RESUMO
Este artigo se inicia com uma crítica à teoria da linguagem defendida pelos cientistas cognitivistas, tal como Steven Pinker (O instinto da linguagem), que descrevem, em termos gramaticais, a complexidade da linguagem humana. Suas explicações sobre a pragmática da linguagem, contudo, são demasiadamente simplistas. Pinker é visto como um idealista, em parte porque imagina o contexto de fala apenas enquanto informação compartilhada, negligenciando, desse modo, a complexidade representada pelas condições enunciativas, bem como por ver a linguagem enquanto dados a serem processados entres duas máquinas computacionais sem corpos. Examinam-se, então, as diferentes posições de Bakhtin sobre a linguagem. Para ele, as pessoas falam com seus corpos e não apenas com seu cérebro. Diferentemente de Pinker ou Saussure, Bakhtin não acreditava que temos dicionários em nossas cabeças, que são consultados quando bem desejarmos. Para Bakhtin, a experiência da linguagem consiste não em uma série de posições tomadas, mas em uma série de tentativas fracassadas para encontrar uma posição, porque não há posição disponível na qual atenderíamos às exigências que são colocadas sobre nós. Ao ressaltar o discurso do outro e a linguagem, Bakhtin é um realista e propicia um contraponto útil para as posições ingênuas e idealistas tomadas por alguns cientistas cognitivistas.
PALAVRAS-CHAVE:
Ciência cognitiva; Steven Pinker; Corpos; Idealismo; Discurso do outro
ABSTRACT
This article begins with a critique of the language theory of cognitive scientists such as Steven Pinker (The Language Instinct), who describe in grammatical terms the complexity of human language. Their account of the pragmatics of language, however, is too simplistic, with Pinker seen as an idealist, in part because he imagines the context of speech only as shared information, neglecting the complexity represented by the conditions of utterance and seeing language as data to be processed between two bodiless computing machines. Bakhtin’s different positions on language are then examined. For him, people speak with their bodies, not only their brains. Bakhtin, unlike Pinker or Saussure, did not believe that we have dictionaries in our heads, which we consult at will. For Bakhtin, the experience of language consists not of a series of positions taken, but a series of failed attempts to find a position, because there is no position available in which to respond to the demands made on us. In underlining the alienness of discourse and language, Bakhtin is a realist and provides a useful counterpoint to the idealistic and naïve positions held by some cognitive scientists.
KEYWORDS:
Cognitive Science; Steven Pinker; Bodies; Idealism; Alien Discourse
O título deste artigo é polêmico e, provavelmente, insensato. Ao situar Bakhtin contra os campeões das ciências naturais, parece que me tornei uma daquelas pessoas - você sabe quem é - que se volta para Bakhtin por causa de suas confortantes palavras sobre a singularidade da dimensão pessoal da linguagem, pela retórica visionária acerca de nossa sensibilidade em relação ao "outro", por garantir que os estruturalistas malvados são uns bastardos sem coração que omitiram o fervor e a expressividade da linguagem. Comece assim e rapidamente você se perceberá enfrentando a responsabilidade inefável ou a concretude irrecuperável de cada momento, e, a partir desse ponto, é apenas um pequeno passo até Jesus, dusha, o "outro" em mim, e sabe Deus o que mais. Imediatamente, Bakhtin terá se tornado o ursinho de pelúcia teórico ao qual se pode agarrar, esperando proteção contra os teoricistas maldosos escondidos embaixo da cama.
E, afinal de contas, o que poderíamos ter contra os homens e as mulheres de bem, que realizam pesquisas em ciência cognitiva e na psicologia evolutiva, que são materialistas honestos, praticam seu ofício com sobriedade e são justificadamente curiosos sobre o porquê de sermos capazes de falar e como essa habilidade se desenvolveu? Por que se colocar contra todos eles, quando, falando de minha parte, aprecio e admiro o materialismo sóbrio das ciências naturais e realmente não confio nos campeões do Geist? Ora, como muito da vida intelectual, sobre este artigo em particular havia algo em sua origem que me incomodava. Cuidei para não exatamente ignorar, mas, digamos, não enfocar tanto, a onda da ciência cognitiva até um dia descobrir que o livro sobre linguagem com o qual meus alunos de graduação pareciam estar bem familiarizados era The Language Instinct [O instinto da linguagem] de Steven Pinker. Nessa mesma época, comecei a notar que, com certeza e não com lentidão, a ciência cognitiva estava começando a colonizar áreas que haviam sido províncias das ciências humanas: linguística, sociologia, psicologia, e mesmo sua rainha, a filosofia. Assim, fiz meu dever de casa intelectual, li Pinker, realizei o que chamaríamos de "Dia do cérebro" em artigos em minha universidade, e rapidamente fiquei incomodado pela confiança entusiasmada com a qual os proponentes do cognitivismo descreviam o grande progresso que estavam realizando em direção às explicações dos mistérios do pensamento e da linguagem. Assim, no início de The Language Instinct [O instinto da linguagem], Pinker afirma que escolheu escrever extensivamente sobre "o instinto de aprender, falar e compreender a linguagem". E por que agora? Porque
pela primeira vez na história temos o que escrever a esse respeito. Há uns trinta e cinco anos nasceu uma nova ciência [esta é a psicologia cognitiva]. Desde então, assistiu-se a espetaculares avanços da ciência da linguagem, em particular (2004, p.8)1 1 PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004. .
