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Whatsapp: um Objeto de Fronteira na Mediação e Produção de Fronteiras nas Organizações

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar as maneiras pelas quais o WhatsApp, enquanto um objeto de fronteira, medeia e se insere na produção de fronteiras na organização pública Approve (nome fictício). Criticamos os estudos predominantes sobre objetos de fronteira que não colocam em primeiro plano as redes de relações na produção de usos e características dos objetos; e a produção de fronteiras como parte do processo de mediação de fronteira. Contribuímos para preencher essa lacuna ao estudar o WhatsApp, por meio de uma pesquisa qualitativa, utilizando entrevistas semiestruturadas, observação, netnografia e análise da espiral de dados. Como resultados, evidenciamos o aplicativo como um Objeto de Fronteira que é inserido em produções de implicações negativas para as pessoas a partir da mediação de fronteiras e produzido em redes de relações que também podem usar o aplicativo para produzir e mediar fronteiras.

Palavras-chave:
WhatsApp; Objetos de fronteira; Organizações; Comunicação.

ABSTRACT

This study aims to analyze the ways in which WhatsApp mediates and inserts itself as a boundary object in the production of borders in the public organization Approve (fictional name). This research criticizes the predominant studies on boundary objects that fail to highlight the networks of relations that produce uses, the characteristics of objects, and boundaries as part of the boundary mediation process. We contribute to filling this gap by way of a qualitative study on WhatsApp using semi-structured interviews, observations, netnography, and data spiral analysis. Results evince WhatsApp as a boundary object that is inserted in productions with negative implications for people based on boundary mediation and produced in networks of relations that can use the application to produce and mediate boundaries.

Keywords:
WhatsApp; Boundary objects; Organizations; Communication.

1. INTRODUÇÃO

O aplicativo WhatsApp é um facilitador da comunicação em âmbito pessoal e grupal, que tem transformado o ambiente laboral em termos das múltiplas possibilidades de interações (Carvalho & Fort, 2017Carvalho, A. P. P., & Fort, M. C. (2017). Conexões virtuais e desconexões presenciais: A comunicação via WhatsApp em ambientes corporativos. Comunicação & Inovação, 18(36), 37-50. https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.3814
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). Ele tem se inserido em redes de relações nas quais medeia fronteiras, permitindo que pessoas de diferentes grupos - alguns deles separados no próprio uso do aplicativo - interajam, das mais diversas maneiras, (re)produzindo informações em uma comunicação rápida, fluida e barata (Lapa & Girardello, 2017Lapa, A., & Girardello, G. (2017). Gestão em rede na primavera secundarista. In C. Porto, K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 29-48). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0003
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). Tais interações favorecem a emergência de novos aspectos culturais e espaciais (Oliveira, 2017Oliveira, C. A. de. (2017). Entre processos formativos e interativos: o WhatsApp como espaço significativo na orientação e formação. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.), WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons (pp. 217-233). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0012
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), pois têm o potencial de coexistir entre fronteiras culturais e espaciais estabelecidas.

Nesses entremeios de fronteiras, em diferentes práticas simultâneas, defendemos que o WhatsApp se manifesta como um Objeto de Fronteira (OF), fazendo parte das relações nas quais grupos de atores heterogêneos lidam com suas diferenças para a cooperação (Star, 1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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; Star & Griesemer, 1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
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). Além disso, neste artigo o tratamos como um OF que manifesta um potencial específico nas redes nas quais se insere, comumente deixado em segundo plano nos estudos sobre o tema: o de se relacionar com a produção de novas diferenças na mediação das diferenças, criando fronteiras quando as medeia.

Esse potencial do WhatsApp para criar fronteiras e diferenças nas relações organizacionais se refere aos recursos do aplicativo que permitem, instantaneamente, a um indivíduo ou grupo de indivíduos se excluir de ou se incluir em um grupo, de diferentes maneiras (bloqueando pessoas, não lendo mensagens, não postando mensagens...), assim como excluir outros indivíduos ou grupos e ou organizar novos grupos. Neste artigo se discute como esses recursos permitem avançar na discussão dos Objetos de Fronteira (OF), o que, por sua vez, permite avançar na compreensão das implicações do uso do aplicativo nas organizações.

A visão predominante sobre OF os define como um meio para lidar com múltiplos pontos de vista articulados por grupos distintos para resolver problemas complexos (Star, 1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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). Para isso, esses objetos, concretos ou abstratos, por exemplo museus, livrarias, atlas científicos ou mapas, mantêm sua identidade comum entre os grupos, mas com uma plasticidade suficiente para se ajustar aos pontos de vistas diferentes.

Segundo Star (2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
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), para atender a esse propósito, os objetos devem apresentar características específicas, intrínsecas a eles. Nas últimas três décadas, de diferentes maneiras, essa proposta tem sido adotada para revelar como OF são articulados em determinados fenômenos e/ou comunidades heterogêneas, viabilizando a cooperação na diferença (Star & Griesemer, 1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
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; Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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; Star, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
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; Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
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).

Mas, neste estudo, concordando com Lainer-Vos (2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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), enfatizamos que essas características não são intrínsecas ou específicas dos objetos, ou dos arranjos de objetos, nem são as definidoras das redes de relações que levam à cooperação. Os objetos são ou não de fronteira em virtude das produções das redes nas quais se inserem. Por isso, objetos semelhantes, em diferentes redes, atuam ou não como de fronteira (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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).

Além disso, comumente os estudos colocam em primeiro plano apenas o papel do OF na mediação de diferenças, deixando em segundo plano a produção de fronteiras, vista como uma disfunção das características do objeto a ser corrigida (Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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; Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
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). Eles não se aprofundam em como alguns OF produzem diferenças culturais descontinuando interações, ou seja, fronteiras (Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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), ao mesmo tempo em que atuam como OF dessa produção.

Neste artigo, para contribuir com o preenchimento dessa lacuna, o OF é considerado como parte de um movimento duplo de mediação e produção de diferenças. Para ilustrar o potencial de investigar esse movimento, confrontamos empiricamente essas proposições em um estudo sobre o WhatsApp. Ele se insere nesse movimento duplo entre objetos que fazem parte da criação em rede de fluxos de ação marcados pelas relações entre objeto, tecnologia e ação humana (Mello Filho & De Araújo Júnior, 2021Mello Filho, L. L. de, & De Araújo Júnior, R. H. (2021). Objetos de fronteira: Um diálogo entre a ciência da informação e a ciência de dados.Encontros Bibli: Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência Da Informação, 26, e77247. https://doi.org/10.5007/1518-2924.2021.e77247
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). Isso ocorre devido ao potencial oferecido pelos seus recursos, já mencionados, que podem ser usados nas redes de relações em uma organização para a mediação de diferenças. Por exemplo, permite a comunicação entre grupos distintos para cooperarem, ou para a produção de mais diferenças, por exemplo, propiciando a produção e ou intensa manifestação de comportamentos e ideias relacionados com o próprio uso do aplicativo, como o “excesso de bom dia” ou o “deboche político” online, que levam a mais fragmentações e criações de grupos diferentes, usando, para isso, as facilidades dos recursos do aplicativo.

Abordamos essas relações a partir do seguinte problema de pesquisa: como o WhatsApp, enquanto um OF, medeia e se insere na produção de fronteiras em uma rede de relações em uma organização? Para tratar dessa questão, o objetivo deste artigo é analisar as maneiras pelas quais o WhatsApp, enquanto um OF, medeia e se insere na produção de fronteiras na organização pública Approve (nome fictício, para não identificar seus membros). Para alcançar esse objetivo, foi realizada uma pesquisa de campo qualitativa, por meio de entrevistas semiestruturadas, observação e netnografia. Os dados produzidos foram organizados por meio da análise da espiral de dados (Creswell, 2014Creswell, J. W. (2014).Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: Escolhendo entre cinco abordagens. Penso Editora.).

Como resultado, este artigo traz contribuições para a sociedade ao evidenciar mudanças ocorridas ao longo dos últimos anos com o surgimento do WhatsApp e a sua aplicação nas organizações. Ele revela um processo no qual fronteiras intra e extraorganizacionais demarcam diferenças entre grupos produzidos em parte no WhatsApp e que coexistem nele, com distâncias virtuais e sociais variadas entre eles. Há aqui implicações para a sociedade sobre as quais é necessário refletir, com destaque para uma fluidez na qual a separação entre o pessoal e o profissional dá espaço para outras separações, como o profissional que tem ou não autorização para invadir o pessoal e vice-versa.

Em termos de contribuições para o campo de estudo dos OF nas organizações, este artigo revela o WhatsApp: a) como um OF envolvido em implicações negativas para as pessoas nas organizações ao mediar fronteiras e; b) inserido no duplo movimento de mediar e produzir diferenças nas redes de relações organizacionais, pessoais e profissionais, fazendo parte da composição das próprias fronteiras que medeia.

Isso amplia as múltiplas relações até então consideradas em estudos anteriores que abordavam os OF e permite aos pesquisadores investigar implicações nas redes de relações que inserem outros OF nesse duplo movimento em diferentes fenômenos organizacionais. Nessa direção, propomos a concepção de “fronteirizar”, como um caminho para expressar essa contínua movimentação de ligação e separação entre mundos sociais, antes tratadas como fronteiras estáticas (Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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). Dentro desse contexto de fronteirizar, posicionamos os objetos no fronteirizar, um deslocamento da concepção de OF.

Para oferecer essas contribuições, inicialmente discutimos a inserção do WhatsApp na sociedade e nas organizações e, depois, o papel de OF na mediação e produção de fronteiras. Em seguida, apresentamos os caminhos percorridos na pesquisa empírica, a análise, a discussão da análise e as considerações finais.

2. O WHATSAPP NA SOCIEDADE E NAS ORGANIZAÇÕES

Brian Acton e Jan Koum criaram o WhatsApp em 2009, com o objetivo de transmitir mensagens sem a dependência de uma rede de telefonia, de forma gratuita, sendo registrados 400 milhões de usuários nos quatro primeiros anos de existência e que, em 2022, já somava dois bilhões de usuários ativos no mundo (Carvalho & Fort, 2017Carvalho, A. P. P., & Fort, M. C. (2017). Conexões virtuais e desconexões presenciais: A comunicação via WhatsApp em ambientes corporativos. Comunicação & Inovação, 18(36), 37-50. https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.3814
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). O aplicativo, além do sistema de envio e recebimento de mensagens, por texto, voz, fotos ou vídeo, permite a criação de grupos de contatos também para troca de mensagens e arquivos, assim como realização de chamadas online de voz e vídeo.

