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Entoação visual negra em experimento audiovisual de Arthur Jafa

RESUMO

O objeto de estudo do presente artigo é o conceito de entoação visual negra formulado pelo multiartista Arthur Jafa no vídeo-ensaio Love Is the Message, the Message Is Death (2016). Com o objetivo de descobrir a singularidade do cinema negro na composição fílmica, o artista construiu um experimento e examina como memórias encarnadas afloram sob forma de cantos e danças, realinhando formas culturais tradicionais que a travessia diaspórica dispersou. Conclui-se, assim, que a singularidade estético-política do cinema negro emerge na entoação verbi-voco-visual negra que, assim, exterioriza energias interiores interativas e organiza um espaço crítico-discursivo no qual pessoas pretas podem falar de si, de seus desejos, sonhos e aflições.

PALAVRAS-CHAVE:
Cinema negro; Discurso audiovisual; Entoação visual negra; Forma estético-política; Voz

ABSTRACT

The purpose of this paper is to study the idea of black visual intonation in the video-essay Love Is the Message, the Message Is Death (2016) by visual artist Arthur Jafa. With the aim at discovering the singularity of black cinema in filmic composition, the artist carried out an experiment to examine how embodied memories emerge in the form of songs and dances, recovering traditional cultural features that the Afro-Atlantic diaspora dissipated. We find that the aesthetic-political singularity of black cinema emerges in the black verbal-vocal-visual intonation, which externalizes interactive inner energies and organizes a critical-discursive space in which black people can talk about themselves, their desires, dreams and sorrows.

KEYWORDS:
Black cinema; Audiovisual discourse; Black visual intonation; Aesthetic-political form; Voice

Apresentação do problema

Entoação visual negra1 1 Em nossa pesquisa, adotamos preferencialmente os termos preta/preto/pretitude e suas variações plurais na caracterização de pessoas provenientes da diáspora africana na cena atual de disputa por espaço e direitos civis. Usamos o termo negro/negra/negritude quando faz parte de expressão ou conceito convencionalizado historicamente como movimento negro, cultura negra e cinema negro. Em estudos crítico-teóricos encontramos: negridade (Silva, 2019; Gadelha, 2022); prete e pretitude (Moten, 2021; 2023). Ver ainda: Bernd, 1984; Ferreira, 2006. apresenta resultado parcial de uma pesquisa sobre a estética do cinema negro. No presente artigo, discute-se o conceito de Black Visual Intonation (BVI) formulado pelo multiartista Arthur Jafa (1998JAFA, Arthur. Black Visual Intonation. In: O’MEALLY, Robert G. (Ed.). The Jazz Cadence of American Culture. New York: Columbia University Press, 1998., p. 264-9; 2016; Campt; Jafa, 2017, p. 1-10) como hipótese de investigação estética sobre a relação entre cinema negro e a cultura afro-diaspórica estadunidense.

No experimento que serviu de objeto de estudo, o vídeo-ensaio Love Is the Message, the Message is Death (2016), Jafa chegou à noção de entoação visual negra examinando fotos, cenas de arquivos e também realizando gravações de acontecimentos presenciados. Neles, depoimentos, marchas, protestos, violências, cantos rituais e de música pop, jogos e danças aparecem como formas de manifestação do corpo negro-em-ação, movimentando energias físicas e memórias histórico-culturais encarnadas. Tudo isso entra como matéria prima do vídeo que discute ideias na performance de sua realização. Enquanto conjuga diferentes ideias, posicionamentos, confrontos em atuações sócio-interativas, o vídeo ensaia a constituição de princípios comuns entre forma estética e forma política - duas faces da composição criativa com atuação estética e ética que define o trabalho criativo da arte negra de Jafa. Seu objetivo é preciso: alcançar a singularidade estético-política do cinema negro como espaço crítico do discurso audiovisual no qual pessoas pretas possam falar de si com a presença da entoação verbi-voco-visual que carregam, independente de toda sujeição historicamente imposta.

Quando da elaboração de seu projeto2 2 Informações sobre o artista com análise de seus projetos e obras podem ser encontradas no site liquid blackness, disponível em https://liquidblackness.com/arthur-jafa. Acesso em 20 jan. 2024. , Jafa estava insatisfeito com o papel que o cinema hollywoodiano reservava às participações de atores negros em seus filmes. Indignava-lhe o fato de este cinema nunca se ter ocupado da elaboração de uma noção elementar de cinema negro, fato que fomentou no artista a ideia de o cinema negro ser uma experiência fílmica distintiva, nascida da e na cultura negra, sem intermediação e fora das categorias estabelecidas pelo cinema-indústria. Em sua atividade, tinha consciência de que a noção e a prática de um cinema negro demandariam experiências que ultrapassassem a visão estreita de oposição binária, típica do cinema de Hollywood. Entendia que tal oposição nunca garantiu uma definição da natureza e dos modos de realização de um cinema negro valorizado em sua qualidade diferencial. Além disso, sabia que Hollywood fora responsável pela perpetuação de diferentes formas discriminatórias e estigmatizantes segundo as quais, se o cinema negro existisse, não passaria de um filho bastardo do Ocidente europeu que assimilava ideias impostas aos negros. Jafa, contudo, acreditava que nada disso foi legitimado por nenhuma das comunidades negras de seu entorno. Tal quadro não satisfazia as demandas do artista pois todas as possíveis conquistas da população preta estadunidense sempre foram resultado de muitas lutas travadas em diversas frentes. Não lhe restava senão buscar alternativas.

Sua primeira iniciativa, que resultou em um caminho experimental produtivo, foi realizada no filme-ensaio Dreams are Colder than Death (2013)3 3 O filme foi examinado em ensaio específico: Ontologia da pretitude em ensaios audiovisuais (Machado, 2024, a sair). . Neste experimento, o processo construtivo foi elaborado conjuntamente com o interesse de Jafa em elaborar caminhos interpretativos de uma ontologia da pretitude orientada para a concepção e elaboração de uma estética negra construída pelas vozes negras, suas ideias e posicionamentos comunitários, exorbitando o domínio do cinema hollywoodiano com uma proposta radicalmente inovadora, a começar pelo caráter ensaístico de um debate de ideias audiovisualmente constituído.

Movido pela preocupação em criar procedimentos estéticos comprometidos com os paradoxos das vidas pretas diaspóricas, Jafa estudou a possibilidade de construir formas audiovisuais em que a organização estética estivesse impregnada da forma política da cultura negra desenvolvida nos EUA. Para isso investiu no estudo das lutas dos afrodescendentes contra a segregação racial e a usurpação dos direitos civis humanitários impostas pelo projeto colonial. Observou que o controle rigoroso e desumano da escravização, com todo seu aparato de restrições e subjugação, não impediu a construção de processos interativos e emergência de novas expressões culturais que foram decisivas para a constituição da cultura negra norte-americana cujo expoente se manifestou muito propriamente na música, no canto e na dança. E isso foi fruto de um aprendizado ao qual Jafa se dedicou acompanhando workshops de criadores de performances experimentais e também ao participar de projetos coletivos com artistas audiovisuais, tal como o TNEG4 4 Jafa atuou como cinegrafista em filmes de cineastas consagrados: Charles Burnett, Spike Lee e Stanley Kubrick, dentre outros. Nos anos 90, trabalhou com o diretor de fotografia Malik Hassan Sayeed no filme Eyes Wide Shut (De olhos bem fechados, 1999, Reino Unido, Direção de Stanley Kubrik), e juntos criaram a produtora TNEG. Informações sobre a produção dos artistas e cineastas encontram-se disponíveis nos sites Black Avant-Garde Cinema no endereço: https://ktt2.com/new-black-avantgarde-cinema-arthur-jafa-malik-hassan-sayeed-112890 e https://www.impossibleobjectsmarfa.com/fragments/tneg. Também em nosso estudo citado (Machado, 2024 no prelo). .

Um caminho favorável ao desenvolvimento de sua inquietação criativa surgiu quando, nos anos setenta, iniciou estudos com o cineasta Larry Clark sobre experiências de montagem fílmica baseada na “cadência do jazz”. Quer dizer, Clark acreditava ser possível adotar, no cinema, procedimentos do jazz naquilo que lhe parecia seu fundamento: as variações harmônicas. Considerava que a ressonância de acordes, ao perderem potência em frases melódicas, abrem espaço para improvisações injetando o vigor de novas elaborações - o que seria possível também na montagem audiovisual. Tal exercício resultou no filme Passing Through (19775 5 No Brasil, o filme foi exibido com o título: Dando um rolê, pelo do Instituto Moreira Salles (São Paulo e Rio de Janeiro), em 2019, como parte da Mostra L.A. Rebellion. Informações disponíveis em https://ims.com.br/filme/dando-um-role/. Acesso em 20 jan. 2024. em que o movimento da dramaturgia audiovisual resulta de combinações livres com deslocamentos das ênfases dramáticas, tanto da composição visual quanto das composições de um trio de jazz que participa da narrativa.

