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As implicações de uma abordagem dialógica para a aquisição de linguagem: o exemplo de uma pesquisa sobre a aquisição de expressões referenciais

RESUMO

Este artigo tem como objetivo ilustrar a contribuição do dialogismo para o campo de aquisição da linguagem. De acordo com as abordagens dialógicas, as crianças não experienciam unidades e estruturas linguísticas per se; elas experienciam a linguagem em contextos significativos. Mais especificamente, gêneros do discurso, atividades e situações de interação aparecem como mediadores entre o discurso individual, os usos sociais e uma linguagem particular. Para ilustrar as implicações de uma abordagem dialógica, este artigo apresenta uma pesquisa sobre a aquisição de expressões referenciais (projeto DIAREF). As expressões referenciais são particularmente relevantes, já que seu domínio envolve tanto aspectos formais quanto funcionais da língua. Os resultados mostram que os usos de substantivos, pronomes pessoais, pronomes demonstrativos e deslocamentos realizados pelas crianças são determinados em conjunto com os fatores pragmático-discursivos, tais como a posição nos encadeamentos referenciais, e fatores sócio discursivos, tais como gêneros do discurso, atividades e situações interacionais.

PALAVRAS-CHAVE:
Experiência comunicativa; Dialogismo; Aquisição da linguagem; Expressões referenciais

ABSTRACT

This paper aims to illustrate the contribution of dialogism to the field of language acquisition. According to dialogical approaches, children do not experience linguistic units and structures per se; they experience language in socially meaningful contexts. More specifically, speech genres, activities and interactional settings appear as mediators between individual discourse, social uses and a particular language. In order to illustrate the implications of a dialogical approach, this paper presents a research study on the acquisition of referring expressions (the DIAREF Project). Referring expressions are particularly relevant because their mastery involves both formal and functional aspects of language. The results show that children’s uses of nouns, personal pronouns, demonstrative pronouns and dislocations are jointly determined by discourse-pragmatic factors, such as the position in the referential chain and socio-discursive factors, such as speech genres, activities and interactional settings.

KEYWORDS:
Communicative experience; Dialogism; Language acquisition; Referring expressions

[...] a criança não se move de estruturas linguísticas para o discurso, mas dos enunciados do outro para os seus próprios enunciados: em resumo [...] o discurso dela é essencialmente dialógico.

Frédéric François 1 1 Tradução nossa. Texto original em francês: “[...] l’enfant ne va pas des structures de la langue à la parole, mais des énoncés de l’autre aux énoncés de soi: bref [...] son discours est essentiellement dialogique”.

Introdução

Desde a Antiguidade, os filósofos questionavam sobre o modo como as crianças aprendiam palavras e, assim, como as crianças adquiriam linguagem, opondo, desde o início, natureza e criação. A psicologia de desenvolvimento e a linguística herdaram esse debate antigo: as abordagens inatistas assumem a existência de estruturas pré-construídas, sem as quais o conhecimento e o desenvolvimento não podem ser explicados, e as abordagens não inatistas assumem que a linguagem é construída por meio da experiência. O dialogismo, em sua dimensão epistemológica, insere-se nas abordagens não inatistas e, mais precisamente, nas abordagens interacionistas de aquisição da linguagem, inspiradas por Vygotsky (2005 [1934])2 2 VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de Jefferson Luíz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1934]. e Bruner (2007 [1983]3 3 BRUNER, J. Como as crianças aprendem a falar. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Horizontes Pedagógicos, 2007 [1986]. ). O dialogismo contribuiu para o campo enfatizando a base social e dialógica da língua (BRONCKART, 1996BRONCKART, J.-P. Activité langagière, textes et discours. Pour un interactionnisme socio-discursif. Lausanne: Delachaux et Niestlé, 1996.; 2004BRONCKART, J.-P. Les genres de textes et leur contribution au développement psychologique. Langages n.1, p.98-108, 2004. ; FRANÇOIS; HUDELOT; SABEAU-JOUANNET, 1984FRANÇOIS, F., HUDELOT, C., SABEAU-JOUANNET, E. Conduites linguistiques chez le jeune enfant. Paris: PUF, 1984.). A esse respeito, a natureza intrinsecamente dialógica de qualquer enunciado aparece como veículo fundamental da aquisição da linguagem, e encontra eco na noção vygotskiana de fala interior e dimensão interpsicológica (CHEYNE; TARULLI, 2005CHEYNE, J. A., TARULLI, D. Dialogue, Difference and Voice in the Zone of Proximal Development. In: DANIELS, H. (Ed.). An Introduction to Vygotsky. London: Routledge, 2005. pp.125-147.; WERTSCH, 1991WERTSCH, J. V. Voices of the Mind. Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1991.). Ao mesmo tempo, o dialogismo estende essa característica ao nível macro discursivo, envolvendo os usos sociais e culturais compartilhados da língua. De acordo com a abordagem dialógica, é por meio dessas lentes que a aquisição de unidades e estruturas linguísticas é examinada.

Neste artigo4 4 Gostaríamos de agradecer aos dois pareceristas anônimos pelos comentários relevantes e questões que nos ajudaram a deixar o texto mais claro. , temos como objetivo ilustrar a contribuição do dialogismo para a pesquisa em aquisição da linguagem por meio do exemplo de um estudo de aquisição de expressões referenciais conduzido no âmbito do projeto DIAREF5 5 O projeto DIAREF (Aquisição das Expressões Referenciais em diálogo: abordagem multimodal, fundado pela Agência Nacional Francesa para pesquisa, ANR-09- ENFT- 055) juntou diversos grupos e instituições, bem como muitos pesquisadores ao redor da abordagem multimodal de aquisição de expressões referenciais (webpage http://www.univ-paris3.fr/anr-diaref-37421.kjsp?RH=1505727285324). Os resultados principais do projeto serão publicados em Salazar Orvig, de Weck, Hassan & Riallland (no prelo). . Antes de apresentarmos este estudo, abordaremos algumas questões teóricas, com foco no dialogismo como base para a pesquisa em aquisição da linguagem e, mais especificamente, na aquisição de expressões referenciais.

1 A abordagem dialógica para a aquisição da linguagem

Esta seção trata, primeiramente, das questões de aquisição da linguagem, que o dialogismo pode contribuir para que sejam respondidas (1.1), e das características específicas que tornam isso possível (1.2). Abordaremos também questões específicas das expressões referenciais (1.3). A seção termina com um breve resumo do projeto DIAREF (1.4).

1.1 Os desafios teóricos da aquisição da linguagem

O campo da aquisição da linguagem possui grandes desafios. Nas últimas décadas, a abordagem baseada no uso e a emergentista (AMBRIDGE; LIEVEN, 2011AMBRIDGE, B., LIEVEN, E. V. Child Language Acquisition: Contrasting Theoretical Approaches. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.; MACWHINNEY; O’GRADY, 2015MACWHINNEY, B., O'GRADY, W. The Handbook of Language Emergence. Chichester: John Wiley & Sons, 2015.) obtiveram sucesso apresentando modelos alternativos, mostrando que as crianças não desenvolvem sua linguagem a partir de um sistema inato de regras e categorias pré-existentes; elas constroem sua linguagem a partir da experiência direta do input. Entre os muitos desafios ainda existentes, Lieven (2016LIEVEN, E. Usage-based Approaches to Language Development: Where Do We Go from Here? Language and Cognition, v.3, n.8, pp.346-368, 2016. ) menciona, em um artigo de síntese, a necessidade de abordar a relação entre sentido e forma. Esta é, certamente, uma questão crucial para entender a base dos aspectos formais do processo de aquisição, tais como os efeitos de frequência. Na maioria das abordagens baseada no uso e emergentista, a dimensão sociopragmática aparece como o fator mais relevante para a aquisição semântica (TOMASELLO, 1999TOMASELLO, M. The Cultural Origins of Human Cognition. Cambridge, Ma. and London: Harvard University Press, 1999.). Mas ele perde essa importância quando tratamos do estudo formal de aspectos da língua, tais como construção e sintaxe, porque o objetivo principal, para a própria área, é responder aos modelos inatistas (LIEVEN, 2016LIEVEN, E. Usage-based Approaches to Language Development: Where Do We Go from Here? Language and Cognition, v.3, n.8, pp.346-368, 2016. ).

