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Roberto Burle Marx e a defesa da paisagem brasileira no Conselho Federal de Cultura

Roberto Burle Marx and the defense of the Brazilian landscape in the Federal Council of Culture

Resumo

Este artigo dá notoriedade a quatro conferências proferidas pelo paisagista Roberto Burle Marx enquanto membro do Conselho Federal de Cultura, representando a Câmara de Artes, entre os anos de 1967 e 1974. Essas conferências são fontes primárias que refletem o lado conservacionista de Burle Marx e a sua preocupação com a preservação da paisagem brasileira, ao constatar, durante suas viagens e excursões botânicas, a destruição das florestas ante o desenvolvimento urbano desordenado e o descaso com os jardins públicos. Composto pela transcrição destas conferências, organizadas em ordem cronológica, e antecedida por uma sessão de comentário realizado a partir da interpretação do pensamento discorrido nos documentos, este artigo tem como objetivo demonstrar que Burle Marx não se destaca apenas pelas suas obras artísticas – projetos paisagísticos e artes plásticas –, que o tornaram mundialmente conhecido e até hoje estudado, mas também como ativista ambiental na defesa da paisagem brasileira e, portanto, na preservação do patrimônio cultural e natural do Brasil.

Palavras-chave
Burle Marx; Conselho Federal de Cultura; Paisagem; Preservação

Abstract

This article highlights four lectures given by the landscape architect Roberto Burle Marx as a member of the Federal Council of Culture, representing the Chamber of Arts, between 1967 and 1974. These lectures are primary sources that reflect the conservationist side of Burle Marx and his concern with preserving the Brazilian landscape after observing the destruction of forests in the face of disorderly urban development and neglect of public gardens during his travels and botanical excursions. Here these lectures are transcribed, organized chronologically, and preceded by commentary based on interpretations of the thoughts expressed in these documents; the objective is to demonstrate that Burle Marx is not only notable for his artistic work (in landscaping projects and the fine arts), for which he became known worldwide and is still studied today, but also as an environmental activist in defense of the Brazilian landscape and consequently the preservation of Brazil’s cultural and natural heritage.

Keywords
Burle Marx; Federal Council of Culture; Landscape; Preservation

COMENTÁRIO

Roberto Burle Marx foi um multiartista – atuando principalmente como paisagista, pintor, gravador, tapeceiro, designer de joias, cenógrafo, figurinista, escultor, muralista, pesquisador, jardineiro, ambientalista – que se destacou no cenário brasileiro ante os seus ideais modernistas tão bem espacializados nas suas obras. No entanto, é como paisagista que ascendeu mundialmente e se tornou um dos expoentes do paisagismo moderno brasileiro. Concebeu seus primeiros jardins modernos na cidade do Recife, em 1935 – a Praça de Casa Forte e a Praça Euclides da Cunha –, mas foram o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e o Parque del Este, em Caracas, da década de 1960, que o consagraram no circuito internacional.

O paisagismo de Burle Marx tem seus princípios modernos embasados nos pilares da educação, higiene e arte, em que o jardim deveria seguir uma ordem estética e utilitária. Ao assumir o cargo de chefe do setor de Parques e Jardins, da Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, do Governo do Estado de Pernambuco, entre 1934 e 1937, já defendia que um jardim deveria “obedecer a uma idéa básica, com perspectivas lógicas e subordinadas a uma determinada fórma de conjuncto” (Burle Marx, 1935Burle Marx, R. (1935, maio 22). O jardim da Casa Forte. Diario da Manhã, p. 1-12., p. 12), ou seja, conceber uma composição arquitetônica com estreita relação com a paisagem. Através desse pensamento, o paisagista afirmava que o jardim adquiria um papel social ao proporcionar espaços salubres e amenos para a população, além de despertar “um pouco de amor pela natureza”, ao aprender com a própria natureza sobre a flora local que tanto identifica a paisagem onde as pessoas habitam (Burle Marx, 1935Burle Marx, R. (1935, maio 22). O jardim da Casa Forte. Diario da Manhã, p. 1-12., p. 1).

Tais princípios, considerados de vanguarda, retornaram ao debate político na década de 1960, dessa vez na esfera federal. Em fevereiro de 1967, por indicação de Lúcio Costa, Burle Marx foi convidado a ocupar, como membro fundador, uma das cadeiras da Câmara de Artes, do Conselho Federal de Cultura, do Ministério da Educação e Cultura (MEC) (Figura 1), permanecendo até março de 1974 (Valladares, 1982Valladares, C. P. (1982). Lucio Costa. Boletim do Conselho Federal de Cultura, 46(12), 116-120. https://memoria.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=233501&pagfis=8149
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).

Figura 1
Roberto Burle Marx (em primeiro plano) na reunião do dia 15 de maio de 1967 do Conselho Federal de Cultura, do Ministério de Educação e Cultura e Cultura (MEC).

O Conselho Federal de Cultura foi uma instituição brasileira criada durante a ditadura militar em 1966 e extinta em 1990, na gestão do presidente Fernando Collor de Mello. Composto por membros indicados pelo governo e representantes de entidades culturais, tinha como objetivo assessorar o governo federal na formulação e implementação de políticas culturais, tais como: elaboração de diretrizes e planos para a cultura, promoção de estudos e pesquisas, proteção do patrimônio cultural e organização de atividades culturais em todo o Brasil envolvendo os segmentos das artes e literatura (Calabre, 2006Calabre, L. (2006). Intelectuais e política cultural: o Conselho Federal de Cultura. Atas do Colóquio Intelectuais, Cultura e Política no Mundo Ibero-Americano, 5(2), 1-11. http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/a-j/FCRB_LiaCalabre_Intelectuais_e_PoliticaCultural.pdf
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). Embora tenha desempenhado um papel importante na definição das políticas culturais do país, suas ações foram influenciadas pela censura e repressão política ditatorial militar, utilizando este espaço de decisões para promover o civismo como pilar central da construção da identidade nacional (Maia, 2012Maia, T. A. (2012). Os cardeais da cultura nacional: o Conselho Federal de Cultura na ditadura civil-militar (1967-1975). Itaú Cultural. https://www.santoandre.sp.gov.br/pesquisa/ebooks/355420.pdf
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).