No entendimento do crítico Richard Brody (2022BRODY, Richard. One of the Greatest Movies About Jazz. The New Yorker, New York, 11 de março de 2022. Disponível em: https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/one-of-the-greatest-movies-about-jazz. Acesso em 15 jan. 2024.
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), trata-se de um procedimento no qual Clark procurou “dramatizar o mundo do jazz ‘por dentro’, isto é, expressando as lutas dos músicos de jazz no contexto da vida interior marcada por uma espécie de essência espiritual musical”6 6 No original: “[…] dramatized the world of jazz from the inside: he showed that the practical struggles of jazz musicians are inseparable from the inner life—the spiritual essence—of the music.” , permitindo experimentar uma forma dramática das raízes históricas consolidadas no processo da segregação racial. Uma dessas raízes, muito específica do mundo da música, tocava diretamente nos antagonismos da vida dos músicos que eram admitidos nos night clubs, frequentados por clientes brancos, apenas como animadores, cumpridores de suas tarefas no entretenimento musical. Fora dali, eram pessoas pretas comuns e, portanto, impedidas de frequentar os clubes e mesmo de se hospedar em hotéis. O próprio Louis Armstrong, juntamente com sua banda, durante muito tempo, não era admitido em hotéis após noitadas de aclamadas performances musicais. Conforme ainda Brody, até as gravadoras recusavam composições de músicos negros e, mesmo que o fizessem, a possibilidade de ter os discos recolhidos era uma ameaça constante.7 7 Sobre o tema, é sempre bom lembrar de Strange Fruits corajosamente interpretado por Billie Holiday, sob protestos de gravadoras e público (Margolick, 2012).

O filme de Clark focaliza tal contexto e entra no universo do músico sem separar seu talento criativo de sua história. Reconstituindo episódios da vida de um saxofonista, Eddie Warmack, interpretado por Nathaniel Taylor, recém saído da prisão e exposto à fúria de multidões contra artistas de jazz, Passing Through traduz o ambiente racial da cena musical em Los Angeles e também o envolvimento estético fervoroso que o círculo apaixonado pela música manifestava em todas suas atividades. É nas cenas de ressurgimento do passado sob forma de pesadelo que se concentrou o processo inventivo de Clark: o passado como possibilidade de criação de uma “presença audiovisual”, segundo Brody (2022BRODY, Richard. One of the Greatest Movies About Jazz. The New Yorker, New York, 11 de março de 2022. Disponível em: https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/one-of-the-greatest-movies-about-jazz. Acesso em 15 jan. 2024.
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). Através da justaposição de sequências narrativas com cenas do passado e do presente que se confundem, o experimento de Clark insere episódios dramáticos sob forma de narrativas paralelas. Um exemplo citado foi a sequência de fotos da guerra em Guiné Bissau tomada por um fotojornalista que fora morto no front do conflito. A montagem paralela enfatiza a ferida dos confrontos e as mortes registradas ganham exposição audiovisual, tornando presentes os episódios de violência que sempre definiram o cotidiano de pessoas pretas estadunidenses. A presença construída por meio da montagem paralela das fotos cria a noção de um procedimento notadamente audiovisual, quer dizer, enquanto imagem audiovisual que “só existe no filme e para o filme”, repetindo aqui o que Jean-Claude Bernardet (1981, p. 29) formulara em um estudo sobre cinema negro brasileiro.

Clark mostrou que a intensidade dramática do procedimento ganhou mais expressividade com episódios em cuja textura audiovisual ressoavam outras intensidades cromáticas, tanto sonoras quanto visuais. Ainda conforme Brody (2022BRODY, Richard. One of the Greatest Movies About Jazz. The New Yorker, New York, 11 de março de 2022. Disponível em: https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/one-of-the-greatest-movies-about-jazz. Acesso em 15 jan. 2024.
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), quando um desenho sonoro é potencializado pelas cadências do jazz, condicionando a própria montagem a seguir as articulações rítmicas da música jazzística, cumpre-se a realização de tonalidades modernas, uma vez que é - a música jazzística - o lugar da performance de músicos cujo “dedilhado rápido de um saxofone e o atletismo anguloso da bateria se sobrepõem para imprimir identidade visual aos ritmos da música”8 8 No original: “[…] the rapid fingering of a saxophone and the angular athleticism of drumming are superimposed to give visual identity to the music’s rhythms.” . Uma composição fílmica assim construída só pode ser fruto da organicidade composicional entre sonoridade e visualidade, reveladoras do imenso potencial criativo a ser explorado, tudo por “influência do jazz9 9 Título de uma canção de Carlos Lyra (2000). .

Impactado por tais qualidades estéticas criadas por Clark, Jafa encontrou em Passing Through possibilidades criativas que, se não atendiam totalmente, pelo menos apontavam caminhos interpretativos para suas inquietações. A começar pela interferência em padrões de tonalidades sonoras na composição luminosa criadores de uma sensorialidade cinética própria da linguagem audiovisual experimentada.

Com enquadramentos fechados, os contrastes de luz branca interagem com os tons da pele negra e criam desenhos de luz que se movimentam no gradiente da escala entre tons claros e escuros. Ao valorizar os padrões de luminosidade sobre os corpos pretos, a pele revela-se fonte geradora de fotossensibilidade, contrariando os padrões de luminosidade que consagraram a pele branca como referência para a definição da lógica de visibilidade da luz branca na fotografia e no cinema. A pele negra absorve a luz e joga com a escala cromática de brilhos e, ao fazê-lo, revela ser uma película fotossensível de processos gerativos de sentidos que o cinema negro pode tomar como traço distintivo de sua constituição estético-cultural. No limite, trata-se de reconhecer um manancial de criatividade aberto para a ampliação de qualidades estéticas da experiência sensível que encontra na pele dos corpos negros suas fontes naturais de sentido.

Jafa não poderia se manter indiferente a todo esse processo. Love Is the Message não deixa de ser uma resposta. Daí a importância de se compreender o papel dos experimentos estéticos da cultura negra e dos contextos socio-histórico-políticos de seu desenvolvimento nos EUA, formadores da Umwelt10 10 Umwelt, conceito formulado pelo biólogo e filósofo Jakob von Uexküll (2001) para designar o ambiente específico no qual vive uma espécie em relação às outras espécies. Com ele, iniciaram-se os estudos de etologia que incorporou também a comunicação humana em ambientes socioculturais integrados ao ecossistema do universo. específica perseguida pelo artista em seu trabalho.

Jafa traduziu e ampliou esteticamente tal aprendizado indagando quais seriam os agentes corporais para além da superfície da pele que pudessem reproduzir, não os mesmos efeitos audiovisuais, mas as características do corpo negro que dimensionassem heranças culturais. Este caminho especulativo o levou ao encontro da voz que, na cultura negra, é entoação, vibração e ressonância da cultura encarnada.

Embora não tenha desenvolvido, sua percepção de entonação como ressonância da cultura se aproxima do conceito formulado no âmbito do dialogismo por M. M. Bakhtin (2008BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008., p. 87-114) e V. N. Volochinov (1973, p. 152-153), para examinar como as ideias se materializam nas formas discursivas, como procuramos desenvolver em estudo específico (MACHADO, 2021MACHADO, Livia C. Souza. Semioses das imersões sci-nestésicas: uma diagramática das obras de arte em espaços expositivos. Tese de Doutorado. (Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021., p. 129-152). Nele procuramos examinar como as ideias que sustentam pontos de vista sobre contextos vivenciais e sócio-históricos constituem formas enunciativas próprias. Volochinov se dedicou ao estudo do papel dos acentos na construção dos pontos de vista que ele sintetizou no conceito de ideologema. Bakhtin avançou explorando os processos artísticos criados por Dostoiévski para situar como os ideólogos constroem ideologemas no contexto dialógicos de discursos multiacentuais nos quais ideias emergem e experimentam suas próprias possibilidades e inacabamentos, entremeadas a choques e instabilidades.

Diríamos então que, no vídeo, Jafa constrói ideologemas com as cenas fragmentadas e recortadas de ambientes de confronto onde vivem os afro-descendentes da diáspora nos EUA. Nelas deposita as ideias de seus posicionamentos na arena de muitos outros discursos que emergem uns a partir de outros. Assim também a voz emerge de cantos que tanto evocam clamores desesperados dos que lutam por igualdade quanto lamentos que ecoam sofrimentos de seus ancestrais. Com as entonações de tais ideologemas da cultura negra procura organizar os discursos na multiacentualidade de seus sentidos. É o que procuraremos analisar no próximo segmento.