Tradições interacionistas ou funcionalistas consideram a aquisição da linguagem dentro do escopo de uso da língua (BERNICOT et al., 2010BERNICOT, J., VENEZIANO, E., MUSIOL, M., BERT-ERBOUL, A. (Eds.). Interactions verbales et acquisition du langage. Paris: L'Harmattan, 2010.; BUDWIG, 1995BUDWIG, N. A Developmental-Functionalist Approach to Child Language. Hillsday, N.J: Erlbaum, 1995.; CLARK, 2014CLARK, E. V. Pragmatics in Acquisition. Journal of Child Language, n.41, pp.105-116, 2014. ; DE WECK, 2005DE WECK, G. L'appropriation des discours par les jeunes enfants. In: PIERART, B. (Ed.). Le langage de l'enfant: comment l’évaluer? Bruxelles: De Boeck, 2005. p.179-193.; ERVIN-TRIPP, 1994ERVIN-TRIPP, S. Impact du cadre interactionnel sur les acquisitions en syntaxe. Aile, n.4, p.53-80, 1994. ; NELSON, 2007NELSON, K. Young Minds in Social Worlds: Experience, Meaning, and Memory. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 2007., inter alia). A maioria dos autores baseia-se na concepção vygotskiana (VYGOTSKY, 2005 [1934]6 6 Para referência, ver nota de rodapé 2. , 1960/1981) de que o processo de aquisição é determinado pelo contexto sociocultural em que está inserida e pela interação real experienciada pela criança. Esse aspecto encontra eco na noção de jogo de linguagem de Wittgenstein (1953WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Translated by G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1953.) (ver François et al., 1984FRANÇOIS, F., HUDELOT, C., SABEAU-JOUANNET, E. Conduites linguistiques chez le jeune enfant. Paris: PUF, 1984.; Nelson, 2009NELSON, K. Wittgenstein and Contemporary Theories of Word Learning. New Ideas in Psychology, v.2, n.27, pp.275-287, 2009. ; Tomasello, 1999TOMASELLO, M. The Cultural Origins of Human Cognition. Cambridge, Ma. and London: Harvard University Press, 1999., inter alia). Essas abordagens convergem para a teoria dialógica da linguagem (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1995 [1929]7 7 BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução (do francês) Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. Prefácio Roman Jakobson. Apresentação Marina Yaguello. São Paulo: Hucitec, 1995. [1929] ; BAKHTIN, 2003 [1979]8 8 BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.206-306. [1979] , 1982 [1934]), adotada por autores como Bronckart (1996BRONCKART, J.-P. Activité langagière, textes et discours. Pour un interactionnisme socio-discursif. Lausanne: Delachaux et Niestlé, 1996.) e François (FRANÇOIS et al., 1984FRANÇOIS, F., HUDELOT, C., SABEAU-JOUANNET, E. Conduites linguistiques chez le jeune enfant. Paris: PUF, 1984.), e necessita lidar com um desafio complementar: compreender como a experiência dialógica e interativa dá conta da construção da língua.

1.2 Dialogismo e aquisição da linguagem

Apesar de os trabalhos de Bakhtin e Volochínov não tratarem nem da linguagem da criança nem do desenvolvimento infantil, a concepção dialógica da linguagem contribui, de várias maneiras, para a fundamentação de uma abordagem complementar em aquisição da linguagem.

A mais explícita delas está na concepção dialógica de enunciado. Como os adultos, as crianças produzem enunciados em continuidade (e em resposta) ao enunciado do outro. E, como os enunciados dos adultos, os das crianças são heteroglóticos, i.e., são construídos pelo discurso do outro (BAKHTIN, 1982BAKHTIN, M. Discourse in the Novel. In: BAKHTIN, M. The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press1981. pp.259-422. [1975] [1975]). Esta característica fundamental dos enunciados explica o papel do diálogo no processo concreto de aquisição. Como Vygotsky9 9 Para a discussão sobre as convergências e divergências entre as abordagens bakhtiniana e vygotskiana, ver Cheyne & Tarulli, 2005; François, 2005; Wertsch, 1991. (1960/1981) estabeleceu, as funções mentais superiores e, portanto, a linguagem, se desenvolvem primeiro em um plano interpsicológico antes de serem internalizadas em um plano intrapsicológico. Além disso, as abordagens dialógicas e interacionistas têm mostrado o papel central do movimento do diálogo, como os movimentos de retomada e reformulação no processo de aquisição de palavras, estruturas e usos (BERNICOT; SALAZAR ORVIG; VENEZIANO, 2006BERNICOT, J., SALAZAR ORVIG, A., VENEZIANO, E. Les reprises: dialogue, formes, fonctions et ontogenèse. La Linguistique, v.2, n.42, p.29-49, 2006.; CLARK, 2014CLARK, E. V. Pragmatics in Acquisition. Journal of Child Language, n.41, pp.105-116, 2014. ; DE WECK, 2006DE WECK, G. Les reprises dans les interactions adulte-enfant: comparaison d'enfants dysphasiques et tout-venant. La Linguistique, v.2, n.42, p.115-134, 2006.; VENEZIANO, 2014VENEZIANO, E. Conversation and Language Acquisition: Unique Properties and Effects. In: INBAL, A., CASILLAS, M., KURUMADA, C., ESTIGARRIBIA, B. (Eds.). Language in Interaction: Studies in Honor of Eve V. Clark. Amsterdam: John Benjamins, 2014. pp.83-100.).

Além disso, de acordo com a concepção dialógica da linguagem, falantes (adultos ou crianças) experienciam a linguagem por meio dos discursos de outros. Esse pressuposto implica que as crianças não lidam com o sistema abstrato, mas com o discurso do adulto em diálogo.

A língua materna - sua composição vocabular e sua estrutura gramatical - não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam (BAKHTIN, 2003 [1979], p.282-283)10 10 Para referência bibliográfica, ver nota 8. .

Portanto, formas (lexicais e/ou gramaticais) são adquiridas por suas propriedades comunicacionais e pragmáticas. Essas propriedades funcionais surgem do uso em contextos comunicativos significativos. Bakhtin - assim como Volochínov - situam esses contextos no nível das esferas de atividades e dos gêneros do discurso.

Aprender a falar significa aprender a construir enunciados [...]. Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, nós adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras [...] (BAKHTIN, 2003 [1979], p.283)11 11 Para referência bibliográfica, ver nota 8. .

Dessa forma, podemos entender a proposta de Bakhtin e Volochínov de que os gêneros (e atividades)12 12 A definição de gêneros do discurso está intimamente associada com a noção de atividade, como podemos ver no começo do capítulo de Bakhtin sobre os gêneros do discurso. “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana [...]” (BAKHTIN, 2003 [1979], p.261). são mediadores entre as práticas de linguagem e as construções de língua das crianças.

Esta posição implica, como Volochínov argumentou, uma maior mudança quando analisamos os fenômenos linguísticos/de linguagem.

Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser a seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (VOLOHINOV, 1929/1995, p.129)13 13 Para referência, ver nota de rodapé 7. .

Esta é uma inversão crucial de perspectiva: o procedimento usual de pesquisa adotado pela linguística estrutural e gerativa é considerar, primeiro, as unidades linguísticas - fonemas, palavras - e, depois, analisar como elas são usadas. Volochínov afirma que, ao contrário, o estudo da língua deve seguir o “processo gerativo real da linguagem”, o qual corresponde, primeiro, à imersão inicial em contextos sociais e significativos. Em termos de aquisição da linguagem, isso envolve, de acordo com as perspectivas interacionais (BRUNER, 1983BRUNER, J. S. Child's Talk. Learning to Use Language. New York: W.W. Norton & Company, 1983./200714 14 Para referência, ver nota de rodapé 3. ; VYGOSTKY, 2005 [1934]15 15 Para referência, ver nota de rodapé 2. , 1960/1981), considerar, primeiramente, a imersão das crianças em contextos sociais - e, consequentemente, os atos comunicativos e interativos de sentido - antes de dar foco a aspectos formais de construção de unidades linguísticas. Abordaremos, a seguir, como esta inversão metodológica pode afetar o estudo de expressões referenciais.