É neste contexto que Burle Marx exercitava a militância ambientalista, ao lado de renomados intelectuais brasileiros, como Ariano Suassuna (Câmara de Artes), Clarival do Prado Valladares (Câmara de Artes), Rachel de Queiroz (Câmara de Letras), Guimarães Rosa (Câmara de Letras), Rodrigo de Mello Franco de Andrade (Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico) e Gilberto Freyre (Câmara de Ciências Humanas). Nos discursos proferidos durante sua atuação no Conselho, Burle Marx apontou a necessidade de preservar a paisagem brasileira, representada tanto pelas cidades, com seus jardins, quanto pelas reservas naturais. Mesmo sendo responsável, na Câmara de Artes, pelas políticas voltadas ao movimento artístico, assumia um papel que o aproximava do campo patrimonial, defendendo a paisagem como algo valioso na vida do povo brasileiro, um patrimônio que merece ser protegido, pois serve como “legado que não só a nós pertence, mas também às gerações futuras” (Burle Marx, 1970aBurle Marx, R. (1970a). Importância da paisagem na vida brasileira. Revista Cultura, 4(34), 100-103. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=4135
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, p. 100).

Dourado (2022, p. 21) ressalta que “muito se conhece sobre o paisagista e artista Burle Marx, mas praticamente nada a respeito de sua atuação como crítico e defensor ambiental, que escrevia protestando aos jornais, dava entrevista e cobrava publicamente as responsabilidades dos governantes e empresários”. O Conselho Federal de Cultura era mais um destes espaços de protesto, onde evidenciava o seu lado ambientalista, tomando para si a responsabilidade civil de denunciar os principais problemas políticos, ambientais e patrimoniais que o Brasil passava, utilizando da sua posição perante a sociedade como paisagista e artista plástico de projeção nacional e internacional.

A atuação de Burle Marx no referido Conselho pode ser lida como um ato de bravura, visto o contexto político em que o país se encontrava, diante da consolidação e do endurecimento da ditadura militar. Conforme Duarte (2015, p. 3)Duarte, R. H. (2015). “Turn to pollute”: poluição atmosférica e modelo de desenvolvimento no “milagre” brasileiro (1967-1973). Tempo, 21(37), 64-87. http://dx.doi.org/10.1590/tem-1980-542x2015v213710
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, o período entre 1967 e 1973 marcou um momento de apagamento das políticas ambientais por parte do regime militar ditatorial, deixando o Brasil em um alarmante processo de crise social e destruição ambiental, “justificadas no presente como espécie de efeito colateral a ser mitigado em um futuro hipotético”.

Mesmo assentado em um cargo público definido por indicação política, manteve seu posicionamento ativista ante a negligência do governo federal em relação à política florestal de desmatamento adotada pelo Ministério da Agricultura, tecendo críticas a ela e defendendo de forma incisiva a preservação da natureza (Burle Marx, 1969bBurle Marx, R. (1969b). Política florestal e destruição das florestas. Revista Cultura, 3(21), 34-41. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=2419
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). Vale ressaltar que, naquela época, tal Ministério tinha a responsabilidade de proteger as reservas naturais brasileiras, mas adotava uma abordagem desenvolvimentista e progressista, ignorando os impactos ambientais. Nas viagens científicas pelas diversas regiões do país, visando ao conhecimento e à coleta de espécies vegetais nativas com potencial estético para aplicar ao paisagismo, Burle Marx (1969c)Burle Marx, R. (1969c). Defêsa da paisagem. Revista Cultura, 3(27), 21-23. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=2998
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registrava a situação generalizada de desmatamento e queimadas nas florestas brasileiras. Utilizava sua voz para denunciar e lutar pela criação de jardins botânicos e reservas biológicas em todos os estados brasileiros, além de propor legislações específicas para a proteção das paisagens, de modo a salvaguardar, ao máximo possível, as regiões de importância florística, que se encontravam já naquele momento ameaçadas de extinção (Burle Marx, 1967Burle Marx, R. (1967). Paisagismo brasileiro. Revista Cultura, 1(1), 94-97. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=95
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, 1969a).

E hoje, quando faço excursões em busca de material que possa servir na confecção de meus jardins, vejo com pesar o desânimo que por onde quer que se vá, a destruição se faz sentir. É mal que parece irremediável, um mal que se aceita melancòlicamente, como se não houvesse possibilidade de modificação. Se continuarmos a aceitar isso a que estamos assistindo, em breve pouco restará dessa flora que é considerada uma das mais ricas do mundo

(Burle Marx, 1967Burle Marx, R. (1967). Paisagismo brasileiro. Revista Cultura, 1(1), 94-97. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=95
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, p. 95).

Além do problema político advindo da ditadura militar, o conselheiro paisagista observava a falta de um sentimento de pertencimento da população em relação à vegetação nativa, ao olhar com indiferença para nossas florestas, e afirmava que “a impressão é que nada possuímos de valor jardinístico e, que tudo que temos, é mato, por ser mato, é desprezível e deve ser exterminado” (Burle Marx, 1968Burle Marx, R. (1968). Jardins e praças públicas. Revista Cultura, 2(11), 14-18. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=1305
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, p. 16). Enquanto as pessoas exaltavam apenas a vegetação exótica, sendo a única culturalmente aceita e, com isso, adotada nos projetos paisagísticos e de ajardinamento dos espaços públicos das cidades, tomou para si a missão de “valorizar a flora brasileira”, pondo “em evidência o patrimônio botânico de que dispomos” (Burle Marx, 1967Burle Marx, R. (1967). Paisagismo brasileiro. Revista Cultura, 1(1), 94-97. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=95
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, p. 94).