1 Modelização da linguagem fílmica pela cultura negra

Jafa nunca negou que o cinema negro ocupava o primeiro plano de seus interesses artísticos. Enquanto seus colegas da Howard University se limitavam a definir cinema negro como algo anti-Hollywood, Jafa desconfiava de que tal oposição binária fosse suficiente. Alegava ser necessário elaborar perguntas mais sofisticadas, a começar pelo questionamento do paradigma deste cinema tornado clássico (Jafa, 1998, p. 265). Tal como David Bordwell e Kristin Thompson (1976BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Space and Narrative in the Films of Ozu. Screnn, Oxford, vol. 17, n. 2, 1976, p. 41-73., p. 41-73) o fizeram ao examinar a maestria do cinema de Yasujiro Ozu em romper com cânones. Se, para muitos, o cinema de Ozu estava fora de moda, para Bordwell e Thompson, contudo, o cineasta japonês, ao desviar-se de paradigmas, produziu uma singular concepção de espaço, fora da continuidade clássica. Com isso, complementam os críticos, o cinema de Ozu deixa de ser considerado no isolamento de uma categoria para inserir-se no dinamismo das correlações entre sistemas históricos, tal como o formalista russo Iúri Tiniánov (1976) formulou em seu estudo sobre evolução literária na história, acrescentam os críticos.

Considerando que o estudo de Bordwell e Thompson contribuiu para Jafa pensar o cinema negro fora de qualquer paradigma e com correlações históricas, vale elucidar que, para Tiniánov, uma produção que não considera correlações entre obras da mesma série e no âmbito de um sistema cultural mais amplo, está fadada à limitação de significação e ao alijamento do processo evolutivo. O desvio do modelo seria o mecanismo criador do dinamismo e das mudanças com alcance mais amplo de configurações históricas, uma vez que o tensionamento altera funções e promove a substituição de sistemas (Tynianov, 1976TYNIANOV, J. Da evolução literária. In: Teoria da literatura. Formalistas russos. Dionísio Toledo (org.). Porto Alegre: Globo, 1976., p. 106-118). Para Jafa, o desvio é acionado quando são elaboradas novas perguntas ao meio em suas funções paradigmáticas. Em seu exercício criativo, isso implicava uma orientação11 11 Para Tiniánov (1976), a palavra orientação desvia-se até mesmo da mera intenção para designar “correlação com a vida social” (p. 115). para a cultura negra que se mantinha à margem da prática cinematográfica. Voltar-se para a cultura negra significava, pois, buscar correlações com a tradição por meio da memória cultural que movimentava a cultura afro-estadunidense, como se pode ler na declaração que se segue.

O que significa é que eu acredito num certo modo de retenção cultural. Pessoas carregam a cultura em vários níveis, em direção aos mais profundos, que eu chamaria de coração de estabilidade. Nam June Paik, o pai da videoarte, dizia: “A cultura que irá sobreviver no futuro é a cultura que você carrega em sua mente”12 12 No original: “What that means is that I have a belief in certain levels of cultural retention. People carry culture on various levels, down to the deepest level, which I would call a kind of core stability. Nam Jun Paik, the godfather of video art, has this great quote: ‘The cultures that’s going to survive in the future is the culture that you can carry around in your head’.” (Jafa, 1998JAFA, Arthur. Black Visual Intonation. In: O’MEALLY, Robert G. (Ed.). The Jazz Cadence of American Culture. New York: Columbia University Press, 1998., p. 266).

O efeito de tal máxima levou Jafa a buscar as artérias vitais do cinema negro no legado da cultura de povos africanos, isto é, no discurso que o corpo realiza com voz, com dança e com música. Era preciso entender “como a cultura atua em diferentes arenas”, continua ele, para assim construir espaços de transgressão nos quais pessoas pretas pudessem manifestar o prazer de falar de si, de seus desejos, de seus ancestrais africanos dos quais somos descendentes. O prazer negro demanda, segundo ele, uma abordagem crítica (Jafa, 1998, p. 266-7). Nesse sentido, no filme-ensaio Dreams, ele e seus colegas do coletivo TNEG estenderam seus microfones para que pessoas pretas falassem de si, transgredindo a forma canônica do documentário em que uma voz de autoridade fala em nome de outrem. Em Love Is the Message as imagens de cenas e eventos sonoros colhidos no calor dos acontecimentos cumprem a mesma função.

Foi em um desses espaços que eu entrei, pela primeira vez, em contato com a criação estética de Arthur Jafa, visitando a instalação videográfica APEX (2013, 8’12”), presente na exposição O tempo mata (SESC-Paulista, São Paulo, 2019). Produzido com colagens fotográficas de seus arquivos pessoais, o vídeo opera uma montagem com cortes produzindo flashes que, no espaço da sala, reverberava a cadência das músicas eletrônicas que preenchia o espaço criando uma acústica inusitada. Se, por um lado, evidenciava a passagem da fotografia para a imagem eletrônica do vídeo, formulando uma composição na qual emanava uma dinâmica temporal da era digital-eletrônica, desviando-se de seu estado original e modificando a expressão da própria fotografia, por outro atendia à reflexão proposta pela curadoria da exposição cujo tema procurou reunir trabalhos de arte temporal (time-based media art).

APEX inseriu a dimensão temporal no espaço da sala retirando o visitante do estado contemplativo para vivenciar a experiência sensorial de intercâmbio com grande estímulo sinestésico de reverberação cujas ondas tocavam o corpo estimulando pulsações rítmicas. A música deixava de ser apenas uma sequência de notas cuja partitura segue a composição audiovisual para criar a ressonância direta capaz de redimensionar a articulação de tudo que se dispunha no ambiente. Refazia, assim, os padrões de conectividade, visto que a vibração não se limitava à tela, mas se propagava para os corpos no ambiente do espaço expositivo. Ao atravessar corpos, a experiência viva da reverberação dos eventos sonoros e luminosos alterava as sensibilidades provocando uma sensação de entrar numa espécie de transe (Machado, L. C., 2021MACHADO, Livia C. Souza. Semioses das imersões sci-nestésicas: uma diagramática das obras de arte em espaços expositivos. Tese de Doutorado. (Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021., p. 218-222).

Com este trabalho, Jafa não apenas cumpriu a proposta curatorial como também permitiu que ele conseguisse exercitar sua ideia de cinema negro cujas raízes se nutrem da cultura que joga em diferentes arenas. A esta experiência Jafa denominou “polyventiality” (polivalência), que significa adotar procedimentos construtivos de “múltiplos tons, múltiplos ritmos, múltiplas perspectivas, múltiplos sentidos, multiplicidade”13 13 No original: “‘Polyventiality’ just means multiple tones, multiple rhythms, multiple perspectives, multiple meanings, multiplicity.” para, assim, questionar o meio (Jafa, 1998, p. 267). Nesse sentido, o seu processo criativo tornava-se interrogativo e sua pergunta articulava algumas de suas hipóteses tais como:

Como fazer música ou imagens negras vibrarem conforme certos valores de frequências que existem na música negra? Como examinar tonalidades, não a sequência de notas performadas por Coltrane, mas o tom em si sincronizado com o movimento visual negro? Isso é apenas possibilidade teórica ou algo que se pode, de fato, fazer?14 14 No original: “How do we make Blake music or Black images vibrate in accordance with certain frequential values that exist in Black music? How can we analyze the tone, not the sequence of notes that Coltrane hit, but the tone itself, and synchronize Black visual movement with that? I mean, is this just a theoretical possibility, or is this actually something we can do?” (Jafa, 1998JAFA, Arthur. Black Visual Intonation. In: O’MEALLY, Robert G. (Ed.). The Jazz Cadence of American Culture. New York: Columbia University Press, 1998., p. 267).

Em Love Is the Message Jafa experimentou a possibilidade de explorar a noção de entoação na imagem visual, na movimentação de pessoas e na própria montagem de planos de acordo com a entoação sonora de canto e da música Ultralight Beam de Kanye West. Foi este exercício que traduziu a passagem da música para o filme produzindo a entoação visual negra. O artista apenas interrogou o meio explorando, na câmera, a possibilidade de interferir no processo de captação, como se pode ler na sequência.

Estou desenvolvendo uma ideia que denomino entonação visual negra que consiste no uso irregular e não temperado (não metronômico) da taxa de frames captados pela câmera e em sua replicação, de modo que o movimento fílmico seja executado de uma maneira que se aproxime da entonação vocal negra. Veja, o poder inerente ao movimento cinematográfico depende, em grande medida, de disjunções sutis ou grosseiras entre a taxa e a regularidade em que uma cena é gravada e a taxa e a regularidade em que ela é reproduzida. Taxas de câmera não metronômicas, como aquelas empregadas pelo cinema silencioso, são fascinantes precisamente porque são irregulares15 15 No original: “I’m developing an idea that I call Black visual intonation (BVI). What it consists of is the use of irregular, nontempered (nonmetronomic) camera rates and frame replication to prompt filmic movement to function in a manner that approximates Black vocal intonation. See, the inherent power of cinematic movement is largely dependent on subtle or gross disjunctions between the rate and regularity at which a scene is recorded and the rate and regularity at which it is played back. Nonmetronomic camera rates, such as those employed by silent filmmakers, are transfixing precisely because they are irregular.” (Jafa, 1998JAFA, Arthur. Black Visual Intonation. In: O’MEALLY, Robert G. (Ed.). The Jazz Cadence of American Culture. New York: Columbia University Press, 1998., p. 267).

