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O gênero entrevista sociolinguística e suas dimensões cronotópicas

RESUMO

A entrevista sociolinguística tem sido estudada em diferentes aspectos, por pesquisadores de variadas áreas. Este texto busca ampliar a perspectiva de análise de entrevistas sociolinguísticas, em uma abordagem interdisciplinar, articulando noções do campo discursivo com outras do campo antropológico e do campo sociolinguístico. Os objetivos específicos deste trabalho são: (i) articular os conceitos de cronotopo, performance de linguagem e atos de postura (stance) para o estudo das dimensões cronotópicas na entrevista sociolinguística; (ii) expor e descrever essas dimensões e seus aspectos indexicais; e (iii) propor algumas estratégias metodológicas que podem ser adotadas para o mapeamento das dimensões cronotópicas nas entrevistas sociolinguísticas. Como resultado, exponho algumas contribuições dessa articulação conceitual e da estratégia metodológica utilizada, atentando-se também para a investigação de dados emergentes dessa prática discursiva.

PALAVRAS-CHAVE:
Entrevista sociolinguística; Cronotopo; Performance da linguagem; Stance; Abordagem interdisciplinar

ABSTRACT

The sociolinguistic interview has been studied in diverse ways by researchers from various fields. This text aims to broaden the perspective of analyzing sociolinguistic interviews in an interdisciplinary approach, articulating notions from the discursive field with others from the anthropological and sociolinguistic fields. The specific aims are: (i) to connect the concepts of chronotope, performance, and stance for the study of chronotopic dimensions in sociolinguistic interviews; (ii) to expose and describe these dimensions and their indexical aspects; and (iii) to propose some methodological strategies for mapping chronotopic dimensions in sociolinguistic interviews. As a result, I present some contributions from this conceptual articulation and the methodological blueprint used, paying attention to the data that emerges from this discursive practice.

KEYWORDS:
Sociolinguistic Interview; Chronotope; Performance; Stance; Interdisciplinary Approach

A linguagem é essencialmente cronotópica como um acervo de imagens

Mikhail Mikhailovich Bakhtin.

Considerações iniciais

As entrevistas são instrumentos muito utilizados em pesquisas nas áreas de Ciências Humanas e Sociais. A complexidade desse gênero discursivo acadêmico está relacionada a uma característica dúbia, constituindo-se tanto numa ferramenta quanto num objeto de pesquisa. Para além da interação, formular perguntas que sejam condizentes com o objeto de investigação e com a participação do entrevistado, realizar entrevistas considerando a interação social e a especificidade de cada entrevistado, e reunir as respostas para uma robusta análise dos dados que emergem dessa interação têm sido um trabalho bastante árduo para os pesquisadores.

Na Linguística, principalmente, na área de Sociolinguística, as entrevistas são consideradas eventos comunicativos e são trabalhadas em diferentes perspectivas. Hymes (1964HYMES, Dell H. Introduction: Toward Ethnographies of Communication. In: GUMPERZ, John J.; HYMES, Dell (eds.). The Ethnography of Communication. American Anthropologist 66(6). 1964, pp. 1-34.; 1972), na Etnografia da Comunicação, desenvolveu um modelo de evento comunicativo não hierárquico sob o acrônimo SPEAKING1 1 Situation (Configuração da situação de fala); Participants (Identidade dos Participantes); Ends (Finalidade do evento de fala); Acts sequence (Organização dos atos de fala); Key (Chave); Instrumentalities (Código linguístico realizado: língua, variedade); Norms (Normas socioculturais de interação); e Genres (tipos de gêneros textuais/discursivos). . Além de permitir um “desenho” do evento comunicativo, esse modelo possibilita tanto uma observação focalizada em um desses aspectos quanto uma observação integrada da covariação2 2 O termo covariação, neste trabalho, é compreendido como um sistema semiótico em que o locus do evento de fala covaria com muitos aspectos da interação (cf. comunicação pessoal do Professor Dr. Willian F. Hanks, na disciplina: Research Theory and Methods in Linguistic Anthropology - University of California, Berkeley-, em 2021). desses aspectos na prática discursiva situada, visto que as formas linguísticas (verbal e não verbal) covariam com as características das configurações em que são produzidas.

Gumperz (1982GUMPERZ, John J. Discourse Strategies. Cambridge University Press, 1982.), na Sociolinguística Interacional, desenvolveu o modelo das pistas de contextualização que podem ser verbais e não verbais. As verbais são linguísticas (como, alternância de código, variedades ou estilo); paralinguísticas (como, o valor das pausas, tempo de fala, risos e hesitações) e prosódicas (como, entoação, acento e tom); e as não verbais são direcionamento de olhares, presença de gestos, o distanciamento entre os interlocutores, entre outros.

Labov (1966LABOV, William. The Social Stratification of English in New York City. Washington, D. C.: Center for Applied Linguistics, 1966.; 1972), tendo como princípio fundamental da Sociolinguística Variacionista o fato de que “não há falantes de estilo único” (Labov, 2003 [1969], p. 234), desenvolveu o modelo de níveis estilísticos do gênero entrevista sociolinguística, em que formulou roteiros de entrevistas com técnicas de elicitação da fala relacionadas com as dimensões contextuais conhecidas como método de “isolamento dos estilos contextuais”. Com o interesse principal em captar a fala casual dos falantes, para captar o vernáculo3 3 Conforme Labov (2008 [1972], p. 244), o vernáculo é “o estilo em que se presta o mínimo de atenção ao monitoramento da fala”. , distinguindo-a da fala monitorada, técnicas foram criadas para a obtenção dessa fala, mesmo considerando o paradoxo do observador, uma vez que o entrevistado pode se sentir constrangido diante de um gravador e, por esse motivo, pode não elicitar o seu vernáculo, durante a entrevista.

As entrevistas sociolinguísticas têm sido a abordagem mais comum para coleta de dados em estudos da variação e mudança linguística em comunidades de fala, redes sociais, comunidades de prática e indivíduos. Elas têm sido, frequentemente, a fonte de dados linguísticos mais utilizada por pesquisadores da área, principalmente no Brasil. Alguns autores estudaram as potencialidades e limitações desse gênero discursivo em diferentes perspectivas.

Além de criticar os modelos de entrevistas para pesquisas do tipo Survey, Briggs (1986BRIGGS, Charles L. Learning How To Ask: A Sociolinguistic Appraisal of the Role of the Interview in Social Science Research. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.), na Antropologia Linguística, propôs um modelo de análise de entrevistas com base nos eventos comunicativos de Jakobson (2014JAKOBSON, Roman. Closing Statement: Linguistics and Poetics. In: The Lyric Theory Reader: A Critical Anthology, 2014 [1960]. [1960]) e Hymes (1964HYMES, Dell H. Introduction: Toward Ethnographies of Communication. In: GUMPERZ, John J.; HYMES, Dell (eds.). The Ethnography of Communication. American Anthropologist 66(6). 1964, pp. 1-34.; 1972), considerando os seguintes componentes de uma situação de entrevista: os participantes da interação: entrevistador e entrevistado; a forma da mensagem, por meio de sinais auditivos e visuais; o referente que corresponde ao “objeto” de Peirce (2005PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica: Charles Sanders Peirce. Tradução de: José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2005.) ou o “significado” de Saussure (2012SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Organização Charles Bally e Albert Sechehaye; com a colaboração de Albert Riedlinger. Tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28a ed. São Paulo: Cultrix, 2012.); o canal de comunicação, físico (visual e acústico) e psicológico entre os participantes; e os códigos verbais e não verbais (proxêmicos e gestuais). Tal proposta se aproxima do modelo de evento comunicativo de Hymes (1964; 1972) e do modelo das pistas de contextualização de Gumperz (1982GUMPERZ, John J. Discourse Strategies. Cambridge University Press, 1982.).

Tavares (2004TAVARES, Maria Alice. Então inferidor como marca de constituição de subjetividade e de instanciação de sentidos na entrevista sociolinguística. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, v. 20, 2004. pp. 77-95. DOI http://dx.doi.org/10.1590/S0102-44502004000100004.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-44502004...
), na perspectiva da Análise do Discurso Francesa, aborda a entrevista sociolinguística variacionista como uma prática discursiva, considerando a multiplicidade de sentidos e de sujeitos vinculados a essa prática. Tavares (2015) considera a entrevista sociolinguística variacionista um macrogênero textual que comporta diferentes gêneros textuais.