No entanto, a defesa da paisagem brasileira não se limitava à conservação da natureza, mas estava diretamente relacionada à preservação dos monumentos históricos e artísticos nacionais e à sua ambiência, como também ao desenvolvimento urbano ordenado e sustentável (Burle Marx, 1969cBurle Marx, R. (1969c). Defêsa da paisagem. Revista Cultura, 3(27), 21-23. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=2998
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). Em seus discursos, protestava contra ações dos governantes municipais que ameaçavam macular a identidade nacional, a exemplo das destruições de parques e jardins de valor histórico e artístico, da erradicação de árvores centenárias e do desmatamento de áreas naturais circundantes aos monumentos e às cidades históricas.

Estou convencido de que, em certas cidades, os prefeitos não deveriam ter podêres de interferir, não só na paisagem, como na fisionomia urbana, sem primeiro consultar órgãos competentes, já constituídos como, por exemplo, os Conselhos Estaduais de Cultura, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e inclusive êste Conselho [Conselho Federal de Cultura]. Do contrário, dentro de poucos anos, com as modificações e deturpações continuadas, quase nada restará da integridade de certos conjuntos, alguns tombados e outros que, embora não sendo, completam fisionomias características de acervos históricos, paisagísticos e artísticos

(Burle Marx, 1969cBurle Marx, R. (1969c). Defêsa da paisagem. Revista Cultura, 3(27), 21-23. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=2998
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, p. 22).

Vale ressaltar que, enquanto Burle Marx lutava pela preservação da paisagem brasileira dentro do Conselho Federal de Cultura, atrelada à conservação da natureza, da ambiência dos monumentos e sítios históricos e do desenvolvimento sustentável, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN) começava a dar mais atenção a esta pauta, levantando discussões sobre a temática. Esta abordagem foi estabelecida como parte da estrutura institucional em 1985, com a criação da Coordenadoria do Patrimônio Natural, responsável pela organização e sistematização de políticas de preservação para os bens tombados pelo órgão federal que apresentavam tais características (Pereira, 2018Pereira, D. C. (2018). Patrimônio natural: atualizando o debate sobre identificação e reconhecimento no âmbito do IPHAN. Revista CPC, 13(25), 34-59. https://doi.org/10.11606/issn.1980-4466.v13i25p34-59
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). Sophia (2015)Sophia, D. C. (2015). As políticas de preservação do patrimônio na Arena Federal sob a gestão de Renato Soeiro (1967-1979). In M. Granato (Org.), Museologia e patrimônio (pp. 317-338). Museu de Astronomia e Ciências Afins. compreende que tal mudança só aconteceria mediante às cobranças advindas dos debates internacionais, quando o DPHAN começou a buscar medidas para dirimir os impactos causados pelo desenvolvimento acelerado que o Brasil vivenciava e que ameaçava a conservação do patrimônio.

Segundo Dourado (2022)Dourado, G. M. (2022). Folhas em movimento: cartas de Burle Marx (1. ed.). Luste Editora., até o último momento de sua atuação no Conselho Federal de Cultura, em 1974, Burle Marx não deixou de demonstrar o descontentamento por seus protestos serem ignorados, denunciando a inoperância do Conselho como espaço de ausculta do governo, e pelas injúrias que sofria dos favoráveis às ações destrutivas, que o taxavam de antidesenvolvimentista. As conferências de Burle Marx no Conselho sempre refletiam a sua experiência profissional como paisagista atrelada às pautas ambiental e patrimonial, diante do filtro artístico que lançava sobre elas, definidos na forma de paisagem. Suas falas sempre estavam acompanhadas de relatos das suas excursões botânicas pelos diversos biomas brasileiros, comentários sobre o processo de concepção, execução e conservação dos seus projetos paisagísticos e descrição de experiências internacionais colhidas durante suas viagens como conferencista.

Os projetos de Burle Marx se entrelaçam com as pautas levantadas no Conselho Federal de Cultura. Entre teoria e prática, seus pensamentos eram utilizados como ferramenta de mudança dessa realidade que tanto criticava através do paisagismo. Seus jardins despontavam um viés educativo a partir da arte como princípio estruturador, ao divulgar a existência e a beleza da vegetação nativa e, consequentemente, a urgente necessidade da sua proteção. Além disso, carregam a função de conservar o patrimônio botânico, já que o paisagista priorizava a utilização de espécies ameaçadas de extinção, servindo para sensibilizar a geração presente e auxiliar na sua preservação para as gerações futuras (Burle Marx, 1970bBurle Marx, R. (1970b). Preservação de condições paisagísticas. Revista Cultura, 4(39), 34-36. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=4663
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).

Conforme Burle Marx declarou:

É preciso fazer jardins e aproveitar a flora existente, que identifica a região; é valorizá-la, é trazer para a cidade um pouco da natureza circundante, é sensibilizar os habitantes pela beleza que a terra, sem maior esforço de adaptação, lhes dá, só assim: conhecendo e privando com os indivíduos, criamos amor ao que é nosso. Temos obrigação de preservar não só os monumentos como a paisagem

(Burle Marx, 1970aBurle Marx, R. (1970a). Importância da paisagem na vida brasileira. Revista Cultura, 4(34), 100-103. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=4135
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, p. 102).