É possível notar o motivo de se ficar irritado, apesar da eloquência extraordinária e triunfante de Pinker.
Entretanto, a academia exige, por assim dizer, ou que se faça uso do desconforto ou que o explore. E porque a ciência cognitiva é a disciplina que está saindo na frente nesses dias quando se trata do estudo da linguagem - ela é a abordagem que lidera a atenção e as respostas no mundo intelectual mais amplo -, ficava óbvio que eu também tinha que explorar a minha. Seria desnecessário mencionar que o desconforto só alcança sua verdadeira intensidade se o que irrita se refere a algo que você conhece e, desse modo, deve tomá-lo seriamente. Não se pode, nem por um momento, duvidar que pensamento e linguagem dependam, no final das contas (se posso colocar dessa maneira), de sangue, músculos e cérebro. Assim, a ideia de explicá-los nesses termos é inteiramente razoável e até mesmo desejável. A linguagem pode ser a portadora do espírito ou a condição transcendental do pensamento e da cultura, mas ela também é a produção de sons e marcas produzidas pelos animais. Desse modo, se alguém estiver aborrecido com o cognitivismo, não é porque ele é materialista, porque ele extingue a eterna flâmula do espírito, mas porque ele não é suficientemente materialista. E se alguém ainda estiver desejoso de posicionar-se em favor de Bakhtin uma vez mais, terá que ser porque o nosso filósofo solitário - aquele que fala sem receios da diferença irrevogável que Cristo fez ao mundo - é, de certa forma, mais materialista, ou, pelo menos, materialista de uma maneira mais convincente do que os pinkerianos e dawkinianos deste mundo. De fato, acredito que ele seja, e gostaria de demonstrar isso na parte restante deste pequeno ensaio.
Qual é o argumento cognitivista? Irei resumi-lo, fazendo referência à posição de Steven Pinker, uma vez que ele é o defensor mais proeminente do cognitivismo na linguística, embora a sua versão particular não seja, de modo algum, defendida por todos os cognitivistas. Acredito que o argumento de Pinker tenha quatro pressupostos fundamentais. O primeiro deles é que a faculdade da linguagem é essencialmente a habilidade de formar sentenças gramaticais, isto é, sentenças bem formadas com base no desenvolvimento de poucas regras fundamentais e do conhecimento de um léxico. Essa concepção da linguagem é tomada mais ou menos a inteiramente de Chomksy, que, no início de sua carreira, afirmou que a principal tarefa da linguística era explicar os modos pelos quais um número infinito de novas sentenças poderia ser gerado tendo por base uma experiência limitada e finita da linguagem. De acordo com Pinker, compreendemos as sentenças ao analisá-las de acordo com as regras gramaticais de uma estrutura de sintagmas e as produzimos, utilizando tais regras para colocar o que desejamos dizer de uma forma inteligível.
O segundo pressuposto, em princípio separável do primeiro, mas, na realidade, em geral intimamente a ele interligado, é que esta gramática é inata, no sentido de que ela é parte de nosso dote biológico ao invés de algo aprendido. Como você deve saber, para Pinker, e em muitos aspectos também para Chomsky, a principal evidência que embasa a tese inatista é a facilidade com a qual as crianças dominam a língua enquanto um sistema, a despeito da exposição necessariamente limitada que têm a ela. Repetidamente, Pinker aponta para o fato de que, mesmo crianças que sofrem de vários déficits ambientais, espontaneamente - ou pelo menos assim parece - dominam a complexa gramática de sua língua nativa em poucos anos. As crianças, como Pinker tem argumentado, "têm de estar equipadas de modo inato com um plano comum às gramáticas de todas as línguas, uma Gramática Universal, que lhes diz como extrair os padrões sintáticos da fala de seus pais" (2004, p.15)2 2 Ver referência na nota de rodapé 1. . Você também deve saber que esta tese é controversa, uma vez que ela supõe que, em algum nível, todas as línguas naturais, e mesmo algumas artificiais, compartilham uma estrutura gramatical. Em um ataque bem conhecido sobre a tese do inatismo, o filósofo Hilary Putnam argumentou que ninguém deveria se surpreender que, em poucos anos, as crianças que passam a maior parte de seu tempo tentando falar e ouvir dominem, finalmente, tal tarefa (PUTNAM, 1967PUTNAM, H. The 'Innateness Hypothesis' and Explanatory Models in Linguistics. Synthese, n. 17, pp.12-22, 1967., p.19).
O terceiro pressuposto, que de fato está apenas ligado a um subsistema do mundo cognitivista, é que existe um módulo distinto da linguagem no cérebro físico. Isso significa dizer que ele não é meramente a consequência feliz de algum tipo de inteligência generalizada, mas é localizado; nesse sentido, você pode ser realmente esperto, mas incapaz de falar, ou realmente não tão esperto, e, ainda assim, ser um tagarela fluente.
