Resumo
Esta entrevista trata da trajetória do etnógrafo suíço René Fuerst, que trabalhou como pesquisador, fotógrafo e colecionador de cultural material entre diversos povos indígenas no Brasil entre 1955 e 1975. Suas coleções de objetos estão, hoje, presentes em museus no Brasil e na Europa, e em particular no Museu de Etnografia de Genebra, Suíça. Suas fotografias podem ser apreciadas em livros de memórias que ele vem publicando mais recentemente. A entrevista traz à tona aspectos práticos e políticos do colecionismo etnográfico no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970, e enfoca a carreira e as atividades de René Fuerst assim como do colecionador polonês Borys Malkin.
Palavras-chave René Fuerst; Coleções etnográficas; Museu Goeldi; Fotografia; História da antropologia
Abstract
This interview focuses on the trajectory of Swiss ethnographer René Fuerst who worked from 1955 to 1975 among a number of indigenous groups in Brazil. Fuerst worked as a researcher and photographer of indigenous ways of life and collected ethnographic objects for museums in Brazil and in Europe, particularly at the Museum of Ethnography in Geneva, Switzerland. His photographs can be seen in books he has recently published. The interview brings to light different practical and political aspects of collecting ethnographic objects in Brazil in the 1950s-1970s. It focuses on the careers and activities of René Fuerst as well as that of the Polish collector Borys Malkin.
Keywords René Fuerst; Ethnographic collections; Goeldi Museum; Photography; History of anthropology
INTRODUÇÃO
René Fuerst (Figura 1) nasceu em 24 de Abril de 1933 na pequena vila de Olten, na parte alemã da Suíça. Autodidata, não frequentou cursos formais de antropologia mas formou-se no campo, durante mais de duas décadas de trabalho etnográfico entre diversos grupos indígenas no Brasil. Entre 1955 e 1975, viajou pelo país fazendo pesquisa - primeiro com os irmãos Villas-Bôas no Xingu - e montando coleções etnográficas que foram depois doadas ou vendidas para museus no Brasil e na Europa. Seus trabalhos de campo mais importantes foram com os Xikrin, os Yanomami e os Nambikwara. Além de ser - nas suas próprias palavras - etnógrafo, René Fuerst foi também fotógrafo, tendo registrado os modos de vida e a cultura material dos povos indígenas que conheceu em belas fotografias em preto-e-branco. Algumas destas fotos foram divulgadas em livros de memórias dos quais Fuerst falou no final desta entrevista - e que estão listados na bibliografia deste texto.
Esta entrevista faz parte da pesquisa do projeto “Compartilhando Coleções e Conectando Histórias”, do Museu Nacional de Etnologia, Leiden, Holanda, do Museu Paraense Emílio Goeldi, Brasil e do Povo Indígena Ka’apor da T.I. Alto Turiaçú. Como parte da preparação do projeto de estudo e exposição das peças Ka’apor, elaboramos um levantamento das coleções Ka’apor existentes atualmente em museus no Brasil, Europa e Estados Unidos. Um dos resultados mais interessantes neste processo foi a descoberta da existência de dezenas de coleções Ka’apor, Tapirapé, Karajá (e outras) feitas por um mesmo colecionador, ainda pouco conhecido da história da antropologia no Brasil, o polonês Borys Malkin (1917-2009). Nossa pesquisa sobre este colecionador ainda está em andamento. Na tentativa de conhecer melhor sua trajetória, porém, conversamos com o também colecionador e etnógrafo René Fuerst, contemporâneo e amigo de Malkin, que se revelou uma figura tão interessante quanto o colecionador polonês. Assim, aquilo que teria sido apenas uma entrevista simples sobre Malkin e seus objetos transformou-se numa longa conversa sobre as trajetórias de Fuerst e Malkin, suas atividades como etnógrafos e colecionadores e, acima de tudo, sobre o trabalho de Fuerst e sua relação com o mundo dos povos indígenas, dos antropólogos, indigenistas, sertanistas, e dos museus no Brasil durante as duas décadas em que ele frequentou o país. A entrevista foi concedida por René Fuerst a Mariana Françozo em 17 de Abril de 2014, na casa do etnógrafo no centro de Genebra, Suíça. Ali, debruçado sobre a mesa de madeira da cozinha de sua casa, coberta por seus livros de fotografia, Fuerst falou durante quase três horas em português fluente sobre sua trajetória desde o despertar do primeiro interesse pelo Brasil até os anos 1970 quando, no contexto da ditadura militar, teve de deixar o país e assim veio a se tornar curador do Museu de Etnologia de Genebra, na Suíça.