Valle e Görski (2014VALLE, Carla Regina Martins; GÖRSKI, Edair Maria. Por um tratamento multidimensional da variação estilística na entrevista sociolinguística. In: GÖRSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl; NUNES DE SOUZA, Christiane Maria (Orgs.). Variação estilística - reflexões teórico-metodológicas e propostas de análise. Coleção Linguística. v. 3. Florianópolis: Insular, 2014. pp. 93-121.), em uma comparação de características de entrevistas sociolinguísticas governadas pelo entrevistador e entrevistas governadas pelo entrevistado, perceberam que uma entrevista de interação face a face não tem uma configuração estática, uma vez que em uma mesma entrevista pode haver mudanças ao longo da interação conforme os temas de interesse dos participantes e de outros fatores que podem interferir no andamento da entrevista.

Nesse sentido, por mais que o entrevistador seja o condutor na maior parte da interação, usando um roteiro como guia, na intenção de garantir uma quantidade razoável de dados e de compor uma amostra coerente para comparabilidade de falas na pesquisa sociolinguística, é importante salientar que cada interação é um evento comunicativo único. O roteiro previamente elaborado pode sofrer alterações em cada entrevista, alguns tópicos abordados podem não ser de interesse do entrevistado, que pode, inclusive, controlar partes da entrevista (cf. Valle; Görski, 2014VALLE, Carla Regina Martins; GÖRSKI, Edair Maria. Por um tratamento multidimensional da variação estilística na entrevista sociolinguística. In: GÖRSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl; NUNES DE SOUZA, Christiane Maria (Orgs.). Variação estilística - reflexões teórico-metodológicas e propostas de análise. Coleção Linguística. v. 3. Florianópolis: Insular, 2014. pp. 93-121.), visto que, na interação, pode haver não só uma negociação de significado entre os interlocutores, mas também um reposicionamento agentivo/responsivo dos participantes.

Neste trabalho4 4 É importante salientar que a abordagem sociolinguística trazida neste artigo é ampla, isto é, não se limita à perspectiva Sociolinguística Variacionista. , busco ampliar a perspectiva de análise de entrevistas sociolinguísticas, por meio das dimensões cronotópicas no processo dinâmico da prática discursiva em uma abordagem interdisciplinar, articulando noções do campo discursivo com outras do campo antropológico e do campo sociolinguístico5 5 Sobre a relação entre cronotopo e pesquisa variacionista, e a relação entre expressão variável de tempo e cronotopo dos gêneros, confira Bragança (2017) e Langa-Lacerda (2021). , com o estudo de algumas dimensões cronotópicas desse gênero discursivo acadêmico, conforme o trabalho desenvolvido por Marciano de Oliveira (2023), em sua tese de doutorado. Para tal propósito, centro-me em um aspecto pouco investigado nos estudos sociolinguísticos, a percepção da entrevista sociolinguística como uma prática discursiva situada, realizada no tempo-espaço presente da interação intersubjetiva que nos remete, também, a outros tempos-espaços, por meio da indexicalidade6 6 A indexicalidade é uma propriedade da linguagem que pode ser compreendida como “o modo como, gradualmente, os signos linguísticos e outros apontam os usuários desses signos para as condições envolventes específicas em que os utilizam” (Silverstein, 2006, p. 756). No original: “the way that, by degrees, linguistic and other signs point the users of these signs to the specific enveloping conditions in which they use them.” de tempo, espaço e pessoa. Com esse intuito, busco responder à questão: Como as dimensões cronotópicas das entrevistas sociolinguísticas podem ajudar a analisar os dados que emergem dessa prática discursiva?

Os objetivos deste trabalho são: (i) articular os conceitos de cronotopo, performance de linguagem e atos de postura (stance) para o estudo das dimensões cronotópicas na entrevista sociolinguística; (ii) expor e descrever essas dimensões e seus aspectos indexicais; e (iii) propor algumas estratégias metodológicas que podem ser adotadas para o mapeamento das dimensões cronotópicas em entrevistas sociolinguísticas, com base no mapeamento das entrevistas que compõem a Amostra Marciano de Oliveira (2021).

Perfil das entrevistas da Amostra Marciano de Oliveira (2021)

As entrevistas da amostra Marciano de Oliveira (2021)7 7 As entrevistas foram gravadas, sob o registro do CEPSH - UFSC: 4.730.657 e foram incorporadas ao banco de dados do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa Projeto VARSUL - Variação Linguística na Região Sul do Brasil (www.varsul.org.br). foram realizadas na cidade de Florianópolis-SC, com um grupo de pescadores artesanais da Comunidade da Barra da Lagoa, pescadores da Associação Saragaço, no período da safra da tainha, no inverno de 2021. As entrevistas fazem parte do processo de investigação e de escrita da tese de Marciano de Oliveira (2023)8 8 Marciano de Oliveira (2023) analisou dez entrevistas sociolinguísticas dos pescadores da Barra da Lagoa de duas amostras diferentes: cinco entrevistas da Amostra Marciano de Oliveira, de 2021, e cinco entrevistas da amostra Brescancini-Valle, de 2001. Essas cinco entrevistas, que compõem a Amostra Brescancini-Valle (2001), foram realizadas pelas pesquisadoras Cláudia Regina Brescancini (PUC-RS) e Carla Regina Martins Paza (UFSC). A amostra é constituída por 37 entrevistas realizadas em 2001, e 8 entrevistas realizadas em 2010, somando um total de 45 entrevistas. Essa amostra foi incorporada ao banco de dados do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa Projeto VARSUL - Variação Linguística na Região Sul do Brasil (www.varsul.org.br). , que acompanhou esse grupo de pescadores artesanais da pesca da tainha e analisou entrevistas de pescadores artesanais da Barra da Lagoa em dois tempos espaços (2001 e 2021).

A escolha da Barra da Lagoa se deu por ser uma comunidade pesqueira tradicional de Florianópolis - na Ilha de Santa Catarina, que foi povoada por açorianos a partir do Século XVIII -, onde se situa a Associação Saragaço que trabalha com a pesca artesanal da tainha na modalidade Arrasto de praia, desde 2005. Essa técnica realiza o cerco da tainha na beira da praia, com o uso de canoa a remo, com propulsão de força braçal, e rede de pesca de arrasto. Tal prática foi passada pelas gerações de pescadores que nasceram e viveram no local.

Os entrevistados da Associação Saragaço são nativos do local e trabalham com a pesca há muito anos. Eles vivenciam esse ambiente desde a infância, quando acompanhavam os pais, avôs e tios na captura da tainha, principal pesca do local.

Foram entrevistados cinco pescadores, de diferentes faixas etárias e escolaridade. As entrevistas foram gravadas em áudio de aproximadamente uma hora. Os tópicos abordados foram relacionados aos Campos Sociais Pesca e Turismo, principais esferas sócio-históricas e econômicas dessa comunidade pesqueira. Portanto, os temas, predominantemente, foram sobre a pesca local e suas modalidades, o turismo local, a comunidade da Barra da Lagoa e os impactos da pandemia COVID-19 nas atividades de pesca e turismo no bairro.

Embora tais temas sejam relacionados ao tempo presente daquele momento da prática discursiva, em outros momentos, os temas foram direcionados para a memória dos participantes e para a projeção futura da comunidade da Barra da Lagoa.

Além desta introdução, o trabalho está organizado da seguinte maneira: na Seção 1, exponho e descrevo os conceitos de cronotopo, performance de linguagem e atos de postura (stance), e articulo esses conceitos para o estudo na entrevista sociolinguística. Na Seção 2, apresento uma proposta de um artefato metodológico para analisar as dimensões cronotópicas em tal gênero discursivo. Por fim, indico os pontos de relevância deste estudo para a análise de dados que emergem da entrevista sociolinguística.

1 Cronotopo, Performance da Linguagem e Stance: articulando conceitos

Descrevo, nas subseções a seguir, os conceitos de cronotopo, de performance da linguagem e stance, e articulo tais conceitos na última subseção.