O último pressuposto é que este módulo e a faculdade da linguagem que ele torna possível são resultantes da seleção natural e que ambos se desenvolveram porque, e na medida em que, conferiram uma vantagem reprodutiva nos primeiros humanos. A partir dessa perspectiva, a linguagem tem uma função diferencial na propagação da nossa espécie. Ela é um mecanismo para lidar com o nosso meio ambiente, auxiliando-nos, em um sentido limitado, a nos manter vivos o tempo suficiente para termos filhos e para mantê-los vivos. De muitas formas, esta é a parte mais controversa da posição de Pinker3 3 A justificativa mais complexa e detalhada de Pinker para este argumento encontra-se em um artigo publicado antes de The Language Instinct [O instinto da linguagem]; cf. Pinker e Bloom, 1990. . Chomsky, por exemplo, não concorda com isso: ele argumenta que, embora as capacidades cognitivas da qual a linguagem depende sejam produtos da evolução, sua aplicação específica à linguagem provavelmente era fortuita (HOUSER, 2002HAUSER, M.; CHOMSKY, N.; TECUMSEH FITCH, W. The Faculty of Language: What Is It, Who Has It and How Did It Evolve? Science, n. 298, pp.1569-1579, 2002.). A reivindicação evolucionista não alicerça a hipótese do inatismo meramente; ela também atribui à linguagem uma função diferente, ou pelo menos é assim que os seus seguidores acreditam.
Bakhtin tem sua própria teoria da evolução da linguagem, que segue da seguinte maneira:
Deus não criou os seres humanos quando os fez de pó e barro (estes foram os passos naturais para a humanidade, que concluiu com o macaco), mas quando Ele os incutiu com o sopro da vida. Ao assim fazer, ele ultrapassou as fronteiras da natureza, bem como das leis naturais (o início da história espiritual da humanidade) (BAKHTIN, 2002a______. Rabochie zapisi 60-x - nachala 70-x: tetrad II [Working notes from the 60s and early 70s. Notebook II]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 6. Moscow: Russkie slovari, 2002a., p.395)4 4 N. T. Uma vez que não se encontram traduções para o português dos textos mencionados, como exposto na referência que segue abaixo, a citação é uma tradução livre para: “God did not create humans when he made them from clay and dust (these were the natural steps to humanity, which concluded with the ape) but when he infused them with living spirit. In doing this he passed beyond the boundaries of nature and natural lawfulness (the beginning of the spiritual history of humanity)”. 5 5 Um breve parêntese textológico se faz necessário: a citação é retirada de um texto que tem sido chamado de The Working Notes from the 1960 and 1970s [Anotações de trabalho de 1960 e 1970], na publicação mais recente do 6º volume do Collected Works of Bakhtin [Obras completas de Bakhtin], sendo preparado em russo. Essas notas de trabalho são tiradas dos quatro cadernos e algumas páginas aleatórias no arquivo de Bakhtin. Parte dessas notas foram publicadas sob o título Apontamentos de 1970-1971 e Metodologia das ciências humanas. Em artigo escrito pelos Medvedevs [N. E.: artigo em coautoria com David Shepherd, cuja tradução do russo está publicada neste número de Bakhtiniana], os autores mencionam que eu tinha escrito que, graças aos recentes estudos russos, sabemos menos sobre a vida de Bakhtin do que sabíamos antes. Poder-se-ia ter acrescentado que agora temos menos textos de Bakhtin também. O 6º volume certamente deu a sua contribuição a esse respeito. Nas notas e no comentário, primeiramente somos informados de que muitas notas de 1970-1971, de fato, não são de 1970-1971, mas, provavelmente, foram escritas na década de 1960; em segundo lugar, o texto Metodologia das ciências humanas não é, de fato, um texto, mas notas de diferentes fontes unidas pelo executor testamentário de Bakhtin, V. V. Kozhinov, que os publicou sem o consentimento de Bakhtin. .
A narrativa de Bakhtin de como passamos de macacos para humanos usuários da linguagem, dependente, como se apresenta, de alguma intervenção divina ultrapassada, não me parece muito promissora, e certamente para Pinker também não. Ironicamente, é o famoso comentário de Bakhtin sobre a testemunha e o juiz que parece ser um melhor ponto de partida. Deixe-me relembrá-los:
A testemunha e o juiz. Com o surgimento da consciência no mundo (na existência) e, talvez, com o surgimento da vida biológica (é possível que não só os animais como também as árvores e a relva testemunhem e julguem), o mundo (a existência) muda radicalmente. A pedra continua pétrea, o sol, solar, mas o acontecimento da existência no seu todo (inacabável) se torna inteiramente distinto porque pela primeira vez aparecem na cena da existência terrestre as personagens novas e principais do acontecimento - a testemunha e o juiz. Até o sol, que mesmo permanecendo fisicamente o mesmo, tornou-se outro porque passou a ser conscientizado pela testemunha e pelo juiz. Ele deixou de apenas existir, porque passou a existir em si e para si (essas categorias aí surgiram pela primeira vez) e para o outro, porque se refletiu na consciência do outro (da testemunha e do juiz): com isso ele mudou radicalmente, enriqueceu e transformou-se (BAKHTIN, 2010, p.372)6 6 BAKHTIN, M. Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.367-392. .
Seria esta uma grande melhora? Sim, é, porque nesta passagem que, de fato, segue justamente logo após a primeira, a introdução da linguagem é registrada não como uma adição do espírito à matéria, mas como a transformação da matéria em si. Ou seja, Bakhtin descreve a linguagem como a introdução de um tipo de ruptura ou inconsistência na natureza. (Ele ressalta, no parágrafo seguinte, que esta não é uma questão de uma duplicação do ser na consciência, de modo que você teria o ser, e, posteriormente, a sua representação na consciência, mas da transformação do ser "natural" em algo diferente). E, a esse respeito, acredito que ele esteja ciente de algo que escapou à compreensão de cognitivistas, como Pinker: o fato de que a linguagem não nos permite meramente fazer coisas um pouco melhor do que fazíamos antes - cooperar, caçar, reunir-se, procriar -, mas muda o que fazemos, porque as fazemos, e o significado do que fazemos. Ou, para colocar na linguagem que um psicólogo evolucionista preferiria: a evolução da linguagem não resolve problemas colocados pelo nosso nicho evolutivo tanto quanto fundamentalmente cria alguns novos.