Lembrado por muitos por conta de sua aceitação, universalização e normalização (Matassi et al., 2019Matassi, M., Boczkowski, P. J., & Mitchelstein, E. (2019). Domesticating WhatsApp: Family, friends, work, and study in everyday communication. New Media and Society, 21(10), 2183-2200. https://doi.org/10.1177/1461444819841890
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), o aplicativo funciona tanto no celular quanto no desktop do computador; depende apenas de uma conexão com a internet; e tem uma interface de usuários simples. Também informa quando e se os usuários estão interagindo: se estão online, digitando uma mensagem e até mesmo gravando um áudio para ser enviado por ele ou se leram sua mensagem (Porto et al., 2017Porto, C. de M., Oliveira, K. E. de J., & Alves, A. L. (2017). Expansão e reconfigurações das práticas de leitura e escrita por meio do WhatsApp. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 113-128). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0007
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). Ele permite que as pessoas expressem suas emoções e sentimentos também por meio de recursos específicos, como os emojis, e vai muito além de uma simples ferramenta de transmissão de mensagens (Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ).

Para Porto et al. (2017Porto, C. de M., Oliveira, K. E. de J., & Alves, A. L. (2017). Expansão e reconfigurações das práticas de leitura e escrita por meio do WhatsApp. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 113-128). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0007
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), o aplicativo proporciona uma nova maneira de comunicar, em contextos e sentidos diferentes e inesperados, ampliando a interação, em tempos e espaços instantâneos, pois permite, em um clique, pular de uma página para outra, de um interlocutor para outro, entre conteúdos distintos e ligar todos eles. Lapa e Girardello (2017Lapa, A., & Girardello, G. (2017). Gestão em rede na primavera secundarista. In C. Porto, K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 29-48). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0003
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) ampliam esse entendimento quando defendem que o WhatsApp aproxima grupos já formados, “criando um espaço de trocas instantâneas e privadas que amplificam as possibilidades de interação, à revelia de condições espaciais e temporais” (Lapa & Girardello, 2017Lapa, A., & Girardello, G. (2017). Gestão em rede na primavera secundarista. In C. Porto, K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 29-48). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0003
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, p. 31).

Essas características remetem ao potencial do aplicativo de mediar fronteiras de práticas e espaços distintos, em uma interação que pode ser colaborativa e, por isso, enquadra-se na concepção de OF (Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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), ao estar em diferentes práticas ao mesmo tempo, levando, assim, a uma dinâmica própria entre as práticas. Para isso, um OF deve apresentar aspectos básicos em sua arquitetura (Star, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
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): a flexibilidade interpretativa, - em que diferentes grupos podem interpretá-los de maneiras distintas; a estrutura material ou organizacional específica ao seu tipo - concreta ou abstrata, com diferentes níveis e tipos de estruturação; e escala e escopo adequados ao OF, definidos em dinâmicas que vão desde usos pouco estruturados até personalizados, em grupos distintos, como nas relações de trabalho em nível organizacional, e em diferentes níveis de detalhes. Marcados por essas características, os OF são multidimensionais, sendo “ao mesmo tempo temporais, baseados na ação, sujeitos à reflexão e adaptação local e distribuídos por todas essas dimensões” (Star, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
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, p. 603).

Ao manifestar esses aspectos em determinadas redes sociotécnicas, o WhatsApp se caracteriza como OF, assumindo também um papel de agência e de formação contínua (Gherardi, 2016Gherardi, S. (2016). To start practice theorizing anew: The contribution of the concepts of agencement and formativeness. Organization, 23(5), 680-698. https://doi.org/10.1177/1350508415605174
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). Um tipo de agência que, segundo Primo et al. (2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ), é tão importante, que é capaz de levar as pessoas a sofrerem por não conseguir acessar o aplicativo, outras chegam a prejudicar as atividades laborais, ou até mesmo ignorar pessoas no mesmo recinto, por conta da atenção destinada ao WhatsApp. Trata-se de um processo ambíguo, no qual o aplicativo usado em uma organização para facilitar o trabalho tem, também, o potencial de prejudicar esse trabalho, assim como pode interferir nas relações sociais envolvendo seus usuários.

O aplicativo traz mudanças nos agrupamentos humanos, cada dia mais caracterizados por uma sociedade em rede. Nela, as tecnologias e a vida em sociedade e a organizacional coexistem e modificam-se mutuamente, facilitando a comunicação não só em âmbito pessoal, mas também no uso profissional, transformando o ambiente laboral em espaço democrático e colaborativo (Carvalho & Fort, 2017Carvalho, A. P. P., & Fort, M. C. (2017). Conexões virtuais e desconexões presenciais: A comunicação via WhatsApp em ambientes corporativos. Comunicação & Inovação, 18(36), 37-50. https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.3814
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). São tecnologias que permitem conectar fronteiras entre mundos sociais e interprofissionais incorporando a possibilidade de se trabalhar também individualmente, e colaborar, a distância, numa mesma tarefa (Beck et al., 2021Beck, A. M. T., Rasmussen, B. M., & Nielsen, T. K. H. (2021). Action plans as active boundary objects.Research on Social Work Practice,31(4), 382-389. https://doi.org/10.1177/10497315211002637
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).

Essa conectividade envolvendo a utilização do WhatsApp cria fluxos de ação cooperativa, assim como ocorre com outros objetos, que também estão envolvidos nas relações entre os objetos e a ação humana (Mello Filho & De Araújo Júnior, 2021Mello Filho, L. L. de, & De Araújo Júnior, R. H. (2021). Objetos de fronteira: Um diálogo entre a ciência da informação e a ciência de dados.Encontros Bibli: Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência Da Informação, 26, e77247. https://doi.org/10.5007/1518-2924.2021.e77247
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). O aplicativo propicia, também, ligações interpessoais mais superficiais e efêmeras, marcadas por pessoas mais afastadas fisicamente, em agrupamentos que podem ser (re)organizados rapidamente entre fronteiras funcionais e hierárquicas nas organizações (Carvalho & Fort, 2017Carvalho, A. P. P., & Fort, M. C. (2017). Conexões virtuais e desconexões presenciais: A comunicação via WhatsApp em ambientes corporativos. Comunicação & Inovação, 18(36), 37-50. https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.3814
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). As conexões possibilitadas por ele podem envolver as mais diversas instâncias da vida, além da organizacional, como a familiar, a dos círculos de amizade externos ao trabalho, entre outras, envolvendo dinâmicas mais amplas da mediação social da vida cotidiana e suas consequências (Matassi et al., 2019Matassi, M., Boczkowski, P. J., & Mitchelstein, E. (2019). Domesticating WhatsApp: Family, friends, work, and study in everyday communication. New Media and Society, 21(10), 2183-2200. https://doi.org/10.1177/1461444819841890
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).

Esse processo é potencializado pela intensificação da interação em rede na sociedade contemporânea, levando à construção e reconstrução de conceitos, ao invadir múltiplos espaços de relações diferentes e sustentar práticas pedagógicas distintas em interações propícias para novas descobertas (Oliveira, 2017Oliveira, C. A. de. (2017). Entre processos formativos e interativos: o WhatsApp como espaço significativo na orientação e formação. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.), WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons (pp. 217-233). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0012
https://doi.org/10.7476/9788523220204.00...
). Até mesmo porque, ainda que as conversas pelo aplicativo se deem de forma online, isso exige dos interlocutores um esforço cognitivo maior, principalmente ao manter, ao mesmo tempo, várias conversas, com diferentes pessoas ou grupos, que, inclusive, podem ser retomadas a qualquer momento, seja de forma online ou pessoalmente, caracterizando o aplicativo como criador e potencial fortalecedor de laços ou fonte de sofrimento, quando as pessoas apresentam dificuldades para lidar com as pressões geradas nas relações produzidas com ele (Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ).

Segundo os autores, o sofrimento pode vir de uma necessidade de responder rapidamente a uma mensagem. Nesse cenário, as notificações funcionam, para muitos, como um gatilho que desperta a necessidade de acessar imediatamente o aplicativo. Por outro lado, também propiciam o desenvolvimento de táticas para burlar esse excesso de informação, como desligar o telefone ou colocá-lo em modo avião, durante a noite ou em fins de semana, para evitar receber mensagens; ou deixar os grupos silenciados, ou destinar toques diferentes para recebimento de mensagens familiares. Ou seja, as pessoas acabam mexendo propositalmente nos recursos do aplicativo para gerenciar os limites entre presença e ausência (Mols & Pridmore, 2021Mols, A., & Pridmore, J. (2021). Always available via WhatsApp: Mapping everyday boundary work practices and privacy negotiations. Mobile Media and Communication, 9(3), 422-440. https://doi.org/10.1177/2050157920970582
https://doi.org/10.1177/2050157920970582...
). Isso permite lidar com o mencionado sofrimento e a intrusão do tempo do trabalho na vida pessoal pela via do aplicativo.

Uma parte das descobertas no WhatsApp também tem o potencial de dividir grupos existentes e/ou criar novos grupos, produzindo fronteiras, quando as pessoas que não participam da conversa referência em um grupo começam a interagir em conversas paralelas (Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ), utilizando as funcionalidades do aplicativo para construir segmentações entre diferentes contextos (Mols & Pridmore, 2021Mols, A., & Pridmore, J. (2021). Always available via WhatsApp: Mapping everyday boundary work practices and privacy negotiations. Mobile Media and Communication, 9(3), 422-440. https://doi.org/10.1177/2050157920970582
https://doi.org/10.1177/2050157920970582...
) e moldar a extensão e as formas de conversa - até de cunho político - entre os membros (Zhu et al., 2022Zhu, Q., Esteve-Del-Valle, M., & Meyer, J. K. (2022). Safe spaces? Grounding political talk in WhatsApp groups. New Media and Society. https://doi.org/10.1177/14614448221136080
https://doi.org/10.1177/1461444822113608...
).