1.3 Uma abordagem dialógica na aquisição de expressões referenciais

Uma vez que elas apresentam características morfológicas e pragmáticas, as expressões referenciais (ERs, de agora em diante) são particularmente interessantes para a abordagem dialógica. A “escolha” de um determinante (no lugar de um substantivo) ou um pronome indica o grau de acessibilidade do referente para o destinatário (ARIEL, 1990ARIEL, M. Accessing Noun-phrase Antecedents. London: Routledge, 1990.; GUNDEL; HEDBERG; ZACHARSKI, 1993GUNDEL, J. K., HEDBERG, N., ZACHARSKI, R. Cognitive Status and the Form of Referring Expressions in Discourse. Language, n.69, pp.274-307, 1993. ). Ao mesmo tempo, a aquisição dos paradigmas dos determinantes e dos pronomes está diretamente ligada à aquisição da sintaxe.

Estudos com crianças em interações familiares mostram que as primeiras ocorrências dos pronomes ou determinantes são realizadas adequadamente, de acordo com a acessibilidade discursiva do referente (DA SILVA et al., no preloDA SILVA, C., SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., CAËT, S., HEURDIER, J. The Choice of Referring Expressions in Young Children. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach. Amsterdam: John Benjamins. [in press].; SALAZAR ORVIG et al., 2010SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., MORGENSTERN, A., HASSAN, R., LEBER-MARIN, J., PARES, J. Dialogical Beginnings of Anaphora: the Use of Third Person Pronouns Before the Age of 3. Journal of Pragmatics, v.7, n.42, pp.1842-1865, 2010. , 2013SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., CAËT, S., CORLATEANU, C., DA SILVA, C., HASSAN, R, HEURDIER, J., LE MENE, M., LEBER-MARIN, J., MORGENSTERN, A. Definite and Indefinite Determiners in French-speaking Toddlers: Distributional Features and Pragmatic-discursive Factors. Journal of Pragmatics, n.56, pp.88-112, 2013. ; SERRATRICE; ALLEN, 2015SERRATRICE, L., ALLEN, S. E. M. (Eds.). The Acquisition of Reference. Amsterdam: John Benjamins, 2015.; YAMAGUCHI et al., no preloYAMAGUCHI, N., SALAZAR ORVIG, A., LE MENE, M., CAËT, S., RIALLAND, A. Filler Syllables as Precursors of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach. Amsterdam: John Benjamins. [in press].). Entretanto, esses primeiros usos podem ser determinados pela junção de fatores discursivos e sintáticos, tais como a função e a expressão subjetivas de um tópico, os quais são geralmente bastante acessíveis. E, nesse caso, ainda podemos considerar que esses primeiros usos refletem a precocidade das habilidades pragmáticas? No mesmo sentido, os estudos com crianças mais velhas, em geral, com foco nas narrativas, destacam tanto as habilidades reais como as dificuldades em lidar com a ausência de conhecimento compartilhado ou com vários referentes simultâneos (HICKMANN; SCHIMKE; COLONNA, 2015HICKMANN, M., SCHIMKE, S., COLONNA, S. From Early to Late Mastery of Reference. Multifunctionality and Linguistic Diversity. In: SERRATRICE, L., ALLEN, S. (Eds.). The Acquisition of Reference. Amsterdam: John Benjamins, 2015. pp.181-211.; REZZONICO et al., no preloREZZONICO, S., VINEL, E., DE WECK, G., HASSAN, R., SALAGNAC, N. Referring in Dialogical Narratives: a Study on Children's Use of Nouns and Pronouns. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach. Amsterdam: John Benjamins. [in press].). Discussões atuais abordam esses assuntos pendentes investigando as bases cognitivas de habilidades pragmático-discursivas (DE CAT, 2015DE CAT, C. The Cognitive Underpinnings of Referential Abilities. In: SERRATRICE, L., ALLEN, S. E. M. (Eds.). The Acquisition of Reference. Amsterdam: John Benjamins, 2015. pp.263-283.). Entretanto, nosso argumento é que a perspectiva dialógica também pode explicar as habilidades e as dificuldades das crianças. Como essas expressões linguísticas, e todas as outras que carregam valores pragmáticos, o uso das ERs é determinado pelas condições dialógicas e pelos contextos sociodiscursivos da experiência comunicativa das crianças. O projeto DIAREF, que apresentaremos a seguir, tem como objetivo abordar este assunto.

1.4 O objetivo do projeto DIAREF

O objetivo do projeto DIAREF foi duplo. Primeiramente, visamos apresentar as várias ERs utilizadas pelas crianças - e adultos - considerando as várias facetas (fonológica, morfológica, sintática e discursivo-pragmática) do desenvolvimento das crianças entre 1;7 e 7;5 anos de idade, em vários contextos de interação. O objetivo principal era avaliar a sensibilidade das crianças à acessibilidade e à posição das ERs na cadeia referencial. Em segundo lugar, tínhamos como objetivo responder sobre esses usos, enfatizando a relação entre os fatores funcionais e formais e, mais precisamente, o papel da experiência comunicativa das crianças. Tal experiência é gradualmente construída e diversificada por meio dos usos aos quais elas são expostas nos vários contextos interacionais em casa, primeiramente, e, depois, na escola. Esses ambientes envolvem várias atividades e gêneros do discurso e, às vezes, vários participantes, os quais influenciam as produções das crianças. Portanto, descrever o uso das ERs em contextos interacionais diferentes, considerando o papel do diálogo, atividades e os gêneros do discurso, permite-nos entender como esses contextos influenciam a “escolha” das ERs e como as suas funcionalidades são construídas.

2 A influência dos fatores sociodiscursivos na aquisição de expressões referenciais

Baseando-nos em dados e resultados do projeto DIAREF16 16 Não é possível apresentar, neste artigo, todas as facetas do programa de pesquisa multidimensional, nem os resultados de todas as ERs ou as várias análises formais e funcionais. Para mais detalhes, ver Salazar Orvig et al. (no prelo). , esta seção apresenta primeiramente alguns aspectos metodológicos envolvendo a coleta de dados e a análise das ERs relevantes para este artigo (3.1). Focalizamos, então, os resultados relativos a três aspectos da experiência comunicativa das crianças, ou seja, o papel das atividades (3.2), gêneros do discurso (3.3), e contexto social (3.4) no uso das ERs das crianças.

2.1 Aspectos metodológicos

Nossa abordagem para a aquisição de referência requer utilizar os dados tanto de adultos quanto de crianças em situações de interação diversificadas, coletados em ambientes não experimentais. Nossos dados são compostos de vários corpora17 17 Os dados para os estudos do projeto DIAREF foram compilados a partir de corpora de projetos de pesquisa anteriores: a) O projeto Colaje (MORGENSTERN; PARISSE, 2012); b) Desenvolvimento da Linguagem e da Comunicação entre dois e três anos: influência do modo doméstico (MARCOS et al., 2004); c) As interações mãe-criança em situações Logopédicas (Fundação Nacional Suíça de Ciência subsidiada N. 100012-111938 e 100012-111938/1) (DE WECK et al., 2019); d) Tese de Doutorado de Nashawati (2010); e) Desenvolvimento das condutas dialógicas (SALAZAR ORVIG, 2003); f) Comparação entre a comunicação Mãe-Criança e Pai-Criança (KORNHABER-LE CHANU; MARCOS, 2000); e g) Tese de Doutorado de Yamaguchi (2012). Dois conjuntos específicos de dados foram coletados para o projeto DIAREF: O Corpus DIAREF-Lille (VINEL, 2014) e o Corpus de Narrativas de Adultos (DE WECK et al., 2019). Para mais detalhes, ver Salazar Orvig et al. (no prelo). coletados em dois contextos (casa e escola), envolvendo, por um lado, participantes de diferentes posições sociais (crianças, mães, professoras) e, por outro lado, várias atividades ocorrendo naturalmente (diferentes tipos de brincadeiras, rotinas diárias e contação de histórias18 18 Dois livros foram utilizados: GOODALL, J.S. Ah les belles vacances des petits cochons! Paris: Gallimard, 1980; Título original: Paddy Pork's Holiday, Macmillan Children's Books (1975), com a mãe; RODRIGUEZ, B. Le voleur de poules. Paris: Autrement, 2005/2010, com o professor. ). Esses aspectos metodológicos são cruciais para revelar os modelos de linguagem aos quais as crianças são expostas.