No mundo de Pinker (2004), a linguagem confere aos humanos uma vantajosa evolução porque ela torna possível a cooperação e colaboração mais eficiente. Esse "dom extraordinário", como ele descreve, "a faculdade de despachar uma quantidade infinita de pensamentos precisamente estruturados de cabeça para cabeça por meio da modulação da expiração" (p.465), permite a nossos ancestrais compartilhar "conhecimentos duramente adquiridos com parentes e amigos" (p.473)7 7 Ver referência na nota de rodapé 1. , tornando nossa prolongada existência sobre esta terra muito mais provável. Em face dessa antropologia divertida, hesita-se, portanto, em apontar que a aquisição da faculdade da linguagem também torna possível aos humanos discutirem e até mesmo se matarem com brutalidade assombrosa até o ponto que, frequentemente, parece que nosso tempo nessa terra será relativamente breve e que estaremos mortos bem antes de ratos e baratas mudos. Não se pode, obviamente, apenas traçar uma linha desde a linguagem à guerra nuclear ou à destruição da terra como um ambiente habitável, mais do que se pode mover dos primeiros grunhidos articulados para as óperas de Mozart ou a Declaração dos Direitos Humanos. Contudo, existe uma questão real a ser considerada que Pinker, na medida em que pensa a linguagem como meramente algo que torna os membros da espécie mais eficientes, deixou escapar, algo fundamental que Bakhtin de certa forma, em sua maneira obscura, esclareceu.
Uma maneira relativamente simples de descrever o que está em jogo seria dizer que, embora Pinker tenha se esforçado para descrever a magnífica complexidade da linguagem que utilizamos em termos gramaticais, sua explicação sobre a pragmática da linguagem, por assim dizer, é lamentavelmente simplista, somando não mais que poucas mudanças do famoso circuito de fala descrita por Saussure. Em sua visão, a fala é simplesmente um meio de exteriorizar pensamentos, pensamentos que se somam às proposições, de modo que se tornam acessíveis aos outros (deveria ressaltar que este aspecto de sua teoria da linguagem também é controverso, e cognitivistas como Jerry Fodor, por exemplo, acreditam que a primeira função da linguagem é dar forma aos nossos pensamentos e, então, torná-los acessíveis aos outros). Temos ideias, traduzimo-las em marcas ou sons, de modo que os outros possam traduzi-los de volta da mesma forma, mas em suas próprias mentes. Isso é o que Roy Harris chamou de o modelo "telementacional" de comunicação, que vez ou outra vem sendo considerado desde John Locke (HARRIS, 2003HARRIS, R. On Redefining Linguistics. In: HAYLEY G. D.; TALBOT J. (Eds.). Rethinking Linguistics. London: Routledge Curzon, 2003, pp.17-68.).
Harris e muitos outros têm criticado extensivamente o modelo telementacional da comunicação e, em particular, têm declarado que a "telementação" apenas funciona se você possuir um código absolutamente fixo para traduzir pensamentos em palavras e vice-versa; do contrário, jamais será realmente possível ter certeza de que os pensamentos que se revolvem na mente do ouvinte serão os mesmos que você acredita que comunicou pela sua requintada expiração modulada. Pinker acredita que descobriu tal façanha pelo compartilhamento dos códigos no nosso cérebro, embora acredito que ele ainda tenha algumas ressalvas, por relembrar que falamos inglês, ou francês, ou coreano, e não a "Gramática Universal". No entanto, seus problemas reais são muito maiores e mais sérios, e são resumidos no comentário de Bakhtin, de que "não se pode interpretar a compreensão como passagem da linguagem do outro para a minha linguagem" (BAKHTIN, 2010, p.377)8 8 Ver referência na nota de rodapé 6. . Não se pode entender a compreensão desta maneira, uma vez que não se consegue acessar um código comum quando a linguagem está em jogo: uma pessoa ocupa uma posição em relação à linguagem, uma posição que dita a que a compreensão se refere.
A criança cujo rápido domínio de um idioma fascina tanto Pinker não está buscando aprender uma habilidade que algum dia a ajudará a caçar, a reunir-se e a procriar: ela está respondendo às declarações de seus pais, investidos como estão de peso e autoridade. Na tradição psicanalítica, a entrada na linguagem é traumática, porque o discurso do outro ao qual a criança responde evoca um tipo de medo radical. Afinal de contas, você não "aprende" a cooperar com seus pais, você é compelido a fazê-lo. Em outras palavras, o que você aprende a fazer é obedecer às suas ordens. Este elemento "contextual" não é algo que você eventualmente faz surgir, mas é a própria substância da comunicação. Em Working Notes [Anotações de trabalho], Bakhtin continuamente revisita o "discurso do outro" como a condição da fala sempre presente e como "o objeto específico de estudo nas ciências humanas" (BAKHTIN, 2002a______. Rabochie zapisi 60-x - nachala 70-x: tetrad II [Working notes from the 60s and early 70s. Notebook II]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 6. Moscow: Russkie slovari, 2002a., p.401)9 9 Cf. nota de rodapé 5. . No entanto, dizer que o discurso é alheio não significa que ele é diferente em tom ou estilo ou léxico: é uma maneira de dizer que mesmo as palavras que você, porventura, poderia ter falado têm significado e sentidos diferentes quando elas são algo ao qual você deve responder. Ser um ouvinte ou um falante é um pouco como ser um primeiro ministro de um governo em falência: você tem de constantemente "considerar sua posição".