ENTREVISTA COM RENÉ FUERST
Mariana Françozo - Posso perguntar como o senhor foi para o Brasil, qual o interesse?
René Fuerst - Porque desde muito pequeno o meu interesse era índios. Índios da América. Agora, em um primeiro momento a gente falava aqui na época que não havia mais índios, que os índios iriam desaparecer – falando dos índios da América do Norte, claro. Aí acho que foi em 1946, na época do fim da guerra, meu pai voltou do barbeiro com uma revista e nesta revista havia uma reportagem do primeiro contato aéreo com Xavante do Rio das Mortes. Era um fotográfo francês que se chamava.... Não me lembro agora o nome1. O original foi publicado na “Paris-Match”, em Paris, e na Suíça tinha uma revista semelhante que também publicou esta reportagem. E eu vi então que existem não na América do Norte mas na América do Sul índios ainda isolados. Aí começou a coisa.
MF - E então o senhor estudou antropologia?
RF - Eu não! Eu sou totalmente autodidata. Eu era curador no Museu de Etnologia de Genebra, mas era o único não universitário no museu, porque isso normalmente não é possível, claro. Mas antigamente era. O mais famoso etnólogo conhecedor de índios do Brasil era Curt Nimuendaju, e Curt Nimuendaju não tinha formação universitária nenhuma. E outros!
MF - E então o senhor fez trabalho de campo no Brasil?
RF - Aí eu fiz uma primeira viagem que foi a minha formação com os irmãos Villas-Bôas no Alto Xingu, antes do Parque. O Parque foi em 1960, alguma coisa assim, e nós fomos lá em 1955. O posto não se chamava Posto Leonardo mas Posto Capitão Vasconcelos2. Então lá eu fui com um amigo meu que se chamava Gerhard Baer, ele era do museu de Basiléia3. Muito mais tarde ele foi nomeado diretor do Museu de Etnologia de Basiléia e eu fui nomeado conservador aqui no Museu de Etnologia de Genebra.
MF - Como foi essa primeira ida ao Brasil?
RF - A primeira vez chegamos no Rio. Foi em 1955 com o Gerhard Baer. A gente não foi a Belém nem a São Paulo. Foi no Rio, e depois com a autorização à l’époque do SPI, nós fomos a Goiânia, pois Brasília não existia... [risos] Brasília não existia! A gente foi a Goiânia e o projeto inicial era Xavante. Mas quando a gente chegou no Rio, perto do Maracanã tem o Museu do Índio, e nessa época o diretor era Darcy Ribeiro. E Darcy Ribeiro disse: não, vocês não podem! Nós tínhamos, eu 22, o Gerhard Baer 21 anos. Et aucune, nenhuma experiência em nada. Então disse o Darcy Ribeiro, com razão: não, Xavante é impossível, estamos na fase do contato, e Xavante é... – você lembra, houve muitos servidores do SPI mortos e tudo isso no Rio das Mortes. Mas sendo simpático conosco, ele falou com razão: vocês podem ir ao Alto Xingu com os Villas-Bôas. E isso foi fantástico porque foi lá que eu aprendi a profissão. Foi com os Villas-Bôas. Não etnologia, mas indigenismo. No fundo eu sou um etnólogo com formação indigenista.
MF - E o que isso quer dizer para o senhor, indigenista?
RF - Indigenista é quem trata dos problemas dos índios hoje. Mas não para estudar cultura simplesmente, mas comportamento, contato e relação com povos indígenas. Outros falam em sertanista. Mas eu acho que indigenista é melhor de dizer. No Brasil eles falam do [Francisco] Meirelles, dos Villas-Bôas, eles dizem que são sertanistas. Mas eu prefiro a palavra indigenista.