Para o propósito deste artigo, destacamos as quatro categorias principais das ERs: pronomes pessoais, substantivos, demonstrativos e deslocamentos19 19 O ‘deslocamento’ é uma construção muito comum no francês falado. É formado por uma expressão forte (substantivo, pronome demonstrativo) e um pronome clítico em uma posição de retomada (e.g. le chien il court, ‘o cachorro ele corre’). Como mostrado por Lambrecht (1994), essa construção permite que uma forma forte, tal como um substantivo ou um pronome demonstrativo (geralmente atribuído à expressão de nova informação), seja utilizada em uma posição de tópico. , que são particularmente relevantes para o estudo do desenvolvimento da competência referencial das crianças. A distribuição dessas quatro categorias foi analisada de acordo com os seguintes fatores: a influência da atividade sendo desenvolvida, o gênero do discurso e o contexto social (casa/escola), e a posição dentro dos encadeamentos referenciais. Entre as posições no encadeamento referencial, damos destaque à primeira menção e à subsequente menção (PM e SM de agora em diante), já que elas foram as predominantes nos nossos dados.

2.2 A influência da atividade no uso das expressões referenciais

Vários estudos mostram que a atividade na qual os participantes estão envolvidos influencia diferentes aspectos do uso da língua: por exemplo, a diversidade de vocabulário (HOFF, 2010HOFF, E. Context Effects on Young Children's Language Use: The Influence of Conversational Setting and Partner. First Language, v.3-4, n.30, pp.461-472, 2010. ), o grau de participação verbal (DE WECK; ROSAT, 2003DE WECK, G., ROSAT, M.-C. Troubles dysphasiques. Comment raconter, relater, faire agir à l'âge pré-scolaire. Paris: Masson, 2003.), ou a quantidade e a natureza de atos de fala (LEAPER; GLEASON, 1996LEAPER, C., GLEASON, J. B. The Relationship of Play Activity and Gender to Parent and Child Sex-typed Communication. International Journal of Behavioral Development, v.4, n.19, pp.689-703, 1996.). A respeito do uso das ERs, poucos estudos foram conduzidos até hoje além daqueles realizados pelo nosso grupo de pesquisa. Salazar Orvig et al. (2018)SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., HEURDIER, J., DA SILVA, C. Referential Features, Speech Genres and Activity Types. In: HICKMANN, M., JISA, H., VENEZIANO, E. (Eds.). Sources of Variation in First Language Acquisition: Languages, Contexts, and Learners. Amsterdam: John Benjamins, 2018. pp.219-242. mostraram o impacto da atividade no uso dos pronomes demonstrativos.

De Weck et al. (no prelo)DE WECK, G., HASSAN, R., HEURDIER, J., KLEIN, J., SALAGNAC, N. Activities and Social Settings: Their Roles in the Use of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach . Amsterdam: John Benjamins. [in press]. investigaram esta influência em um corpus de interações mãe-criança: 25 crianças (com idade entre 1;7 e 2;6 anos) e 25 crianças mais velhas (com idade entre 3;9 e 7;4 anos). O uso das ERs pelas crianças mais novas foi examinado nas seguintes atividades: brincar com brinquedos (BB), rotinas diárias (RD) e atividades com material ilustrado (MI). Estas atividades compartilham de uma característica comum: serem ancoradas no “aqui-agora” da interação, sendo dirigidas a um objetivo específico e envolvendo objetos manipuláveis, ainda que em vários níveis. Entretanto, os resultados mostraram usos diversos de ERs de acordo com o tipo de atividade desenvolvida. Por exemplo, a proporção de pronomes de terceira pessoa foi maior quando interagiam com brinquedos (11,86%) e em atividades com material ilustrado (10,47%) do que em rotinas diárias (6,10%). Em contrapartida, a proporção de substantivos, e mais especificamente aqueles que aparecem em PMs, foi maior em rotinas diárias (50,90%) do que nas duas outras atividades (40,0% em BB e 35,42% em MI). Em rotinas diárias, os participantes mencionaram vários objetos apenas uma vez, sem trazê-los depois para o diálogo. Consequentemente, a proporção de pronomes de terceira pessoa para as SMs foi baixa (11,25% em RD vs. 15,06% para MI e 18,18% para BB). Eles foram substituídos pelas formas nulas (8,98% em RD). Assim como podemos ver no exemplo 1, formas nulas podem corresponder tanto à autorreferência (observe, em Elodie 8 e 9, a falta do sujeito je, “eu”, obrigatório em francês) quanto a entidades, na função de objeto (a referência à maçã em Elodie 8):


(1) Elodie, 2:2, rotinas diárias (hora do lanche) 20 20 Nos exemplos, a primeira linha apresenta, no caso das crianças mais novas, a transcrição fonética, e a segunda, a interpretação na forma adulta. Na coluna da direita é apresentada uma tradução literal com o propósito de informação. Indicações não verbais são dadas entre (( )); / e // significam pausas breves; { } indica incerteza e segmentos não interpretáveis. Fonemas não pronunciados aparecem entre ( ).

Finalmente, os pronomes demonstrativos e os deslocamentos envolvendo pronomes demonstrativos foram mais observados nas atividades com imagens e nas atividades com brinquedos.


(2) Clément, 2:3, Atividade com imagens (quebra-cabeça)

No exemplo 2, a criança (Clément29) introduz um novo referente (uma nova peça do quebra-cabeça) com um pronome demonstrativo associado a um gesto (pegar a peça e colocar no quadro). Sua mãe pede que ele nomeie a imagem na peça, usando um deslocamento demonstrativo. A criança responde com um pronome demonstrativo clítico21 21 A construção quase fixa c’est é típica do francês falado, tanto no discurso dos adultos quanto no das crianças. Ela é formada pelo verbo être (ser) e o pronome demonstrativo clítico ‘c(e)’, que pode ser usado de forma referencial ou não referencial. c’ (isto/este). Somente assim o referente é identificado explicitamente por meio de uma onomatopeia utilizada em função nominal. Esses usos dos pronomes demonstrativos para PM e SM podem ser explicados considerando que os participantes constantemente referem-se à situação compartilhada, e, mais especificamente, aos objetos que eles manuseiam enquanto jogam (neste caso, as peças do quebra-cabeça).

O uso das ERs por crianças mais velhas foi analisado comparando-se duas atividades: jogo simbólico e contação de histórias. Duas distribuições contrastantes foram extraídas dessa comparação. No jogo simbólico, as crianças usavam proporcionalmente mais substantivos (40,24%), deslocamentos (12,70%) e pronomes demonstrativos (14,29%) do que na contação de histórias (respectivamente 30,88%, 4,91% e 5,70%). Ao contrário, a atividade de contação de história teve uma proporção maior de pronomes de terceira pessoa (44,74% vs. 16,53%). Nessa situação, os substantivos eram a segunda categoria mais frequente. A interação entre esses perfis discursivos e a posição no encadeamento referencial também foram observadas. Os substantivos corresponderam à maior parte das PMs na atividade de contação de história (75,86%), mas eles foram menos predominantes no jogo simbólico (47,78%). No jogo simbólico, as PMs foram também frequentemente expressas por pronomes demonstrativos (13,32% vs. 2,3% para contação de histórias). Essa diferença pode ser explicada pelo fato de que, na contação de histórias, os substantivos introduzem personagens cujas características e ações serão descritas pelos participantes. No jogo simbólico, os pronomes demonstrativos são usados para chamar a atenção do interlocutor para novos referentes, sem nomeá-los, como foi observado (ver exemplos acima). Houve também a interação entre a atividade e a posição no encadeamento referencial para as SMs. Como esperado, nas atividades de contação de história, a maioria das SMs foi utilizada com os pronomes de terceira pessoa (ver exemplo 3).