Em uma famosa passagem de O autor e o herói, Bakhtin observa que "[q]uando me compenetro dos sofrimentos do outro, eu os vivencio precisamente como sofrimentos dele, na categoria do outro, e a minha reação a ele não é um grito de dor e sim uma palavra de consolo e um ato de ajuda" (BAKHTIN, 2010, p.27; grifos do autor)10 10 BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.3-192. . Autor e herói finge ser algo sobre percepção, tempo e espaço, mas na verdade, é sobre linguagem, e a identificação que aqui Bakhtin descreve não é mais que a compreensão que alguém estende ao "discurso do outro". Bem no íntimo, Pinker sabe que as palavras em sentenças bem formadas sozinhas não significam muito, e, portanto, está desejoso de admitir que "a compreensão exige integrar fragmentos retirados de uma frase num vasto banco de dados mental" (2004, p.287)11 11 Ver referência na nota de rodapé 1. . No entanto, é aí precisamente que seu "idealismo" se equivoca, porque ele não consegue imaginar o contexto da fala, exceto enquanto informação compartilhada, isto é, apenas na medida em que as condições reais de uma produção se transformam em dados prontos para serem processados.
O animal humano de Pinker, desse modo, encontra-se bifurcado em uma máquina de calcular para o qual a linguagem é um instrumento ou ferramenta na luta pela existência e um corpo com a panóplia costumeira das necessidades animais: comida, abrigo, relações conjugais com outros animais, e todo o resto. A razão pela qual falamos é porque ela nos ajuda a conseguir as coisas que desejamos, embora pareçam desconectadas da própria fala. Criaturas interesseiras cuja inteligência é, com efeito, uma máquina de calcular: isso parece familiar? Não seria o nosso velho amigo homo economicus, da economia político-liberal?12 14 BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.393-410. Como Tatiana Bubnova nos relembra, ao comparar Bakhtin com Walter Benjamin13 13 N. E.: Artigo cuja tradução do russo está publicada neste número de Bakhtiniana. , de acordo com a filosofia da linguagem deste último, a comunicação era meramente "a função burguesa" da linguagem, uma função pálida e sem sangue para a qual ela poderia, mas não deveria, ser reduzida. Na medida em que o processo da seleção natural espelha e reflete a estrutura do mercado, ele efetiva a mesma simplificação e redução da linguagem. A linguagem em si se torna a lendária mão invisível: sua astúcia garante que, embora cada organismo tenha apenas seus próprios interesses, acabaremos falando, compartilhando e cooperando uns com os outros. Contudo, do mesmo modo que o mercado prometeu prosperidade para todos e um equilíbrio feliz, mas entregou a prosperidade para alguns e a exploração sem fim de muitos, também a seleção natural nos deu - se ela tiver qualquer responsabilidade - não apenas o maior sistema de compartilhamento de arquivo já inventado, mas, ao mesmo tempo, os meios pelos quais insultamos e humilhamos uns aos outros.
As palavras não somente auxiliam o corpo a satisfazer as suas necessidades, mas elas também o reestruturam. Como Bubnova adequadamente aponta, uma concepção meramente "prosaica" do trabalho de Bakhtin ignora o que ele compartilha com Benjamin: a convicção de que a linguagem nos lança à esfera de um "ser falante e expressivo" (BAKHTIN, 2010, p.395)14 14 BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.393-410. . Tanto para Benjamin quanto para Bakhtin, um corpo que fala não é simplesmente um corpo com meios inovados e melhores para atingir os mesmos velhos fins, mas um tipo de ser inteiramente diferente, que não pode ser compreendido como se fosse meramente um objeto natural mais sofisticado. Como Zizek elegantemente colocou: "O fato de que o homem é um ser falante significa precisamente que é 'descarrilhado'", por assim dizer, incapaz de alcançar ou manter um equilíbrio ou uma homeóstase natural (ZIZEK, 1192ZIZEK, S. Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan through Popular Culture. Cambridge, MA: MIT Press, 1992., p.36)15 15 N. do T. Não há tradução de tal obra ou trecho em língua portuguesa. No original: “the fact that man is a speaking being means precisely that he is, so to speak, constitutively ‘derailed’”. . O futuro não é mais um horizonte estritamente prático e as pulsões humanas anseiam se encontrar fora de curso, objetivando satisfações desconhecidas à natureza muda. Em ambos, Benjamin e Bakhtin, esse descarrilamento é descrito em termos teológicos, como se a linguagem em si tivesse colocado redenção e revelação em debate. Entretanto, quando Bakhtin argumenta, no texto supracitado, que "a alma nos fala livremente de sua imortalidade, porém não podemos prová-la" (BAKHTIN, 2010, p.395; grifo do autor) 16 16 Ver referência na nota de rodapé 13. , ele não faz mais do que sinalizar para uma esfera de crença que estrutura a ação humana, algumas vezes com sanção divina e outras, não.
