a forma de um texto, um artigo científico, um poema, etc. E é assim que se compreende a célebre afirmação de que:
A obra é um elo na cadeia da comunicação discursiva; como a réplica do diálogo, está vinculada a outras obras-enunciados: com aquelas às quais responde, e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, à semelhança da réplica do diálogo, ela está separada daquelas pelos limites absolutos da alternância dos sujeitos do discurso (BAKHTIN, 2006, p.279).
Ou, em outra passagem, no texto O discurso no romance:
O discurso vivo e corrente está imediatamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-a nela. Ao se constituir na atmosfera do "já dito", o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo diálogo vivo (BAKHTIN, 2010, p.89)
É importante ressaltar que dialogismo não é sinônimo de polifonia3. Pela compreensão do Círculo de Bakhtin, o dialogismo é uma qualidade ontológica do enunciado concreto: "o falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez" (BAKHTIN, 2006, p.300). E justamente por não serem mais virgens, esses objetos nomeados (signos, no caso da citação), já foram, são e serão uma arena de confronto de acentos valorativos/orientações apreciativas/visões de mundo daqueles que os enunciaram, enunciam e os enunciarão concretamente:
Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o aspecto estilístico (BAKHTIN, 2010, p.86).
Expostos sucintamente os quatro pilares do pensamento do chamado Círculo de Bakhtin, que, como se pode notar, são organicamente interligados, cabe agora avançar na construção do diálogo entre esse pensamento e a discussão contemporânea das concepções de Linguística Aplicada.
3 Posicionamento e vozes no discurso
Retomando o debate sobre a Linguística Aplicada, tornam-se mais claros os pontos de contato entre as questões circunscritas na compreensão desta área de conhecimento e as formulações provenientes do Círculo de Bakhtin. A primeira mudança de orientação dos estudos de LA, deixando de ter por objeto exclusivo de estudo as línguas a serem ensinadas, substituídas pelo processo de ensino e aprendizagem dessas línguas trouxe, como já dito, novos horizontes teóricos à área, uma vez que se debruçar sobre esse processo implicou novos desafios teórico-metodológicos que envolviam a mobilização de conhecimentos para além dos oferecidos pela Linguística tradicional.
Esse deslocamento também possibilitou a expansão dos focos de interesse da LA, pois estudos sobre a manifestação da linguagem em contextos de construção de identidades, conflitos laborais, exclusão cultural, relações de poder, entre outros, passaram a ser cada vez mais numerosos.
Para avançar na proposta do presente artigo, será abordado um aspecto central presente nesta nova orientação da LA: a constatação de que a linguagem não é transparente. O debate sobre transparência, como colocado, não é o que trata da capacidade da linguagem ser absolutamente fiel ao pensamento, pois essa discussão, que remete a tempos remotos, não é aqui pertinente. O termo transparência é tomado aqui pela perspectiva da neutralidade da linguagem.
A pesquisadora Fabrício (2008) afirma que a LA se encontra, atualmente, em um momento de revisão de suas bases epistemológicas, a reboque da compreensão de que:
1) se a linguagem é uma prática social, ao estudarmos a linguagem estamos estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte constituinte e constitutiva;
2) nossas práticas discursivas não são neutras, e envolvem escolhas (intencionais ou não) ideológicas e políticas, atravessadas por relações de poder, que provocam diferentes efeitos no mundo social; e
3) há na contemporaneidade uma multiplicidade de sistemas semióticos em jogo no processo de produção de sentidos (FABRÍCIO, 2008, p.48).
Os três pontos acima sintetizam todo um conjunto de preocupações de linguistas aplicados contemporâneos, sendo atualmente a matriz de novos conhecimentos produzidos na área. Não é do escopo do presente artigo mapear as diversas noções advindas das formulações que partem das constatações acima, mas sim construir pontos de diálogo entre elas e o pensamento do Círculo de Bakhtin.