(3) Damien, 7:4, contação de histórias

Neste exemplo, a criança e sua mãe usam o pronome de terceira pessoa il, ils, leur (ele, eles) diversas vezes como SMs de referentes previamente introduzidos (duas vezes com o indefinido NP, un seul petit cochon - ‘um porquinho’ - e des gens - ‘pessoas’ - e uma vez pela mãe - Mother7 - o pronome de terceira pessoa do plural ils - ‘eles’, cujos referentes são decorrentes da menção à charrete. Podemos notar que a troca de uma ocorrência de pronome para outra não causa nenhum problema de intercompreensão. A presença do livro na situação explica estes usos e, portanto, reforça a proporção de pronomes de terceira pessoa para SMs neste tipo de atividade (54,63% vs. 28,23% no jogo simbólico).

No jogo simbólico, os substantivos são proporcionalmente mais frequentes nas SMs do que nas histórias (31,47% vs. 19,41% nas atividades de contação de histórias). No jogo simbólico, grande parte do jogo foi dedicada a posicionar os objetos; assim, os substantivos aparecem mais frequentemente na posição depois dos verbos (objeto direto, como la voiture em on met la voiture là -‘ nós colocamos o carro aqui’ - ou em frases preposicionais como le salon em la lampe elle va dans le salon - ‘a luminária vai para a sala’). Houve também uma proporção significativa de pronomes demonstrativos (16,38% vs. 6,56% na atividade de contar histórias) e deslocamentos (12,72% vs. 3,68% em atividade de contar histórias) em SMs22 22 Para deslocamentos, ver também Klein, Jullien; Fox (no prelo). . O exemplo 4 ilustra o caso de deslocamento envolvendo o pronome demonstrativo (Samuel45).


(4) Samuel, 7:4, Jogo simbólico

Este último resultado provavelmente se deve ao fato de prevalecer a manipulação dos brinquedos e de que esta atividade envolve gêneros específicos (veja abaixo), como denominar, e movimentos dialógicos, tais como enunciados contrastantes.

2.3 A influência do gênero do discurso no uso de expressões referenciais

A noção bakhtiniana de gênero do discurso implica a ligação entre tipos de discurso e atividades. Nossos dados confirmam essa ligação: por exemplo, atividades com figuras envolvendo uma quantidade importante de classificação (ver exemplo 2, Clément2), enquanto a contação de histórias envolve o discurso narrativo e a descrição de ações. Um dos pontos cruciais da abordagem dialógica é investigar se as habilidades referenciais se desenvolvem sozinhas ou se elas crescem mediadas pelo envolvimento das crianças em várias sequências discursivas. Muitos estudos mostram que os gêneros do discurso impactam as formas sintáticas e as escolhas lexicais no discurso da criança (BERMAN & NIR-SAGIV, 2004BERMAN, R., NIR-SAGIV, B. Linguistic Indicators of Inter-genre. Differentiation in Later Language Development. Journal of Child Language, v.2, n.31, pp.339-380, 2004.; JISA & STRÖMQVIST, 2002JISA, H., STRÖMQVIST, S. Pragmatique et acquisitions tardives chez l'enfant: langage oral et langage écrit. In: BERNICOT, J., TROGNON, A., GUIDETTI, M., MUSIOL, M. (Eds.). Pragmatique et Psychologie. Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 2002. p.257-265.). Apesar de haver menos estudos lidando com o uso de ERs, alguns têm mostrado que a sua distribuição é afetada pelo gênero: por exemplo, discurso narrativo vs. discurso expositivo ou persuasivo (MAZUR-PALANDRE & JISA, 2012MAZUR-PALANDRE, A., JISA, H. Introduire et développer l’information: une acquisition tardive? CogniTextes. Revue de l’Association française de linguistique cognitive, n.7, https://doi.org/10.4000/cognitextes.597, 2012.
https://doi.org/10.4000/cognitextes.597...
), contação de histórias vs. relato de experiência pessoal (DE WECK, 1991DE WECK, G. La cohésion dans les textes d’enfants. Neuchâtel-Paris: Delachaux & Niestlé, 1991.), ou, no nível do enunciado, descrição vs. denominação (SALAZAR ORVIG et al., 2018SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., HEURDIER, J., DA SILVA, C. Referential Features, Speech Genres and Activity Types. In: HICKMANN, M., JISA, H., VENEZIANO, E. (Eds.). Sources of Variation in First Language Acquisition: Languages, Contexts, and Learners. Amsterdam: John Benjamins, 2018. pp.219-242.).

No projeto DIAREF, Vinel et al. (no prelo)VINEL, E., SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., NASHAWATI, S., RAHMATI, S. The Impact of Speech Genres on the Use of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach. Amsterdam: John Benjamins. [in press]. investigaram duas hipóteses: 1) a de que a sensibilidade da criança à acessibilidade do referente é construída no uso das ERs em vários gêneros; 2) a de que esta ligação evolui com a idade. Para tratar desses dois assuntos, o estudo considerou a maneira como os gêneros afetam a proporção de ERs no discurso da criança e como esse fator interage com a posição do referente no encadeamento referencial. Para neutralizar, o máximo possível, o fator de atividade, o estudo foi conduzido a partir de atividades com imagens (tanto contação de histórias de um livro ilustrado como jogos envolvendo figuras, tais como loto, cartas, quebra-cabeças etc). O estudo contou com 14 crianças (com idade entre 1;7 e 2;6 anos) para as duas atividades e 30 crianças mais velhas (com idade entre 3;6 e 7;5 anos) apenas para a contação de histórias.

Os gêneros do discurso foram considerados a partir de dois ângulos complementares: a) o gênero no nível das sequências discursivas, determinado pela relação do discurso com o espaço referencial. Neste sentido, as sequências narrativas, que constroem um mundo ficcional, diferem das sequências de aqui-agora nas quais os enunciados se referem às situações, tempo e espaço da interação. A comparação entre as sequências discursivas foi realizada apenas no corpus das crianças menores. b) O gênero no nível do enunciado: especialmente denominação, descrição de ações, descrição de estados, explicações e argumentações.

Os resultados dessa investigação mostraram que as sequências discursivas tiveram um impacto na “escolha” dos pronomes de terceira pessoa e dos substantivos. As crianças usaram mais os pronomes de terceira pessoa (18,73%) e mais substantivos (46,11%) nas sequências narrativas do que nas sequências de aqui-agora (respectivamente 6,69% e 31,56%). Entretanto, esse impacto não foi estatisticamente significativo quando as sequências discursivas foram consideradas juntamente com os gêneros do discurso no nível do enunciado. Outras pesquisas são necessárias para um melhor entendimento da forte sobreposição desses dois níveis.

No nível dos enunciados, o gênero do discurso, juntamente com a posição na cadeia referencial, pode ser um fator determinante para a escolha de uma ER. Em alguns casos, o gênero do discurso anula o fator de “posição referencial”. Por exemplo, os pronomes de terceira pessoa aparecem preferencialmente em descrições de ações, como podemos ver no exemplo 5, em uma sequência discursiva do aqui-agora para uma criança, e, no exemplo 6, em uma sequência narrativa para uma criança mais velha.


(5) Maxime, 2:3, quebra-cabeça

(6) Anaïs, 4:4, contação de história

Por outro lado, a denominação foi um fator dominante para os pronomes demonstrativos clíticos c’est, isto/este, e o único fator significativo para o uso dos pronomes demonstrativos fortes ça, este/aquele. A força desse fator deve-se, provavelmente, à influência das atividades, que foram todas baseadas em imagens (ver 3.2). Salazar Orvig et al. (2018)SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., HEURDIER, J., DA SILVA, C. Referential Features, Speech Genres and Activity Types. In: HICKMANN, M., JISA, H., VENEZIANO, E. (Eds.). Sources of Variation in First Language Acquisition: Languages, Contexts, and Learners. Amsterdam: John Benjamins, 2018. pp.219-242. mostraram, em um corpus maior, incluindo todos os tipos de atividade, que a denominação foi um fator predominante para o uso dos pronomes demonstrativos clíticos, mas que os pronomes demonstrativos fortes podem ser geralmente usados em enunciados descritivos. A diferença de resultado entre Vinel et al. (no prelo)VINEL, E., SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., NASHAWATI, S., RAHMATI, S. The Impact of Speech Genres on the Use of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach. Amsterdam: John Benjamins. [in press]. e Salazar Orvig et al. (2018)SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., HEURDIER, J., DA SILVA, C. Referential Features, Speech Genres and Activity Types. In: HICKMANN, M., JISA, H., VENEZIANO, E. (Eds.). Sources of Variation in First Language Acquisition: Languages, Contexts, and Learners. Amsterdam: John Benjamins, 2018. pp.219-242. revela a forte interação entre esses dois níveis de fatores sociodiscursivos.