Ironicamente, é a teologia que, tanto em Bakhtin quanto em Benjamin, assegura uma abordagem materialista à linguagem. No entanto, não importa o quanto a ciência cognitiva alardeie suas credenciais científicas, ela permanece teimosamente idealista quando se trata da linguagem. Ela não consegue imaginar a fala como outra coisa a não ser uma conversa entre duas máquinas computacionais sem corpos, que registram elementos do mundo físico terrestre ao transformá-los em informação para serem processadas. Os cérebros, no entanto, não conversam uns com os outros; as pessoas, sim, e falam com seus corpos e não apenas com suas bocas17 17 Peter Hacker sinaliza para uma questão semelhante quando argumenta que a psicologia evolucionista é propensa a tratar o “cérebro” e a “mente” como se fossem idênticos, quando a sintaxe de uma língua comum claramente indica que eles não são. Ver suas contribuições a Bennet et al., 2009. . Pinker, de forma semelhante a outros que defendem que a linguagem tem seu próprio pedaço especial do cérebro, argumenta que, enquanto a linguagem é uma questão de córtex cerebral, aquele espaço refinado do cérebro, responsável pelas funções superiores - chorar, sorrir, sentir medo e todo o resto - está ligado a uma região subcortical que compartilhamos com animais não-linguísticos. Mas a linguagem está completamente inserida na região subcortical. Seus significados não são ideias que, então, a partir de uma série de cálculos mentais, nos fazem sorrir ou chorar, mas formas nas quais negociamos o riso, o choro, a ansiedade, o medo e todo o resto. Wittgenstein insistiu continuamente que não fazia qualquer sentido acreditar que reproduzimos uma segunda cópia da linguagem dentro de nós mesmos: a relação entre a linguagem e a ação era mais semelhante a um tipo de treinamento, embora o treinamento não fosse nem de perto tão tranquilo quanto Wittgenstein - certamente, um dos intelectuais mais ansiosos para pegar uma caneta e escrever - deixou implicado (WITTGENSTEIN, 1969WITTGENSTEIN, L. The Blue Book. In: ______. The Blue and Brown Books. 2. ed. Oxford: Basil Blackwell, 1969, pp.31-43.).
Bakhtin descreve a dimensão subcortical da linguagem em termos do discurso dos outros ou discurso alheio. Tornar-se um falante competente, em sua explicação, não é uma questão de aprender a separar o significado puro do complemento subcortical, mas de aprender a tomar uma posição em relação à linguagem ou linguagens que aliviarão nossas ansiedades ou nos farão felizes. Ou, para dizer de outra forma, é uma questão de aprender como ser um romancista bem sucedido - isto é, no sentido em que Flaubert, e não J. K. Rowling, é bem sucedido. Não temos, à la Pinker ou Saussure, um dicionário em nossa cabeça que consultamos cada vez que precisamos dele: o que temos lá é um romance, e a única questão é se o que temos acaba sendo uma comédia vitoriana de Dickens, uma comédia religiosa de Dostoiévski, ou a última oferta de Danielle Steel. É nesse sentido preciso que "as relações entre as falas [...] são semelhantemente personalistas" (BAKHTIN, 2002a______. Rabochie zapisi 60-x - nachala 70-x: tetrad II [Working notes from the 60s and early 70s. Notebook II]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 6. Moscow: Russkie slovari, 2002a., p.390)18 18 Texto no original: “relations between utterances […] are likewise personalistic”. Cf. nota de rodapé 5. , isto é, elas são irredutíveis às relações lógicas ou linguísticas.
As relações entre nossas falas são personalistas, mas seria melhor dizer que as relações entre as pessoas são romanticistas. Esta última formulação nos relembra que a linguagem tem uma história - algo para a qual a teoria evolucionista não está preparada - e que não é possível separar as realizações da espécie da história de sua linguagem. No trabalho de Bakhtin, tal história é a história do romance, o meio pelo qual aprendemos a refratar o discurso dos outros de maneira particular, através de uma "posição autoral" distinta. Na década de 1960, a noção de uma posição autoral no romance polifônico tornou-se a maior fonte de controvérsia pública sobre o trabalho de Bakhtin, e ele passou um bom tempo refinando o que queria dizer19 19 Veja seus comentários sobre a “polifonia” no pequeno texto originalmente traduzido como Reformulação do livro sobre Dostoiévski (BAKHTIN, 1984, p.295-6) [BAKHTIN, M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.337-357]. Esse texto, como aqueles outros mencionados, é algo como uma confecção, sendo uma seção arbitrariamente selecionada de um caderno, cujo conteúdo agora foi publicado completamente como 1961 Zametki (BAKHTIN, 2002b). As passagens relevantes encontram-se às páginas 341-343. . A confusão surgiu porque os críticos assumiram que esta posição era a de um juiz neutro entre as vozes da polifonia, enquanto, na verdade, o autor do romance polifônico teria um fardo terrível de trabalho caso tivesse que impor a essas vozes um contorno apropriado. Não era uma questão de criar um espaço no qual as vozes poderiam chegar e fazer sua parte, mas o de estabelecer uma posição distintiva em relação a elas. Isto é o que está em jogo quando Bakhtin discute com certa extensão "a procura pela própria voz (autoral)" (BAKHTIN, 2002a______. Rabochie zapisi 60-x - nachala 70-x: tetrad II [Working notes from the 60s and early 70s. Notebook II]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 6. Moscow: Russkie slovari, 2002a., p,411)20 20 Texto no original: “the search for one’s own (authorial) voice”. Cf. Nota de rodapé 5. . A procura pela voz não é uma questão de autoexpressão, mas de como você se posiciona em relação ao discurso que o circunda.