Com essa intervenção direta na captação, os códigos da linguagem audiovisual são modelizados pela entoação da voz que canta e do corpo que se movimenta, considerando-se a frequência de movimentos sonoros e visuais, como teremos oportunidade de examinar. A entoação assim concebida torna-se procedimento da linguagem audiovisual modelizada pela voz e pelo corpo.

O conceito de modelização procede de uma abordagem semiótica da cultura em que é possível observar as aproximações e traduções entre sistemas de signos de modo que signos de uma esfera cultural possam contribuir para a performance de signos de outra esfera. Formulado pelos semioticistas da escola de Tártu-Moscou nos anos 1960 e desenvolvido por Iúri Lotman ao longo de sua obra, o conceito de modelização foi proposto para atender demandas muito próximas daquelas manifestadas por Jafa: a necessidade de buscar correlações entre as criações culturais tornando possível a inteligibilidade entre a diversidade de produções em espaços e tempos distintos. Diversidade não apenas de signos, mas de produções de diferentes tradições culturais em suas codificações de sentidos, atribuindo a condição de linguagem a sistemas culturais não constituídos por estrutura tal como a que constitui o sistema dos signos verbais da língua. Sistemas mitológicos, das artes, ciências e religião são construídos por códigos culturais, elaboram linguagens e constituem textos de cultura, mas não são dotados de estrutura. Por conseguinte, o que se entende como linguagem em sistemas carentes de estrutura é um processo modelizante16 16 Vale observar que apenas nos textos iniciais a distinção entre sistema modelizante primário e sistema modelizante secundário foi mantida, conforme argumentou V. V. Ivánov et al (1978; 1998). Em estudos posteriores, Lotman abandona tal distinção para compreender a semiose da semiosfera cultural e as imprevisibilidades a que estão sujeitas as culturas no curso de processos históricos explosivos (Lotman, 2009; 2022). que se sustenta porque se desenvolve a partir da competência do sistema verbal (Lotman, 1977, p. 95-98; 1978, p. 25-71; Ivánov et al, 1977). Deste modo, a inteligibilidade permite que se leia no movimento visual de uma sequência audiovisual, a ressonância da entoação vocal de uma canção ou o ritmo de uma música.

Quando Jafa interfere na dinâmica da montagem de cenas para que o movimento ressoe como na entoação vocal, os signos melódicos das entoações da voz passam a orientar o próprio ritmo do movimento das sequências que se manifesta na intensidade das cenas.

Apesar do papel da operação técnica, não se pode limitar o conceito de entoação visual negra ao código. É preciso considerar o legado cultural que modelizou a entoação vocal segundo diferentes tradições que contribuem para o fazer estético do cinema na cultura negra. Vale lembrar da importância atribuída à retenção ou legado cultural que a memória e o corpo carregam para sustentar a polivalência que o levou a indagar as possibilidades do meio e assim explorar sua plasticidade. Em última análise, o experimento mostra que a arte negra modelizada pela cultura negra cria um espaço de transgressão em que as pessoas pretas podem enunciar o prazer de falar de si, agir culturalmente e manifestar seus desejos segundo procedimentos criativos colocados em perspectiva histórica de suas tradições culturais. Isso faz parte de uma história iniciada nas plantações de escravizados e seus cantos de louvor e lamento.

2 Heranças culturais na corporalidade da voz negra

O compromisso declarado de Jafa com a organicidade entre forma estética e forma política, ambas vinculadas à cultura negra estadunidense e suas lutas, levou o experimento de Jafa a distanciar-se da narrativa ficcional proposta por Clark. A tendência experimental e o espírito interrogante de seu fazer estético o levou a adotar o ensaio na composição do vídeo Love Is the Message, que já fora exercitado em Dreams.

Muito já se discutiu a respeito do impacto causado por este vídeo-ensaio de apenas sete minutos, sobretudo pelas cenas de violência que despertam protestos e reivindicações em prol dos direitos civis da população negra. O trabalho de Jafa, contudo, vai além da representação e da denúncia. As grandes mobilizações entram em seu processo criativo como código formador de um repertório crítico para a composição artística, naquilo que ela desenvolveu de modo singular: a estesia sensorial da cultura negra semeada no solo estadunidense. Além de pulsão estética, tal energia impulsiona o pensamento ético vinculado a tradições culturais de outras civilizações das quais os povos diaspóricos foram excluídos, mas que, a duras penas, permaneceram, mesmo que muitas de suas manifestações continuem subjugadas à violência praticada pela supremacia branca amparada pelo Estado.

Não obstante tal vínculo, o encadeamento de arquivos audiovisuais de situações cotidianas que entraram para a composição de Love Is the Message tem sido lido como um found-footage video (Campt; Jafa, 2017JAFA, Arthur; CAMPT, Tina M. Love Is the Message, the Plan is Death. E-flux Journal#, New York, n. 81, 2017. Disponível em: https://www.e-flux.com/journal/81/126451/love-is-the-message-the-plan-is-death/. Acesso em 19 jan. 2024.
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, p. 1) panorâmico da violência em marchas de protestos, cenas de entretenimento, rituais, esportes e lazer. Contudo, a elaboração ensaística reúne procedimentos que miram um horizonte estético-cultural e discursivo que levou Jafa ao encontro de singularidades culturais que se tornaram fundamentais para a definição do cinema negro que tanto perseguia.

O vídeo concentra-se na montagem de flashes das cenas urbanas com diferentes intensidades dramáticas. Pela segmentação visível nos cortes abruptos, se imprime na montagem a dinâmica que potencializa diferentes forças energéticas das situações que se unem pelos pontos de tensão, ativando cargas emocionais em movimento crescente. Na escalada de tonalidades do gradiente dramático, a ênfase recai sobre os corpos em movimento e nas vozes que neles são impulsionadas. Há uma energia pulsante que atravessa os corpos tanto daqueles que gritam nas cenas de violência quanto em celebrações nas quadras esportivas, nos salões de danças e nas igrejas. Energia de corpos de pessoas pretas que é própria da cultura que diferentes etnias da diáspora afro-atlântica produziram nas Américas, com diferentes manifestações nos países do continente. No Brasil, a energia se exprime na intensidade dos corpos em transe durante os rituais do candomblé.

Trata-se de uma percepção que contribuiu para amadurecer em Jafa a ideia de que o cinema negro deveria ser definido por algo relacionado com formas de energia produzidas em tradições históricas nas quais as manifestações estéticas são mediadas pelo corpo. Nelas o canto, a dança e a música desempenham papel fundamental porque evocam energias corporais. Diferentemente das melodias harmônicas da elaboração sonora resultante de normas produzidas na civilização ocidental, a expressão rítmica do canto e da música negra se constrói a partir das entonações sensoriais das canções rituais e dos lamentos nascidos no corpo dos pretos escravizados e, portanto, com uma vocalidade vinculada a toda uma gestualidade corporal coletiva. Como integrante dessa cultura, Jafa se concentrou na singularidade das formas rítmicas que, no corpo e na voz, modelizam memórias e vivências que atravessam gerações. Neste contexto elaborou a indagação: Seria possível transportar esta potência gestual para outro meio, no caso, para a audiovisualidade do cinema? Não simplesmente reproduzindo situações, mas operando com as experiências dramáticas traduzidas nas formas sensoriais e na expressão estética? Love Is the Message foi também o lugar de exercitar tal possibilidade de traduzir em linguagem audiovisual a potência gestual da voz em suas diferentes tonalidades visuais da(s) entoação(ões) negras.

No processo de elaboração do experimento, Jafa trabalhou com a hipótese segundo a qual “a música negra é tão potente porque em seu coração se situa a voz negra” - voz que é produção de um corpo individual e coletivo; atual e histórico, com elos na tradição das culturas orais, como entendeu Hampaté Bâ (2010, p. 167-212).

No contexto da cultura afro-diaspórica, que floresceu, historicamente, nas plantações sob o regime do trabalho escravo, trata-se, sobretudo, da oralidade que emergiu nas entoações coletivas dos cantos de trabalho - corpo coletivo que carregava diferentes narrativas. Apartadas de seus lares e famílias, línguas e tradições, comercializadas como mão de obra escrava, as pessoas pretas exercitavam não apenas a sabedoria da semeadura para a produção de colheitas fartas e saudáveis que não se restringia apenas ao algodão. O trabalho uniu pessoas também na semeadura de afetos cultivados na memória comum que a voz traduzia em cantos. Direta ou indiretamente, Jafa buscava as sonoridades das canções de trabalho como forma privilegiada da cultura negra que brotou nas plantações estadunidenses. Esta é a hipótese fundamental para o entendimento do processo criativo do artista no contexto histórico de sua cultura.