Quando consideramos as sequências narrativas sozinhas, o uso de substantivos ou de pronomes de terceira pessoa é determinado tanto pelo gênero do discurso dos enunciados, quanto pela posição na cadeia referencial preferida (PM para os substantivos e SM para pronomes de terceira pessoa), assim como podemos ver, de maneira semelhante a um adulto, no exemplo a seguir (parcialmente visto no exemplo 3):


(7) Damien, 7:4 contação de história

Acima de tudo, o estudo do impacto dos gêneros do discurso no uso das ERs fornece um caminho para explicar as primeiras habilidades referenciais. Os resultados em Vinel et al. (no prelo)VINEL, E., SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., NASHAWATI, S., RAHMATI, S. The Impact of Speech Genres on the Use of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach. Amsterdam: John Benjamins. [in press]. demonstram que essa “escolha” dos pronomes de terceira pessoa e dos substantivos não é determinada por um único fator, nem pela posição no encadeamento referencial ou pelo gênero do discurso, mas por sua intensa interação. Assim, podemos levantar a hipótese de que os usos das ERs, limitados pelos gêneros do discurso, são mediadores potenciais para a aquisição e desenvolvimento da habilidade cognitiva, autônoma e mais madura, de avaliar a acessibilidade de um referente para um interlocutor.

2.4 A influência do contexto social no uso das expressões referenciais

Um terceiro aspecto do impacto da dimensão sociodiscursiva na aquisição de ERs é a influência dos contextos sociais. Os contextos sociais são considerados, aqui, em concordância com Vygotsky e Bakhtin, como espaços culturais. Na verdade, na concepção de língua de Bakhtin, o dialogismo abrange os conceitos de polifonia e também de heteroglossia, os dizem respeito às múltiplas vozes e perspectivas que constituem o mundo social. Defendemos, baseados nas visões de Bakhtin, que qualquer uso da linguagem é mediado pelos caminhos sociais de interação que se relacionam com campos sociais específicos. Assim, conforme as crianças crescem e entram na escola, elas experienciam outros usos de linguagem, diferentes daqueles vivenciados em casa. Baseados nessa premissa, para mostrar a influência do contexto social, comparamos os usos de ERs pelas crianças durante a atividade de contar histórias em casa com suas mães e na escola com suas professoras e colegas de sala. As crianças tinham entre 3;3 a 5;9 anos. Elas frequentavam uma das três diferentes séries da “école maternelle” (educação infantil) francesa. Os dados foram coletados em quatro salas diferentes. O total dessa população foi: 10 crianças e suas mães, e 4 professoras (DE WECK et al., no preloDE WECK, G., HASSAN, R., HEURDIER, J., KLEIN, J., SALAGNAC, N. Activities and Social Settings: Their Roles in the Use of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach . Amsterdam: John Benjamins. [in press].; HASSAN et al., no preloHASSAN, R., DE WECK, G., REZZONICO, S., SALAZAR ORVIG, A., VINEL, E. Variations in Adult Use of Referring Expressions during Storytelling in Different Interactional Settings. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach . Amsterdam: John Benjamins. [in press].).

Os resultados mostram claramente que os usos das crianças variam não apenas de acordo com o contexto social, mas também seguem a mesma tendência do uso dos adultos, em cada um dos contextos observados. A esse respeito, verificamos que as professoras usaram duas vezes mais substantivos do que as mães, que usaram mais pronomes de terceira pessoa e mais demonstrativos, considerando toda a distribuição de ERs. As professoras raramente usaram os pronomes demonstrativos, e utilizaram apenas 10 deslocamentos pronominais, dez vezes menos do que as mães. Esse é um ponto interessante de se observar, já que os deslocamentos pronominais são uma característica específica do francês falado. Os resultados também mostram que quando as professoras introduzem um referente (o que raramente fizeram), elas utilizam pronomes interrogativos e substantivos, sendo que elas nunca fizeram uso de um pronome de terceira pessoa ou um pronome demonstrativo, enquanto as mães o fizeram em proporção significativa, 22% e 6%, respectivamente.

Entretanto, para as SMs, como era esperado, pronomes de terceira pessoa foram dominantes nos dois grupos; a diferença apareceu entre as mães e as professoras. As professoras utilizaram duas vezes mais substantivos (29,23%) do que as mães (15,34%). As mães usaram quatro vezes mais pronomes de terceira pessoa (62,54%) do que substantivos. Para as professoras, a proporção de pronomes de terceira pessoa (dominantes com 42,86%) e substantivos foi mais equilibrada. Assim como para as PMs, elas raramente usaram qualquer demonstrativo ou deslocamento de pronomes. O uso frequente de substantivos para SMs deixa as professoras distantes das mães. Quanto mais novas as crianças são, mais esse uso específico de substantivos para SMs fica evidente, caracterizando o uso das professoras. Estes dados podem ser explicados pelo fato de que na sala de aula, diferente do contexto da casa, o livro não pode ser manipulado pelos interlocutores (que são muitos); ele é compartilhado, mas com uma certa distância. É, então, necessário explicar e verbalizar, já que o apontar é geralmente evitado. Além disso, as professoras geralmente captam as ERs dos alunos (que são, na maioria, substantivos, como veremos abaixo) para adicioná-los ou validá-los, como será mostrado no exemplo 8.


(8) Primeiro ano da escola maternal23 23 N.T.: Preferimos manter uma tradução literal da expressão considerando que a educação infantil na França não corresponde exatamente à mesma faixa etária do Brasil. Na França, as crianças começam a “école maternelle” aos 3 anos de idade. , contação de história, início da seção

No exemplo 8, a professora retoma o substantivo, adicionando c’est vrai (‘é verdade’) ou on voit (‘Nós vemos’), para confirmar e aprovar a resposta. Este exemplo também demonstra que as crianças produzem substantivos em resposta às perguntas da professora.

Para as crianças, o uso das ERs na escola também é diferente dos usos em casa (DE WECK et al., no preloDE WECK, G., HASSAN, R., HEURDIER, J., KLEIN, J., SALAGNAC, N. Activities and Social Settings: Their Roles in the Use of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach . Amsterdam: John Benjamins. [in press].). Na escola, elas usam, de maneira geral, mais substantivos (48,09% vs. 29,40% em casa) do que a terceira pessoa (39,38% vs. 45,77% em casa) e pronomes demonstrativos (2,10% vs. 6,95% em casa) (nenhuma diferença foi encontrada para os deslocamentos). Para as PMs, as crianças, na escola, raramente usam pronomes: elas usam substantivos (87,83%), como mostrado no exemplo 9. Em casa, embora elas usem principalmente substantivos (62,5%), elas também usam pronomes de terceira pessoa (14,58%, veja o exemplo 10 abaixo) e outros pronomes em quase um terço das introduções aos referentes.


(9) Primeiro ano de uma escola maternal, contação de história

As crianças introduzem referentes usando uma espécie de ritual ou frases formatadas com o verbo “voir” (‘ver’) + um NP indefinido (como em Anaïs3 e Kenzo14). Essa construção de introdução parece ser específica da sala de aula. Encontramos apenas uma ocorrência desta construção em casa, nos nossos corpora, quando Anaïs responde a uma pergunta, em que a mãe utiliza o verbo “voir” (qu’est-ce que tu vois d’autre?, ‘o que mais você vê’?)


(10) Oscar, 5: 8, contação de histórias em casa

No exemplo 10, Oscar continua sua narrativa conversando sobre o personagem principal usando o pronome de terceira pessoa il, ‘ele’ (Oscar42), mas em Oscar43, ele usa o mesmo pronome il ‘ele’, para falar de um novo referente. Diferentemente do que vimos no exemplo 3, o uso do pronome é ambíguo e faz a mãe perguntar a Oscar de quem ele está falando (Mother44).