Isso aconteceu, por exemplo, nas fragmentações de grupos sociais pelo WhatsApp durante as eleições presidenciais de 2022. Conforme a análise de Pereira et al. (2022Pereira, G., Camargo, I. B. B., & Parks, L. (2022). WhatsApp disruptions in Brazil: A content analysis of user and news media responses, 2015-2018. Global Media and Communication, 18(1), 113-148. https://doi.org/10.1177/17427665211038530
https://doi.org/10.1177/1742766521103853...
), o aplicativo se evidenciou como uma mídia vital e politicamente carregada, com um potencial de fragmentação que dividiu grupos de amigos, familiares e profissionais no trabalho e criou outros com elementos deles. Isso ocorreu principalmente em decorrência da utilização do WhatsApp para atacar os adversários políticos e atacar ou defender o governo diante de sua atuação em crises como a da pandemia de covid-19 (Ozawa et al., 2023Ozawa, J. V. S., Woolley, S. C., Straubhaar, J., Riedl, M. J., Joseff, K., & Gursky, J. (2023). How disinformation on WhatsApp went from campaign weapon to governmental propaganda in Brazil. Social Media and Society, 9(1). https://doi.org/10.1177/20563051231160632
https://doi.org/10.1177/2056305123116063...
).

Esse potencial de fragmentar e, ao mesmo tempo, criar novos grupos, é comumente destacado no campo dos estudos sobre OF somente no plano da cooperação entre as fronteiras, enquanto. a produção de fronteiras fica em segundo plano, como uma disfunção a ser corrigida. Como discutiremos a seguir, neste artigo consideramos esse processo como parte de algumas redes nas quais determinados OF se inserem, sendo relevantes para o entendimento da inserção dos OF nas redes.

3. OF NA MEDIAÇÃO E PRODUÇÃO DE FRONTEIRAS

Em um estudo precursor sobre os OF, Star (1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092...
) os definiu como um meio criado pelos cientistas para lidar com a heterogeneidade de diferentes fontes a serem conciliadas. Dessa maneira, vários especialistas tratam de aspectos distintos de um problema complexo a partir de objetivos comuns. Star e Griesemer (1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
https://doi.org/10.1177/0306312890190030...
) se basearam na obra de Star (1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092...
) e utilizaram a concepção de OF para propor uma visão complementar à de Callon (1984Callon, M. (1984). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. The Sociological Review, 32(1), 196-233. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984...
) e Latour (1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press.) para compreender de maneira mais ampla fenômenos ligados às relações recíprocas consideradas nas análises das translações dos objetivos de atores.

Latour (2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford Press University.) destaca que os objetos não têm o papel de meros intermediadores capazes de transportar a ação humana; eles são atores como os atores humanos em suas interações e mediações, e entre ambos são estabelecidas relações emaranhadas indissociáveis. Para o autor, ao investigar um fenômeno, deve-se tratar dos laços produzidos na rede de relações. Nessas redes de relações ocorrem traduções, também chamadas de translações, nas quais diferentes interesses são alinhados a partir da uma tradução em uma linguagem comum por meio dos objetos, em práticas mediadas pela materialidade desses objetos e situadas em histórias, tempos e espaços específicos, que devem ser considerados para que elas possam ser compreendidas ao se desatar os nós de relações e agências, humanas e não humanas, que são as práticas.

Dentre os objetos nessa rede, Latour (1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press., 2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford Press University.) destacam os móveis imutáveis, objetos capazes de inscrever informações em combinações e comparações e se deslocar sem que suas informações básicas sejam alteradas. É por meio deles que os conhecimentos científicos se disseminam ao atravessar diferentes instâncias, e também é a partir deles que objetos e pessoas se relacionam com outros objetos e pessoas (Latour, 1996Latour, B. (1996). On interobjectivity. Mind, Culture, and Activity, 3(4), 228-245. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304...
).

Fica evidente a relação dessa concepção com a ideia de OF. Como destaca Whitson (2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
https://doi.org/10.1177/1461444817715020...
), eles são uma ampliação da ideia de móveis imutáveis de Latour (2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford Press University., 1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press.). Os OF, apesar de serem considerados como distintos em diferentes comunidades nas quais estão presentes, apresentam um conteúdo imutável entre essas comunidades, o que permite a elas encontrarem objetivos comuns, uma união na diferença e uma maneira de se relacionar entre as fronteiras das diferentes comunidades (Star, 1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092...
; Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
https://doi.org/10.1177/1461444817715020...
).

Lainer-Vos (2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
https://doi.org/10.1177/0170840612467159...
) defende que a abordagem dos OF é convergente com a ideia da simetria e agência distribuída entre atores humanos e não humanos que se destaca na TAR (Callon, 1984Callon, M. (1984). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. The Sociological Review, 32(1), 196-233. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984...
; Latour, 1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press., 1996Latour, B. (1996). On interobjectivity. Mind, Culture, and Activity, 3(4), 228-245. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304...
, 2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford Press University.; Law, 1992Law, J. (2002). Objects and spaces. Theory, Culture & Society, 19(5-6), 91-105. https://doi.org/10.1177/026327602761899165
https://doi.org/10.1177/0263276027618991...
). Esse processo fica evidente quando se assume que a disseminação de uma tecnologia, como o uso do WhatsApp, faz parte de uma dinâmica sociotécnica na qual materialidade e sociabilidade são uma produção única, uma não existe sem a outra (Akrich et al., 2002Callon, M. (1984). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. The Sociological Review, 32(1), 196-233. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984...
). Law (2002Law, J. (2002). Objects and spaces. Theory, Culture & Society, 19(5-6), 91-105. https://doi.org/10.1177/026327602761899165
https://doi.org/10.1177/0263276027618991...
) esclarece que a tecnologia vai sendo disseminada em uma rede de relações, até que a rede não consiga mais manter as relações entre os atores ou se expandir. Quando isso ocorre, a tecnologia para de se disseminar baseada naquele funcionamento interno. Para o autor, esse processo permite compreender as transformações que ocorrem nas tecnologias, o que inclui mudanças em atores e relações que os envolvem.

A despeito dessas convergências entre a TAR e a abordagem dos objetos de fronteira, cabe destacar que a segunda se afastou da primeira desde os estudos seminais que a propuseram. Apesar de concordarem com Latour (1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press.) sobre a importância de se considerar nas análises a vida social e as redes de participantes nas quais fluem os objetos e conceitos, Star e Griesemer (1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
https://doi.org/10.1177/0306312890190030...
) criticam as limitações de se considerar que os objetivos dos diferentes atores vão sendo afunilados e mediados até um ponto de passagem estreito e obrigatório (os cientistas ou os empreendedores são exemplos desses pontos) para se contar uma única história, estabelecendo dessa maneira a translação entre objetivos dos aliados na rede.

Quando Callon (1984Callon, M. (1984). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. The Sociological Review, 32(1), 196-233. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984...
, p. 196, tradução nossa) discorre sobre o processo de translação, ele deixa claro esse foco em uma história, ao afirmar que “quatro 'momentos' de tradução são discernidos nas tentativas desses pesquisadores de se imporem e definirem a situação aos outros [...]”. Como alternativa, Star e Griesemer (1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
https://doi.org/10.1177/0306312890190030...
) inserem nas análises os OF para revelar uma relação na qual múltiplos pontos de passagem obrigatórios e histórias coexistem em movimentos de translação.

Para os autores, a translação deveria ser vista em termos das maneiras como os OF permitem a manutenção de translações em múltiplos pontos de passagem obrigatórios, remetendo às translações dos objetivos entre aliados que podem negociar esses pontos. As relações entre esses múltiplos pontos de passagem envolvem atores em múltiplas translações simultâneas em um meio mais amplo, por exemplo, uma empresa como um todo, no lugar de tratar especificamente de um ponto de vista, como o do cientista ou pesquisador, abordados por Latour (1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press.) e Callon (1984Callon, M. (1984). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. The Sociological Review, 32(1), 196-233. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984...
).

Essa distinção em relação à proposta dos autores foi articulada ao se assumir que os OF habitam as diferentes comunidades de prática, atendendo a suas demandas por informação quando elas se relacionam (Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
https://doi.org/10.1177/1461444817715020...
). Nessa ótica, o conceito de OF renova o pensamento convencional sobre a cooperação, dissociando-a da ideia de consenso, pois eles permitem a cooperação e a troca de conhecimentos dentro do dissenso (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
https://doi.org/10.1177/0170840612467159...
). Para isso, eles devem ser reconhecidos pelas comunidades de prática ou mundos sociais envolvidos como um meio de translação (Star, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
https://doi.org/10.1177/0162243910377624...
).

A partir dessa movimentação, os estudos sobre OF compuseram um corpo de conhecimento próprio, independente da TAR, como se observa em trabalhos que nem mesmo citam seus autores precursores ou a abordagem, como os trabalhos de Carlile (2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.29...
) e Yakura (2002Yakura, E. K. (2002). Charting time: Timelines as temporal boundary objects. Academy of Management Journal, 45(5), 956-970. https://doi.org/10.5465/3069324
https://doi.org/10.5465/3069324...
). Mas neste estudo, ao concordarmos com as críticas de Star e Griesemer (1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
https://doi.org/10.1177/0306312890190030...
) e não adotarmos a TAR, defendermos a adoção da abordagem dos OF alinhada à posição de Lainer-Vos (2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
https://doi.org/10.1177/0170840612467159...
), que reconhece contribuições dos autores que propuseram a TAR, como Callon (1984Callon, M. (1984). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. The Sociological Review, 32(1), 196-233. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984...
), Latour (1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press., 1996Latour, B. (1996). On interobjectivity. Mind, Culture, and Activity, 3(4), 228-245. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304...
, 2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford Press University.) e Law (1992Law, J. (1992). Notes on the theory of the actor-network: Ordering, strategy and heterogeneity. Systems Practice, 5(4), 379-393. https://doi.org/10.1007/BF01059830
https://doi.org/10.1007/BF01059830...
), ao adotar a abordagem dos OF.