Compreender a linguagem como uma prática social remete, sem mediação alguma, à afirmação do Círculo de que a realidade fundamental da língua é a interação verbal (ou interação discursiva) e que ela se dá entre sujeitos sócio-historicamente situados. O Círculo de Bakhtin, ainda nos anos vinte do século XX, já trabalhava com o contexto mais amplo da enunciação, não só considerando o falante como um sujeito, mas também compreendendo que esse sujeito não se manifesta isoladamente na realidade, mas está sócio-historicamente imerso nela. A compreensão de que a linguagem é de natureza social foi marco fundador do pensamento dos pesquisadores russos.
A natureza social da linguagem, para eles, em muito pouco se assemelha à afirmação de Saussure sobre a língua, para quem esta é, "ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos" (1971, p.17). É justamente na crítica a Saussure, cuja concepção sobre a linguagem foi chamada de objetivismo abstrato por Bakhtin/Volochínov em Marxismo e filosofia da linguagem, que se encontram formulações pertinentes à discussão contemporânea em LA:
Assim, na prática viva da língua, a consciência linguística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto de contextos possíveis de uso de cada forma particular. Para o falante nativo, a palavra não se apresenta como um item de dicionário, mas como parte das mais diversas enunciações dos locutores A, B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática linguística (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p.98).
São notáveis as constatações de que a linguagem é um conjunto de contextos possíveis de uso de cada forma particular, como também de que a palavra ao falante nativo não se apresenta como um item de dicionário, mas como parte das mais diversas enunciações de locutores da sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática linguística. Lê-se ainda sobre essa mesma questão, no texto Os gêneros do discurso, escrito posteriormente à obra citada acima e assinado somente por Bakhtin, a afirmação de que:
As palavras da língua não são de ninguém, mas ao mesmo tempo nós as ouvimos apenas em determinadas enunciações individuais, nós a lemos em determinadas obras individuais, e aí as palavras já não têm expressão apenas típica, porém expressão individual externada com maior ou menor nitidez (função do gênero), determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado (2006, p.293).
Atualmente, muito se recorre às formulações do Círculo de Bakhtin acerca dos gêneros discursivos nos estudos sobre ensino e aprendizagem de língua, e não se tratará deles neste artigo por já haver bibliografia vasta. Porém, por ressalva, é necessário lembrar que, inclusive as noções de gêneros, têm por base o dialogismo, e estudá-las ignorando este conceito central do pensamento do Círculo é limitar suas reais implicações sobre o entendimento proposto da linguagem. E é pela perspectiva do dialogismo que se compreende o que seriam as vozes do discurso ou os fios ideológicos que o tecem.
Retomando a segunda afirmação de Fabrício: "nossas práticas discursivas não são neutras, e envolvem escolhas (intencionais ou não) ideológicas e políticas, atravessadas por relações de poder, que provocam diferentes efeitos no mundo social" (2008, p.48), é possível prosseguir criando relações com a noção presente nos estudos do Círculo de Bakhtin a respeito de posicionamento.
Frente a qualquer enunciado concreto assume-se uma postura ativamente responsiva, que é a base do dialogismo. Concorda-se, discorda-se, refuta-se, aceita-se, nega-se, etc. E, sendo essa resposta um outro enunciado concreto, este mesmo enunciado, por sua vez, sujeita-se a posturas ativamente responsivas do(s) outro(s). Porém, o que faz com que se "concorde" com um enunciado e não se "discorde", por exemplo? A visão de mundo que se tem, oriunda da realidade sócio-histórica na qual se está imerso, da sua relação frente à vida real, vivida concretamente. A postura ativamente responsiva só assim se caracteriza na medida em que ela é movida por uma visão de mundo, acentos valorativos, orientações apreciativas frente a um enunciado concreto. Se assim não fosse, não suscitaria resposta, e, sem resposta, caracterizar-se-ia a passividade frente a qualquer enunciado concreto. É por isso a preocupação do Círculo de Bakhtin em diferenciar frase, oração ou palavra de enunciado concreto. Só é enunciado concreto aquilo que suscita resposta (no sentido amplo da palavra resposta). E, na realidade da comunicação discursiva, não existe a abstração da palavra, oração ou frase porque ela sempre é de alguém (sujeito sócio-historicamente situado) e manifesta numa situação concreta, sócio-histórica e irrepetível. Tornado enunciado concreto, "essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, ou seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos" (BAKHTIN, 2006, p.295).