1.1 Cronotopo

Cronotopo, do grego Cronos-Topo, significa “tempo-espaço”. A Teoria de Cronotopo foi desenvolvida por Bakhtin (2018BAKHTIN, Mikhail M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018 [1975]. [1975]; 2011 [1979]) para o estudo das relações de tempo, espaço e indivíduo sócio-histórico no domínio artístico-literário9 9 Bakhtin (2018[1975]) estudou tais relações no gênero romance, partindo do romance grego ao romance de Rabelais. . Bakhtin (2018, p. 11) explica que esse termo foi introduzido e fundamentado com base na Teoria da Relatividade de Einstein e o desenvolveu em suas obras: O romance de formação e seu significado na história do realismo (Bakhtin, 2011); e Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo (Bakhtin, 2018). Segundo o autor, os cronotopos são “centros organizacionais dos acontecimentos basilares que sedimentam o enredo do romance”, e eles “têm um caráter típico de gênero, servem como base a certas variedades do gênero romanesco, que se formou e desenvolveu-se ao longo de séculos” (Bakhtin, 2018, p. 226-227). Além disso, o autor assevera que “o cronotopo como categoria de conteúdo-forma determina (em grande medida) também a imagem do homem na literatura; essa imagem sempre é essencialmente cronotópica” (Bakhtin, 2018, p. 12).

Os gêneros discursivos - para além do romance - são fundamentados em diferentes cronotopos, que “podem incorporar-se uns aos outros, coexistir, entrelaçar-se, permutar-se, confrontar-se, contrapor-se ou encontrar-se em inter-relações mais complexas” (Bakhtin, 2018BAKHTIN, Mikhail M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018 [1975]., p. 229), visto que o caráter geral dessas inter-relações é dialógico.

A noção de cronotopo é distinguida por Bakhtin (2018BAKHTIN, Mikhail M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018 [1975].) em dois mundos: (i) “o mundo real que representa o texto”, ou mundo criador do texto - isto é, “a realidade refletida no texto, os autores que o criam, os interpretadores do texto [...], os ouvintes-leitores que o recriam e nessa recriação o renovam” (Bakhtin, 2018, p. 230); e (ii) “o mundo representado”. Desse modo, os elementos do mundo real participam igualmente da criação do mundo representado, pois “é dos cronotopos reais desse mundo que representa que se originam os cronotopos refletidos e criados do mundo representado na obra (no texto)” (Bakhtin, 2018, p. 230).

Holquist (2015HOLQUIST, Michael. A fuga do cronotopo. In: BEMONG, Nele et al. (org.). Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. Tradução de Ozíris Borges Filho. São Paulo: Parábola, 2015, pp. 34-51.), com base nesses estudos de Bakhtin, explica que os cronotopos têm seu habitat natural e único na linguagem, e essa abstração tempo-espaço é “domesticada” quando a dispomos na língua em uso. Por exemplo, o uso do dêitico pessoal (“eu” ou “nós”) juntamente com os dêiticos de tempo (“agora”, “então”) e espaço (“aqui”, “lá”) servem para ajustar posições no tempo e no espaço abstratos, que são, conforme Holquist (2015, p. 50-51), “sempre condicionados (‘adensados’) no acontecimento por valores específicos que a sociedade lhes atribui em todo tempo e lugar”. A propriedade indexical dos dêiticos é fundamental na relação entre língua e contexto, porque é através desse fenômeno que as línguas referenciam traços do contexto de enunciação, e, este, por sua vez, proporciona à língua a interpretação das enunciações (cf. Hanks, 2008HANKS, William F. Incursões no campo dêitico. In: BENTES, Anna Christina et al. (orgs.). Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Tradução de Marcos Rogério Cintra e Renato Cabral Rezende. São Paulo: Cortez, 2008. pp. 204-271. [2005], Bühler, 2020BÜHLER, Karl. Teoria da linguagem. Tradução de Pablo Pinheiro da Costa. Campinas-SP: Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico - CEDET, Kírion, 2020. [1934]; Levinson, 2007LEVINSON, Stephen C. Pragmática. Tradução de L. C. Borges e Aníbal Mari. São Paulo: Martins Fontes, 2007. [1983]).

Embora o conceito de cronotopo tenha sido desenvolvido para o estudo do romance, essa concepção se estende para além dos domínios da arte e literatura, uma vez que “qualquer entrada no campo dos sentidos só se concretiza pela porta dos cronotopos” (Bakhtin (2018BAKHTIN, Mikhail M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018 [1975]., p. 236). Um exemplo de trabalho que ultrapassa esses domínios é o estudo de Woolard (2013WOOLARD, Kathryn A. Is the Personal Political? Chronotopes and Changing Stances toward Catalan Language and Identity. International Journal of Bilingual Education and Bilingualism, v. 16, n. 2, 2013, pp. 210-224.) no campo da Linguística, no qual a autora investigou os cronotopos de excertos narrativos de entrevistas realizadas com catalães em diferentes períodos, o que permitiu à autora organizar e analisar os cronotopos encontrados nessas narrativas em três quadros distintos: cronotopo biográfico, cronotopo sócio-histórico e o cronotopo do tempo de aventura na vida cotidiana.

Conforme Agha (2007AGHA, Asif. Recombinant Selves in Mass Mediated Spacetime. Language & Communication, v. 27, n. 3, 2007. pp. 320-335. DOI https://doi.org/10.1016/j.langcom.2007.01.001.
https://doi.org/10.1016/j.langcom.2007.0...
, p. 321), além da representação cronotópica vincular as exibições de tempo, de espaço e de pessoa, ela também é vivenciada em uma estrutura de participação, uma vez que “o ato de produzir ou interpretar uma representação cronotópica em si tem uma organização cronotópica (de tempo, de lugar e de pessoa) que pode ser transformada por esse agir”10 10 No original: “The act of producing or construing a chronotopic representation itself has a chronotopic organization (of time, place and personhood) which may be transformed by that act.” .

Partindo da noção de cronotopo de Bakhtin e considerando as perspectivas dos autores supracitados, neste artigo, estou assumindo o conceito de cronotopo de modo amplo, tendo em mente a complexidade e a dinamicidade das práticas interativas. Portanto, uma análise da representação cronotópica se configura em uma análise metadiscursiva, o que converge com a ideia de performance da linguagem, conceito que será exposto na próxima subseção.

1.2 Performance da linguagem

A performance é um modo de comunicação altamente reflexivo, tanto da perspectiva dos agentes na interação, visto que os participantes analisam reflexivamente o discurso em sua emergência, trazendo avaliações sobre os temas discutidos, a estrutura e significado da própria fala, e as formas de recepção do que é dito; quanto da perspectiva do pesquisador/analista, que realiza suas análises nas interpretações dos participantes e no discurso que emerge da interação situada (cf. Bauman; Briggs, 2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
[1990]).

O conceito performance nasceu com a teoria dos Atos de fala de Austin (1990AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Tradução de Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990 [1962]. [1962]), que introduziu o termo performativo como uma nova categoria de enunciados, os quais são avaliados pelas condições de “felicidade” e “infelicidade” quando realizam, ou não, uma ação. Tal categoria é diferenciada da dos enunciados constativos - sentenças descritivas, declarativas que são avaliadas pelas condições de “verdadeiro” e “falso”. O enunciado performativo se destaca quando assume sua forma explícita pelo locutor que o produz e pelo contexto em que é produzido.

O trabalho de Austin influenciou estudos sobre Performance na Antropologia Linguística, na qual pesquisadores da área buscaram observar tal teoria no trabalho de campo sobre rituais e perfances. A partir desses trabalhos, críticas foram feitas à teoria em relação à visão universal, etnocêntrica e reducionista dos atos de fala. Essas críticas permitiram que estudos subsequentes sobre performatividade dos enunciados seguissem novas compreensões.

Segundo Bauman e Briggs (2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
), os estudos da performance passaram a ter uma reorientação a partir da década de 1970, deslocando-se da “atenção do estudo da padronização formal e do contexto simbólico dos textos para a emergência da arte verbal na interação social entre atores [performers] e audiências” (Bauman; Briggs, 2006, p. 187). Conforme os autores, essa nova perspectiva corroborou, na época, com a ascensão dos estudos sobre o significado indexical, o discurso em fala espontânea, e o pressuposto de que a fala é heterogênea e multifuncional. Um dos aspectos que estimularam tais estudos foi o de compreender a maneira como “performances deslocam o uso de recursos estilísticos heterogêneos, significados suscetíveis ao contexto e ideologias conflitantes, para uma arena onde estes podem ser examinados criticamente” (Bauman; Briggs, 2006, p. 188). Nesse sentido, os autores apontam que

performance oferece um enquadre que convida à reflexão crítica sobre os processos comunicativos. Uma dada performance está ligada a vários eventos de fala que a procedem e sucedem (performances passadas, leituras de textos, negociações, ensaios, fofoca, relatos, críticas, desafios, performances subsequentes, e similares). [...] A pesquisa centrada na performance pode gerar uma maior compreensão de diversas facetas do uso da linguagem e suas inter-relações (Bauman; Briggs, 2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
, p. 189).