A despeito de esse posicionamento considerar as contribuições da TAR para a discussão dos OF, cabe reconhecer que eles fazem parte de um corpo de conhecimento próprio, em diferentes campos de estudos. No campo dos estudos organizacionais, os OF têm sido articulados com focos específicos (Kertcher & Coslor, 2020Kertcher, Z., & Coslor, E. (2020). Boundary objects and the technical culture divide: Successful practices for voluntary innovation teams crossing scientific and professional fields.Journal of Management Inquiry,29(1), 76-91. https://doi.org/10.1177/1056492618783875
https://doi.org/10.1177/1056492618783875...
), e isso inclui influências de autores voltados para as teorias da prática, com a adoção de teorias sobre a materialidade para compreender o papel dos objetos (Nicolini et al., 2012Nicolini, D., Mengis, J., & Swan, J. (2012). Understanding the role of objects in cross-disciplinary collaboration. Organization Science,23(3), 612-629. https://doi.org/10.1287/orsc.1110.0664
https://doi.org/10.1287/orsc.1110.0664...
). Em síntese, a inserção da discussão dos OF nos estudos organizacionais fez com que as atenções se voltassem para os não humanos nas organizações, um caminho para romper com os estudos precursores do campo, que tratavam as organizações como compostas apenas por humanos (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
https://doi.org/10.1177/0170840612467159...
).

Mas, se nos estudos organizacionais o determinismo humano passou a ser questionado por meio dos OF, alguns estudos assumiram outro determinismo: os das características dos OF. Mesmo quando consideradas dinâmicas, essas características são tratadas como as que determinam os movimentos de resistência ou de ir além das fronteiras. Isso fica evidente no estudo de Whitson (2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
https://doi.org/10.1177/1461444817715020...
) sobre o papel do software de desenvolvimento de jogos, enquanto OF, passível de ser alterado pelo desenvolvedor de jogos, mas que resiste a ele e permite a cooperação com outros desenvolvedores, por suas características específicas.

Segundo Lainer-Vos (2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
https://doi.org/10.1177/0170840612467159...
), esse determinismo ocorre em estudos, como o de Akkerman e Bakker (2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
https://doi.org/10.3102/0034654311404435...
), os quais não tratam a ação como uma produção relacional envolvendo humanos e não humanos nas organizações. Mesmo em estudos que reconhecem a condição de OF como parte de uma rede de relações, com faz Carlile (2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.29...
), o fracasso na cooperação é atribuído a uma característica inadequada do OF, que pode e deve ser corrigido, pois o propósito dele é mediar fronteiras, nada mais (Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
https://doi.org/10.1177/1461444817715020...
). Entretanto, neste artigo defendemos outro entendimento, o de que a produção de novas fronteiras e de possíveis fracassos em cooperações apenas reflete movimentações nas redes que produzem fronteiras e OF. Característica com a qual os interessados nos OF devem lidar.

Desde o estudo precursor de Star (1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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), abordar os OF não se trata de diminuir fronteiras ou diferenças. Muito pelo contrário, é viabilizar a cooperação com a produção da diferença. Portanto, a produção da diferença não deve depor contra um OF, pois ela pode fazer parte da rede que o produz como OF e o usa para mediar e produzir fronteiras. Nesse sentido, nossa proposta vai ao encontro do entendimento de Lainer-Vos (2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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), para quem, na produção relacional da ação, os OF não se limitam às suas características fixas ou específicas, mas também manifestam sentidos temporários, dinâmicos, interdependentes em relações com atores humanos, buscando estabelecer cooperações na heterogeneidade organizacional.

Neste artigo, essa ênfase relacional será assumida para revelar a dinâmica pela qual um OF se relaciona com movimentos duplos de mediação da heterogeneidade e produção dela, na composição de fronteiras em organizações. Por isso, resgatamos o interesse em discutir a concepção de fronteira nos estudos sociais, que envolve a abordagem de unidades de análise mais amplas, para tratar das maneiras de ir além das fronteiras (Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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), envolvendo variadas visões dos atores e diversas instituições (Star & Griesemer, 1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
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).

Ao resgatar esse interesse, reconhecemos as contribuições de diversos estudos que consideram a temporalidade de OF, sua capacidade de mediar fronteiras, permitir a colaboração entre elas e, em seguida, perder essa capacidade , chegando até a produzir a heterogeneidade (Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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; Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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).

Mas esses estudos não tratam esse movimento como uma condição que potencialmente pode fazer parte efetiva do uso desses OF em redes de relações sempre em movimento. Portanto, há necessidade de destacar as relações nas quais os OF, em suas relações corriqueiras, inserem-se na criação de fronteiras.

Para nos voltarmos para essa discussão, o conceito de fronteira aqui adotado reconhece o seu caráter dinâmico, enxergando-a como “uma diferença sociocultural que leva à descontinuidade na ação ou interação. Os limites sugerem simultaneamente uma mesmice e continuidade no sentido de que dentro da descontinuidade dois ou mais sítios são relevantes um para o outro de uma maneira particular” (Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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, p. 133). As fronteiras pertencem a dois mundos simultâneos, por isso ligam e separam ao mesmo tempo, e não são fixas, elas são definidas e redefinidas naquele processo contínuo, no qual o OF pode, ou não, fazer parte de um processo criativo, oriundo do contato de elementos de contextos separados pelas fronteiras, levando à composição de novas fronteiras (Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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).

Nossa proposta reforça o entendimento de que em grupos distintos podemos ter o mesmo objeto atuando de maneiras distintas (Nicolini et al., 2012Nicolini, D., Mengis, J., & Swan, J. (2012). Understanding the role of objects in cross-disciplinary collaboration. Organization Science,23(3), 612-629. https://doi.org/10.1287/orsc.1110.0664
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; Kertcher & Coslor, 2020Kertcher, Z., & Coslor, E. (2020). Boundary objects and the technical culture divide: Successful practices for voluntary innovation teams crossing scientific and professional fields.Journal of Management Inquiry,29(1), 76-91. https://doi.org/10.1177/1056492618783875
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), pois há certa fluidez na definição das situações por partes das pessoas envolvendo diversos fatores, como o local ou a posição (Star, 1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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) e o tempo (Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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) no qual se inserem. A crítica aqui é contra colocar em segundo plano a agência das redes heterogêneas nas quais humanos e não humanos se articulam, em um processo no qual os OF assumem a capacidade de permear fronteiras (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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) ou de as produzir ou reforçá-las. Ou seja, assumimos que a condição do OF, mediar ou produzir fronteiras, não é algo das características específicas deles, mas algo atribuído a eles nas redes de relações, envolvendo essas características.

A partir da argumentação teórica propomos que, dependendo das redes nas quais se inserem, os OF, como o WhatsApp, podem manifestar um movimento duplo no qual medeia e se insere na produção de fronteiras. Para confrontar empiricamente essa proposição teórica, adotamos os caminhos metodológicos descritos a seguir, com foco em analisar e mostrar as maneiras pelas quais o WhatsApp se apresenta como OF nesse movimento duplo, entre diferentes fronteiras em uma organização.

4. CAMINHOS PERCORRIDOS

Como o foco da análise exige estudar as experiências vividas de grupos de pessoas no uso do WhatsApp, assumimos uma abordagem qualitativa que permite uma aproximação a esse uso. A organização escolhida como locus da pesquisa foi a Approve (nome fictício), um órgão público federal, com algumas unidades no Espírito Santo - neste estudo foi abordada apenas a sede em Vitória. O nome da organização está sendo preservado, para não expor os participantes.

Atualmente, na instituição, mesmo havendo uma determinação para utilização de outro aplicativo de troca de mensagens como forma oficial de comunicação interna, o WhatsApp é uma ferramenta de trabalho e lazer muito utilizada, em alguns casos de forma involuntária, por exigência de superiores e colegas.

A produção dos dados ocorreu entre janeiro e agosto de 2022, em dias não subsequentes, e foi realizada por meio de observação, netnografia e entrevistas semiestruturadas. Durante as etapas de observação e netnografia, foram feitas notas de campo, que permitiram produzir um diário do que estava sendo observado, a fim de manter os registros organizados.

A pesquisa se iniciou após a autorização da organização. Além disso, os entrevistados, as pessoas observadas presencialmente e os membros da organização que pertenciam aos grupos de WhatsApp nos quais foi realizada a netnografia foram abordados internamente na organização. Eles concordaram em participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Isso foi possível porque a netnografia se limitou aos grupos de WhatsApp internos à organização. Dentro dessa delimitação empírica, um dos autores do trabalho realizou as observações, a netnografia e as entrevistas.

Basicamente, durante a observação foram verificadas as maneiras pelas quais o WhatsApp se inseria dentre as outras ferramentas de comunicação no local de trabalho, pois as pessoas possuíam outras maneiras de se comunicar além do aplicativo. O foco estava no comportamento das pessoas, em seu uso do celular e do aplicativo ao longo do dia de trabalho.

A netnografia voltou-se para os usos do aplicativo propriamente dito e as maneiras como esses usos envolviam os grupos, suas convergências e divergências na organização. Isso foi possível visto que a netnografia produz dados a partir do ambiente virtual, quando o pesquisador participa das redes sociais, vivencia e analisa os processos comunicacionais voltados para a troca via internet de informações escritas, ou seja, o comportamento humano em grupos sociais na internet (Donna & Silva, 2014Donna, C. U., & Silva, A. R. L. da. (2014). Os usos do Facebook nas manifestações dos simbolismos organizacionais.REAd: Revista Eletrônica de Administração,20(3), 681-712. https://doi.org/10.1590/1413-2311.0282013.42999
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).

Durante a netnografia, foram observadas as dinâmicas nos grupos de trabalho no WhatsApp, inclusive em chats privados no aplicativo, além do comportamento das pessoas participantes por pelo menos oito horas diárias, durante diversos períodos do dia, principalmente em relação à manifestação delas nesses grupos, conteúdo das postagens e relacionamento com os demais membros. Cabe destacar que a netnografia de oito horas de uso dos participantes do WhatsApp não significa que o pesquisador interagiu durante oito horas seguidas com os participantes, pois as pessoas não postam mensagens no WhatsApp de maneira ininterrupta. O processo consistiu em acompanhar os grupos sempre que alguém realizava uma postagem ao longo do dia.

As anotações realizadas durante as observações presenciais e a netnografia, vivenciando a experiência de interação como participante dos grupos de WhatsApp, foram registradas em um diário de campo digitado no software Word. Diariamente eram incluídas no arquivo mensagens enviadas que poderiam gerar algum tipo de resposta ou de questionamento por parte dos demais componentes do grupo.