Diante desse panorama, fica evidente que as conferências proferidas por Burle Marx no Conselho Federal de Cultura soavam como advertência diante do futuro do Brasil e do mundo; refletiam o pensamento de um artista de visão planetária que enxergava a preservação da paisagem como debate latente a ser defendido naquele tempo, ainda no final dos anos 1960, mas que apenas décadas depois se tornaria uma pauta imprescindível no cenário mundial, a qual se reflete na história recente do Brasil e que demonstra certa urgência no tempo presente, haja vista o crescimento de políticas anticonservacionistas observadas durante a gestão do governo federal dos anos 2019-2022, marcado pelo sucateamento dos órgãos voltados à preservação ambiental e patrimonial, que tanto se assemelham aos vivenciados naquela época com a ditadura militar, conforme comprovam Risso e Carvalho (2022)Risso, L. C., & Carvalho, C. R. (2022). O governo Bolsonaro e similitudes com o período da Ditadura Militar no Brasil nas questões indígenas e ambientais. Formação, 54(29), 331-356. https://revista.fct.unesp.br/index.php/formacao/article/download/8726/6565/35954
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.

Para Burle Marx (1987)Burle Marx, R. (1987). Arte & paisagem: conferências escolhidas (1. ed.). Nobel., o paisagista deve se conduzir formando um vocabulário que remete à rica variedade da flora brasileira para introduzi-la no jardim. Isso justifica sua luta pela preservação das matas e florestas que se inserem na sua compreensão de paisagem a partir “. . . da observação da fauna humana, seus hábitos, costumes e contradições . . .” (Burle Marx, 1987Burle Marx, R. (1987). Arte & paisagem: conferências escolhidas (1. ed.). Nobel., p. 32). Sua visão de paisagem é sistêmica e reúne os recursos naturais e as realizações decorrentes das necessidades humanas.

Durante as décadas de 1960 e 1970, seu discurso se aproximava dos pensamentos teóricos do geógrafo Josué de Castro e, alguns anos mais tarde, de Aziz Ab’Saber e Milton Santos. Castro, em 1957, refere-se à paisagem natural procedente das “forças físicas trabalhando à superfície do planeta”, definindo as regiões naturais e da paisagem cultural que procede da interferência dos seres humanos “alterando a paisagem natural e criando fatos novos, modelando uma paisagem humanizada . . .” (Castro, 1957Castro, J. (1957). Ensaios de geografia humana. Brasiliense., p. 12). Ab’Saber (2003)Ab’Saber, A. N. (2003). Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. Ateliê Editorial. considerava a paisagem como uma herança que se manifesta através das interações entre elementos físicos, biológicos e humanos ao longo do tempo, refletindo as dinâmicas naturais e sociais, defendendo-a como patrimônio coletivo, enquanto Santos (1997)Santos, M. (1997). Pensando o espaço do homem (4. ed.). Hucitec. era consciente de que estas dinâmicas que configuravam a paisagem brasileira, responsável por imprimir a cultura e a identidade da sociedade, eram influenciadas pelas relações sociais, econômicas e políticas. A divulgação dessas conferências proferidas no Conselho Federal de Cultura pode proporcionar um novo olhar aos pesquisadores, demonstrando a relevância desse célebre paisagista para além do campo artístico, ao apresentá-lo como defensor das políticas ambiental e patrimonial do Brasil. Dentre elas, quatro se destacaram por expressar de forma direta sua visão quanto à urgente necessidade da preservação da paisagem brasileira. São estas: i) “Paisagem sacrificada”, proferida em janeiro de 1969 (Burle Marx, 1969aBurle Marx, R. (1969a). Paisagem sacrificada. Revista Cultura, 3(19), 51-52. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=2235
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); ii) “Defêsa da paisagem”, proferida em setembro de 1969 (Burle Marx, 1969cBurle Marx, R. (1969c). Defêsa da paisagem. Revista Cultura, 3(27), 21-23. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=2998
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); iii) “Importância da paisagem na vida brasileira”, proferida em abril de 1970 (Burle Marx, 1970aBurle Marx, R. (1970a). Importância da paisagem na vida brasileira. Revista Cultura, 4(34), 100-103. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=4135
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); e iv) “Preservação de condições paisagísticas”, proferida em setembro de 1970 (Burle Marx, 1970bBurle Marx, R. (1970b). Preservação de condições paisagísticas. Revista Cultura, 4(39), 34-36. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=4663
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).

A ordem escolhida para compor a transcrição segue a cronologia, não por acaso. Nas conferências intituladas “Paisagem sacrificada” e “Defêsa da paisagem”, proferidas em 1969, Burle Marx apresenta um tom de denúncia, ao expor, de forma veemente, sua preocupação com os impactos das ações desenvolvimentistas do governo da época sobre as reservas naturais e cidades históricas, destacando a ameaça à paisagem brasileira. No entanto, ao tratar da “Importância da paisagem na vida brasileira” e da “Preservação de condições paisagísticas”, de 1970, para além do tom de protesto, que trazia anteriormente, ameniza seu modo de expor, adotando uma fala mais propositiva, ao apresentar os principais benefícios que a preservação da paisagem traria para o desenvolvimento urbano e social do Brasil, assim como as experiências internacionais que teria tido durante as suas viagens. Nestas conferências, o paisagista destacou, principalmente, o respeito e o reconhecimento que diversos países atribuíam aos parques e jardins, tratados como componentes integradores das áreas naturais nas cidades e conservados como patrimônio.

As quatro conferências transcritas neste artigo foram publicadas na Revista Cultura, boletim oficial destinado à transcrição e à divulgação de pareceres, conferências, atas, resoluções e estudos debatidos durante as reuniões do Conselho Federal de Cultura, cujo objetivo era servir como instrumento de articulação entre os Conselhos Estaduais e Federal de Cultura, Congresso Nacional e demais autoridades políticas da época (Apresentação..., 1967Apresentação. (1967). Revista Cultura, 1(1), 3-4. https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=091774&pesq=&pagfis=95
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). Estão apresentadas nas seguintes edições da Revista Cultura: “Paisagem sacrificada”, publicada na edição n.º 19, no ano de 1969; “Defêsa da paisagem”, publicada na edição n.º 27, no ano de 1969; “Importância da paisagem na vida brasileira”, publicada na edição n.º 34, no ano de 1970; e “Preservação de condições paisagísticas”, publicada na edição n.º 39, no ano de 1970.