Ainda que toda entoação desses cantos seja uma realização acústica, há nas cantorias elementos de uma “música interior” cultivada na alma, tal como foi sentida e definida pelo ex-escravizado W.E.B. du Bois (2021, p. 16) em suas memórias sobre as “Canções de lamento” remanescentes do tempo da escravidão. Para Du Bois tais canções foram geradas pela experiência sensível desses trabalhadores que vocalizavam “[...] ecos de melodias jamais esquecidas da única música norte americana a transbordar das almas negras em um passado sombrio”. Trata-se, pois, de uma manifestação muito apropriadamente denominada “soul music” - música da alma. Evocando a alma de sua memória, Du Bois (2019, p. 16, n. 5) cita uma dessas canções cujos versos iniciais da primeira versão registrada dizem o seguinte: “Oh, nobody knows de troubl I’seen, / Nobody knows but Jesus, / Nobody knows de trouble I’seen. / Glory Hallelujah! [...]”17 17 Em nota, os versos são traduzidos por: “Ah, ninguém sabe o sofrimento que vivi, / Ninguém além de Jesus, / Ninguém sabe o sofrimento que vivi. / Glória Aleluia! [...]”. Na nota 22 da p. 30, o tradutor Alexandre Boide esclarece que no texto de Du Bois a referência a “soul” da música negra e a alma, mas o termo só começou a ser usado no repertório da música popular norte-americana com o jazz dos anos 1940; já o uso de “soul music” aparece nos anos 1969 em referência a uma versão laica de música gospel (Du Bois, 2021, p. 20, n. 8). .

Lamento e louvor se relacionam marcando os compassos e as cadências da canção que semeiam sementes que frutificaram na música negra estadunidense, temperando as entoações das vozes que modulam os ritmos que se manifestam no e como corpo.

Praticadas, sobretudo, no interior das plantations estadunidenses18 18 O trabalho nas plantações para produzir riquezas no mercado externo sustentou o sistema econômico fundado na escravidão que se tornou um dos pilares de fundação da modernidade. No trabalho escravo, a exploração humana e a consequente consolidação de uma sociedade desigual alimentada pela relação dialética entre riqueza e miséria, levou as pessoas pretas escravizadas a se verem e se entenderem como o “outro”, o que despertou a necessidade de reverter o estado de coisas para a criação de outro tipo de relação. , a música, o canto e os movimentos do corpo produziram e aclimataram um repertório estésico de formas culturais que não se separam da condição da vida escravizada, mas extravasam os limites da servidão como expressão de memórias de tradições só supostamente apagadas. As canções de lamento são documentos vivos dessa memória que articula aquilo que o corpo exprime sob forma de canto, de grito, de música e de dança. Em seu estudo sobre estética negra, Oyeniyi Okunoye (1999/2000/2001, p. 125) examina o quanto as experiências estéticas da cultura africana estão vinculadas à condição de escravizados imposta pelas diásporas africanas. Deste vínculo surgem manifestações como os Spirituals19 19 Como esclarece o tradutor Alexandre Boide, para Du Bois, spirituals são um gênero de canções que os escravizados criaram quando foram impedidos de dançar e usar instrumentos africanos de percussão. Como alternativa, incorporaram elementos temáticos da cultura branca e islâmica. (Du Bois, p. 16, n.5). , cujos cantos, danças e palmas definem as vidas diaspóricas estadunidenses.

É toda uma gestualidade corporal cultivada por diferentes gerações dos povos que se formaram a partir das diásporas afro-atlânticas. Gritos que emanam do corpo e reverberam em diferentes movimentos rítmicos de voz e de gestualidades, formando também parte de um “arquivo de memórias” cuja função é tornar presente as heranças espirituais e deixá-las emergir no corpo negro como repertório crítico criativo. Mamadu Diouf e Ifeoma Kiddoe Nwankwo (2013, p. 2) afirmam que “[…] Ritmos do Mundo Afro-Atlântico defendem coletivamente que a música e a dança são índices vivos de uma (re)composição e (re)mixagem constante de sons, gestos, epistemologias e memórias locais”20 20 No original: “[…] Rhythms of the Afro-Atlantic World collectively argue that music and dance are living indices of a constant (re)composition and (re)mixing of local sounds, gestures, epistemologies, and memories”. .

As premissas teóricas citadas encontram-se mergulhadas na história das culturas negras nas quais Jafa foi criado e buscou pelo(s) traço(s) distintivo(s). Trata-se, pois, de um precedente histórico significativo para compreender a arquitetura composicional de Love Is the Message que Jafa traduziu e atualizou ao entender, na entoação das performances das canções rituais das igrejas protestantes, formas para equacionar o arranjo musical, as danças articuladas a todos os movimentos corporais que fluem nessas ocasiões de grande arrebatamento

Nesse sentido, inferimos que, ao incorporar a entoação dos cantos e danças dos povos afro-diaspóricos instalados nos EUA, o processo criativo opera diretamente com a potência singular das linguagens culturais desses povos, em toda a diversidade de suas línguas e sistemas culturais. Se a natureza dessa potência cultural nasce das gestualidades corporais que produzem cantos, danças e sonoridades como palmas e ruídos que, muitas vezes, fazem o papel de instrumentos, não é difícil alcançar aquilo que Diouf e Nwankwo definem como caráter “polimórfico”, referindo-se à música, como se pode ler no trecho que se segue.

[…] as mais visíveis contribuições das comunidades afrodescendentes para a construção do mundo atlântico, a música e a dança foram identificadas, juntamente com a oralidade, não apenas como os principais modos de ocorrência e disseminação no mundo da cultura negra, mas também como canais de interligação da expressividade e presença negra no cenário mundial. A música africana é “sempre música para dança” e as danças africanas são “música polimórfica, com as partes superior e inferior do corpo parecendo mover-se em dois relógios diferentes e relacionados”. Não são apenas “prazerosas e eróticas”, mas também são poderosas gramáticas espirituais e rituais de socialização, linguagens de intervenção na natureza e na sociedade, contribuindo para a expressão de crenças religiosas e culturais africanas e manifestações e compromissos com descontinuidades históricas21 21 No original: “[…] the most visible contributions of African-descended communities to the making of the Atlantic world, music and dance have been identified, along with orality, not only as the main modes of occurrence and dissemination in the world of black culture but also as linked channels of black expressivity and presence in the world scene. African music is ‘always music for dance,’ and African dances are ‘polymorphic music, with the upper and the lower parts of the body appearing to move to two different, related clocks.’ Not only are they ‘pleasurable and erotic,’ but they are also powerful spiritual grammars and rituals of socialization, languages of interventions in nature and society, contributing to the expression of African religious and cultural beliefs and manifestations of and engagements with historical (dis)continuities.” (Diouf; Nwankwo, 2010DIOUF, Mamadou; NWANKWO, Ifeona Kiddoe (Eds.). Rhythms of the Afro-Atlantic World: Rituals and Remembrances. Michigan: University of Michigan Press, 2010., p. 1-2).

Jafa, contudo, nos permite ampliar o entendimento de tal polimorfismo ao traduzir elementos dessas “gramáticas espirituais e rituais” que o corpo negro carrega em procedimentos fílmicos, isto é, na plasticidade da entoação negra da linguagem audiovisual construída que, por natureza, favorece o trânsito entre formas culturais.

Operando na perspectiva da cultura oral, Jafa dirige toda sua atenção para o corpo que trabalha, pratica esportes, canta, dança, protesta, louva e lamenta com o máximo de recursos de sua performance, tornando-se a base de seu conceito de entoação visual negra produzida na alma e modelizada em canto, dança, música. O mesmo corpo que para os colonizadores era apenas objeto de troca e mão de obra escrava, excluído da categoria do humano e sem existência ontológica, ocupa o centro de sua estética negra e daquilo que ele procura organizar como ontologia da pretitude, dimensionada como potência estésica. Trata-se de um corpo humano integrado à força vital que se manifesta em formas de vida distintas, por exemplo, no tambor, que nas culturas orais é uma extensão da vida vegetal e animal, ou melhor, da Umwelt que garante sua existência como parte de um ecossistema de grande complexidade. Nesse sentido, o tambor fala quando é tocado e os sons percutidos lembram a voz humana. O mesmo se pode dizer dos instrumentos de sopro, tão marcantes no jazz, que também se realizam como voz. Disso tinha certeza Larry Clark quando buscou transferir a entoação da música para a montagem das tonalidades cromáticas de seu Passing Through.

Transferir a voz para o tambor ou para os sopros torna-se referência para o exercício de outras possibilidades, por exemplo, a experiência de transferir a entoação para os gestos ou a cinematicidade visual para a voz, e vice-versa, criando uma experiência singular da sensorialidade das imagens audiovisuais (Campt; Jafa, 2017JAFA, Arthur; CAMPT, Tina M. Love Is the Message, the Plan is Death. E-flux Journal#, New York, n. 81, 2017. Disponível em: https://www.e-flux.com/journal/81/126451/love-is-the-message-the-plan-is-death/. Acesso em 19 jan. 2024.
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, p. 3) ao mesmo tempo em que se explora a polivalência dos diferentes processos estéticos. Considerando que a voz concentra a potência, Jafa entende que é pelo nível sônico que diferentes conexões são realizadas no cinema, pois, em seu nível mais elementar, o som é o movimento de partículas que se propagam no ar por meio de vibrações calibradas em ondas. O quanto podemos ouvir depende da frequência das ondas, visto que nem todas são acessíveis aos ouvidos humanos, o que não significa que não podem ser exploradas esteticamente como ondas. Tal como o som, as imagens visuais também se realizam por meio de frequências que podem ser ajustadas e calibradas atingindo nossa sensibilidade (Campt; Jafa, 2017, p. 3). Como ondas ressonantes que são, som e visualidade partilham da mesma natureza.