Para complementar a produção de dados com informações específicas das pessoas, foi adotada a entrevista semiestruturada (Donna & Silva, 2014Donna, C. U., & Silva, A. R. L. da. (2014). Os usos do Facebook nas manifestações dos simbolismos organizacionais.REAd: Revista Eletrônica de Administração,20(3), 681-712. https://doi.org/10.1590/1413-2311.0282013.42999
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), baseada em um roteiro sem rigidez, com 12 questões relacionadas à utilização do aplicativo WhatsApp. Durante as entrevistas, foram observados tanto o conteúdo verbal dito pelos participantes quanto a comunicação não verbal, como gestos, expressão corporal, modos de se portar para responder às perguntas, ênfase em determinados pontos de fala, tom de voz, entre outros. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas no software Word.

Os participantes da pesquisa, que foram entrevistados, observados e com os quais se interagiu na netnografia, foram selecionados pela acessibilidade conciliada com os seguintes critérios: 1) ser estagiário ou servidor - efetivo, contratado ou requisitado - do órgão escolhido; 2) possuir o aplicativo WhatsApp instalado no celular; 3) utilizar o aplicativo WhatsApp tanto para se comunicar com amigos, familiares e também como ferramenta de trabalho; 4) fazer parte do grupo de notícias no WhatsApp do órgão onde trabalha/estagia. Com base nesses critérios, foram selecionadas doze pessoas, seis homens e seis mulheres, moradores da Grande Vitória, cuja faixa etária abrange dos 21 aos 56 anos, de diferentes setores, cargos e níveis hierárquicos. As entrevistas foram sendo realizadas até que se observou certa recorrência ou saturação nos dados (Minayo, 2017Minayo, M. C. S. (2017). Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: Consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, 5(7), 1-12. https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82
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), ao chegar na 12ª entrevista. A recorrência ou saturação dos dados foi identificada quando as respostas dadas pelos entrevistados ficaram repetitivas, demonstrando que novos respondentes não estavam acrescentando mais elementos relevantes relacionados ao objetivo tratado no estudo.

O tratamento dos dados produzidos foi realizado por meio do método da espiral da análise de dados Creswell (2014Creswell, J. W. (2014).Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: Escolhendo entre cinco abordagens. Penso Editora.), no qual o pesquisador “se envolve no processo de um movimento em círculos analíticos em vez de usar uma abordagem linear” (Creswell, 2014Creswell, J. W. (2014).Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: Escolhendo entre cinco abordagens. Penso Editora., p. 148). De acordo com esse método, mesmo após a organização dos dados, continuamos a analisá-los, formando categorias, com descrições detalhadas do que foi visto dentro do contexto investigado, desenvolvendo temas amparados por nossas interpretações com base nos dados, nas experiências pessoais durante a pesquisa e na teoria, para responder à questão de pesquisa proposta.

Durante esse processo de análise, após diversas releituras do material produzido nas entrevistas e observações, foram identificados cinco temas que perpassavam os conteúdos presentes no material e permitiram organizá-los da seguinte maneira: os conteúdos mais relacionados com um determinado tema foram classificados como parte daquele tema, mesmo se tivessem relação indireta com outros temas, pois, na prática do dia a dia, poucos conteúdos são completamente isolados entre si. A avaliação de o quanto um conteúdo se aproximava mais de um ou de outro tema se deu com base no que Creswell (2014Creswell, J. W. (2014).Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: Escolhendo entre cinco abordagens. Penso Editora.) descreve como a interpretação dos pesquisadores a partir de sua base teórica e de se sua experiência durante a pesquisa. A despeito do reconhecimento da importância da base teórica para a definição desses temas, cabe destacar que eles não foram definidos previamente com base na teoria, portanto, esses temas são considerados categorias definidas a posteriori, após a produção dos dados e durante a sua análise. As categorias identificadas foram as seguintes: (1) interações sociais; (2) conteúdo das postagens e linguagem utilizada no WhatsApp; (3) relação entre utilização do WhatsApp e a organização; (4) sentimentos ao utilizar o WhatsApp; e (5) usos do WhatsApp e controle.

A operacionalização técnica para se chegar a essas cinco categorias consistiu em organizar os conteúdos dos dados produzidos, na forma de trechos das entrevistas e do diário de campo, em colunas de uma planilha do software Excel, de acordo com os temas que se interpretava serem mais relacionados com cada conteúdo. A cada releitura dos dados foram feitos ajustes nas categorias, até que todos os conteúdos com alguma relação com a questão de pesquisa proposta foram categorizados.

Dando continuidade ao método em espiral Creswell (2014Creswell, J. W. (2014).Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: Escolhendo entre cinco abordagens. Penso Editora.) mencionado, a partir dessa primeira categorização buscamos temas transversais entre conteúdos inseridos em todas as categorias, ligados à questão de pesquisa proposta. O sentido de tema transversal aqui é de um tema que perpassa todas as categorias e permite revelar como o conteúdo presente nelas envolve a questão de pesquisa proposta. Ou seja, ele integra os conteúdos entre as categorias para resgatar as relações entre eles e a questão de pesquisa.

Na operacionalização dessa etapa, a referida planilha do software Excel, com os conteúdos classificados nas cincos categorias apresentadas, fez parte das releituras dos conteúdos produzidos. A leitura dos conteúdos já separados nas categorias, de maneira organizada, facilitou a identificação de dois temas transversais que perpassavam esses conteúdos e permitiam abordar a questão de pesquisa proposta: (1) O WhatsApp como um OF mediador de fronteiras; e (2) O WhatsApp inserido na produção de fronteiras enquanto OF. E a partir deles vamos discutir os resultados encontrados nesta pesquisa.

5. O WHATSAPP COMO UM OF MEDIADOR DE FRONTEIRAS

O diário de campo e a grande maioria dos entrevistados indicam que pessoas diferentes, de setores distintos, com diversas experiências e formações, algumas que nem se conhecem efetivamente, fazem uso do WhatsApp para cooperarem em questões relativas ao lazer, às questões do dia a dia e ao trabalho, em boa parte do seu dia.

De maneira específica, todos os entrevistados informaram que: utilizam o WhatsApp diariamente; fazem parte de pelo menos três ou quatro grupos de WhatsApp relativos à organização Approve; fazem parte do grupo NOTÍCIAS DA APPROVE, que é oficial e mais formal, em que só o administrador do grupo envia mensagens e comunicados. Dez dos doze entrevistados fazem parte do grupo GALERA DA APPROVE, composto por servidores, mais informal, no qual não há hierarquia e todos podem comentar e enviar mensagens sobre os assuntos que estão sendo discutidos naquele momento. Esses diferentes grupos fazem parte das redes evidenciadas na Approve.

Dentro dessas redes, a capilaridade do aplicativo na instituição fica evidente em diversas manifestações: E9 frisou que o aplicativo “é muito prático, de fácil acesso, e, por isso, acaba estreitando relações”; E12 citou que “a troca de ideias pode acontecer independente de todos estarem presentes fisicamente, facilitando o contato entre as pessoas”; e E1 destaca que o aplicativo é um “encurtador de distâncias”. Aqui temos as fronteiras entre pessoas com diferentes capacidades para utilizarem tecnologia de comunicação sendo mediadas pela praticidade do aplicativo, além da superação da distância física, como traduções realizadas na rede para a cooperação.

Há aqui uma convergência com o entendimento de Porto et al. (2017Porto, C. de M., Oliveira, K. E. de J., & Alves, A. L. (2017). Expansão e reconfigurações das práticas de leitura e escrita por meio do WhatsApp. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 113-128). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0007
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), na qual o WhatsApp proporciona uma nova maneira de se comunicar, de escrever e de entender as mensagens, que fogem ao tradicional, ampliando a interação, sem depender de condições de tempo e espaço. E3 lembra que, recentemente, durante uma pane no aplicativo, percebeu o quão importante ele tem se tornado nas interações sociais. “No dia em que o WhatsApp ficou fora do ar, percebi que a gente já não enxerga mais nem a funcionalidade do telefone para ligar. Para todas as comunicações utilizamos o WhatsApp, seja na vida ou trabalho. Só via as pessoas se perguntando: ‘Nossa, como eu vou falar com fulano agora?’, chegava até a ser engraçado”.

O diário de campo indica que esse potencial para interação vai além dos limites das redes concentradas na Approve, com interações entre fronteiras heterogêneas externas. Um exemplo disso foi relatado por E8: “Eu faço concursos públicos pelo Brasil. E se criam grupos desses concursos e as pessoas interagem sobre diversas questões, e se ajudam. Converso com pessoas de todas as partes do país, que, mesmo sem se conhecerem pessoalmente, combinam pelo WhatsApp de dividir transporte para fazer as provas e até mesmo hospedagem, além de conferir gabaritos, discutirem dúvidas sobre as questões”. Nessa manifestação, o WhatsApp se apresenta como um espaço rico em descobertas por conta da sua interatividade dentro da heterogeneidade de pessoas desconhecidas, com seu uso potencializando a busca por alternativas inovadoras na utilização do aplicativo (Oliveira, 2017Oliveira, C. A. de. (2017). Entre processos formativos e interativos: o WhatsApp como espaço significativo na orientação e formação. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.), WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons (pp. 217-233). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0012
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).

Essa criatividade envolve as maneiras como as funcionalidades do aplicativo são interpretadas nas redes. Por exemplo, incorporar figurinhas às mensagens oferece à rede o que E2 chama de diversão, ao garantir que seu dia “fica muito mais divertido quando fala com seus amigos por meio de figurinhas”; assim como E7, que diz utilizar bastante esse recurso, “principalmente quando quer ser mais engraçado, fazer algum tipo de desabafo, dar uma opinião contrária ou fazer algum tipo de brincadeira”.

Outro exemplo envolve a funcionalidade do aplicativo de informar quando e se os usuários estão interagindo: se estão online, digitando uma mensagem e até mesmo gravando um áudio para ser enviado por ele (Porto et al., 2017Porto, C. de M., Oliveira, K. E. de J., & Alves, A. L. (2017). Expansão e reconfigurações das práticas de leitura e escrita por meio do WhatsApp. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 113-128). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0007
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). Mas E1 destaca que as pessoas confundem o “online com estar disponível a qualquer hora do dia”. E12 reforça o aspecto negativo dessa confusão quando afirma “meu sonho mesmo é ficar online no aplicativo e ninguém ver que eu estou online. O WhatsApp virou uma demanda, né? Você infelizmente não pode escolher as mensagens que você recebe, acaba ficando aberto para quem quer enviar mensagem para você”. Para E9, trata-se de um gatilho para crises de ansiedade: “Ele [o WhatsApp] aciona em mim a ansiedade, uma necessidade que tenho de atender o outro da melhor forma e de forma mais rápida. Então ele potencializa isso”. Aqui a rede, nas interações entre as pessoas e o WhatsApp, apresenta-se como algo que captura e tira a liberdade de seus membros. Essa manifestação se aproxima da ideia de que há produção de agência e formação, a partir de uma prática e de seus elementos, sobre as pessoas (Gherardi, 2016Gherardi, S. (2016). To start practice theorizing anew: The contribution of the concepts of agencement and formativeness. Organization, 23(5), 680-698. https://doi.org/10.1177/1350508415605174
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). Esse processo nas redes, descrito no diário de campo, é ilustrado quando E3 considera que esse fato apontado por E12 acaba criando uma cultura do imediatismo, seja na organização, ou na vida pessoal.