Então a gente foi no Museu do Índio e ele [Darcy Ribeiro] disse: Alto Xingu. A nossa ida ao Xingu foi aprovada pelas altas autoridades no Rio dessa época e nós fomos a Goiânia. Em Goiânia nós contratamos um táxi-aéreo para Alto Xingu. Agora, para ir no Alto Xingu era primeiro 500 km a l’oueste até um lugar chamado Xavantina. Era do lado sul do Rio das Mortes. Ele foi criado para atrair os índios Xavantes que estavam do outro lado, esperando com a borduna [risadas]. E então nós chegamos em Xavantina e nessa época o patrão era um general [da reforma] brasileiro muito cultivado, muito dedicado, muito delicado, gostando de falar francês, boa comida, etc. Estava lá em Xavantina, ele, o patrão. Ele logo deu um quarto da casa dele para o Geraldo e para mim. Agora eram 300 km para o norte, partindo para o futuro Parque do Xingu, para o Posto Vasconcelos. Mas então o comandante da FAB falou: vocês não podem ir porque o piloto não tem a autorização militar. Então eles obrigaram nosso piloto a voltar a Goiânia – nós ficamos em Xavantina – para pedir a autorização militar. E isso tomou mais ou menos uma semana. E imagina, nessa semana um outro milagre da vida. Nesta semana o general na casa do qual nós morávamos disse: o Darcy Ribeiro proibiu a sua visita nos Xavantes não era? E eu falei: sim, ele proibiu, por isso que nós vamos ao Alto Xingu. E o general fala: vocês vão nos Xavantes amanhã comigo, de manhã. Um grupo de 200 Xavantes atravessou o Rio das Mortes faz duas semanas fugindo de outros Xavantes em guerra, eles estão localizados a uma hora de jipe. Sem o Darcy Ribeiro saber, nós visitamos 200 Xavantes sem contato que passaram do lado sul do Rio das Mortes. Isso foi descrito nesse livro4.
MF - E como foi esse encontro para o senhor?
RF - Sem problemas. Porque enfim eles eram pacíficos e, bem, eles tinham medo dos outros Xavantes que estavam no Norte do rio. E o nosso figura, o nosso condutor do jipe [...] sempre, sempre essa sorte que eu tinha na minha vida! Além do general, você sabe quem foi o outro? O famoso Padre Colbacchini, grande especialista dos Bororo. Assim que foi minha vida! No jipe, Colbacchini, o grande conhecedor dos índios5. Você tá vendo as sortes que eu tinha na minha vida? Uma depois da outra. Mas logo o avião voltou de Goiânia e nós fomos lá no Alto Xingu, onde nós ficamos quatro meses com Claudio e Orlando Villas-Bôas.
MF - E depois dessa estadia formativa no Xingu com os Villas-Bôas, o senhor continuou no Brasil?
RF - Depois retornei a Genebra e comecei em 1961 estes 10 anos de coleção. Começou pela primeira coleção Yanomami. Yanomami, Kayapó do Xingu, Xikrin do Cateté – outro grupo Kayapó –, Wayana, Ka’apor, Nambikwara. A última foi em 1969, a segunda coleção Yanomami.
MF - Nestes 10 anos fazendo coleção, o senhor trabalhava para algum museu específico?
RF - Não. Não trabalhava para ninguém no Brasil. Trabalhava para museus na Europa, sempre independente. Eu nunca fui dependente de uma instituição brasileira. Agora, eu pedia as autorizações – mas isso é outra coisa, todo mundo fazia isso. No começo era no SPI, depois era a FUNAI, e em 1955, nem era o SPI e nem a FUNAI, era o Conselho de Fiscalização Científica... Era com a Heloisa Torres, no Rio6. Ela que me autorizou a ir ao Xingu. Primeiro o Darcy Ribeiro falou: você pode ir; e depois a autorização foi dada pela Heloisa Torres e o grupo lá de científicos.... E na chegada em campo, os Villas-Bôas. Quer dizer, eu fiz as coisas exatamente como se devia fazer na época.
MF - Do primeiro encontro com os Xavante o senhor já falou. E como foi seu contato com os Xikrin, onde o senhor fez uma das suas coleções mais importantes?
RF - A primeira vez que eu fui nos Xikrin era 1963. Por que eu fui nos Xikrin? Quando eu voltei dos Kayapó do Xingu, o [Protásio] Frikel me disse7: olha, eu queria fazer uma aproximação com os Xikrin, parece que agora eles deixam a gente aproximar... os Xikrin eram muito bravos, matavam muita gente. Aí ele me disse: sendo que você vem dos Kayapó, eu suponho que você fale um pouco Kayapó, será que você poderia me acompanhar? Ah, com muito prazer eu vou te acompanhar. Eu não sabia que os Xikrin seria a obra da minha vida. Porque ele depois morreu, o Frikel, e eu não tinha a inteção de voltar. Ele em 1963 voltou com uma grande coleção Xikrin: 300 objetos para o Museu Goeldi. Quer dizer, quando depois eu fiz coleções dos Xikrin para Basiléia, para Genebra, para Berlim, não era enganando o Brasil, pois a coleção no Goeldi já existia, a original, a primeira. Eu podia trabalhar, exportar as coleções, sem dever nada a ninguém. E voilà. Só para lhe explicar como a gente fez as coleções. Depois foi onde fiz minha obra, meu trabalho foi todo centralizado nos Xikrin8. Era “minha tribo” como se diz.