Na audiovisualidade é pela frequência que o cinema torna possível o intercâmbio entre processo visual e sonoro. Nesse sentido, a transferência cumpre o salto em outra direção evidenciando um outro tipo de montagem, não mais de fragmentos fílmicos, mas de frequências e tonalidades. Trata-se de uma operação que ocorre no nível dos códigos abrindo a possibilidade de operar códigos culturais de tradições distintas. É isso que Jafa observou no corpo que dança, na frequência e intensidade dos movimentos que saltam em outra direção. Quer dizer, o extravasamento observado na atividade do corpo também se manifesta na transformação da imagem audiovisual, uma vez que os códigos do fenômeno luminoso de natureza elétrica se movimentam impulsionados pela passagem para uma outra dimensão, criando a coerência entre códigos culturais de naturezas distintas. A potência da voz e da dança não apenas compõe as cenas, mas também fornece elementos da cadência rítmica da montagem de planos e sequências que devem, necessariamente, reverberar na expressão audiovisual como entoação visual negra.

3 Plasticidade da cadência do jazz em lamentos e louvores da entoação visual negra

... Minha grande ambição é fazer um cinema negro que tenha o poder, a beleza e a alienação da música negra22 22 Em versão livre. No original: “I have an overriding ambition to make a black cinema that has the power, beauty, and alienation of black music” (Campt; Jafa, 2017, p. 3). .

Arthur Jafa

Como apresentado inicialmente, entoação é um conceito enunciativo que distingue as significações do ponto de vista dos acentos estruturais e semânticos de construções discursivas na fala. Na entoação, a carga sensorial e emocional do discurso ganha forma de linguagem na gestualidade da voz em ambiências interativas. Nos estudos do dialogismo, entoação é conceito-chave de todo o processo interativo na “arena” discursiva na qual as ideias delimitam posicionamento ideológicos em ação. Para Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Volkovo Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 311-319) cabe à entoação singularizar uma situação, sendo incomparável a qualquer outra. Um grito na quadra de esporte materializa a euforia no jogo, logo, a entoação com que é enunciado difere de um grito de pavor, de dor e de arrebatamentos em rituais religiosos. Esta é a função do ideologema (Machado, 2021MACHADO, Livia C. Souza. Semioses das imersões sci-nestésicas: uma diagramática das obras de arte em espaços expositivos. Tese de Doutorado. (Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021., p. 129-152). Para Bakhtin (2008BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008., p. 87-115; p. 207-310), o debate de ideias é travado por ideólogos que criam contrapontos nos posicionamentos. Nos romances de Dostoiévski, nem sempre o debate é vocalizado, caso do discurso interno velado que se manifesta no interior de consciências. Em Love Is the Message, muitas das imagens visuais silenciosas cumprem este papel de manifestar a entoação que vem do discurso interior e pode ou não transbordar-se para o exterior, caso da canção de Kanye West ouvida ao longo do filme, com diferentes intensidades acústicas.

Como performance oral dirigida diretamente aos ouvidos, toda entoação carrega o discurso com ênfases expressivas para singularizar percepções, ideias, interpretações, sentimentos em contextos dialógicos nos quais contrapontos e posicionamentos ideológicos demandam, não máximas conclusivas, mas argumentos na extensão de suas possibilidades. Ou seja, a entoação gravita em torno de um universo semiótico de sentido que se materializa na interação de alteridade, com pessoas de diferentes grupos étnicos, diferentes culturas e de um outro continente - transatlântico.

Com isso, é possível inferir que Jafa buscava traduzir em discurso audiovisual tal possibilidade translativa, transferindo para imagens de movimento sonoro e visual a qualidade distintiva da cultura negra centrada nas vozes dialógico-discursivas potencializadas como entoação. Além de dimensionar o corpo em cena, a ênfase na entoação visual negra se reporta à cultura, o que lhe parecia fundamental, como se pode ler em sua indagação: Como podemos produzir imagens negras que vibram de acordo com certas frequências de valores que existem na música negra?23 23 Ver citação completa na nota 14. Se não responde, pelo menos o experimento Love Is the Message materializa um processo criativo em que a potência de vibrações com intensidades distintas foi colhida em situações com grandes movimentações de pessoas que, assim, imprimem na montagem a cadência da música de Kanye West. Entoada como uma combinação de rap ou hip hop e gospel, a música segue e as cenas, muitas das quais com eventos sonoros em contraponto, exprimem a potência da música negra.

Jafa realiza a seu modo aquilo que lhe fascinara no experimento Passing Through, de Larry Clark: a composição fílmica segundo a cadência do jazz. Distingue-se, contudo, de Clark ao traduzir a cadência na montagem dos flashes de acontecimentos recortados nos momentos agudos de sua execução: no salto do atleta, nas contorções da dança, nos empurrões agressivos de policiais, no êxtase da celebração religiosa. O flash captura tensionamentos e com eles constrói a cadência da entoação cinemática, uma expressão audiovisual que é estética e política.

É o que entendemos ter sido a qualidade diferencial do filme jazzístico de Jafa na composição de Love Is the Message cujas cenas passamos a examinar na sequência.

Love Is the Message, the Message is Death foi lançado em 2016 como videoinstalação que, durante 48horas, projetava o filme em diferentes museus do mundo24 24 Por iniciativa do Smithsonian American Art Museum e do Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, onze museus de diferentes países se uniram para organizar uma exibição simultânea e contínua do filme durante 48 horas, começando às 14h do dia 26 de junho de 2020 no site das instituições, onde as cópias do filme foram depositadas (Germano, 2020). . Com a canção suplicante que o rapper Kanye West, a entoação com um coro de vozes e em contraponto com solos de outros rappers invade o ambiente da sala como canção pop entoada como rap-gospel de um hino de louvor e lamento.

Acordes e vocalizações femininas suaves introduzem as cenas iniciais nas quais um homem em meio de uma multidão discursa sobre violência contra as pessoas pretas. Segue uma cena de lances esportivos numa quadra. Grupos de pessoas se deslocam quando a voz de West inicia sua performance com o refrão da canção tema: “We on an ultralight beam / We on an ultralight beam / This is a God dream /This is a God dream / This is everything / This is everything / Everything”. A sequência é montada com muitos flashes de episódios que vão da dança hip-hop de um jovem, a protestos, perseguição e um possível assassinato em espaço público. Na sequência de uma dança funk surge a ensaísta Saidiya Hartman caminhando em câmera lenta (cena já retratada em Dreams). O canto de West ainda entoa versos de súplica quando surge na tela o então presidente Barack Obama e pronuncia seu discurso fúnebre pela morte do reverendo Clementa Pinckney, em Charleston (2015). Ele entoa o primeiro verso do hino Amazing Grace: “Amazing grace! (how sweet the sound)”. Ao som de sua voz de barítono, os presentes se levantam e fazem coro ao hino sublime de graças.

A decomposição de alguns flashes da sequência de apenas 46 segundos delineia o caráter da composição em que a entoação fornece a partitura rítmica da montagem que segue articulando episódios de movimentos com alguns staccatos, como o da cena em que uma criança negra grita com sua mãe ou quando são introduzidas performances vocais de outros rappers e depoimentos de pessoas comuns.

Como vídeo-ensaio, o refrão da música de West acompanha o flash de Martin Luther King que se desloca num conversível, seguido pela fala de um jovem que entoa, à capela, o verso, “I’m a dreamer / I’m a dreamer” no qual o segundo verso faz um dueto com o primeiro. Os dois fragmentos articulados com a imagem incandescente, brilhante, de um grande sol vibrante no contraponto com o refrão entoado por West introduzem uma pausa da violência para situar - na metade do filme, aos 2’51” - um astro solar e a possibilidade de um sonho caloroso, com a suavidade de um “ultralight beam”.

Sonho logo interrompido por uma cena noturna em que policiais obrigam uma mulher a sair de um carro, afastando-se com os braços elevados, seguida pelo filho. O staccato interrompe o canto, e o silêncio é preenchido pelas falas interrogantes da mulher que chama pelos filhos, mas é algemada. A cena inicia a mudança do andamento da entoação das coristas com andamentos de agudos. Flashes de violência: um rapaz no salto sendo agredido por um policial que o agarra ainda correndo; uma garota em roupas íntimas sendo arrastada por policias num parque.