Mas essa relação não quer dizer que o humano é controlado pelo não humano, ou que o primeiro é subserviente ao segundo. A aparente subserviência, assim como a ansiedade e o potencial desconforto mencionados não são produzidos pelo não humano, mas pelas relações na rede, na qual humanos de diferentes lados do aplicativo interagem entre si, com este último mediando as fronteiras que os separam, inclusive no uso do aplicativo. São as relações em rede que definem o que ocorre com o aplicativo enquanto OF (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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).

Um exemplo dos diferentes usos dos aplicativos de acordo com as diferentes relações em rede é manifestado por E10, quando aborda diferentes comportamentos ao se deparar com relações distintas: “Eu vejo uma diferença no meu comportamento no WhatsApp, que acompanha também um pouco do que levo na minha vida offline. Nos grupos de trabalho, eu procuro ser uma pessoa mais formal, dar menos vazão a intimidades, a brincadeiras que poderão ser interpretadas de forma equivocada. Deixo essas práticas para os grupos mais informais e pessoais, ou até mesmo para conversas individuais”. Aqui E10 indica que o aplicativo permite alterar seus usos de acordo com as interpretações sobre as relações em rede.

Essas interpretações e usos não são homogêneos nas relações em rede, há diferenças mediadas pela plasticidade do aplicativo. O diário de campo revela que outros humanos, diferentemente de E10, utilizam em todos os grupos os recursos interpretados por ele como informais, mas com diferentes intensidades entre os grupos. Por exemplo, as figurinhas, já mencionadas, surgem em todos as fronteiras das redes na Approve. Em um dos grupos, há diálogos baseados e ironia construídos só por meio de figurinhas, em comentário a alguma postagem - geralmente a imagem ou o link de alguma notícia da atualidade. Mas fica evidente no diário de campo que há uma maior utilização delas nos grupos mais informais, e que, ao mesmo tempo, os conhecimentos produzidos nesses grupos, sobre o uso das figurinhas, entre outros, e seus efeitos na comunicação na Approve, são utilizados nos demais grupos inseridos na organização.

Essa flexibilidade atribuída ao WhatsApp pelas relações na rede, nas quais ele transita entre a formalidade e a informalidade, faz parte do papel de OF tradicional, o que medeia fronteiras (Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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; Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
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), mas nas relações na Approve seu uso foi além disso.

6. O WHATSAPP INSERIDO NA PRODUÇÃO DE FRONTEIRAS ENQUANTO OF

Durante a observação netnográfica, pudemos nos concentrar em fatos ocorridos no grupo GALERA DA APPROVE, em relações nas quais fica evidente o uso do aplicativo como um OF, que, ao mesmo tempo, insere-se na produção de fronteiras. Esse grupo, criado em 2014 por um servidor, tinha, em 19 de janeiro de 2022, 78 participantes, e permite a postagem por qualquer membro de mensagens e informes referentes ao trabalho, ao lazer e outros assuntos sem vínculo com a instituição. Não existe uma regulamentação específica, além do pedido de bom senso.

Durante o período da pesquisa, até o mês de julho, as demandas no grupo se limitavam a pedidos de informação sobre o próprio trabalho, como o funcionamento de sistemas, além de fatos pontuais, como avisos sobre eventos, lançamento de livros ou pedido de indicação de médicos. Sempre havia interação entre os membros do grupo, de forma ordeira e pacífica. No mês de agosto, houve a entrada de um novo servidor no grupo, recém-ingressado na instituição. E essa pessoa passou a enviar imagens e mensagens de bom dia no grupo, diariamente, contendo frases motivacionais e/ou de efeito. Na primeira semana em que isso ocorreu, duas ou três pessoas sempre respondiam às mensagens, uma delas até utilizando áudio. Só que, a partir da semana seguinte, o descontentamento de alguns membros do grupo com esse tipo de mensagem começou a ser notado de duas formas distintas, pelo menos.

Em uma delas, em um grupo menor, mais restrito, do qual participam alguns membros do GALERA DA APPROVE, algumas pessoas começaram a reclamar da postura do novo servidor, caracterizando-a como falta de noção, e ameaçando sair do grupo principal. Já em outra, três pessoas saíram do grupo principal; e, quando questionadas do motivo que as levaram a essa atitude, responderam que o “excesso de bom dia” foi a principal razão para isso. Aqui aquela mesma facilidade manifestada nas relações para os humanos entrarem nos grupos usando o aplicativo manifesta-se para que eles saiam deles, estabelecendo fronteiras por um motivo qualquer inserido nas relações, como o “excesso de bom dia”, sem que, ao mesmo tempo, ele pare de mediar outras fronteiras.

No fim do mês de agosto, outra situação mostra como o OF WhatsApp pode também produzir diferenças: com a proximidade das Eleições para presidente do Brasil, foi feito um post de cunho político, com o envio de imagens de um dos candidatos à presidência acompanhadas de piadas ou mensagens em tom de deboche. Duas pessoas com opiniões contrárias responderam ao que consideraram uma provocação e, a partir dessa discussão, outras três pessoas saíram do grupo nesse dia. Dois respondentes ilustram o pensamento dos insatisfeitos: “Infelizmente, as pessoas, com as mídias sociais e as ferramentas eletrônicas, estão tendo uma noção distorcida do que é respeito e limite. Isso tem feito com que as pessoas achem que elas podem falar o que quiser, quando quiser, da forma que quiser, e que respeito é a gente aceitar aquilo sem se incomodar. Isso para mim é o mais difícil” (E4); “Muitas pessoas ficam perdendo tempo discutindo situações, ou ofendendo as outras, e isso me entristece muito [...] precisei me afastar do grupo” (E3). Nessa data, o número de participantes no grupo era de 72 participantes - seis a menos do que no dia na coleta inicial desta pesquisa.

Esses dois exemplos no grupo GALERA DA APPROVE refletem a produção de divergências nas relações em rede no uso do WhatsApp. A despeito do uso de produzir fronteiras, essa produção se estabelece a partir das mesmas atribuições que as redes oferecem ao aplicativo na mediação de fronteiras, como OF, com destaque para a flexibilidade interpretativa. Ela permite que eles sejam adaptáveis a diferentes pontos de vista e interpretados de formas diferentes de acordo com o grupo e sua utilização (Star, 2010Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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).

As maneiras pelas quais as relações em rede apresentam o WhatsApp como um OF nos permitem visualizar a criação de um fluxo de ação específico. Nele são mediadas fronteiras dentro das relações na organização, quando essa mediação traz à tona, usando o aplicativo, comportamentos de membros do grupo com os quais não se concorda, diferenças, antes ocultas, manifestam-se de maneira aberta nas redes que criam fraturas e produzem fronteiras.

7. DISCUSSÃO: O “FRONTEIRIZAR” NAS REDES DE RELAÇÕES

Os resultados apresentados permitem um aprofundamento na discussão de três aspectos relacionados com o objetivo deste estudo: as características do WhatsApp relacionadas com as de OF típicos nos estudos sobre o tema; a caracterização do WhatsApp como um OF envolvido em impactos negativos sobre as pessoas; e o WhatsApp na produção de OF e de fronteiras nas redes de relações. Cada um deles sintetizados nas Tabelas 1, 2 e 3, respectivamente.

Tabela 1
Características do WhatsApp relacionadas com as de OF típicos nos estudos

A Tabela 1 permite sustentar teoricamente que o aplicativo propicia lidar com a comunicação, ampliar interações, ultrapassar limites (Porto et al., 2017Porto, C. de M., Oliveira, K. E. de J., & Alves, A. L. (2017). Expansão e reconfigurações das práticas de leitura e escrita por meio do WhatsApp. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 113-128). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0007
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; Lapa & Girardello, 2017Lapa, A., & Girardello, G. (2017). Gestão em rede na primavera secundarista. In C. Porto, K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 29-48). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0003
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) e produzir descobertas inovadoras (Oliveira, 2017Oliveira, C. A. de. (2017). Entre processos formativos e interativos: o WhatsApp como espaço significativo na orientação e formação. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.), WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons (pp. 217-233). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0012
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). Isso envolve sua estrutura material, em termos dos recursos disponibilizados (Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ; Porto et al., 2017Porto, C. de M., Oliveira, K. E. de J., & Alves, A. L. (2017). Expansão e reconfigurações das práticas de leitura e escrita por meio do WhatsApp. In C. Porto , K. E. Oliveira & A. Chagas (Eds.),WhatsApp e educação: Entre mensagens, imagens e sons(pp. 113-128). EDUFBA. https://doi.org/10.7476/9788523220204.0007
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) que permitem o deslocamento de informações e emoções para as mais diversas instâncias da vida pessoal e profissional e para os grupos que se inserem nela (Matassi et al., 2019Matassi, M., Boczkowski, P. J., & Mitchelstein, E. (2019). Domesticating WhatsApp: Family, friends, work, and study in everyday communication. New Media and Society, 21(10), 2183-2200. https://doi.org/10.1177/1461444819841890
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). Tais características são convergentes com as dos OF, apresentadas na Tabela 1, uma vez que elas remetem ao potencial do objeto (o aplicativo) para translações simultâneas e instantâneas, envolvendo grupos que mesmo sendo distintos se relacionam e encontram objetivos comuns, em virtude do conteúdo imutável que apresenta (Star, 1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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; Star & Griesemer, 1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
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; Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
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).