Se não estou enganado, isso é o que Galin Tihanov queria dizer com a sua habilidosa e eloquente descrição da teoria de Bakhtin como o "humanismo sem subjetividade"21 21 Acredito que esta seja uma releitura inteligente da notória descrição do estruturalismo como o “Kantianismo sem sujeito”. . É uma descrição, se assim podemos falar, de relações pessoais que, contudo, dependem não das intenções de um sujeito, mas de uma matriz de discursos, na qual somos apreendidos desde muito cedo. E a realização desse humanismo depende do desenvolvimento histórico, o vagaroso trabalho de construir um romance, que cria possibilidades e posições que não estavam disponíveis em nenhum outro momento. A habilidade de citar, refratar, parodiar, ironizar não são, na explicação de Bakhtin, realizações pessoais, mas culturais, que tornam possíveis a todos nós relações de estranhar o discurso que, do contrário, permaneceria impensável. E no final, acredito, o pós-modernismo é uma maneira de descrever a matriz mais recente dessas possibilidades.
Mas não é tudo uma questão de possibilidade, de novas formações, de um humanismo feliz. Na verdade, a ideia do romance compelindo a maioria da vida das pessoas provavelmente seja uma mistura infeliz da banalidade de Joyce com o terror de Kafka. Por tudo o que disse até aqui, em comum com as explicações cognitivistas, está apenas a assunção de que a linguagem, de fato, funciona, enquanto que nada mais poderia ser mais duvidoso. Pinker e seu grupo escrevem como se o que houvesse para ser explicado fosse o sucesso da linguagem e sua notável realização como meio de comunicação. No entanto, talvez a linguagem, independentemente da aspiração que a abrigue, seja de fato muito mais um registro de falha, ou de falha misturada com realização. Zizek tem argumentado que a linguagem necessariamente se organiza em torno de uma ausência ou inconsistência; que conhecer bem uma língua não é compreender suas palavras e gramática, mas compreender precisamente os pontos nos quais as palavras nos falham. Acredito que exista alguma coisa aí. Mas o ponto mais importante seja talvez: as posições que o sujeito precise ocupar na linguagem não estejam sempre "lá", e "a procura pelo discurso (autoral) próprio" frequentemente termine de modo não bem sucedido. Para muitos de nós - talvez, para ser mais honesto, a maioria -, a experiência da linguagem consiste não de uma série de posições tomadas, mas de uma série de tentativas fracassadas em encontrar uma posição, tentativas que fracassam porque ainda não há posição disponível que atenderiam às exigências colocadas sobre nós. Acredito que Bakhtin estava vagamente consciente disso. A descrição em o Autor e o herói da ansiedade que circunda o eu-para-mim, para quem nenhum objeto é sólido e nenhuma performance satisfatória é, de fato, a descrição de um sujeito que não consegue encontrar uma posição na linguagem, o que obviamente faz mais sentido do que a ideia de um sujeito que, de alguma forma, é desprovido de linguagem. Mas o que Bakhtin ainda não está muito pronto para admitir - e que os cognitivistas dificilmente são capazes de conceber - é que frequentemente somos aprisionados pela linguagem, porque não há posição a ocupar em relação ao outro, nenhuma resposta que possa realmente contar como uma resposta, nenhum romance que se enquadre à situação adequadamente. Em tal ponto, a linguagem é a esfera na qual o sujeito se torna frustrado, ofendido, emudecido ou violento.
Não é possível ter certeza absoluta, mas não creio que nossos primos chimpanzés, nossos tios mamíferos ou nossas relações animais mais distantes tenham esse problema. Eles podem se frustrar, e certamente se zangar de vez em quando, mas o problema de encontrar um lugar bem sucedido na linguagem lhes é estranho. Se você acredita que a linguagem é apenas uma forma fantasiosa de compartilhamento de arquivos, provavelmente, você não está reconhecendo o problema. Mas isso é porque de fato você realmente não pegou a forma particular da linguagem, que, qualquer que seja sua origem, cria tantas dificuldades quanto as soluciona. Ela tanto nos permite criar ferramentas, quanto torna possíveis as humilhações mais severas. Cria um novo tipo de memória cultural, e nos capacita a nutrir o rancor que dura séculos. De igual modo, é a fonte de planos futuros e de uma ansiedade sem fim. Steven Pinker se maravilha pela sua sofisticação gramatical - tudo bem -, mas ele acredita que essa gramática inevitavelmente nos leva a cooperar uns com os outros, o que é injustificavelmente otimista, e muito menos científico.
Bakhtin tem sido criticado, mesmo por aqueles que lhe são devotos, por seu idealismo, sua fé no poder do romance, sua crença de que se deixarmos a heteroglossia fazer seu papel, tudo acabaria bem. Comparado aos cognitivistas e aos psicólogos evolucionistas, contudo, ele é um modelo de sobriedade e destaque. Imaginar a linguagem como mais uma ferramenta biológica, em um par com polegares opostos ou bipedalismo, é tão reducionista quanto ingênuo. Nesse caso, são as ciências humanas, com seu foco no estranhamento do discurso, que defendem o realismo sóbrio, enquanto as ciências naturais estão tecendo contos de fadas.
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1
PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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2
Ver referência na nota de rodapé 1.
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3
A justificativa mais complexa e detalhada de Pinker para este argumento encontra-se em um artigo publicado antes de The Language Instinct [O instinto da linguagem]; cf. Pinker e Bloom, 1990PINKER, S; BLOOM, P. Natural Language and Natural Selection. Behavioral and Brain Sciences, n. 13, pp.707-784, 1990..