MF - Quando o senhor ia a campo, como era seu trabalho?
RF - Era etnografia, pesquisa e coleção. Quer dizer, cultura material, primeiro contato e história recente. Isso que me interessava. Não sociologia, não parentesco, essas modas antropológicas... Eu não era antropólogo, eu era etnógrafo. Etnógrafo ou etnólogo de campo. Antropólogo é outra coisa. A Lux Vidal, ela fez os Xikrin como antropóloga e no seu último livro criticou nosso trabalho – meu e do Frikel. Eu fiz os Xikrin antes dela como etnógrafo e historiador. Então a diferença é essa.
MF - O senhor ia a campo sozinho? Ou com outros pesquisadores?
RF - Eu trabalhei, em geral, sozinho ou com minha esposa Arlette. Porque quando eu estou sozinho, eu sei o que eu tenho que fazer para não ser flechado. Agora, com outras pessoas, não sei. Eu sei que a maneira dos outros se comportarem não é a minha. E eu quando eu vou a um campo difícil assim, não vou estragar as minhas chances fazendo uma besteira. Não.
MF - Nestes anos que o senhor ficou no Brasil, o senhor vivia onde?
RF - Nestes 20 anos? Em São Paulo, no Largo do Arouche. E o Borys [Malkin] logo ao lado, no Hotel Itamaraty. O nosso quartel general era lá, no Mercado das Flores. Eu no Largo do Arouche e ele a cem metros de lá no Itamaraty. Na Praça da Sé, eu chamo ela Praça da República, mas é Praça da Sé. Eu tinha alguns amigos, claro, em São Paulo. Nos últimos anos eu morava com amigos na casa da Maureen Bisilliat. Na Bela Cintra, número 2011. Maureen Bisilliat, fotógrafa do Alto Xingu, muito amiga dos Villas-Bôas. A outra fotógrafa muito admirada pelo Borys Malkin era a Claudia Andujar, fotógrafa dos Yanomami.
MF - ...que também era amiga de vocês?
RF - Era! Não tenho certeza mas me parece que foi o Borys Malkin que me apresentou a Claudia no começo dos anos... deve ter sido no começo dos sixties. 1962, 63.
MF - Como o senhor conheceu Borys Malkin?
RF - Eu encontrei o Borys a primeira vez no Museu Goeldi. Eu cheguei no Museu em 1962 vindo dos Yanomami e indo nos Kayapó. Eu estava sempre no campo na época. Como sempre, com tribos isoladas. Ao contrário do Borys, que viajou para tribos já bem contactadas. Essa era a nossa diferença. Eu era mais pesquisador, ele era mais colecionador. Mas os dois fizemos coleções. Então, oui, eu vindo dos Yanomami e indo nos Kayapó, um grupo recém-contactado que chamava Kokraimoro na região do Xingu; e depois nos Xikrin em 1963. Então foi lá que conheci Borys, porque no Museu Goeldi, na época todo pesquisador ou colecionador que se respeitasse passava pelo Museu. Lá, sim. Todo mundo passou por lá. Se fosse para estudar orquídeas, se fosse para estudar beija-flor, se fosse para estudar índios, se fosse para... toda essa turma passou pelo Goeldi onde na antropologia o mestre era Eduardo Galvão. Nos outros domínios tinha outros nomes, eu não me lembro os nomes. Zoólogos, geólogos, botânicos. Mas todo esse mundo não somente se encontrou no Museu, na biblioteca ou nos escritórios com os pesquisadores, mas também a gente dormiu lá. Tinha uma espécie de meia dúzia de quartos para pesquisadores estrangeiros ou brasileiros que passaram por lá. É lá que eu encontrei pela primeira vez Borys Malkin. Ele andava lá; eu andava lá; e a gente se ligou ... Como eu disse, eu vindo dos Yanomami indo para Kayapó, Kayapó que depois foi minha especialidade; e ele: Ka’apor. Ele tinha um grande amigo chamado João Carvalho, cujo pai era bem conhecido como Pinga-Fogo. João Carvalho que era do SPI e, ensuite, da FUNAI. Que fez entre outras atrações a atração dos Parakanã, e que morava em Belém e em Canindé9. Canindé era na terra dos Ka’apor. E o Borys ia e voltava, ia e voltava lá nos Ka’apor.