Desta maneira, a reflexão crítica sobre os processos comunicativos, seja no momento da situação de interação seja no uso da linguagem direcionado para outros tempos e espaços, nos remete a atos de posturas (stance) dos participantes.

1.3 Stance

Stance11 11 No português, stance é traduzido como “postura” ou “posicionamento”. Como esse termo é multifacetado porque inter-relaciona diversos aspectos em um único ato de atribuição de valor de participantes na prática discursiva, tal termo será mantido em inglês. é um ato de atribuição de valor pessoal do participante (stance-taker) em relação à forma e conteúdo das práticas discursivas. Sendo uma propriedade emergente das práticas discursivas, atos de stance dos participantes (stance-taking) podem surgir mais em algumas interações do que em outras. No entanto, é importante evidenciar que não há uma postura completamente neutra, uma vez que a neutralidade em si é também um ato de postura (stance) (cf. Jaffe, 2009JAFFE, Alexandra (ed.). Stance: Sociolinguistic Perspectives. Oup Usa, 2009.).

Segundo Du Bois (2007DU BOIS, John W. The Stance Triangle. Stancetaking in Discourse: Subjectivity, Evaluation, Interaction, v. 164, n. 3, 2007, pp. 139-182.),

stance é um ato público de um ator social, alcançado dialogicamente através de meios de comunicação explícitos (linguagem, gesto e outras formas simbólicas), através dos quais os atores sociais avaliam simultaneamente objetos, posicionam sujeitos (eles mesmos e outros) e se alinham com outros sujeitos, com respeito a qualquer dimensão saliente do campo sociocultural12 12 No original: “Stance is a public act by a social actor, achieved dialogically through overt communicative means (language, gesture and other symbolic forms), through which social actors simultaneously evaluate objects, position subjects (themselves and others), and align with other subjects, with respect to any salient dimension of the sociocultural field.” (Du Bois, 2007DU BOIS, John W. The Stance Triangle. Stancetaking in Discourse: Subjectivity, Evaluation, Interaction, v. 164, n. 3, 2007, pp. 139-182., p. 163; grifos meus).

A avaliação tem recebido uma destacável atenção em diferentes áreas, e tem sido trabalhada com diferentes perspectivas. De modo geral, o autor evidencia que “a avaliação pode ser definida como o processo através do qual um stance-taker se orienta para um objeto de posicionamento e o caracteriza como tendo alguma qualidade ou valor específico”13 13 No original: “evaluation can be defined as the process whereby a stancetaker orients to an object of stance and characterizes it as having some specific quality or value.” (Du Bois, 2007DU BOIS, John W. The Stance Triangle. Stancetaking in Discourse: Subjectivity, Evaluation, Interaction, v. 164, n. 3, 2007, pp. 139-182., p. 143).

O posicionamento diz respeito ao modo como os participantes podem se posicionar (i) afetivamente - escolhendo uma posição ao longo de uma escala afetiva, como, por exemplo, feliz ou muito feliz, o que pode ser descrito como um indexical de posicionamento afetivo; e (ii) epistemicamente - escolhendo uma posição ao longo de uma escala epistêmica, como, por exemplo, se apresentando como conhecedores ou ignorantes sobre determinado assunto.

O alinhamento é realizado pelos participantes no momento da interação, (i) explicitamente, através de marcadores de posicionamento como sim ou não, seja verbalmente seja por gestos, acenos ou interjeições, o que indexicaliza algum grau de alinhamento e/ou (ii) implicitamente, em que o locutor convida o seu interlocutor a inferir o alinhamento com base na comparação de posturas relevantes, configuração importante para a gestão de intersubjetividade.

Nesse sentido, as dimensões de stance podem ser inferidas a partir de contextos sócio-históricos e podem transparecer por meio de determinados usos linguísticos, possibilitando indexicalizar diversos aspectos dos contextos nos quais elas ocorrem relacionadas a aspectos socioculturais mais amplos (cf. Silverstein, 1976SILVERSTEIN, Michael. “Shifters, Verbal Categories, and Cultural Description”. In: BASSO, K; SELBY, H. (eds.). Meaning in Anthropology. Albuquerque: School of American Research, 1976. pp. 11-57.; Ochs, 1990OCHS, Elinor. Indexicality and Socialization. Cultural Psychology: Essays on Comparative Human Development, 1990.; Du Bois, 2007DU BOIS, John W. The Stance Triangle. Stancetaking in Discourse: Subjectivity, Evaluation, Interaction, v. 164, n. 3, 2007, pp. 139-182.). Como, por exemplo, determinado ato de postura pode indexicalizar múltiplos aspectos de identidade, diversos eus e identidades sociais, relacionados a outros aspectos socioculturais. Por isso, tal ato é muito estudado na Sociolinguística e na Antropologia Linguística porque é “um modo singularmente produtivo de conceitualizar os processos de indexicalização que inter-relacionam a performance individual e o significado social”14 14 No Original: “the concept of stance is a uniquely productive way of conceptualizing the processes of indexicalization that are the link between individual performance and social meaning.” (Jaffe, 2009JAFFE, Alexandra (ed.). Stance: Sociolinguistic Perspectives. Oup Usa, 2009., p. 4).

Por isso, o posicionamento dos entrevistados em relação a determinados temas, bem como o posicionamento das entrevistadoras que contribuíram com a elocução dos entrevistados podem mostrar pontos importantes a serem considerados em uma entrevista sociolinguística.

De modo geral, os conceitos de cronotopo, performance da linguagem e stance são trazidos para este trabalho pelos seus aspectos de indexicalização e pela importância de serem considerados na análise de dados gerados na situação entrevista sociolinguística, como, por exemplo: as percepções sociais, os processos de construção de identidades dos entrevistados, dentre outras observações, conforme investigado por Marciano de Oliveira (2023).

1.4 Articulação dos conceitos cronotopo, performance de linguagem e stance na entrevista sociolinguística

Tendo em vista que o gênero discursivo é fundamentado em diferentes cronotopos, inter-relacionados dialogicamente, no gênero acadêmico entrevista sociolinguística, encontram-se pelo menos duas dimensões cronotópicas: (i) o tempo-espaço da realização da entrevista, ou seja, o momento presente da situação de interação entre entrevistador e entrevistado; e (ii) o tempo-espaço das reminiscências dos interlocutores, trazidas na interação - além do tempo-espaço do analista, que se estende em diferentes etapas de estudo: momento da transcrição da entrevista, momento da identificação e levantamento dos dados, momento da análise e descrição dos dados, entre outros. Sem mencionar os desdobramentos dos tempos-espaços de ouvintes e leitores, e de diferentes interpretações.

Essas inter-relações cronotópicas, de certa maneira, estão relacionadas à performance da linguagem, uma vez que “a força ilocucionária de uma enunciação emerge não somente de sua localização dentro de um gênero e lugar social em particular, mas também das relações indexicais entre a performance e outros eventos de fala que a precedem e sucedem” (Bauman; Briggs, 2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
, p. 193).

Para Bauman e Briggs (2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
, p. 207), performance é um modo de produção social altamente reflexivo porque “coloca o ato de falar em destaque - o objetifica, o destaca parcialmente de seu cenário de interação e o oferece para avaliação por uma audiência”. Nesse sentido, conforme os autores, é um esquema metapragmático que direciona às ideias de “entextualização” e “descontextualização” de textos. Para esses autores, entextualização

é o processo de tornar o discurso passível de extração, de transformar um trecho de produção linguística em uma unidade - um texto - que pode ser extraído de seu cenário interacional. Um texto, então, nesta perspectiva, é discurso tornado passível de descontextualização. Entextualização pode muito bem incorporar aspectos do contexto, de tal forma que o texto resultante carregue elementos da história de seu uso consigo (Bauman; Briggs, 2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
, p. 206).