Assim, se um enunciado concreto sempre é resposta a outro anterior e abre-se para respostas de outros enunciados futuros, ele, como resposta, sempre está marcado por uma atitude valorativa do enunciador. É a isso que se pode compreender por posicionamento. Sem se posicionar, o enunciador não está apto a responder coisa alguma. E como a responsividade é fundamental na teoria do Círculo, logo o posicionamento é compulsório consciente ou não4. E, por fim, para explicitar a relação de posicionamento com a citação de Fabrício, lê-se em Bakhtin que "um enunciado absolutamente neutro é impossível. A relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado" (2006, p.289).
Fica claro, portanto, que cada enunciado é marcado pelo posicionamento de seu enunciador. E é a esse marca que se pode dar o nome de voz. As vozes do discurso, então, são os diversos posicionamentos marcados no enunciado, posicionamentos e marcas que carregam consigo um acento valorativo frente a um enunciado e frente à vida. Assim, essa concepção está de acordo com Moita Lopes quando diz que no campo da LA na área de ensino/aprendizagem de línguas "tem havido uma tendência contínua a ignorar o fato de que professores e alunos têm corpos nos quais suas classes sociais, sexualidade, gênero, etnia, etc. são inscritas em posicionamentos discursivos" (2008b, p.102), sendo necessário, para se obter êxito nos estudos de LA, voltar-se a essas inscrições. E é por isso também que se compreende a necessidade de dar voz a alguém mudo/oprimido por alguma situação sócio-histórica definida e não falar por, pois, ao falar por é o posicionamento deste enunciador que fala que se marca, e não o de quem se fala.
Por fim, cabe somente uma ressalva à terceira colocação feita pela pesquisadora Branca Fabrício: a de que há na contemporaneidade uma multiplicidade de sistemas semióticos em jogo no processo de produção de sentidos. Não há indícios suficientemente fortes para afirmar que essa multiplicidade seja uma característica exclusiva da contemporaneidade. Em todas as épocas sempre houve uma multiplicidade desses sistemas semióticos, com constituições historicamente variáveis. Talvez atualmente haja uma consciência maior dessa multiplicidade e a ela se dê um estatuto de objeto de pesquisa.
4 Inter, trans, indisciplinaridade: a metalinguística
Como encerramento deste artigo, cabe agora buscar criar pontos de contato entre as questões levantadas pela Linguística Aplicada no que diz respeito à sua constituição inter, trans ou mesmo indisciplinar, com as formulações presentes na obra do Círculo. Mais especificamente, serão ressaltadas essas relações com a proposta de metodologia presente em Marxismo e filosofia da linguagem e a de metalinguística presente na obra Problemas da poética de Dostoiévski, de Bakhtin.
Não cabe aqui esmiuçar o profícuo debate sobre o que seria a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade ou mesmo a indisciplinaridade, mas sim registrar o núcleo gerador da necessidade de uma abordagem para além da Linguística tradicional no estudo da linguagem5.
Já foi visto que a mudança do eixo epistemológico da LA do estudo das línguas a serem ensinadas para o processo de ensino e aprendizagem de línguas trouxe consigo novos problemas teórico-metodológicos para essa área de estudo. Isso representa inclusive a reorientação do papel da Linguística dentro da área de Linguística Aplicada.