Quando se trata das SMs, as crianças utilizam majoritariamente os pronomes de terceira pessoa nos dois contextos, mas elas utilizam mais substantivos na escola do que em casa. Quanto mais novas elas são, mais elas utilizam substantivos para as SMs, se comparados com os pronomes de terceira pessoa. Essa proporção pode ser explicada por dois fenômenos complementares: as crianças respondem às perguntas das professoras para identificar os referentes; elas propõem respostas concorrentes como no exemplo 11, em que as crianças discutem a identidade do personagem principal antes mencionado:


(11) Primeiro ano de escola maternal, contação de história

Este exemplo também sugere que as crianças podem internalizar a importância do vocabulário aprendido na escola e identificar e nomear os referentes envolvidos na história antes de descrever suas ações.

Discussão e conclusão

O principal objetivo deste artigo foi mostrar como a perspectiva dialógica pode contribuir com as abordagens interacionistas e sociopragmáticas de aquisição da linguagem. Entre as contribuições possíveis, seguimos uma metodologia reversa, decorrente da proposta de Vološinov para examinar como as situações comunicativas determinam estruturas e unidades linguísticas. Para alcançar este objetivo, apresentamos e discutimos os principais resultados do projeto DIAREF sobre as ERs, destacando a influência de fatores sociodiscursivos na “escolha” de substantivos, pronomes pessoais, pronomes demonstrativos e deslocamentos. As ERs aparecem como uma categoria particularmente relevante para este tipo de estudo porque usá-las e dominá-las envolve dimensões formais (gramatical e sintática) e funcionais (discursivo-pragmática). Além disso, um domínio como o de um adulto das ERs envolve também habilidades textuais (DE WECK, 1991DE WECK, G. La cohésion dans les textes d’enfants. Neuchâtel-Paris: Delachaux & Niestlé, 1991.) e habilidades cognitivas (DE CAT, 2015DE CAT, C. The Cognitive Underpinnings of Referential Abilities. In: SERRATRICE, L., ALLEN, S. E. M. (Eds.). The Acquisition of Reference. Amsterdam: John Benjamins, 2015. pp.263-283.; SERRATRICE; DE CAT, 2020SERRATRICE, L., DE CAT, C. Individual Differences in the Production of Referential Expressions: The Effect of Language Proficiency, Language Exposure and Executive Function in Bilingual and Monolingual Children. Bilingualism: Language and Cognition, v.2, n.23, pp.371-386, 2020. ). Assim, uma das maiores questões neste campo é resolver o aparente paradoxo entre as habilidades referenciais das crianças (observada nas interações das crianças mais novas e no discurso das crianças mais velhas) e suas dificuldades reais em lidar com o conhecimento compartilhado dos seus interlocutores e disponibilidade perceptual dos referentes (HICKMAN; COLONNA; SCHIMKE, 2015). Um dos aspectos desse paradoxo diz respeito ao fato de que as crianças exibem uma capacidade de usar formas adequadas para os referentes que são dados no discurso (ou SMs). Isso significa que maior maturidade cognitiva ou habilidades textuais não podem explicar essas habilidades referenciais. Como então a criança possui essa performance incrível? Alguns estudos se voltaram para uma concepção limitada da influência do diálogo, considerando que a preparação (SERRATRICE, 2006) - que é uma influência formal - pode explicar a performance das crianças. Entretanto, a preparação por si só não pode explicar o uso que as crianças mais novas fazem (MARCOS et al., no preloMARCOS, H., SALAZAR ORVIG, A., DA SILVA, C., HEURDIER, J. The Influence of Dialogue in Young Children’s Uses of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach . Amsterdam: John Benjamins. [in press].) e ela não é relevante quando consideramos produções monológicas. Ao contrário, levar em conta as dimensões dialógicas e sociodiscursivas pode lançar luz sobre esse problema.

Nossos resultados mostram que as crianças dispõem de uma variedade de usos que mudam de acordo com os contextos, as atividades e os gêneros do discurso no estudo. Eles revelam que o “domínio” de características funcionais das unidades gramaticais está ancorado em contextos interacionais específicos. Se considerarmos substantivos, por exemplo, sua proporção varia de acordo com as atividades, gêneros do discurso e contextos sociais; e seu predomínio esperado em PMs é modulado pela dinâmica específica do diálogo em cada contexto interacional. Isso também se aplica aos pronomes e aos deslocamentos, e às SMs. Estes resultados sugerem que, primeiramente, os modelos de produção de discurso oferecidos pelos adultos (DE WECK et al., 2019DE WECK, G., SALAZAR ORVIG, A., REZZONICO, S., VINEL, É., BERNASCONI, M. The Impact of the Interactional Setting on the Choice of Referring Expressions in Narratives. First Language, v.3, n.39, pp.298-318, 2019. ; DE WECK et al., no preloDE WECK, G., HASSAN, R., HEURDIER, J., KLEIN, J., SALAGNAC, N. Activities and Social Settings: Their Roles in the Use of Referring Expressions. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach . Amsterdam: John Benjamins. [in press].) têm uma influência nos usos das crianças, como vimos acima, quando comparamos o uso das crianças com o de suas mães e professoras. É provável que as crianças retomem o uso de formas linguísticas nos seus contextos antes de adquirir proficiência completa de seus valores semânticos e pragmáticos (NELSON, 2007NELSON, K. Young Minds in Social Worlds: Experience, Meaning, and Memory. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 2007.)24 24 Como os modelos baseados no uso mostram, esta influência pragmática tem que ser considerada juntamente com o efeito de frequência das construções do input. . Entretanto, o impacto desses modelos não pertence a um processo de imitação. Se esses modelos têm um impacto, é porque as crianças aprendem a usar as ERs em sequências de diálogo recorrentes e significativas, que Bruner (1983BRUNER, J. S. Child's Talk. Learning to Use Language. New York: W.W. Norton & Company, 1983.) chama de formatos. Como mostramos, estes contextos, se considerados: a atividade, o gênero do discurso ou o contexto social, influenciam fortemente a “escolha” das ERs. Podemos, assim, argumentar que as crianças retomam as propriedades discursivo-pragmáticas de recursos linguísticos nesses níveis sociodiscursivos, antes de torná-las um conhecimento mais específico de características semânticas e pragmáticas de formas linguísticas. Nossos resultados, assim, confirmam a ideia bakhtiniana de que as crianças desenvolvem sua língua a partir das experiências comunicativas e discursivas.