Esses processos de transformações de texto são relacionados à concepção de cronotopo, uma vez que há uma relação de tempo, espaço e indivíduo sócio-histórico nesses meios. Sendo assim, um texto descontextualizado, se recontextualiza em outro contexto social mantendo as marcas do contexto precedente, passando a ser ressignificado, recentrado. Um dos possíveis mapeamentos das dimensões de transformações de texto é a análise da “centração indexical” da entrevista sociolinguística, através de marcadores temporais, espaciais e pessoais (prototípicos e não prototípicos). De acordo com Hanks (2008HANKS, William F. Incursões no campo dêitico. In: BENTES, Anna Christina et al. (orgs.). Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Tradução de Marcos Rogério Cintra e Renato Cabral Rezende. São Paulo: Cortez, 2008. pp. 204-271.),

a centração indexical é um aspecto fundamental da interpretação do discurso porque ela associa o sistema avaliativo e semântico às circunstâncias concretas de seu uso. Mais do que isso, uma vez que tais elementos são unidades discretas da estrutura do discurso, ilustram perfeitamente o encaixamento do contexto de fala ao próprio código linguístico (Hanks, 2008HANKS, William F. Incursões no campo dêitico. In: BENTES, Anna Christina et al. (orgs.). Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Tradução de Marcos Rogério Cintra e Renato Cabral Rezende. São Paulo: Cortez, 2008. pp. 204-271., p. 95-96).

Além dessas características, Bauman e Briggs (2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
) evidenciam que a performance é também “uma perspectiva crítica e reflexiva para o exame de nossa própria prática acadêmica” (Bauman; Briggs, 2006, p. 213-214), uma vez que tal postura é um ato de controle, um ato de poder15 15 Os fatores centrais para a construção e aquisição de autoridade elencados pelos autores, são: 1 - O acesso depende de estruturas institucionais, definições sociais de elegibilidade e outros mecanismos e critérios de inclusão e exclusão; 2 - A questão da legitimidade refere-se à concessão da autoridade para a apropriação de um texto de modo que este recentramento conte como legítimo; 3 - A competência, o conhecimento e a habilidade para levar a cabo, com sucesso e apropriadamente, descontextualização e recontextualização de discursos, podem ser concebidas em nível local como uma capacidade humana inata, habilidade adquirida, dádiva especial, uma correlação com a localização do sujeito no ciclo de vida, e assim por diante; e 4 - Os valores organizam os estatutos relativos dos textos e seus usos em uma hierarquia de preferências. Textos podem ser valorizados por seus possíveis usos, pelo que pode ser obtido por eles ou por sua referência indexical a qualidades ou estados desejados - o capital cultural de Bourdieu (Bauman; Briggs, 2006[1990], p. 211-212). sobre o discurso. Nesse sentido, as escolhas temáticas do roteiro de perguntas para uma entrevista sociolinguística, bem como as escolhas de tópicos de pesquisa e de enquadres sociais realizadas pelo analista emergem como resultado do exercício diferencial de tal controle (Bauman; Briggs, 2006), que, por sua vez, é performativo.

Bauman (2014BAUMAN, Richard. Fundamentos da performance. Tradução e revisão de David Harrad e Ana Cristina M. Collares. Sociedade e Estado, v. 29, 2014. pp. 727-746. DOI https://doi.org/10.1590/S0102-69922014000300004.
https://doi.org/10.1590/S0102-6992201400...
[2011]), ao descrever as principais concepções de performance que têm sido desenvolvidas, principalmente, na área da Antropologia Linguística, e que, nas últimas décadas, têm recebido um enfoque analítico na Sociolinguística Variacionista, esclarece que, na terminologia da sociolinguística contemporânea, performance “é um ato de tomada de posição (stance-taking) (cf. Jaffe, 2009JAFFE, Alexandra (ed.). Stance: Sociolinguistic Perspectives. Oup Usa, 2009.)” (Bauman, 2014, p. 733).

A performatividade, por ser um modo de produção social altamente reflexivo, está associada à característica de stance dos participantes na entrevista sociolinguística. Conforme Du Bois (2007DU BOIS, John W. The Stance Triangle. Stancetaking in Discourse: Subjectivity, Evaluation, Interaction, v. 164, n. 3, 2007, pp. 139-182.), stance emerge da prática discursiva quando o participante realiza o ato de avaliar algo ou alguém - subjetividade do participante -, se posiciona sobre algo ou alguém - posicionamento do participante -, e quando há alinhamento entre os participantes sobre as dimensões de valor sociocultural - intersubjetividade dos participantes, no diálogo. Para o autor, a união desses três aspectos distintos compreende um único ato de stance.

Embora stance surja de modo complexo e dinâmico na interação, Du Bois (2007DU BOIS, John W. The Stance Triangle. Stancetaking in Discourse: Subjectivity, Evaluation, Interaction, v. 164, n. 3, 2007, pp. 139-182.) explica que a emergência de stance se realiza por meio de contextualização de enunciados em práticas discursivas situadas, visto que o enunciado, além de trazer vestígio de sua própria contextualização indexical, também aciona outros traços indexicais de contextualização que ultrapassam os contextos de usos pressupostos. Nesse sentido, o autor sugere que para chegar a uma interpretação bem-sucedida de stance na interação, é preciso identificar alguns aspectos do contexto, como o realizador de stance, o objeto de stance e a que ato de stance o interlocutor da interação está respondendo.

Na entrevista sociolinguística, ao se conhecer um pouco da história de vida do participante, isso ajuda a caracterizar traços de suas identidades; ao se diferenciar do objeto do qual o participante está falando e ao se identificar com a avaliação que ele faz sobre tal objeto, isso ajuda a especificar seu posicionamento em relação ao objeto; e ao se reconhecer no ato de stance do participante, o qual conduz a uma resposta de concordância ou discordância de seu interlocutor, isso ajuda na interpretação de stance entre entrevistado e entrevistador durante a prática intersubjetiva.

Nesse sentido, a linguagem constitui contextos de diferentes tempos-espaços, em processos dinâmicos, o que auxilia na compreensão das dimensões cronotópicas, de performance da linguagem e de atos de postura (stance) representados na entrevista sociolinguística.

2 Proposta metodológica para o mapeamento das dimensões cronotópicas em entrevistas sociolinguísticas

Conforme apresentado anteriormente, as entrevistas da Amostra Marciano de Oliveira (2021) foram realizadas com os pescadores artesanais da Barra da Lagoa, integrantes da Associação Saragaço. Após as gravações dessas entrevistas, a primeira etapa foi ouvi-las e transcrevê-las na íntegra.

A segunda etapa foi realizar o mapeamento das entrevistas da amostra Marciano de Oliveira (2021) de temas inter-relacionados aos campos sociais Pesca e Turismo e à representação do locus da pesquisa, a comunidade da Barra da Lagoa. Desse modo, a interpretação sugerida pela imagem da Figura 1 é a de que os indexicais - dêiticos de tempo, espaço e pessoa (prototípicos e não prototípicos) e de atos de postura (stance) dos entrevistados - indexicalizam16 16 “Como a referência dêitica acontece através do uso da língua, Hanks (2008) pondera que tal recurso semiótico se articula a campos sociais mais amplos através do encaixamento [embedding], que ‘converte as posições abstratas como Falante, Destinatário, Objeto, e o espaço de vida dos enunciados, em posições às quais o poder, o conflito, o acesso restrito e outros traços dos campos sociais se vinculam’ (Hanks, 2008, p. 213). Em outras palavras, o autor enfatiza que é por meio do encaixamento [embedding] que o significado e a força das expressões dêiticas são redesenhados pelo campo social ao qual eles se articulam” (Marciano de Oliveira, 2023, p. 157). os campos sociais em destaque, ao centro da imagem, por meio da Linguagem (L), os quais, por sua vez, por meio do encaixamento (embedding) se articulam a campos sociais mais amplos17 17 Embora se saiba que o signo é ideológico e a ideologia é um aspecto que atravessa todos os campos de atividade humana, a representação do “campo social ideológico” e a de outros campos no entorno do círculo da Figura 1 busca ilustrar a relação semiótica entre os indexicais e os campos sociais amplos. como os que podem ser vistos na representação no entorno do círculo.

Figura 1
Campos sociais inter-relacionados.