Celani (1992) afirma que está claro para os que militam na LA que, embora a linguagem esteja no centro da LA, seu estudo pela LA não é necessariamente dominado pela Linguística. E, como exemplo, a pesquisadora diz ainda que, em uma representação gráfica da relação da LA com outras disciplinas com as quais se relaciona, a LA não apareceria na ponta de uma seta partindo da Linguística, mas sim que ela "estaria provavelmente no centro do gráfico, com setas bidirecionais dela partindo para um número aberto de disciplinas relacionadas com a linguagem, entra as quais estaria a Linguística, em pé de igualdade, conforme a situação, com a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia, a Pedagogia ou a tradução" (p.21).
É a partir desse entendimento que se pode construir pontes com o pensamento do Círculo de Bakhtin, como será discutido a seguir.
Já na obra Marxismo e filosofia da linguagem, publicada em 1929, encontra-se uma proposta de estudo da língua que articula conhecimentos para além dos que a Linguística oferece. Afirmando que a língua evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes, Bakhtin/Volochínov propõem uma ordem metodológica para seu estudo, a saber:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (2009, p.129).
Fica claro, pelas orientações metodológicas acima, que os saberes mobilizados para se dar conta da proposta levantada não se encontram exclusivamente na Linguística. Analisar as condições concretas de realização das formas e dos tipos de interação verbal implica obrigatoriamente uma perspectiva que, dependendo de onde, quando e como essas realizações se concretizaram, mobiliza diversos campos de conhecimento das ciências ditas humanas. Ou, em outras palavras, analisar o enunciado concreto passa, obrigatoriamente, pela análise da concretude pela qual e na qual se realizou. A ideia de concretude não se restringe ao contexto estrito da enunciação, mas sim à sua realidade sócio-histórica. E essa análise se dá sob a perspectiva dialógica.
Cabe lembrar que a análise das formas da língua na sua interpretação linguística habitual faz parte dos procedimentos metodológicos propostos por Bakhtin/Volochínov. Centrar a análise exclusivamente nos aspectos extralinguísticos do enunciado concreto é tão equivocado quanto voltar-se somente ao exclusivamente linguístico. Como lembra Brait:
Nesse ponto, fica explicitado como já estava indicado em Marxismo e filosofia da linguagem o fato de que a abordagem do discurso não pode ser dar somente a partir de um ponto de vista interno ou, ao contrário, de uma perspectiva exclusivamente externa. Excluir um dos pólos é destruir o ponto de vista dialógico, proposto e explicitado pela teoria e pela análise, e dado como constitutivo da linguagem (2006, p.59).
Já na obra Problemas da poética de Dostoiévski, cuja tradução aqui usada se refere à edição russa de 1963, Bakhtin propõe o que denomina de metalinguística. Essas considerações se encontram no início do capítulo intitulado O discurso em Dostoiévski, na primeira parte, que o autor logo ressalta se tratar de "algumas observações metodológicas prévias". De forma clara, Bakhtin escreve:
Intitulamos este capítulo de "O discurso em Dostoiévski" porque temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária a alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm importância primordial para os nossos fins. Por este motivo, as nossas análises subsequentes não são linguísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na metalinguística, subtendendo-a como um estudo ainda não-constituído em disciplinas particulares definidas daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam de modo absolutamente legítimo os limites da Linguística. As pesquisas metalinguísticas, evidentemente, não podem ignorar a Linguística e devem aplicar os seus resultados. A Linguística e a Metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos e diferentes ângulos de visão. Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática, os limites entre elas são violados com muita frequência (2008, p.207).
É bastante apropriada a definição de discurso dada na citação acima, como a língua em sua integridade concreta e viva, e, para além, a de que a Linguística não dá conta de analisá-lo, embora a Linguística seja criada por meio de uma abstração legítima e necessária a alguns aspectos da vida concreta do discurso (fonológico, gramatical, etc.)6. Mais adiante, lê-se que:
As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da metalinguística [...] as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A língua só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam (p.208-209).