A metodologia adotada se aportou na técnica de documentação indireta, conduzindo levantamento de dados em fontes primárias escritas e visuais inéditas e que ainda não foram discutidas. Conduziu-se um procedimento de investigação, registro, seleção, análise e interpretação dos fatos ocorridos (Best, 1972Best, J. W. (1972). Como investigar en educacíon (2. ed.) Editora Morata, S.A.), sintetizados nesta narrativa, denominado de comentário, e a respectiva transcrição documental.

As edições encontram-se disponíveis para consulta no banco de dados da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. A transcrição seguiu a norma culta da época e respeitou os possíveis erros de digitação ou ortografia. De modo a melhor facilitar a organização textual, optou-se por destacar as linhas do documento original com barras (/) e manter estruturalmente a distribuição dos parágrafos.

PAISAGEM SACRIFICADA

[fl. 51]

Ontem, quando o Conselheiro Rodrigo de Mello Franco / fêz a denúncia gravíssima, de que o prefeito de Ouro Prêto / estava cortando, destruindo árvores da Igreja do Carmo, / destruindo casas para o alargamento de ruas para que o / tráfego ficasse mais fácil aos motoristas, não protestei, / mas agora venho dar meu apoio total e integral à atitude do / nobre colega.

Sou da opinião de que deve haver um protesto geral e / veemente, através dos jornais, para que êsse desmando seja / do domínio da coletividade, assim como sou também de opinião / de que tôdas as sessões do Conselho Federal de Cultura / deveriam ser assistidas por jornalistas, para que divulgassem o / que estamos discutindo e realizando.

É de estarrecer que uma cidade tombada, de grande valor / histórico e artístico universal, onde o Patrimônio Artístico / e Histórico conseguiu manter esta maravilha intacta, após / uma labuta extraordinária que durou longos anos, possa estar à / mercê de um prefeito inculto, que não compreender a impor- / tância de tal fato.

Não é a primeira vez que tenho protestado contra êstes / atos de vandalismo. Apenas gostaria de que êstes protestos / não caissem no esquecimento, e que se transformassem em / realidade, em que através de leis e sanções pudessem ser / atuantes, justificando e definindo a atuação do Conselho, / perante esta série de abusos, de que somos testemunhas, e que / vêm acontecendo por todo êste país, êstes atos de incompreen- / são total, na ânsia de destruição das obras de Arte e da História / do Brasil, por falta de uma cultura e de consciência da / importância que têm êstes monumentos*.

<* Havendo uma lei federal que proibe alteração de monumentos histó- / ricos, no que concerne às modificações que se tornarem necessárias, no caso em / tela, deve-se aplicar a lei pelo embargo da obra.>

- CULTURA

[fl. 52]

- 52 -

Aproveito esta ocasião, após ter lido no Jornal do Brasil / de 21 de janeiro de 1969, onde se fala na construção de um / monumento enorme em homenagem à Cidade de S. Sebastião / do Rio de Janeiro, artigo êste que passarei ao conhecimento / dos nobres conselheiros e colegas, para que os Srs. possam / tomar conhecimento dêste monumental préstito carnavalesco.

Parece-me que nesta cidade onde a população e o número / de carros aumenta, os monumentos estão crescendo na mesma / proporção, por ironia da sorte, e justamente por isto, mais / um elemento espúrio nesta nossa paisagem, já tão sacrificada / vai existir, se não houver um impedimento imediato.

Quero prevenir, antes que se efetue e para que não se / construa mais nêste jardim que foi tombado pelo Patrimônio, / que esta obra não tem nada a ver com o projeto estudado, / e a mesma é colocada da maneira a mais arbitrária possível.

Não estou apenas lutando pela integridade do Parque / do Flamengo, que repito, já sofreu uma série de modificações, / mas pela dignidade de uma cidade, em que todos êstes / elementos deveriam estar subordinados ao Patrimônio Artís- / tico e Histórico, ou a um Conselho Artístico, que ordenaria / ou controlaria o aspecto desta cidade que já foi uma das mais / bonitas do mundo.

(Lida na Sessão Plenária de 28 de janeiro de 1969)

CULTURA -

DEFÊSA DA PAISAGEM

[fl. 21]

De uma excursão recente a Ouro Prêto e Congonhas, / incluindo Mariana e Vitória com a finalidade de coletar ma- / terial botânico, trago ao conhecimento dêste Conselho as / seguintes anotações: em Congonhas, perto da igreja, há um / muro com a balaustrada pintada de azul, exibicionista e / agressivo, e, na Via Sacra, barraquinhas vendendo “souve- / nirs”. Monstruosa construção de estação de rádio, assim como / um hotel, perturbam a integridade do conjunto, onde a in / tenção nítida do artista setecentista Antônio Francisco / Lisbôa foi a de dar as imagens dos profetas, como cenário, / aquêle céu que ora se coalha de nuvens e ora fica límpido, / fazendo as esculturas se evidenciarem de maneira violenta / e dramática. É necessário que não percamos de vista a pro- / posta paisagística original, que se anulará por interferência / de prefeitos destituídos de formação humanística para com- / preenderem a importância dêsses marcos. A simples inad- / vertência poderá interferir em conjuntos como os de Congo- / nhas e Ouro Prêto que traduzem importantíssima fase de / nossa cultura.

Numa daquelas cidades a prefeitura cortou árvores do / jardim da Igreja do Carmo, sob a alegação de que estavam / morrendo. Em tal caso o certo seria repô-las. Na área do / antigo Jardim Botânico de Ouro Prêto mutilou-se uma Arau- / cária na época do Natal, ornamentada com lâmpadas, redu- / zindo-a a um poste altíssimo, que nunca mais retornará à / grandeza natural.