A terceira etapa se deu pela organização das entrevistas em dois relevos: (i) o tempo-espaço da situação da entrevista (1° plano); e (ii) os tempos-espaços referentes às reminiscências dos entrevistados (2° plano).

No 1° plano, tem-se o momento presente, a situação da entrevista. Nele, percebe-se mais comentários avaliativos e descritivos dos interagentes, por isso foi nomeado de Falas opinativas. É importante lembrar que, por mais que o locus de realização das entrevistas seja o mesmo, há uma outra configuração de tempo-espaço do locus da pesquisa, quando são acionadas as reminiscências dos participantes entrevistados.

No 2° plano, tem-se os tempos-espaços referentes às reminiscências dos entrevistados. Embora a participação do entrevistado seja maior neste plano, pode haver relatos produzidos pelo entrevistador durante a interação para fins de cooperação com o interlocutor, bem como uma participação de coprodução de narrativas e de avaliação de alguns pontos dessas narrativas, com o intuito de manter o entrevistado relatando determinado assunto (cf. De Fina, 2009).

Nesse plano, predominam os cronotopos referentes às reminiscências, o que foi nomeado de Falas narrativas. Nessas falas, incluo as narrativas pessoais, consideradas “canônicas”, de estrutura laboviana (cf. Labov; Waletzky, 2003LABOV, William. Some Sociolinguistic Principles. In: PAULSTON, C. B.; TUCKER, G. R. (orgs.) Sociolinguistics: The Essential Readings. Oxford: Blackwell, 2003 [1969]. pp. 234- 250. [1967]) - com ordem temporal: início, meio, fim; e as narrativas pessoais e vicárias, consideradas “não-canônicas”: pequenas narrativas, relatos de eventos em andamento, eventos futuros ou hipotéticos, eventos compartilhados, entre outros (cf. Georgakopoulou, 2006GEORGAKOPOULOU, Alexandra. Thinking Big with Small Stories in Narrative and Identity Analysis. Narrative Inquiry, v. 16, n. 1, 2006, pp. 122-130.); e relatos narrativos, recapitulações de experiências passadas construídas e/ou negociadas como respostas às perguntas do entrevistador (cf. De Fina, 2009). De modo geral, as falas narrativas abarcam as narrativas pessoais e vicárias, que podem ser tanto episódicas quanto habituais.

Quadro 1
Descrição de algumas dimensões cronotópicas da entrevista sociolinguística.

Embora a prática discursiva situada da entrevista sociolinguística ancore o desenvolvimento da interação, sendo um tempo-espaço do momento presente, a organização da entrevista em dois planos foi pensada com o intuito de explicar as dimensões cronotópicas desse gênero e mostrar as relações dessas dimensões com os dêiticos de tempo, espaço e pessoa. Isso mostra que o gênero entrevista sociolinguística é um emaranhado de falas opinativas e narrativas que correspondem às complexas inter-relações das dimensões cronotópicas de tal gênero. Um exemplo disso é a delimitação dos tempos das memórias dos participantes, baseada nos contextos de fala das entrevistas, como pode ser visto no Quadro 2.

Quadro 2
Continuum do tempo das falas nas entrevistas - delimitação temporal com intervalos de 20 anos.

Na tentativa de ilustrar uma possível linha cronológica dos fatos que surgem na entrevista sociolinguística, com base nos contextos de falas das entrevistas e relatos dos participantes, esboço uma linha de tempo-espaço - com intervalo de 20 anos - de fatos sócio-históricos que ocorreram na comunidade local, a partir da representação da percepção do entrevistado. Esses tempos-espaços são representados pela relação do tempo de vida do entrevistado - que é apresentado de forma explícita na caracterização das entrevistas e na Ficha do Entrevistado, e ainda de forma implícita, pelas reminiscências dos entrevistados, como pode ser visto nos excertos, a seguir:

Excerto (i):

Pescador (S2): A minha infância na Barra era assim, oh. Foi de ajudar meu pai buscar peixe quando ele pescava. Foi de ver a Barra aterrada sem entrar água pra Lagoa, quando aterrava. Foi de ver nascer a primeira ponte, pra atravessar pra Prainha, senão tinha que atravessar por dentro da água. Foi ver surgir os molhes da Barra da Lagoa. Então, é assim foi, foi jogar uma bola. Foi de correr na praia. O estudo também, né? Fez parte. O estudo tem que fazer parte. Qualquer pessoa que nasce ela é obrigada a ter um estudo, porque com o estudo é difícil, sem estudo, então, nem se fala. A não ser que tu tenha sorte e a sorte é pra poucos.

Entrevistadora: Ahã.

Pescador (S2): A sorte é pra poucos.

Entrevistadora: Ahã.

Pescador (S2): Então, a infância foi essa. É pé no chão, é estudo, é:: arrumar um peixe pra comer, é um pirão d'água, é isso que foi a infância da gente aqui na Barra!

Excerto (ii):

Entrevistadora: Todo mundo é da Barra da Lagoa. E você pesca há quanto tempo?

Pescador (S4): Ah, deve ser uns cinquenta anos assim.

Entrevistadora: Sério! Desde criança você...

Pescador (S4): Ah, desde criança já era... já gostava de pescar. Vinha no arrasto, meu pai era... na época de criança, meu pai era olheiro lá da tainha. Então, já me acostumei aí a olhar a tainha com o meu pai. Meu tio que fazia olheiro na praia, lá na prainha. E... na época, assim, da minha idade de criança, nós tínhamos aqui a Barra da Lagoa e a Costa da Lagoa, né?

Entrevistadora: Ahã.

Pescador (S4): Então, um dia eu... a Costa da Lagoa cercava na frente, lá na prainha e um dia na praia. Era sempre assim, entendesse?! Aí com o tempo, depois a pesca do arrastão veio a desaparecer, por questão dessas rede de anilha que o pessoal cerca lá fora. Então, o pessoal adotou MAIS... indo trabalhar na anilha do que aqui na praia, né?

Além de contribuir para a representação do contexto sócio-histórico da comunidade, essas sinalizações de tempo do indivíduo, representadas de forma explícita e implícita, ajudam a traçar o perfil dos participantes, bem como seus posicionamentos em relação a determinado tema abordado na interação.

Nos dois planos da entrevista, foram identificados os seguintes recursos interativos: discurso reportado - discurso de um familiar ou de uma pessoa conhecida pelo entrevistado, que emerge durante a entrevista; a negociação de tópicos de relevância entre os interlocutores; a cooperação - atenção e participação do entrevistador para com o entrevistado, com usos de interjeições, respostas e outras perguntas, incentivando o participante a elicitar mais; e a parentetização: explicações de algo ou de alguém durante as falas dos entrevistados. Esses recursos interativos estão relacionados às falas opinativas e narrativas das entrevistas, como pode ser visto no Quadro 3.

Quadro 3
Recursos interativos identificados na entrevista sociolinguística.

Percebe-se que esses recursos interativos podem ser realizados em diferentes tempos-espaços da entrevista sociolinguística, com exceção da negociação, que ocorre apenas no momento presente da situação da entrevista, ou seja, no 1° plano. Os outros recursos interativos aparecem tanto nas falas opinativas quanto nas falas narrativas, em um complexo entrelaçamento do que se pode chamar de dimensões cronotópicas.

Na quarta etapa, foram destacados nos excertos temáticos já mapeados os dêiticos (prototípicos e não-prototípicos) de tempo, espaço e pessoa:

  • os de espaço: advérbios de lugar (ex.: aqui, ali, , cá, entre outros) e substantivos acompanhados de pronomes demonstrativos (ex.: naquela área, essa área, aqui na Barra, aqui na praia);

  • os de tempo: os advérbios de tempo (ex.: hoje, agora, antigamente, futuramente, entre outros) e substantivos que denotam tempo, geralmente, acompanhados de pronomes demonstrativos (ex.: naquela época, nessa época); e

  • os pessoais: pronomes pessoais (ex.: eu, nós, a gente, tu, você), os substantivos (ex.: pescador, nativo, manezinho, turista) e construções (ex.: gente de fora, morador de fora).

De modo geral, os indexicais pessoais foram destacados considerando o domínio de (im)pessoalidade surgido nas entrevistas.

Quadro 4:
Indexicais pessoais.