Esse conteúdo passa a ser imutável ao ser registrado no aplicativo e pode ser compartilhado por aqueles inseridos em diferentes grupos relacionados entre si no escopo organizacional ou para um escopo ainda mais amplo, envolvendo familiares e amigos externos à organização (Matassi et al., 2019Matassi, M., Boczkowski, P. J., & Mitchelstein, E. (2019). Domesticating WhatsApp: Family, friends, work, and study in everyday communication. New Media and Society, 21(10), 2183-2200. https://doi.org/10.1177/1461444819841890
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). O objeto pode assumir diferentes interpretações nesses grupos, tais como ferramenta de comunicação, de trabalho, de pressão, de lazer, ou de manifestação de emoções, como se evidenciou na Approve e está ilustrado nas Tabelas 1, 2 e 3. Cabe destacar que em virtude da estrutura material de rede social online do WhatApp, mesmo se o conteúdo for apagado posteriormente pelo autor da postagem, ele agora é parte da rede e de suas múltiplas possibilidades de copiar e ou de se lembrar do conteúdo o aproximando de algo que não pode mais ser mudado após ser postado, mesmo que seja possível fazer isso. Ou seja, ficam evidentes no aplicativo as características atribuídas aos OF: a flexibilidade interpretativa, a estrutura material e a escala e escopo (Star, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
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).

Esse entendimento sustenta um argumento básico deste artigo: o WhatsApp é um objeto com o potencial de ser de fronteira e se apresenta como tal na Approve. Os estudos sobre OF citados na Tabela 1, que sustentam esse entendimento, assumem uma posição sobre eles que vem desde o desenvolvimento seminal do conceito, por parte de Star (1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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) e Star e Griesemer (1989), identificada aqui como posição típica no campo de estudo. Mas essa posição deixa de lado os impactos negativos desses objetos sobre as pessoas, aqui identificados a partir do segundo aspecto discutido neste tópico e tratado na Tabela 2: a caracterização do WhatsApp como um OF envolvido em impactos negativos sobre as pessoas.

Tabela 2
O WhatsApp como um OF envolvido em impactos negativos sobre as pessoas

A Tabela 2 evidencia críticas de estudos sobre o WhatsApp que abordam o contexto organizacional. Os estudos sobre WhatsApp tratam do potencial uso do aplicativo para eliminar a fronteira entre trabalho e vida pessoal e das implicações negativas para as pessoas quando isso efetivamente ocorre (Mols & Pridmore, 2021Mols, A., & Pridmore, J. (2021). Always available via WhatsApp: Mapping everyday boundary work practices and privacy negotiations. Mobile Media and Communication, 9(3), 422-440. https://doi.org/10.1177/2050157920970582
https://doi.org/10.1177/2050157920970582...
; Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ), ou seja, quando um OF, o aplicativo, funciona mediando fronteiras. Na Approve, as manifestações empíricas dessas implicações negativas (Tabela 2) surgem quando ocorre a mediação de fronteiras. Mas os autores que tratam desse funcionamento dos OF, tais como Star (1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
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, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
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), Star e Griesemer (1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
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) e Whitson (2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
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), colocam em segundo plano possíveis implicações negativas sobre as pessoas da mediação de fronteiras. Portanto, neste artigo, propomos como uma contribuição dos estudos sobre WhatsApp para o campo de estudo sobre OF o entendimento de que a mediação de fronteiras também deve ser observada em termos de suas implicações negativas para as pessoas.

Outra contribuição proposta para o campo de estudo dos OF está relacionada com o terceiro aspecto discutido neste tópico: o WhatsApp na produção de OF e de fronteiras nas redes de relações. A Tabela 3 apresenta elementos para sustentar essa discussão.

Tabela 3
Características do WhatsApp relacionadas com a produção de OF e de fronteiras nas redes de relações

A Tabela 3 sustenta teoricamente que o WhatsApp tem o potencial para se inserir na mediação de fronteiras hierárquicas e funcionais internas às organizações, bem como na sociedade como um todo (Carvalho & Fort, 2017), de maneira convergente com o que foi destacado na Tabela 1. Mas na Tabela 3 foi dado destaque a um aspecto complementar a esse primeiro, tratado nos estudos sobre o aplicativo. Além de mediar fronteiras, ao se inserir nas relações, ele também tem o potencial de, simultaneamente, facilitar rápidas (re)organizações, por meio de segmentações de contextos, divisões e criações de grupos (Carvalho & Fort, 2017Carvalho, A. P. P., & Fort, M. C. (2017). Conexões virtuais e desconexões presenciais: A comunicação via WhatsApp em ambientes corporativos. Comunicação & Inovação, 18(36), 37-50. https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.3814
https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.381...
; Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ; Mols & Pridmore, 2021Mols, A., & Pridmore, J. (2021). Always available via WhatsApp: Mapping everyday boundary work practices and privacy negotiations. Mobile Media and Communication, 9(3), 422-440. https://doi.org/10.1177/2050157920970582
https://doi.org/10.1177/2050157920970582...
). Isso ocorre por diversos motivos, inclusive embates advindos de disputas político-eleitorais na sociedade (Zhu et al., 2022Zhu, Q., Esteve-Del-Valle, M., & Meyer, J. K. (2022). Safe spaces? Grounding political talk in WhatsApp groups. New Media and Society. https://doi.org/10.1177/14614448221136080
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; Pereira et al., 2022Pereira, G., Camargo, I. B. B., & Parks, L. (2022). WhatsApp disruptions in Brazil: A content analysis of user and news media responses, 2015-2018. Global Media and Communication, 18(1), 113-148. https://doi.org/10.1177/17427665211038530
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).

Conforme a Tabela 3, essas movimentações foram evidenciadas empiricamente na Approve, em diferentes momentos, levando à criação de um novo grupo e à saída de membros de um grupo para permanecerem apenas em outro, menor. Mas não se trata apenas de um deslocamento entre grupos, há uma concepção na qual são produzidas fronteiras demarcadas por diferenças sociais, por questões de comportamento e ideias, sobre as quais não há consenso. Mas isso não impediu que ocorresse a mediação dessas diferenças e a cooperação dentro da diferença, pois as ligações por meio de membros comuns aos diferentes grupos permitem o trânsito das informações e a tradução de objetivos comuns, algo possibilitado pela estrutura material, a flexibilidade interpretativa e a escala e o escopo que permitem caracterizar um objeto como sendo de fronteira (Star, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
https://doi.org/10.1177/0162243910377624...
) e que se manifestaram na inserção do aplicativo na Approve (Tabela 1).

Entretanto, os autores que abordam os OF citados na Tabela 1 não tratam dessa simultaneidade entre mediação e produção de fronteira, muito pelo contrário. Para eles, um OF deve apenas mediar fronteiras e, caso ocorra algo diferente, como a não mediação ou a produção de fronteiras, há uma disfunção que exige correções (Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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; Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
https://doi.org/10.3102/0034654311404435...
; Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
https://doi.org/10.1177/1461444817715020...
). Mas na Approve não houve a interrupção da mediação, mesmo com a produção de novas fronteiras, indo contra o entendimento desses autores se assumirmos, como já sustentado, que o WhatsApp é um OF. Aqui defendemos que determinados OF se inserem em redes de relações que os produzem com o potencial de mediar e produzir fronteiras. Isso nos afasta dos autores anteriormente citados e nos aproxima, em parte, das ideias de Lainer-Vos (2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
https://doi.org/10.1177/0170840612467159...
) e Mello Filho e De Araújo Júnior (2021Mello Filho, L. L. de, & De Araújo Júnior, R. H. (2021). Objetos de fronteira: Um diálogo entre a ciência da informação e a ciência de dados.Encontros Bibli: Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência Da Informação, 26, e77247. https://doi.org/10.5007/1518-2924.2021.e77247
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).

Esses autores assumem uma lógica mais relacional sobre esses objetos. Apesar de eles não abordarem como essa lógica sustenta a produção de fronteiras ao mediar fronteiras, eles apresentam os OF como produzidos pela rede de relações. Neste artigo, avançamos nesse entendimento para defender que, além de produzir o OF, as redes de relações também podem produzir fronteiras usando esses objetos. É dessa maneira que um OF se envolve na produção de fronteiras.

Essa ótica aproxima a discussão sobre OF da TAR, colocando os objetos como atores não humanos, capazes de interagir e mediar relações assim como os humanos, havendo simetria e agência distribuída entre ambos (Callon, 1984Callon, M. (1984). Some elements of a sociology of translation: Domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. The Sociological Review, 32(1), 196-233. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984.tb00113.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.1984...
; Latour, 1987Latour, B. (1987).Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard University Press., 1996Latour, B. (1996). On interobjectivity. Mind, Culture, and Activity, 3(4), 228-245. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304...
, 2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford Press University.; Law, 1992Law, J. (1992). Notes on the theory of the actor-network: Ordering, strategy and heterogeneity. Systems Practice, 5(4), 379-393. https://doi.org/10.1007/BF01059830
https://doi.org/10.1007/BF01059830...
). Os estudos devem tratar dos laços entre eles nas redes de relações (Latour, 2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford Press University.). É a partir dessa rede que os OF são produzidos (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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), e elas também podem usar essa produção para produzir fronteiras. Isso ocorre na medida em que o mundo é experimentado por humanos e não humanos, em múltiplas e mútuas relações (Latour, 1996Latour, B. (1996). On interobjectivity. Mind, Culture, and Activity, 3(4), 228-245. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
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), nas quais sociabilidade e materialidade são uma única produção (Akrich et al., 2002Akrich, M., Callon, M., & Latour, B. (2002). The key to success in innovation Part II: The art of choosing good spokespersons. International Journal of Innovation Management, 6(2), 207-225. https://doi.org/10.1142/S1363919602000562
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). Ao analisar o WhatsApp como OF e as fronteiras nessa ótica, assumimos que ambos apresentam uma dinâmica processual conjunta pelas produções na rede, sempre em andamento.