  • Declaração de autoria e responsabilidade pelo conteúdo publicado
    Declaramos que todas as autoras tiveram acesso ao corpus de pesquisa, participaram ativamente da discussão dos resultados e revisaram e aprovaram o processo de preparação da versão final do artigo.
  • Tradução de Paula Cristina Bullio - pcbullio@gmail.com
  • Revisão técnica de Alessandra Del Ré - del.re@unesp.br e Rosângela Nogarini Hilário - ronogarini@gmail.com
  • 1
    Tradução nossa. Texto original em francês: “[...] l’enfant ne va pas des structures de la langue à la parole, mais des énoncés de l’autre aux énoncés de soi: bref [...] son discours est essentiellement dialogique”.
  • 2
    VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de Jefferson Luíz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1934].
  • 3
    BRUNER, J. Como as crianças aprendem a falar. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Horizontes Pedagógicos, 2007 [1986].
  • 4
    Gostaríamos de agradecer aos dois pareceristas anônimos pelos comentários relevantes e questões que nos ajudaram a deixar o texto mais claro.
  • 5
    O projeto DIAREF (Aquisição das Expressões Referenciais em diálogo: abordagem multimodal, fundado pela Agência Nacional Francesa para pesquisa, ANR-09- ENFT- 055) juntou diversos grupos e instituições, bem como muitos pesquisadores ao redor da abordagem multimodal de aquisição de expressões referenciais (webpage http://www.univ-paris3.fr/anr-diaref-37421.kjsp?RH=1505727285324). Os resultados principais do projeto serão publicados em Salazar Orvig, de Weck, Hassan & Riallland (no prelo)SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach. Amsterdam: John Benjamins. [in press]..
  • 6
    Para referência, ver nota de rodapé 2.
  • 7
    BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução (do francês) Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. Prefácio Roman Jakobson. Apresentação Marina Yaguello. São Paulo: Hucitec, 1995. [1929]
  • 8
    BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.206-306. [1979]
  • 9
    Para a discussão sobre as convergências e divergências entre as abordagens bakhtiniana e vygotskiana, ver Cheyne & Tarulli, 2005CHEYNE, J. A., TARULLI, D. Dialogue, Difference and Voice in the Zone of Proximal Development. In: DANIELS, H. (Ed.). An Introduction to Vygotsky. London: Routledge, 2005. pp.125-147.; François, 2005FRANÇOIS, F. Interprétation et dialogue chez des enfants et quelques autres. Lyon: ENS Editions, 2005.; Wertsch, 1991WERTSCH, J. V. Voices of the Mind. Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1991..
  • 10
    Para referência bibliográfica, ver nota 8.
  • 11
    Para referência bibliográfica, ver nota 8.
  • 12
    A definição de gêneros do discurso está intimamente associada com a noção de atividade, como podemos ver no começo do capítulo de Bakhtin sobre os gêneros do discurso. “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana [...]” (BAKHTIN, 2003 [1979], p.261).
  • 13
    Para referência, ver nota de rodapé 7.
  • 14
    Para referência, ver nota de rodapé 3.
  • 15
    Para referência, ver nota de rodapé 2.
  • 16
    Não é possível apresentar, neste artigo, todas as facetas do programa de pesquisa multidimensional, nem os resultados de todas as ERs ou as várias análises formais e funcionais. Para mais detalhes, ver Salazar Orvig et al. (no prelo)SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., HEURDIER, J., DA SILVA, C. Referential Features, Speech Genres and Activity Types. In: HICKMANN, M., JISA, H., VENEZIANO, E. (Eds.). Sources of Variation in First Language Acquisition: Languages, Contexts, and Learners. Amsterdam: John Benjamins, 2018. pp.219-242..
  • 17
    Os dados para os estudos do projeto DIAREF foram compilados a partir de corpora de projetos de pesquisa anteriores: a) O projeto Colaje (MORGENSTERN; PARISSE, 2012MORGENSTERN, A., PARISSE, C. The Paris Corpus. Journal of French Language Studies, n.22(01), pp.7-12, 2012.); b) Desenvolvimento da Linguagem e da Comunicação entre dois e três anos: influência do modo doméstico (MARCOS et al., 2004MARCOS, H., SALAZAR ORVIG, A., BERNICOT, J., GUIDETTI, M., HUDELOT, C., PRÉNERON, C. Apprendre à parler: influence du mode de garde. Paris: L'Harmattan, 2004.); c) As interações mãe-criança em situações Logopédicas (Fundação Nacional Suíça de Ciência subsidiada N. 100012-111938 e 100012-111938/1) (DE WECK et al., 2019DE WECK, G., SALAZAR ORVIG, A., REZZONICO, S., VINEL, É., BERNASCONI, M. The Impact of the Interactional Setting on the Choice of Referring Expressions in Narratives. First Language, v.3, n.39, pp.298-318, 2019. ); d) Tese de Doutorado de Nashawati (2010)NASHAWATI, S. Le développement des expressions référentielles chez le jeune enfant: noms et pronoms dans des dialogues mère-enfant (PhD dissertation, Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, France). Retrieved from https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01171621. 2010.
    https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-011...
    ; e) Desenvolvimento das condutas dialógicas (SALAZAR ORVIG, 2003SALAZAR ORVIG, A. L'inscription dialogique du jeune enfant : évolution, diversité et hétérogénéité. TRANEL, n.38-39, p.7-24, 2003.); f) Comparação entre a comunicação Mãe-Criança e Pai-Criança (KORNHABER-LE CHANU; MARCOS, 2000KORNHABER-LE CHANU, M., MARCOS, H. Young Children's Communication with Mothers and Fathers: Functions and Contents. British Journal of Developmental Psychology, n.2, pp.187-210, 2000.); e g) Tese de Doutorado de Yamaguchi (2012)YAMAGUCHI, N. Parcours d’acquisition des sons du langage chez deux enfants francophones (PhD dissertation, Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, France). Retrieved from https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01127106, 2012.
    https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01...
    . Dois conjuntos específicos de dados foram coletados para o projeto DIAREF: O Corpus DIAREF-Lille (VINEL, 2014VINEL, E. Comment des adultes et des enfants, âgés de 3 à 6 ans, racontent ensemble des histoires en situations familiales et scolaires (PhD dissertation, Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, France). Retrieved from https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01271821, 2014.
    https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01...
    ) e o Corpus de Narrativas de Adultos (DE WECK et al., 2019DE WECK, G., SALAZAR ORVIG, A., REZZONICO, S., VINEL, É., BERNASCONI, M. The Impact of the Interactional Setting on the Choice of Referring Expressions in Narratives. First Language, v.3, n.39, pp.298-318, 2019. ). Para mais detalhes, ver Salazar Orvig et al. (no prelo)SALAZAR ORVIG, A., MARCOS, H., HEURDIER, J., DA SILVA, C. Referential Features, Speech Genres and Activity Types. In: HICKMANN, M., JISA, H., VENEZIANO, E. (Eds.). Sources of Variation in First Language Acquisition: Languages, Contexts, and Learners. Amsterdam: John Benjamins, 2018. pp.219-242..
  • 18
    Dois livros foram utilizados: GOODALL, J.S. Ah les belles vacances des petits cochons! Paris: Gallimard, 1980; Título original: Paddy Pork's Holiday, Macmillan Children's Books (1975), com a mãe; RODRIGUEZ, B. Le voleur de poules. Paris: Autrement, 2005/2010, com o professor.
  • 19
    O ‘deslocamento’ é uma construção muito comum no francês falado. É formado por uma expressão forte (substantivo, pronome demonstrativo) e um pronome clítico em uma posição de retomada (e.g. le chien il court, ‘o cachorro ele corre’). Como mostrado por Lambrecht (1994)LAMBRECHT, K. Information Structure and Sentence Form. Topic, Focus and the Mental Representations of Discourse Referents. Cambridge: Cambridge University Press, 1994., essa construção permite que uma forma forte, tal como um substantivo ou um pronome demonstrativo (geralmente atribuído à expressão de nova informação), seja utilizada em uma posição de tópico.
  • 20
    Nos exemplos, a primeira linha apresenta, no caso das crianças mais novas, a transcrição fonética, e a segunda, a interpretação na forma adulta. Na coluna da direita é apresentada uma tradução literal com o propósito de informação. Indicações não verbais são dadas entre (( )); / e // significam pausas breves; { } indica incerteza e segmentos não interpretáveis. Fonemas não pronunciados aparecem entre ( ).
  • 21
    A construção quase fixa c’est é típica do francês falado, tanto no discurso dos adultos quanto no das crianças. Ela é formada pelo verbo être (ser) e o pronome demonstrativo clítico ‘c(e)’, que pode ser usado de forma referencial ou não referencial.
  • 22
    Para deslocamentos, ver também Klein, Jullien; Fox (no prelo)KLEIN, J., JULLIEN, S., FOX, G. Explorations in the Relations between Reference, Syntactic Constructions and Prosody. In: SALAZAR ORVIG, A., DE WECK, G., HASSAN, R., RIALLAND, A. (Eds.). The Acquisition of Referring Expressions: A Dialogical Approach . Amsterdam: John Benjamins. [in press]..
  • 23
    N.T.: Preferimos manter uma tradução literal da expressão considerando que a educação infantil na França não corresponde exatamente à mesma faixa etária do Brasil. Na França, as crianças começam a “école maternelle” aos 3 anos de idade.
  • 24
    Como os modelos baseados no uso mostram, esta influência pragmática tem que ser considerada juntamente com o efeito de frequência das construções do input.

Agradecimentos

Os estudos reportados neste artigo foram conduzidos pelos autores juntamente com: J. Heurdier, J. Klein, S. Nashawati, S. Rahmati, S. Rezzonico, N. Salagnac, e E. Vinel a quem devemos muito. Nós também agradecemos a M. Bernasconi, C. da Silva-Genest, J. Leber-Marin, M. Le Mené, e H. Marcos, os quais participaram da análise de dados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2020
  • Aceito
    19 Out 2020
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