A cena é acompanhada pela entoação aguda da voz soprano em vibrato carregando a dramaticidade os versos mais densos, com a atuação de forças opostas que se confrontam, como se pode ler no que se segue: “So why send depression not blessings? / Why, oh why'd you do me wrong? (More) / You persecute the weak / Because it makes you feel so strong / Don't have much strength to fight / So I look to the light / To make these wrongs turn right. […]”

Logo o movimento se acelera e o tom de revolta se acentua, caminhando para a sequência final quando um flash de Jimi Hendrix surge e o coro em dueto de vozes realiza entoações mais agudas e vertiginosas, acompanhadas de cortes rápidos de saltos esportivos, gestos impetuosos de apresentações musicais e dos closes nos quadris de jovens com trajes minúsculos na dança de funk seguidos pela imagem do astro solar incandescente que ocupa a tela enquanto o canto atinge o frenesi de seu clamor. West retoma o canto que diz “I'm tryna keep my faith / (Yes, Jesus) / But I'm looking for more / Somewhere I can feel safe / And end my holy war”. Continuando o canto à capela num crescendo impetuoso, quase gritado: “Father, this prayer is for everyone that feels they're not good enough. This prayer's for everybody that feels like they're too messed up. For everyone that feels they've said "I'm sorry" too many times. You can never go too far when you can't come back home again. That's why I need...” O coro volta e o vídeo termina num transe, tal como a última cena de um cantor que se entrega à sua performance até cair no chão.

No final, coro de vozes enfatizando discursos de clamores desesperados e perturbadores em tons agudos, entremeados às preces replicantes pela benevolência divina, compõe uma performance integradora de melopeias das rítmicas tribais e do Negro Spiritual que leva ao paroxismo a oralidade da cultura negra. Tons e timbres se chocam, criando contrastes marcantes com a leveza da frase-título da canção - Feixe ultraleve - e com o próprio timbre da voz de West, que acompanha a montagem dos episódios visuais que avançam em vertiginosos movimentos sintonizados com a frequência do loop do coro enfurecido de vozes estridentes.

Como se pode observar nos poucos versos examinados, a longa canção é entoada durante os sete minutos e vinte e três segundos tecendo polifonias que organizam as sequências de fotos e filmes de arquivos que progridem, caleidoscopicamente, em movimentos explosivos. Se a alternância de timbres altos e baixos e andamentos rítmicos fortes e fracos articulam os contrapontos temáticos das lutas sociais de pessoas negras, o desenho sonoro de uma entoação clamorosa e lancinante evoca a questão sobre a existência do ser negro que foi cantada tanto por Louis Armstrong na canção que define a alma do jazz: What did I do to be so black and blue25 25 Composição musical de 1929 criada por Fats Waller, com letra de Harry Brooks e Andy Razal, performada e consagrada na interpretação de Louis Armstrong. quanto por Billy Holiday em Strange Fruits. Encontra-se ainda no pensamento de Du Bois quando, ao refletir sobre a sensação de “ser negro” manifestada pela consciência dual de a pessoa preta “sempre enxergar a si mesmo pelos olhos dos outros, de medir a própria alma pela régua de um mundo que se diverte ao encará-lo com desprezo e pena” (Du Bois, 2021, p. 21).

Nesse sentido, a força expressiva do canto - ritual ou festivo - da cultura negra se faz presente, tornando-se a fonte privilegiada da expressão plástica visual e sonora que tomava o corpo em cantos, danças, gritos de protestos e num simples grito de alegria em disputas esportivas. Assim, a cinematicidade audiovisual resulta, em um nível elementar, da escritura do impacto físico das imagens com o som que leva os corpos a se lançarem ao espaço nos diferentes deslocamentos.

Com isso, a música-celebração Ultralight beam introduz em Love Is the Message, diferentes graus de tensionamentos, tanto de tempo quanto de espaço. Como vimos, os fragmentos fílmicos que entram para a edição do vídeo foram colhidos de diferentes episódios de violência, de eventos musicais e esportivos, do cotidiano de manifestações coletivas. Contudo, a câmera não registra os eventos sonoros de todas as situações retratadas, reservando o espaço acústico para o hino rap-gospel de West. Em diálogo com as cenas e ideias, o rap-gospel evidencia temporalidades distintas que coexistem na performance da canção e do desenrolar das sequências de imagens, criando um diálogo polifônico e contrapontístico - o que, evidentemente, organiza a montagem, a qual, pode-se dizer, se torna igualmente vetorializada. Além da capacidade de reorganizar a dinâmica dialógica entre canto e cada um dos episódios, a canção desenha o ritmo das entoações de clamor, preces, súplicas, revoltas, protestos e indignação pela impossibilidade de resignação. No espaço ressonante, a acústica reverbera mensagens de amor e de morte, sintetizadas na luta de seres em busca de emancipação.

Considerações finais

Quando Jafa deposita a potência da cultura negra na entoação de cadências da ressonância sonora, que se manifesta na voz como energia do corpo negro em sua vivência cotidiana, ele situa no tempo e no espaço da cultura a singularidade do cinema negro. De uma cultura deslocada que, pela travessia da diáspora afro-transatlântica e a ulterior escravização, é aclimatada e performa uma outra forma de convívio, de produção e de realização cultural, à revelia de todas as forças que agiram em contrário.

A noção de entoação visual como nicho semiótico, de onde emergiram diferentes manifestações culturais, torna-se um código textual da dança, da música, das artes visuais cujos traços se encarregam de experiências sensíveis cujos vínculos com suas civilizações remotas e ancestralidades é constitutivo de sua organização e organicidade. Assim, um canto de louvor e lamento nascido da alma do negro escravizado nas plantações torna-se base da composição estética de um rap-gospel que ressoa uma energia que está nas performances do corpo, da voz, do gesto em diferentes contextos e que somente as pessoas pretas sentem na pele e carregam na carne. Trata-se de uma outra forma de relação histórico-cultural que nasceu na travessia transatlântica, da Europa para a América com a fecundação pelos povos de África.

Uma percepção que o poeta Aimé Césaire (1983CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal [1939]. Paris: Présence Africaine, 1983., p. 24) cantou em versos, retratando o sofrimento negro. Diante de uma situação singular, jamais vista, nomeou, pela primeira vez, aquilo que via e chamou de négritude o horror que o quadro que a história negra desenhou, como se pode ler em seus versos.

[...] E a minha ilha não-fechada, a sua clara audácia situada nas costas desta Polinésia, à sua frente, Guadalupe dividida em duas de sua coluna dorsal e na mesma miséria que nós, o Haiti onde a negritude se ergueu pela primeira vez e disse que acreditava em sua humanidade e na estreita trança cômica da Flórida onde termina o estrangulamento de um negro, e na África rastejando gigantescamente até o sopé hispânico da Europa, sua nudez onde a Morte ceifa em largos canteiros26 26 Tradução livre. No original: “[...] Et mon île non-clôture, sa claire audace debout à l'arrière de cette polynésie, devant elle, la Guadeloupe fendue en deux de sa raie dorsale et de même misère que nous, Haïti où la négritude se mit debout pour la première fois et dit qu'elle croyait à son humanité et la comique petite queue de la Floride où d'un nègre s'achève la strangulation, et l'Afrique gigantesquement chenillant jusqu'au pied hispanique de l'Europe, sa nudité où la Mort fauche à larges andains”. (Aimé Cesaire, 1983CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal [1939]. Paris: Présence Africaine, 1983., p. 6).

Os versos não apenas mostram haitianos altivos, que não vacilaram em promover os levantes como o primeiro país que iniciou, ainda no século XVIII, sua luta pela independência, vitoriosa em 1804. Levantaram a voz em nome da dignidade humana que lhes foi usurpada. Esta voz insurgente foi o que ecoou desviando o vetor da ameaça, ressoando no continente com as guerras de independência, tendo os EUA à frente com a libertação em 1776. Enquanto para Lígia Ferreira (2006FERREIRA, Ligia F. Negritude, negridade, negrícia: história e sentidos de três conceitos viajantes. Via Atlântica, São Paulo, v. 7, n.1, p. 163-184, 2006, https://doi.org/10.11606/va.v0i9.50048. Disponível em: https://www.revistas.usp. br/viaatlantica/article/view/50048. Acesso em 19 jan. 2024.
https://doi.org/10.11606/va.v0i9.50048. ...
, p. 6) a emergência da palavra négritude dos versos de Césaire fundam uma nova poética com o trânsito de novos signos linguísticos, para os trabalhos audiovisuais aqui examinados a emergência da négritude / blackness / pretitude evidencia como as culturas negras colocaram em ação em lutas de emancipação amparadas por um novo estado de consciência crítica, disposto a cobrar pela reparação de uma dívida impagável (Silva, 2019SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. Tradução e Revisão Amilcar Packer e Pedro Daher. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. E-Book.).

O experimento de Jafa muito contribuiu para não apenas buscar a singularidade do cinema negro a partir da cultura, como também para valorizar o papel do corpo negro e da memória encarnada que a cultura negra potencializa como estado de consciência a revisitar significados históricos. É isso que também chamou a atenção de Jafa quando ele se interroga o que acontece quando o corpo negro dança e movimenta, por inteiro, as forças vitais que nele circulam, fazendo emergir estados de alma e de eroticidade que confronta valores e costumes ocidentais. Tema cuja grandeza na cultura negra se deslocou para um outro ensaio.