Os índices de tempo, espaço e pessoa indexicalizam algumas dimensões cronotópicas das entrevistas sociolinguísticas e tais dimensões podem auxiliar o analista na investigação de determinados dados linguísticos correlacionando-os aos contextos dessas dimensões. Para ilustrar, apresento uma breve análise do Excerto (iii).

Excerto (iii)

Pescador (S3): É! Então, hoje já não tem mais, como se diz, aquele peixe que se dava antigamente, né?! Que é hoje é muita expediência com o pescador. Todo mundo quer pescar, né?!

Entrevistadora: Ahã.

Pescador (S3): Antigamente, só vivia da espera da praia.

Entrevistadora: Ah!

Pescador (S3: Não tinha nada. Se via uma parelha pra auxiliar o pescador. Hoje não, hoje já todo mundo já sai. Já tem barco aqui, tem barco em tudo quanto é lugar, né?!

Entrevistadora: É!

Pescador (S3): Canoa pequena, é canoa grande. É tudo quanto... é assim. Hoje a pescaria até... pelo jeito que tá... a na... a fração que tá dando aí, como se diz, até que ainda dá muito peixe.

Entrevistadora: Sim.

Pescador (S3): Se desde... se tá dando esse peixe aqui agora, é porque no Rio Grande do Sul hoje... acabaram, né?! Porque, antigamente, no mês de maio as barcaiada esperavam tudo lá. A saída do peixe. Hoje não pode mais.

Entrevistadora: Não pode?

Pescador (S3): Não. Só pode trabalhar... a taineira só pode trabalhar em junho.

Entrevistadora: Hum.

Na parte em que o entrevistado argumenta “se tá dando esse peixe aqui, agora, é porque no Rio grande do Sul hoje... acabaram, né?! Porque, antigamente, no mês de maio as barcaiada esperavam tudo lá. A saída do peixe. Hoje não pode mais”, a expressão indexical “esse peixe aqui, agora” ancora a fala no tempo-espaço presente da entrevista, momento de realização da pesca da tainha, e aponta para a finalização do período da pesca industrial no estado do Rio Grande do Sul. Enquanto as expressões temporais “antigamente” e “mês de maio” indexicalizam como era o início da safra da tainha, em um tempo-espaço em que não havia muita fiscalização e os barcos industriais aguardavam a saída do peixe no estado do Rio Grande do Sul, prejudicando os pescadores artesanais com a escassez de peixe. Por isso, o entrevistado conclui com “Hoje não pode mais”, devido ao aumento de fiscalização, tanto das embarcações quanto das milhagens náuticas que cada categoria de pesca deve respeitar. Tal enunciado situa, por sua vez, o tempo-espaço presente da prática discursiva.

Na quinta e última etapa, nos excertos temáticos já mapeados, foram destacados o posicionamento dos entrevistados em relação aos temas sobre: Comunidade da Barra da Lagoa, Pesca e Turismo. Os posicionamentos podem ser observados nos Excertos (iv) e (v), por exemplo.

Excerto (iv)

Entrevistadora: E, assim, é:: o que que... como você acha que a população da comunidade da Barra vê a atividade de pesca?

Pescador (S2): Não é como a população da Barra vê. A população da Barra ela vê a Barra como pesca. Então, a população da Barra é pesqueira, é pesqueira. Por mais que cada um de nós trabalha em outro lugar, no centro, ou empregado não sei aonde, que seja dono de restaurante, que que não seja envolvido com a pesca, no final, a população da Barra toda é envolvida com a pesca. É a... é uma comunidade pesqueira.

Entrevistadora: Sim.

Excerto (v)

Entrevistadora: Entendi. E, assim, no geral, o que que você acha do turismo? Quando a... O que que você acha, assim, das pessoas de fora virem pra cá. O que que você acha que as pessoas do bairro acham do turismo, no geral?

Pescador(S1): Cara! Aquilo que te falei, o turismo, hoje, ele vive, caminha junto com a pesca. Então, a pessoa... além da pessoa aceitar o turismo, porque são obrigado a aceitar. O turismo... o turismo faz parte da do desenvolvimento, tanto do bairro como do município. Aquilo que te falei, hoje, hoje Florianópolis é ou é turismo e funcionário público. Então, eles vê com bons olhos e tão aceitando, né?!

((som de muito vento))

Como os atos de avaliar e de se posicionar (cf. Du Bois, 2007DU BOIS, John W. The Stance Triangle. Stancetaking in Discourse: Subjectivity, Evaluation, Interaction, v. 164, n. 3, 2007, pp. 139-182.) estão relacionados aos temas do momento presente da entrevista, percebe-se que os atos de postura (stance) dos entrevistados apareceram mais nos discursos que se caracterizam como falas opinativas do que em falas narrativas.

De modo geral, investigar as entrevistas sociolinguísticas, a partir da covariação dessas dimensões cronotópicas, além de ajudar o analista a observar aspectos socioculturais, também pode auxiliá-lo a observar a percepção do entrevistado em relação a determinado tema da entrevista. Isso, de certo modo, pode mostrar, na entrevista sociolinguística, a elicitação maior de determinados dados linguísticos em relação a outros.

Considerações finais

Neste trabalho, busquei ampliar a perspectiva de análise de dimensões cronotópicas do gênero discursivo entrevista sociolinguística no processo dinâmico da prática discursiva em uma abordagem interdisciplinar, articulando noções do campo discursivo com outras do campo antropológico e do campo sociolinguístico, com o estudo de algumas dimensões cronotópicas desse gênero discursivo acadêmico, conforme o trabalho desenvolvido por Marciano de Oliveira (2023) em sua tese.

Partindo de uma prática discursiva situada, o mapeamento das dimensões cronotópicas das entrevistas sociolinguísticas, com algumas potencialidades e limitações, pode ajudar a analisar os dados que emergem dessa interação, visto que ao relacionar as temáticas dos campos sociais com os relevos das entrevistas sociolinguísticas - 1º plano, tempo presente da situação (Falas Opinativas); e 2º plano, tempo das reminiscências dos entrevistados (Falas Narrativas), observam-se alguns cronotopos especificados e os desdobramentos desses em outros cronotopos, em uma “teia” de dimensões cronotópicas.

Assim sendo, os objetivos inicialmente levantados neste trabalho foram alcançados. Acredito que a proposta de estudo das dimensões cronotópicas das entrevistas sociolinguísticas pode contribuir para a ampliação do conhecimento sobre as características da entrevista sociolinguística e sobre a investigação de dados emergentes dessa prática discursiva situada, inclusive, na perspectiva de estudos sócio pragmáticos e interdisciplinares, como os de Sociolinguística e Antropologia Linguística.

Agradecimentos

A autora agradece à Professora Dra. Edair Maria Görski - da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - e ao Professor Dr. Daniel do Nascimento e Silva - da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) - pelas leituras, trocas e incentivos; e aos pareceristas que fizeram importantes sugestões ao manuscrito.