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4
N. T. Uma vez que não se encontram traduções para o português dos textos mencionados, como exposto na referência que segue abaixo, a citação é uma tradução livre para: “God did not create humans when he made them from clay and dust (these were the natural steps to humanity, which concluded with the ape) but when he infused them with living spirit. In doing this he passed beyond the boundaries of nature and natural lawfulness (the beginning of the spiritual history of humanity)”.
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5
Um breve parêntese textológico se faz necessário: a citação é retirada de um texto que tem sido chamado de The Working Notes from the 1960 and 1970s [Anotações de trabalho de 1960 e 1970], na publicação mais recente do 6º volume do Collected Works of Bakhtin [Obras completas de Bakhtin], sendo preparado em russo. Essas notas de trabalho são tiradas dos quatro cadernos e algumas páginas aleatórias no arquivo de Bakhtin. Parte dessas notas foram publicadas sob o título Apontamentos de 1970-1971 e Metodologia das ciências humanas. Em artigo escrito pelos Medvedevs [N. E.: artigo em coautoria com David Shepherd, cuja tradução do russo está publicada neste número de Bakhtiniana], os autores mencionam que eu tinha escrito que, graças aos recentes estudos russos, sabemos menos sobre a vida de Bakhtin do que sabíamos antes. Poder-se-ia ter acrescentado que agora temos menos textos de Bakhtin também. O 6º volume certamente deu a sua contribuição a esse respeito. Nas notas e no comentário, primeiramente somos informados de que muitas notas de 1970-1971, de fato, não são de 1970-1971, mas, provavelmente, foram escritas na década de 1960; em segundo lugar, o texto Metodologia das ciências humanas não é, de fato, um texto, mas notas de diferentes fontes unidas pelo executor testamentário de Bakhtin, V. V. Kozhinov, que os publicou sem o consentimento de Bakhtin.
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6
BAKHTIN, M. Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.367-392.
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7
Ver referência na nota de rodapé 1.
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8
Ver referência na nota de rodapé 6.
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9
Cf. nota de rodapé 5.
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10
BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.3-192.
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11
Ver referência na nota de rodapé 1.
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12
O empréstimo que Darwin fez das ideias políticas e sociais de seu tempo é bem conhecido, embora seu defensores mais recentes tentem não mencionar isso. Para uma contribuição recente a esta história intelectual, ver HODGE, 2009HODGE, M. Capitalist Concepts for Darwinian Theory: Land, Finance, Industry and Empire. Journal of the History of Biology, v. 42, n. 3, pp.399-416, 2009..
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13
N. E.: Artigo cuja tradução do russo está publicada neste número de Bakhtiniana.
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14
BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.393-410.
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15
N. do T. Não há tradução de tal obra ou trecho em língua portuguesa. No original: “the fact that man is a speaking being means precisely that he is, so to speak, constitutively ‘derailed’”.
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16
Ver referência na nota de rodapé 13.
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17
Peter Hacker sinaliza para uma questão semelhante quando argumenta que a psicologia evolucionista é propensa a tratar o “cérebro” e a “mente” como se fossem idênticos, quando a sintaxe de uma língua comum claramente indica que eles não são. Ver suas contribuições a Bennet et al., 2009BENNETT, M; DENNETT, D; HACKER, P. Neuroscience and Philosophy. New York: Columbia University Press, 2009..
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18
Texto no original: “relations between utterances […] are likewise personalistic”. Cf. nota de rodapé 5.
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19
Veja seus comentários sobre a “polifonia” no pequeno texto originalmente traduzido como Reformulação do livro sobre Dostoiévski (BAKHTIN, 1984, p.295-6) [BAKHTIN, M. Reformulação do livro sobre Dostoiévski. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.337-357]. Esse texto, como aqueles outros mencionados, é algo como uma confecção, sendo uma seção arbitrariamente selecionada de um caderno, cujo conteúdo agora foi publicado completamente como 1961 Zametki (BAKHTIN, 2002b______. Rabochie zapisi 60-x - nachala 70-x: tetrad II [Working notes from the 60s and early 70s. Notebook II]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 6. Moscow: Russkie slovari, 2002a.). As passagens relevantes encontram-se às páginas 341-343.
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20
Texto no original: “the search for one’s own (authorial) voice”. Cf. Nota de rodapé 5.
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21
Acredito que esta seja uma releitura inteligente da notória descrição do estruturalismo como o “Kantianismo sem sujeito”.
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Traduzido por Oseas Bezerra Viana Júnior – vianajunior@gmail.com
REFERÊNCIAS
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- ______. Rabochie zapisi 60-x - nachala 70-x: tetrad II [Working notes from the 60s and early 70s. Notebook II]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 6. Moscow: Russkie slovari, 2002a.
- ______. 1961 god. Zametki [1961: Notes]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 5. Moscow: Russkie slovari, 2002b.
- ______. Avtor i geroi v esteticheskoi deiatel'nosti [Author and Hero in Aesthetic Activity]. In: ______. Sobranie sochinenii [Collected Works], vol. 1. Moscow: Russkie slovari, 2003.
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- PINKER, S. The Language Instinct: How the Mind Creates Language. New York: Harper Collins, 1995.
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- ZIZEK, S. Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan through Popular Culture. Cambridge, MA: MIT Press, 1992.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2016
Histórico
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Recebido
25 Set 2015 -
Aceito
10 Nov 2015