Estou convencido de que, em certas cidades, os prefeitos / não deveriam ter podêres de interferir, não só na paisagem, / como na fisionomia urbana, sem primeiro consultar órgãos / competentes, já constituídos como, por exemplo, os Conse- / lhos Estaduais de Cultura, a Diretoria do Patrimônio His- / tórico e Artístico Nacional, e inclusive êste Conselho. / Do contrário, dentro de poucos anos, com as modificações / e deturpações continuadas, quase nada restará da integri-

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dade de certos conjuntos, alguns tombados e outros que, / embora não sendo, completam fisionomias características / de acervos históricos, paisagísticos e artísticos. Em Maria- / na, a praça pública continua nas mãos de jardineiros in- / gênuos, sem orientação, que não compreendem a finalidade / das plantas. As árvores são podadas de maneira inadequa- / da; pintam-nas nos troncos de branco, até uma certa altura, / ao jeito de curativo cirúrgico; instalam gambiarras de ilu- / minação vulgar e barata, prejudiciais às árvores e inscre- / vem os encostos dos bancos com dizeres de casas comerciais.

Em Vitória do Espírito Santo, no Convento da Pena, a / iluminação interfere diretamente na fachada onde, em cima / da balaustrada, se instalou um baldaquim suportando lâm- / padas de gás neon, e como se não bastasse para desfigurar / o monumento, colocaram um alto falante no frontão, tão / grande que mais parecia um radar.

Na igreja de S. João da Barra, de situação invulgar na / embocadura do Rio das Ostras, a fachada foi refeita, assim / como a complementação dos muros. Mais uma vez, neste / exemplo, sente-se a interferência de pessoas não afeitas ao / problema, embora possam ter boa vontade, mas ineptas para / compreender a interação dessa arquitetura ligada à paisa- / gem. Gostaria de que os doutos confrades da Comissão de / Legislação e Normas opinassem no sentido de se criar lei / que limitasse a intervenção de prefeitos e autoridades mu- / nicipais sobretudo em cidades de monumentos já tombados / ou sob interêsses de integridade, contra as mutilações e de- / turpações que vão sendo continuadamente efetuadas.

Na paisagem marginal da estrada nova que vai de Mariana / a Vitória, há cortes mutiladores, desnecessários, não haven- / do respeito nem pela flora. É o fogo destruindo, para que / os imensos “Bull-dozers” possam mais fàcilmente cortar os / morros, formando feridas com mais de 50 metros de altura, / muitas que poderiam ser evitadas, se houvesse planificação / mais inteligente com respeito pela terra, e também pela / flora, que aos poucos extingue sob o primarismo pre- / datório.

Aqui no Rio preocupa também o que se está fazendo em / relação às encostas das montanhas. Basta ver os morros / da Urca, Babilônia, Corcovado e D. Marta. Paisagem ras- / pada, escorchada, e sem respeito algum a flora existente. / O Morro dos Cabritos tem contrafortes pintados de branco, / desnecessàriamente, como acontece com as obras de prefei- / tos do interior para serem vistas pelo eleitorado.

Na Barra da Tijuca, há uma montanha onde se destruiu / a flora que lá se encontrava há milhares de anos, a título

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de proteção das encostas contra deslizamentos. Na “agulha / do Inhangá”, próxima à ladeira dos Tabajaras, os andaimes / deformam tôda uma rocha que fazia o encanto da região. / Os Arecastrum romanzoffisnum que cresciam em suas fen- / das foram cortados, assim como tôda a vegetação que fi- / cava nas escarpas, de acesso difícil.

Por outro lado, há notícia de que vão consolidar o Cor- / covado. Consolidar no vocabulário do urbanismo sem hu- / morismo, significa destruir, desfigurar, pintar de branco, / abrir cáries nas rochas monumentais. Essas notícias tra- / zem temor. Em pouco tempo teremos uma paisagem cheia / de esparadrapos, quando o fogo não acaba com tudo que / ainda viceja e cresce.

Incentiva-se, com publicidade, os balões de São João. / Nesse ano assistí por todo o subúrbio êsse hábito nefasto que, / apesar de proibido, é aceito negligentemente pelas autorida- / des. Os incêndios de matas provocados por balões são em / massa, alastram-se de maneira nefasta, por extensão de áreas / enormes. A lei só é boa quando é atuante. É necessário / que tenhamos dispositivos e vigilância com podêres de sustar / tais desmandos, para podermos legar um futuro menos som- / brio, ou menos estéril.

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IMPORTÂNCIA DA PAISAGEM NA VIDA BRASILEIRA

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Sôbre êsse tema, o Professor Roberto Burle Marx, membro do / Conselho Federal de Cultura, assim se expressou:

“Quero apenas proferir algumas palavras nesta reunião para / complementar êsse conceito de que a nossa paisagem tem impor- / tância na vida brasileira. Como exemplo: Se a cidade de Ouro / Prêto deve ser mantida do ponto de vista arquitetônico e artístico / como expressão autêntica de um período característico de sua / época, a paisagem é complemento e situa ecològicamente um deter- / minado lugar. Ora, o Brasil tendo uma das floras mais ricas do / mundo, onde existem mais de 5.000 espécimes de plantas é mister / respeitar e manter êsse legado que não só a nós pertence mas tam- / bém às gerações futuras.

O que tem havido no Brasil é o desamor, o desrespeito a esse / patrimônio. As queimadas que vemos, se alastram por todo o Brasil. / Continuamos a usar a mesma técnica dos índios. As florestas estão / sendo dizimadas de uma maneira brutal. Inúmeras espécies vegetais / estão desaparecendo; o mogno de Goiás e Mato Grosso, o jacarandá / da Bahia, sem falar de inúmeras espécies que estão sendo destruí- / das. Em alguns lugares, onde medravam estas espécies surgem as / culturas de arroz e feijão em terreno com declividade de até 60%. / O resultado é a erosão violenta, poluição do ar pelas grandes quei- / madas e a degradação dos nossos recursos naturais renováveis.