  • patrocínio Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

REFERÊNCIAS

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  • TAVARES, Maria Alice. Textos de diferentes gêneros produzidos em entrevistas sociolinguísticas: o caso do banco de dados VARSUL. Revista Veredas, v. 19, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/veredas/article/view/24918/13952 Acesso 20 de outubro de 2023.
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  • VALLE, Carla Regina Martins; GÖRSKI, Edair Maria. Por um tratamento multidimensional da variação estilística na entrevista sociolinguística. In: GÖRSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl; NUNES DE SOUZA, Christiane Maria (Orgs.). Variação estilística - reflexões teórico-metodológicas e propostas de análise. Coleção Linguística. v. 3. Florianópolis: Insular, 2014. pp. 93-121.
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  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Situation (Configuração da situação de fala); Participants (Identidade dos Participantes); Ends (Finalidade do evento de fala); Acts sequence (Organização dos atos de fala); Key (Chave); Instrumentalities (Código linguístico realizado: língua, variedade); Norms (Normas socioculturais de interação); e Genres (tipos de gêneros textuais/discursivos).
  • 2
    O termo covariação, neste trabalho, é compreendido como um sistema semiótico em que o locus do evento de fala covaria com muitos aspectos da interação (cf. comunicação pessoal do Professor Dr. Willian F. Hanks, na disciplina: Research Theory and Methods in Linguistic Anthropology - University of California, Berkeley-, em 2021).
  • 3
    Conforme Labov (2008LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. Tradução de Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008 [1972]. [1972], p. 244), o vernáculo é “o estilo em que se presta o mínimo de atenção ao monitoramento da fala”.
  • 4
    É importante salientar que a abordagem sociolinguística trazida neste artigo é ampla, isto é, não se limita à perspectiva Sociolinguística Variacionista.
  • 5
    Sobre a relação entre cronotopo e pesquisa variacionista, e a relação entre expressão variável de tempo e cronotopo dos gêneros, confira Bragança (2017BRAGANÇA, Marcela Langa Lacerda. Uma proposta de articulação teórico-metodológica entre os campos variacionista, funcionalista e dialógico para o tratamento de variação/mudança: reflexões a partir da expressão do futuro do presente. 2017. 696 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Linguística, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.) e Langa-Lacerda (2021).
  • 6
    A indexicalidade é uma propriedade da linguagem que pode ser compreendida como “o modo como, gradualmente, os signos linguísticos e outros apontam os usuários desses signos para as condições envolventes específicas em que os utilizam” (Silverstein, 2006SILVERSTEIN, Michael. Pragmatic Indexing. In: Jacob Mey (ed.) Concise Encyclopedia of Pragmatics. London: Elsevier, 2006, pp. 756-759., p. 756). No original: “the way that, by degrees, linguistic and other signs point the users of these signs to the specific enveloping conditions in which they use them.”
  • 7
    As entrevistas foram gravadas, sob o registro do CEPSH - UFSC: 4.730.657 e foram incorporadas ao banco de dados do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa Projeto VARSUL - Variação Linguística na Região Sul do Brasil (www.varsul.org.br).
  • 8
    Marciano de Oliveira (2023) analisou dez entrevistas sociolinguísticas dos pescadores da Barra da Lagoa de duas amostras diferentes: cinco entrevistas da Amostra Marciano de Oliveira, de 2021, e cinco entrevistas da amostra Brescancini-Valle, de 2001. Essas cinco entrevistas, que compõem a Amostra Brescancini-Valle (2001), foram realizadas pelas pesquisadoras Cláudia Regina Brescancini (PUC-RS) e Carla Regina Martins Paza (UFSC). A amostra é constituída por 37 entrevistas realizadas em 2001, e 8 entrevistas realizadas em 2010, somando um total de 45 entrevistas. Essa amostra foi incorporada ao banco de dados do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa Projeto VARSUL - Variação Linguística na Região Sul do Brasil (www.varsul.org.br).
  • 9
    Bakhtin (2018BAKHTIN, Mikhail M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução do russo, posfácio e notas de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018 [1975].[1975]) estudou tais relações no gênero romance, partindo do romance grego ao romance de Rabelais.
  • 10
    No original: “The act of producing or construing a chronotopic representation itself has a chronotopic organization (of time, place and personhood) which may be transformed by that act.”
  • 11
    No português, stance é traduzido como “postura” ou “posicionamento”. Como esse termo é multifacetado porque inter-relaciona diversos aspectos em um único ato de atribuição de valor de participantes na prática discursiva, tal termo será mantido em inglês.
  • 12
    No original: “Stance is a public act by a social actor, achieved dialogically through overt communicative means (language, gesture and other symbolic forms), through which social actors simultaneously evaluate objects, position subjects (themselves and others), and align with other subjects, with respect to any salient dimension of the sociocultural field.”
  • 13
    No original: “evaluation can be defined as the process whereby a stancetaker orients to an object of stance and characterizes it as having some specific quality or value.”
  • 14
    No Original: “the concept of stance is a uniquely productive way of conceptualizing the processes of indexicalization that are the link between individual performance and social meaning.”
  • 15
    Os fatores centrais para a construção e aquisição de autoridade elencados pelos autores, são: 1 - O acesso depende de estruturas institucionais, definições sociais de elegibilidade e outros mecanismos e critérios de inclusão e exclusão; 2 - A questão da legitimidade refere-se à concessão da autoridade para a apropriação de um texto de modo que este recentramento conte como legítimo; 3 - A competência, o conhecimento e a habilidade para levar a cabo, com sucesso e apropriadamente, descontextualização e recontextualização de discursos, podem ser concebidas em nível local como uma capacidade humana inata, habilidade adquirida, dádiva especial, uma correlação com a localização do sujeito no ciclo de vida, e assim por diante; e 4 - Os valores organizam os estatutos relativos dos textos e seus usos em uma hierarquia de preferências. Textos podem ser valorizados por seus possíveis usos, pelo que pode ser obtido por eles ou por sua referência indexical a qualidades ou estados desejados - o capital cultural de Bourdieu (Bauman; Briggs, 2006BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução e revisão de Vânia Z. Cardoso e Luciana Hartmann. Ilha Revista de Antropologia, v. 8, n. 1,2, 2006. pp. 185-229. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/18230/17095. Acesso em 20 de outubro de 2023.
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilh...
    [1990], p. 211-212).
  • 16
    “Como a referência dêitica acontece através do uso da língua, Hanks (2008HANKS, William F. Incursões no campo dêitico. In: BENTES, Anna Christina et al. (orgs.). Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Tradução de Marcos Rogério Cintra e Renato Cabral Rezende. São Paulo: Cortez, 2008. pp. 204-271.) pondera que tal recurso semiótico se articula a campos sociais mais amplos através do encaixamento [embedding], que ‘converte as posições abstratas como Falante, Destinatário, Objeto, e o espaço de vida dos enunciados, em posições às quais o poder, o conflito, o acesso restrito e outros traços dos campos sociais se vinculam’ (Hanks, 2008, p. 213). Em outras palavras, o autor enfatiza que é por meio do encaixamento [embedding] que o significado e a força das expressões dêiticas são redesenhados pelo campo social ao qual eles se articulam” (Marciano de Oliveira, 2023, p. 157).
  • 17
    Embora se saiba que o signo é ideológico e a ideologia é um aspecto que atravessa todos os campos de atividade humana, a representação do “campo social ideológico” e a de outros campos no entorno do círculo da Figura 1 busca ilustrar a relação semiótica entre os indexicais e os campos sociais amplos.

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O trabalho apresenta boa discussão acerca do gênero entrevista cotejando a teoria bakhtiniana com o campo da Sociolinguística. Para tanto associa o conceito de cronotopo aos conceitos de performance de linguagem e atos de postura. Embora as teorias sejam distintas, a discussão se manteve, quase sempre, coerente, com boa argumentação e fundamentação teórica, apresentando bibliografia relevante, atualizada e pertinente à proposta realizada. O artigo traz contribuição para a área de conhecimento por fazer reflexão significativa acerca do conceito bakhtiniano de cronotopo relacionado ao gênero entrevista sociolinguística. Entretanto em alguns pontos, há necessidade de maior esclarecimento para que o que está sendo argumentado esteja em conformidade com a teoria bakhtiniana.

Importante esclarecer os seguintes tópicos abordados:

1- A diferença entre o que o(a) articulista designa de tempo cronológico e o tempo de vista do entrevistado.

2- Ideologia, no gráfico apresentado, configura um campo de atividade? Na perspectiva bakhtiniana, a ideologia atravessa todos os campos de atividade humana.

3- Há no artigo a afirmativa: “[...] o poder constitutivo da linguagem transcende o tempo-espaço na produção e compreensão do enunciado”. Importante esclarecer o que vem a ser essa transcendência para justificar a relação estabelecida.

*(Observações também marcadas no artigo pelo parecerista).

A escrita do artigo apresenta clareza e correção em quase todo o texto, apenas em alguns trechos há muita repetição do mesmo termo, o que pode ser revisto para tornar o ritmo mais agradável. Há um trecho necessitando de revisão (assinalado no texto). Em relação às referências, é aconselhável a revisão de todos os elementos, como tradutor, por exemplo, para confirmar se estão corretos.

Pelo exposto acima, aconselho a publicação do artigo após as revisões realizadas. CORREÇÕES OBRIGATÓRIAS [Revisado]

  • recomendação: revisão

Histórico

  • Parecer recebido em
    05 Fev 2024

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer III

O artigo contém a correção dos aspectos anteriormente apontados, atendendo ao que foi considerado pela parecerista. Fizemos apenas uma sugestão de troca de um elemento coesivo (Ver arquivo), apenas para evitar repetição. Aceite facultativo. Aconselhamos, dessa maneira, a publicação da versão revista e corrigida. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    25 Fev 2024

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2023
  • Aceito
    26 Mar 2024
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
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