REFERÊNCIAS

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  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Em nossa pesquisa, adotamos preferencialmente os termos preta/preto/pretitude e suas variações plurais na caracterização de pessoas provenientes da diáspora africana na cena atual de disputa por espaço e direitos civis. Usamos o termo negro/negra/negritude quando faz parte de expressão ou conceito convencionalizado historicamente como movimento negro, cultura negra e cinema negro. Em estudos crítico-teóricos encontramos: negridade (Silva, 2019; Gadelha, 2022); prete e pretitude (Moten, 2021; 2023). Ver ainda: Bernd, 1984BERND, Zilá. A questão da negritude. São Paulo: Brasiliense, 1984.; Ferreira, 2006.
  • 2
    Informações sobre o artista com análise de seus projetos e obras podem ser encontradas no site liquid blackness, disponível em https://liquidblackness.com/arthur-jafa. Acesso em 20 jan. 2024.
  • 3
    O filme foi examinado em ensaio específico: Ontologia da pretitude em ensaios audiovisuais (Machado, 2024, a sair).
  • 4
    Jafa atuou como cinegrafista em filmes de cineastas consagrados: Charles Burnett, Spike Lee e Stanley Kubrick, dentre outros. Nos anos 90, trabalhou com o diretor de fotografia Malik Hassan Sayeed no filme Eyes Wide Shut (De olhos bem fechados, 1999, Reino Unido, Direção de Stanley Kubrik), e juntos criaram a produtora TNEG. Informações sobre a produção dos artistas e cineastas encontram-se disponíveis nos sites Black Avant-Garde Cinema no endereço: https://ktt2.com/new-black-avantgarde-cinema-arthur-jafa-malik-hassan-sayeed-112890 e https://www.impossibleobjectsmarfa.com/fragments/tneg. Também em nosso estudo citado (Machado, 2024 no prelo).
  • 5
    No Brasil, o filme foi exibido com o título: Dando um rolê, pelo do Instituto Moreira Salles (São Paulo e Rio de Janeiro), em 2019, como parte da Mostra L.A. Rebellion. Informações disponíveis em https://ims.com.br/filme/dando-um-role/. Acesso em 20 jan. 2024.
  • 6
    No original: “[…] dramatized the world of jazz from the inside: he showed that the practical struggles of jazz musicians are inseparable from the inner life—the spiritual essence—of the music.”
  • 7
    Sobre o tema, é sempre bom lembrar de Strange Fruits corajosamente interpretado por Billie Holiday, sob protestos de gravadoras e público (Margolick, 2012).
  • 8
    No original: “[…] the rapid fingering of a saxophone and the angular athleticism of drumming are superimposed to give visual identity to the music’s rhythms.”
  • 9
    Título de uma canção de Carlos Lyra (2000).
  • 10
    Umwelt, conceito formulado pelo biólogo e filósofo Jakob von Uexküll (2001) para designar o ambiente específico no qual vive uma espécie em relação às outras espécies. Com ele, iniciaram-se os estudos de etologia que incorporou também a comunicação humana em ambientes socioculturais integrados ao ecossistema do universo.
  • 11
    Para Tiniánov (1976), a palavra orientação desvia-se até mesmo da mera intenção para designar “correlação com a vida social” (p. 115).
  • 12
    No original: “What that means is that I have a belief in certain levels of cultural retention. People carry culture on various levels, down to the deepest level, which I would call a kind of core stability. Nam Jun Paik, the godfather of video art, has this great quote: ‘The cultures that’s going to survive in the future is the culture that you can carry around in your head’.”
  • 13
    No original: “‘Polyventiality’ just means multiple tones, multiple rhythms, multiple perspectives, multiple meanings, multiplicity.”
  • 14
    No original: “How do we make Blake music or Black images vibrate in accordance with certain frequential values that exist in Black music? How can we analyze the tone, not the sequence of notes that Coltrane hit, but the tone itself, and synchronize Black visual movement with that? I mean, is this just a theoretical possibility, or is this actually something we can do?”
  • 15
    No original: “I’m developing an idea that I call Black visual intonation (BVI). What it consists of is the use of irregular, nontempered (nonmetronomic) camera rates and frame replication to prompt filmic movement to function in a manner that approximates Black vocal intonation. See, the inherent power of cinematic movement is largely dependent on subtle or gross disjunctions between the rate and regularity at which a scene is recorded and the rate and regularity at which it is played back. Nonmetronomic camera rates, such as those employed by silent filmmakers, are transfixing precisely because they are irregular.”
  • 16
    Vale observar que apenas nos textos iniciais a distinção entre sistema modelizante primário e sistema modelizante secundário foi mantida, conforme argumentou V. V. Ivánov et al (1978; 1998). Em estudos posteriores, Lotman abandona tal distinção para compreender a semiose da semiosfera cultural e as imprevisibilidades a que estão sujeitas as culturas no curso de processos históricos explosivos (Lotman, 2009; 2022).
  • 17
    Em nota, os versos são traduzidos por: “Ah, ninguém sabe o sofrimento que vivi, / Ninguém além de Jesus, / Ninguém sabe o sofrimento que vivi. / Glória Aleluia! [...]”. Na nota 22 da p. 30, o tradutor Alexandre Boide esclarece que no texto de Du Bois a referência a “soul” da música negra e a alma, mas o termo só começou a ser usado no repertório da música popular norte-americana com o jazz dos anos 1940; já o uso de “soul music” aparece nos anos 1969 em referência a uma versão laica de música gospel (Du Bois, 2021DU BOIS, W.E.B. As almas do povo negro. Tradução Alexandre Boide. Prefácio Silvio Almeida. São Paulo: Veneta, 2021., p. 20, n. 8).
  • 18
    O trabalho nas plantações para produzir riquezas no mercado externo sustentou o sistema econômico fundado na escravidão que se tornou um dos pilares de fundação da modernidade. No trabalho escravo, a exploração humana e a consequente consolidação de uma sociedade desigual alimentada pela relação dialética entre riqueza e miséria, levou as pessoas pretas escravizadas a se verem e se entenderem como o “outro”, o que despertou a necessidade de reverter o estado de coisas para a criação de outro tipo de relação.
  • 19
    Como esclarece o tradutor Alexandre Boide, para Du Bois, spirituals são um gênero de canções que os escravizados criaram quando foram impedidos de dançar e usar instrumentos africanos de percussão. Como alternativa, incorporaram elementos temáticos da cultura branca e islâmica. (Du Bois, p. 16, n.5DU BOIS, W.E.B. As almas do povo negro. Tradução Alexandre Boide. Prefácio Silvio Almeida. São Paulo: Veneta, 2021.).
  • 20
    No original: “[…] Rhythms of the Afro-Atlantic World collectively argue that music and dance are living indices of a constant (re)composition and (re)mixing of local sounds, gestures, epistemologies, and memories”.
  • 21
    No original: “[…] the most visible contributions of African-descended communities to the making of the Atlantic world, music and dance have been identified, along with orality, not only as the main modes of occurrence and dissemination in the world of black culture but also as linked channels of black expressivity and presence in the world scene. African music is ‘always music for dance,’ and African dances are ‘polymorphic music, with the upper and the lower parts of the body appearing to move to two different, related clocks.’ Not only are they ‘pleasurable and erotic,’ but they are also powerful spiritual grammars and rituals of socialization, languages of interventions in nature and society, contributing to the expression of African religious and cultural beliefs and manifestations of and engagements with historical (dis)continuities.”
  • 22
    Em versão livre. No original: “I have an overriding ambition to make a black cinema that has the power, beauty, and alienation of black music” (Campt; Jafa, 2017, p. 3).
  • 23
    Ver citação completa na nota 14.
  • 24
    Por iniciativa do Smithsonian American Art Museum e do Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, onze museus de diferentes países se uniram para organizar uma exibição simultânea e contínua do filme durante 48 horas, começando às 14h do dia 26 de junho de 2020 no site das instituições, onde as cópias do filme foram depositadas (Germano, 2020).
  • 25
    Composição musical de 1929 criada por Fats Waller, com letra de Harry Brooks e Andy Razal, performada e consagrada na interpretação de Louis Armstrong.
  • 26
    Tradução livre. No original: “[...] Et mon île non-clôture, sa claire audace debout à l'arrière de cette polynésie, devant elle, la Guadeloupe fendue en deux de sa raie dorsale et de même misère que nous, Haïti où la négritude se mit debout pour la première fois et dit qu'elle croyait à son humanité et la comique petite queue de la Floride où d'un nègre s'achève la strangulation, et l'Afrique gigantesquement chenillant jusqu'au pied hispanique de l'Europe, sa nudité où la Mort fauche à larges andains”.

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2024
  • Aceito
    04 Jul 2024
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