Tendo viajado por êsse Brasil afora em busca de espécies, para / serem aplicadas em jardins e parques, e por onde andei constatei / destruição. Fiz uma viagem em automóvel de Belo Horizonte a Bra- / sília, tendo a impressão de estar atravessando um mar de fogo. Isso / só pode acontecer pela falta de fiscalização florestal, pela incom-

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preensão daqueles que não têm consciência da gravidade do pro- / blema, ou pelo espirito de ganância dos que procuram apenas au- / ferir lucros imediatos, não querendo se capacitar que cometem um / crime que deveria ser punido com cadeia.

Quando visitei cidades e povoados nestas minhas excursões, / constatei que as praças e jardins são feitos de maneira a mais pri- / mária. Árvores podadas de um modo brutal e inútil; os troncos pin- / tados de branco até uma certa altura, informam-me ser medida de / higiene, acredito que seja uma deturpação estética aceita tàcita- / mente por desconhecimento. A maior parte das essências florestais / são exóticas, o eucaliptus, da Austrália, a spatoidea da África, a / árvore do viajante de Madagascar, a casuarina, da Austrália, o “pi- / nuseliotti”, da América Central; no entanto o número de árvores / brasileiras é tão grande que se fôsse plantada caracterizaria a pai- / sagem existente e trazida para a cidade elementos do ambiente lo- / cal. Em outros lugares, como no interior da Bahia, vi praças despro- / vidas completamente de árvores. Em Morro do Chapéu, na Serra / do Sincorá onde vicejam plantas de extrema beleza, não vi árvores, / embora ali sendo região de flora quartizitica existem espécies raras; / lá o naturalista Rusk redescobriu há pouco tempo um beija-flor / que não era encontrado a mais de um século. É nessa região que / viceja uma flora extremamente rica e curiosa que botânicamente foi / mal estudada. Na Europa seria uma área protegida e transformada / em Parque Nacional, no entanto, perto da “Cachoeira do Ferro / Doido” há um colono que cria porcos e está destruindo tôda essa / maravilha. Isso apenas é um exemplo melancólico; poderia citar / inúmeros outros casos onde haveria necessidade de intervir.

Floras das restingas, riquíssimas, como a de Cabo Frio, está / quase destruída. Em Minas Gerais, a Serra do Cipó, que segundo o / botânico falecido é meu professor: Henrique de Melo Barreto dizia / que num metro quadrado haveria mais espécies vegetais que um / quilômetro quadrado na Amazônia.

Em Manaus a Cachoeira do Tarumã que em 1950 era um dos lu- / gares mais belos dos arredores, hoje está quase destruida.

Vi praças públicas na velha Goiás, onde o prefeito cortou tôdas / as velhas árvores para plantar roseiras e colocar bancos com anún- / cios dos doadores e uma horrenda iluminação de gás neon.

Em Ouro Prêto as mutilações tem sido feitas, sistemàticamente. / Perto da antiga “Casa dos Contos”, havia uma Araucária gigantesca / que foi enfeitada com lâmpadas, e para retirá-las cortaram todos / os galhos. Nos jardins da Igreja do Carmo cortaram árvores ale- / gando que poderiam destruir telhado das casas vizinhas e outras

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não foram plantadas. Em Congonhas do Campo a prefeitura cons- / truiu uma balaustrada e pintou-a de azul, que fere a vista a qual- / quer leigo.

Hoje mesmo, no “O Globo” li a notícia de que 4 casas tinham / sido destruídas por um caminhão. É o que se vê por todos os lados. / No Rio, a proteção às encostas tem sido a mais calamitosa possível / do ponto de vista estético, basta olharmos o Morro da Urca, o Morro / da Babilônia, a Pedra da Ladeira dos Tabajaras. O morro dos Ca- / britos, onde a título de preservação das encostas constroem mu- / ros de arrimo de incompreensão estética completa.

Em Brasília, com uma flora de grande interêsse paisagístico e / botânico: o cerrado, vejo, com pesar, que seu caráter se dilue paula- / tinamente. Essa flora, adotada às condições climatóricas define uma / região.

Florestas ciliares e semi-senôfiles estão se perdendo, a flora da / calcárea, interessantíssima, vem sendo destruídas para utilização in- / discriminada das pedreiras – e isso nos arredores da Capital do País; / as plantas que crescem nos brejos, como o buriti, que utilizei com / êxito nos jardins do Itamarati; finalmente, afloramento de quartizi- / to, com as suas velósias (canelas de ema), espécimes de rara beleza / que estão sendo queimados.

Meu pronunciamento é um brado de alerta, num país que pede / árvores e pede plantas. É preciso fazer jardins e aproveitar a flora / existente, que identifica a região; é valorizá-la, é trazer para a cida- / de um pouco da natureza circundante, é sensibilizar os habitantes / pela beleza que a terra sem maior esforço de adaptação, lhes dá, só / assim; conhecendo e privando com os indivíduos, criamos amor ao / que é nosso. Temos obrigação de preservar não só os monumentos / como a paisagem. Muitos Prefeitos, não tendo formação artística e / estética suficientes, se julgam, com o direito de modificar certos / conjuntos onde havia equilíbrio e harmonia.

Teria um profundo significado em cada Município, houvesse / florestas preservadas, onde arquitetos paisagístas pudessem utilizá- / -las, e agrônomos pudessem multiplicá-las usando de uma maneira / certa uma flora que do ponto de vista botânico não tem sido sufi- / cientemente aplicadas e estudada.