Dessa maneira, tanto o objeto quanto a fronteira estão em constante (re)produção, em um contínuo processo de “fronteirizar”. Esse neologismo é aqui sugerido para abarcar o sentido de que não se trata de produzir ou mediar uma fronteira e depois outra e assim por diante, como instâncias concluídas, em um sentido no qual caberia usar o verbo fronteirar, já dicionarizado. O termo “fronteirizar” é aqui adotado para se referir ao reconhecimento de que na produção das redes de relação os OF, as fronteiras e as mediações estão constantes (re)produções mútuas. Dentro dessa lógica podemos pensar os objetos de fronteira como objetos no “fronteirizar”, pois eles não são de uma fronteira, mas se inserem no processo no qual as fronteiras são continuamente (re)produzidas.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo analisar as maneiras pelas quais o WhatsApp, enquanto um OF, medeia e se insere na produção de fronteiras na organização pública Approve. As características manifestadas pelo WhatsApp na Approve o colocam como um típico OF, definido por Star (2010; 1988), Star e Griesemer (1989), entre outros, que demarcam boa parte do entendimento predominante no campo. Por sua flexibilidade interpretativa, diferentes grupos na Approve atribuem a ele formalismo, pessoalidade, conotações positivas, sentimentos negativos e impactos negativos, entre muitas outras construções. Nem por isso as pessoas abandonam o uso do aplicativo em suas redes de relações, mas essas relações produzem fronteiras, com a criação de novos grupos, facilitada pelo aplicativo, separados pelo que é ou não tolerado entre determinadas fronteiras.

Essas constatações remeteram a três contribuições deste artigo. A primeira delas foi a caracterização do WhatsApp como um OF típico nos estudos sobre o tema. Ela permitiu aproximar os estudos sobre WhatsApp dos estudos sobre OF e aproveitar avanços de um campo para o outro. Este artigo não pretende esgotar essas oportunidades de pesquisa e discussão, portanto, fica como sugestão para estudos futuros que avancem em outros aspectos dessas contribuições mútuas, para além das que foram aqui discutidas.

A segunda contribuição deste artigo articula a aproximação entre os dois campos do conhecimento para criticar os estudos sobre OF que deixam em segundo plano as implicações negativas da mediação de fronteiras para as pessoas, algo predominante ao longo das décadas em que essa temática tem sido desenvolvida por autores como Star (1988Star, S. L. (1988). The structure of ill-structured solutions: Boundary objects and heterogeneous distributed problem solving. In L. Gasser & M. N. Huhns (Eds.), Distributed artificial intelligence (pp. 37-54). Morgan Kaufmann. https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092-8.50006-X
https://doi.org/10.1016/B978-1-55860-092...
, 2010Star, S. L. (2010). This is not a boundary object: Reflections on the origin of a concept. Science Technology and Human Values, 35(5), 601-617. https://doi.org/10.1177/0162243910377624
https://doi.org/10.1177/0162243910377624...
), Star e Griesemer (1989Star, S. L., & Griesemer, J. R. (1989). Institutional ecology, ‘Translations’ and Boundary Objects: Amateurs and Professionals in Berkeley’s Museum of Vertebrate Zoology, 1907-39. Social Studies of Science, 19(3), 387-420. https://doi.org/10.1177/030631289019003001
https://doi.org/10.1177/0306312890190030...
), Carlile (2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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) e Whitson (2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
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). De maneira distinta, os estudos sobre o WhatsApp abordam essas implicações negativas da mediação de fronteiras relacionada com o aplicativo (Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ; Mols & Pridmore, 2021Mols, A., & Pridmore, J. (2021). Always available via WhatsApp: Mapping everyday boundary work practices and privacy negotiations. Mobile Media and Communication, 9(3), 422-440. https://doi.org/10.1177/2050157920970582
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) e permitiram discutir a manifestação desse fenômeno na Approve (Tabela 2), algo que pode ser realizado para outros OF e outras organizações. Portanto, sugerimos que estudos futuros sobre OF se voltem para os aspectos negativos para as pessoas da mediação de fronteiras nas organizações, como foi observado neste estudo.

A terceira e principal contribuição deste artigo articula a mencionada aproximação entre os dois campos para destacar a maneira como os estudos sobre WhatsApp reconhecem a capacidade de o aplicativo se inserir na ligação e separação de grupos e pessoas, como parte de seu uso enquanto rede social (Carvalho & Fort, 2017Carvalho, A. P. P., & Fort, M. C. (2017). Conexões virtuais e desconexões presenciais: A comunicação via WhatsApp em ambientes corporativos. Comunicação & Inovação, 18(36), 37-50. https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.3814
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; Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ; Mols & Pridmore, 2021Mols, A., & Pridmore, J. (2021). Always available via WhatsApp: Mapping everyday boundary work practices and privacy negotiations. Mobile Media and Communication, 9(3), 422-440. https://doi.org/10.1177/2050157920970582
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; Zhu et al., 2022Zhu, Q., Esteve-Del-Valle, M., & Meyer, J. K. (2022). Safe spaces? Grounding political talk in WhatsApp groups. New Media and Society. https://doi.org/10.1177/14614448221136080
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). O que identificamos aqui como mediação e produção simultânea de fronteiras, ao aproximarmos esses estudos dos que abordam OF.

Esse posicionamento contrasta com o posicionamento dos autores que abordam os OF e tratam a produção de fronteiras ou a não mediação delas como disfunções de características do OF, a serem corrigidas para que atuem adequadamente na mediação (Carlile, 2002Carlile, P. R. (2002). A pragmatic view of knowledge and boundaries: Boundary objects in new product development.Organization Science,13(4), 442-455. https://doi.org/10.1287/orsc.13.4.442.2953
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; Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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; Whitson, 2018Whitson, J. R. (2018). Voodoo software and boundary objects in game development: How developers collaborate and conflict with game engines and art tools. New Media and Society, 20(7), 2315-2332. https://doi.org/10.1177/1461444817715020
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). As evidências empíricas na Approve (Tabela 3) e a sustentação teórica baseada nos mencionados estudos sobre o WhatsApp permitem criticar esse posicionamento e propor que se adote uma visão mais relacional dos OF, já adotada em estudos sobre o tema (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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; Mello Filho & De Araújo Júnior, 2021Mello Filho, L. L. de, & De Araújo Júnior, R. H. (2021). Objetos de fronteira: Um diálogo entre a ciência da informação e a ciência de dados.Encontros Bibli: Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência Da Informação, 26, e77247. https://doi.org/10.5007/1518-2924.2021.e77247
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), mas com um foco que esses estudos não assumem: reconhecer que as redes de relações que produzem os OF também têm o potencial de produzir fronteiras, inclusive usando para isso os OF produzidos por ela.

Essa ótica também permite criticar os estudos sobre WhatsApp que atribuem o potencial do aplicativo em mediar e produzir fronteiras a seus recursos materiais e o uso que as pessoas fazem dele (Carvalho & Fort, 2017Carvalho, A. P. P., & Fort, M. C. (2017). Conexões virtuais e desconexões presenciais: A comunicação via WhatsApp em ambientes corporativos. Comunicação & Inovação, 18(36), 37-50. https://doi.org/10.13037/ci.vol18n36.3814
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; Primo et al., 2021Primo, A., Valiati, V., & Barros, L. (2021). Práticas conversacionais no WhatsApp: A interação em conversações paralelas. Comunicação & Sociedade, 43(3), 41-76. ). Afastando-os desse posicionamento, propomos reconhecer o WhatsApp, assim como qualquer outro OF, como mais um objeto nas redes de relações de humanos e não humanos, em relações mútuas e múltiplas, que ocorrem durante a experimentação do mundo (Latour, 1996Latour, B. (1996). On interobjectivity. Mind, Culture, and Activity, 3(4), 228-245. https://doi.org/10.1207/s15327884mca0304_2
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). São essas redes que produzem os OF (Lainer-Vos, 2013Lainer-Vos, D. (2013). Boundary objects, zones of indeterminacy, and the formation of Irish and Jewish transnational socio-financial networks.Organization Studies,34(4), 515-532. https://doi.org/10.1177/0170840612467159
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) e as fronteiras, de maneira contínua e sem separar sociabilidade e materialidade (Akrich et al., 2002Akrich, M., Callon, M., & Latour, B. (2002). The key to success in innovation Part II: The art of choosing good spokespersons. International Journal of Innovation Management, 6(2), 207-225. https://doi.org/10.1142/S1363919602000562
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).

Esse entendimento levou ao questionamento do uso dos termos fronteira e OF para se referir ao contínuo processo de (re)produção no qual eles próprios estão inseridos em relações mútuas, incompletas, sempre em andamento nas redes de relações. Como alternativa, sugere-se que estudos futuros adotem a concepção de “fronteirizar”, na qual as relações produzem mundos sociais ligados e separados em produções mútuas nos quais os objetos se inserem, os objetos no “fronteirizar”. Os movimentos que podem ser interpretados como rupturas de fronteiras ou o surgimento de novas fronteias são resultado desse contínuo processo de “fronteirizar” nas redes de relações entre humanos e não humanos. É dessa maneira que o “fronteirizar” e os objetos inseridos nele produzem, simultaneamente, a ligação e a separação entre mundos sociais, antes vistas como fronteiras estáticas (Akkerman & Bakker, 2011Akkerman, S. F., & Bakker, A. (2011). Boundary crossing and boundary objects. Review of Educational Research, 81(2), 132-169. https://doi.org/10.3102/0034654311404435
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).

Ao desenvolver essas contribuições, evidenciamos um processo no qual mudanças presentes na sociedade, em seu uso do WhatsApp, permeiam mudanças nas organizações, também pelo uso do aplicativo nas práticas do trabalho. E, de maneira recíproca, essas mudanças ligam as redes externas à organização, que também se alteram, entram em conflito, fragmentam grupos, que, não necessariamente, deixam de colaborar entre si, e usam o aplicativo para isso.

Dessa constatação, surge um fenômeno a ser investigado de maneira mais aprofundada em estudos futuros: a inserção do WhatsApp na mediação entre o pessoal e o profissional, com múltiplas combinações de interpretações possíveis entre essas dimensões que se confundem, como a maneira pela qual as redes autorizam ou não o profissional a invadir o pessoal ou vice-versa no uso do aplicativo.

Esse é um exemplo do espaço aberto para a criatividade do pesquisador ao se reconhecer que o “fronteirizar”, ao permear vários mundos sociais simultâneos, ao mesmo tempo, liga, separa e oferece elementos para a produção de novos mundos sociais, inclusive como parte da mediação deles. Para o campo de estudo dos OF nas organizações, a proposta aqui apresentada amplia a visão sobre as múltiplas relações até então consideradas em estudos anteriores que abordavam os OF e oferece espaço para os pesquisadores interessados no tema investigarem as implicações de outras redes de relações, com outros objetos no “fronteirizar”, com suas peculiaridades e implicações na sociedade e nas organizações

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2022
  • Revisado
    14 Maio 2023
  • Aceito
    06 Set 2023
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