E, por fim, retomando diversos conceitos centrais da obra do Círculo de Bakhtin expostos no presente artigo, lê-se na obra citada no parágrafo anterior que "as relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico" (BAKHTIN, 2008 p.209), e, ainda, que "as relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relações lógicas e concreto-semânticas, mas são irredutíveis a estas e têm especificidade própria" (p.210). Sendo assim, as relações lógicas e concreto-semânticas "devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados [concretos], converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas" (p.209, grifos meus). E por posicionamento, aqui, também se inclui o do pesquisador frente ao discurso estudado, como se lê na passagem abaixo de O problema do texto na linguística, na filosofia e em outras ciências humanas, de Bakhtin:
Um estenograma do pensamento humanístico é sempre o estenograma do diálogo de tipo especial: a complexa inter-relação do texto (objeto de estudo e reflexão) e do contexto emoldurador a ser criado (que interroga, faz objeções, etc.), no qual se realiza o pensamento cognoscente e valorativo do cientista. É um encontro de dois textos do texto pronto e do texto a ser criado, que reage; consequentemente, é o encontro de dois sujeitos, de dois autores. (2006b, p.311).
A metalinguística proposta por Bakhtin não dá conta completamente das questões centrais formuladas sobre a constituição da Linguística Aplicada contemporânea, mas a proposição de se estudar as relações dialógicas que constroem os discursos traz uma contribuição nada desprezível para se enfrentar os desafios teórico-metodológicos com os quais a LA se depara nos dias atuais, quando surge em seu escopo de análise a questão da manifestação da linguagem em situações concretas, na relação entre indivíduos concretos e pela perspectiva de solução de conflitos concretos e sócio-historicamente delimitados.
Conclusão
É característica do Círculo de Bakhtin nunca ter centrado suas concepções sobre a linguagem nos marcos da Linguística tradicional. Ao afirmar que a realidade fundamental da língua é a interação verbal, que se materializa por meio de enunciados concretos de sujeitos sócio-historicamente situados, o Círculo se deparou com as limitações teórico-metodológicas da Linguística tradicional e buscou superá-las. Assumir o discurso como objeto de análise, e não a língua saussuriana, se mantém pertinente ainda nos dias atuais. O discurso, como já afirmado em citação, é a língua em sua integridade concreta e viva.
Torna-se inclusive bastante sintomático o fato de que esse grupo reunia pensadores de diversas áreas do conhecimento, como a filosofia, a linguística, a biologia, a música, a poesia, a crítica literária, a história, a filologia, entre outras7. Ou, em termos mais contemporâneos, o Círculo de Bakhtin pode ser compreendido como um grupo multidisciplinar, mesmo que informalmente, voltado aos problemas da constituição da linguagem.
Portanto, o pensamento desses estudiosos russos ganha nova vitalidade quando a Linguística Aplicada contemporânea se questiona sobre quais seriam suas bases epistemológicas e metodológicas. Não se trata, porém, de se fazer um deslocamento anacrônico de teorias e concepções e, com isso, acreditar em uma panaceia teórico-metodológica a-histórica; mas não se trata, também, de ignorar todo um acúmulo formulado por pessoas que já tiveram, em maior ou menor medida, preocupações que se mostram ainda pertinentes. Assumir uma postura francamente dialógica ao buscar revisar criticamente teorias é fundamental na construção do conhecimento, o que não significa, em hipótese alguma, excluir a responsabilidade do pesquisador frente ao posicionamento que assume e dentro do contexto em que está inserido.
Encerrando, não custa lembrar que nem sempre o novo representa progresso, e nem todo progresso é necessariamente novo.
Recebido em 14/06/2012
Aprovado em 01/11/2012
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Dez 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2012
Histórico
-
Recebido
14 Jun 2012 -
Aceito
01 Nov 2012