Certamente será necessário uma lei que trate do assunto. Ocioso / seria continuar na mesma tônica, porém estou convencido de que, / se não tomarmos medidas drásticas e violentas, o Brasil em futuro / não muito distante se transformará em um deserto.

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PRESERVAÇÃO DE CONDIÇÕES PAISAGÍSTICAS

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Depois de uma ausência de três meses, em que estive percor- / rendo diversos países, nos quais pude constatar o respeito à / paisagem e aos jardins, fui surpreendido, ao chegar com uma / série de medidas governamentais, inteiramente em desacôrdo com / o que pude observar no exterior.

Quero relembrar que, na nossa sessão de 5 de julho último / quando li cópia do telegrama dirigido pelo arquiteto Jorge Ma- / chado Moreira ao governador do estado, apelando para a preservação das condições paisagísticas do Morro do Pasmado, tive / a satisfação de ver êste Conselho solidarizar-se com o apêlo, apro- / vando unânimemente que o presidente se dirigisse ao Governador, / sugerindo o reexame do projeto de construção de um hotel no / referido local. Logo após a minha chegada, tomei conhecimento / que haverá nôvo edital de concorrência para a venda do Morro / do Pasmado. Verifica-se assim que, embora a manifestação dêste / Conselho, e de muitas outras entidades, o Govêrno insiste em / permitir a construção de obras que vão desfigurar o caráter / paisagístico desta cidade.

Já tivemos vários exemplos de deturpação da paisagem, a / ponto de ficar irreconhecível. Basta olhar a Agulha do Inhangá / que, a título de contenção, recebeu um revestimento de concreto / que a tornou disforme e monstruosa.

Outro fato que me causou grande surprêsa, foi a abertura / de concorrência para a construção de um centro comercial na / lagoa Rodrigo de Freitas, junto ao viaduto Augusto Frederico / Schmidt. O projeto inclui uma área de 100.000 metros quadrados, / dos quais se diz que apenas 35.000 terão construções. Provà- / velmente acontecerá a mesma coisa que já tem ocorrido na própria / lagoa, como no Clube Caiçaras, que vai crescendo ostensivamente,

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em função das necessidades. Ao meu ver, essas medidas recen- / temente tomadas constituem agressão violenta à nossa paisagem, e comprometem a nossa cultura.

Li também nos jornais a sugestão de se realizar o desfile / das escolas de samba no Atêrro do Flamengo. É curioso, e, ao / mesmo tempo, incompreensível que se façam sugestões desta es- / pécie. As árvores do Atêrro foram plantadas a custa de grandes / esforços e, para chegarem ao estado em que estão foram necessários / vários anos de tratamento. É incrível que agora, quando começam / a atingir o porte desejado, se faça uma sugestão capaz de destruir / tudo, em apenas algumas horas de divertimento.

Em oposição ao que ocorre aqui, fatos que considero profun- / damente lamentáveis, constatei com alegria e entusiasmo, na viajem / que acabo de fazer, o grande amor que existe pela natureza, / como, por exemplo, na Inglaterra e Grécia. Em Israel, a luta / contra a aridez tem sido ininterrupta, e os resultados já se fazem / sentir em grandes áreas. Onde havia pedreiras desprovidas de / plantas, hoje existem florestas. Lá, os governantes perceberam, / com uma clareza extraordinária, que a planta pode, inclusive, / modificar o clima, do ponto de vista mesológico.

Em países como a Pérsia, as calçadas são protegidas por / alamedas de árvores que se situam em depressões em forma de /calha, onde a água circula, obtendo, com isso, uma cortina pro- / tetora ao calor inclemente. Constatei, com alegria, que na cidade / de Nova Delhi, onde a temperatura sobe a 47ºC, a árvore é / plantada com intensidade, para amenizar a violência do clima, e / as estradas foram tôdas plantadas com árvores, hoje frondosas.

No Japão é comovente ver aquêles jardins que continuam / a existir, apesar da densidade demográfica, e que fazem o encanto / daqueles que o visitam. Êsses jardins são respeitados pelos / habitantes, pois representam uma sedimentação cultural de dezenas / de séculos.

Na Índia, fiquei assombrado com a beleza dos jardins do / Mongul, alguns datando do século XVII, que até hoje continuam / completando a paisagem existente, onde a água é o «leit-motiv» / e onde deparamos com árvores que têm 200, 300, 400 anos, e que, / por serem velhas, adquiriram uma dignidade extraordinária.

Mais uma vez apelo para a proteção da paisagem natural e / urbana, a fim de que, demonstrando nossa cultura, possamos me- / recer esta flora tão rica que a natureza nos legou.

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Agora, no dia 21, dia da árvore, desejaria que as comemo- / rações não se limitassem ao plantio de uma árvore, que depois / não é tratada. Árvore é como gente. Tem que haver um tra- / tamento continuado. Sobretudo, gostaria que fôssem aproveitadas / muitas espécies vegetais que, até agora, não configuram nos jardins / e parques, e que estão sendo pouco a pouco dizimadas. Em país / algum encontrei o número de espécies vegetais que ocorrem na / nossa flora. No entanto, o número de pessoas que compreendem / êsse patrimônio ainda é muito reduzido. Cabe a nós despertar / no povo o amor e respeito que a nossa flora merece.

(Lido na Sessão Plenária de 17 de setembro de 1970)

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão de bolsa de doutorado ao autor Jônatas Souza Medeiros da Silva (88887.674262/2022-00), e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela concessão de bolsa de produtividade em pesquisa à autora Ana Rita Sá Carneiro (307063/2020-8).

  • Silva, J. S. M., Sá Carneiro, A. R., & Silva, J. M. (2024). Roberto Burle Marx e a defesa da paisagem brasileira no Conselho Federal de Cultura. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 19(2), e20230012. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0012

REFERÊNCIAS

Editado por

Responsabilidade editorial: Marília Xavier Cury

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2023
  • Aceito
    28 Set 2023
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