MF - Por que os Ka’apor?
RF - É muito simples. Ele foi lá por causa da arte plumária. Era lá que tinha arte plumária que em Nova Iorque, em Tóquio, em Genebra, todo mundo queria. Então é por isso. Eles eram índios “fáceis” porque já bem aculturados. No começo, na hora da pacificação eram índios bastante bravos – e por isso conhecidos como Urubu; mas na nossa época eram índios já bem aculturados, era muito fácil para trabalhar e o amigo dele era João Carvalho em Canindé, no Posto. Quer dizer.... voilà.
MF - Como vocês faziam, então, as coleções? Como negociavam?
RF - Trocando. O Borys fazia como nós todos fizemos. Ele trocou por objetos que esses índios queriam ou precisavam. Por miçanga, por exemplo, ele trabalhou muito com miçanga. Não só ele, eu também e os brasileiros etnólogos e indigenistas também. Essa miçanga a gente comprava bastante cara na rua da Alfândega, no Rio. Eram comerciantes libaneses. Como a gente sabia que essa miçanga se comprava lá? É por que os Villas-Bôas falaram [risadas]. Os Villas-Bôas falaram: se você volta no Xingu, passa primeiro pela rua da Alfândega, compra uns quilos de miçanga para poder chegar.
MF - Uma das coisas que me impressiona nas coleções do Borys Malkin é que ele fez muitas coleções. Muitas.
RF - Muito mais que eu. Eu fiz bastante, mas ele fez muito mais. Mas eu era mais pesquisador a tomar notas e tudo isso e ele era mais colecionador. Um exemplo: eu tenho muito respeito por ele, era um dos seres humanos excepcionais que eu conheci na minha vida. Mas nós tivemos métodos diferentes. Eu, tribos isoladas, muita pesquisa e eventualmente coleções e fotografias. Ele: coleção. E por isso ele não podia ir nos isolados. E quando ele me conheceu, ele disse: nós vamos nos associar. Você faz as tribos difíceis e eu procuro os museus interessados nos Estados Unidos e na Europa [risadas]. Mas isso não aconteceu.
MF - Eu tenho lido muitas cartas que ele escrevia e mandava para os museus.
RF - Ele escrevia dia e noite. E cantava. E todo dia e noite, cantou e escreveu. Mas não relatórios de pesquisa ou coisa assim. Cartas para os museus para fazer proposições etc. Cela dit, isto dito, ele era muito honesto com os índios. Era muito respeitoso dos índios e pagava as coisas... Porque você nessa época tinha colecionadores, viajantes etc. que enganaram o povo do interior. É claro. É verdade. Borys não era desses. Ele era limpo. Agora, ele era limpo mas muito interessado em business. Isso era a diferença entre ele e eu. E ele então vendo que eu sou expert de grupos isolados, ele quis uma associação. Eu então fiz umas coleções à parte, além das minhas, fiz algumas coleções para ele que eram destinadas a um museu em Calgary, Canadá10. Eu fiz para ele, me parece, três tribos: Yanomami, Xavante e Kayapó. Unicamente. As minhas coleções todas – sem falar de Calgary que era uma exceção para o Borys – estão na Europa. As melhores, a maior parte, a parte mais bonita, aqui em Genebra, no Museu de Etnologia de Genebra. Todas com relatórios, fotografias e tudo isso. Um outro museu que eu trabalhei era Basiléia, e depois Berlim e Gotemburgo. Esses eram os museus com que eu trabalhei. Borys trabalhou com todos os museus. A Cara Grande do Borys11, ela deve estar em todos os Museus de Etnologia do mundo!
MF - Mas como ele conseguia tantos objetos de um mesmo grupo?
RF - Fazendo fazer! [risadas] Aí de novo a diferença entre ele e eu. Porque não é possível que, vamos dizer que tem 100 Caras Grande. Nunca tinha 50 cerimônias de Cara Grande (pois são feitas em pares). Ele fez fazer. Você sabe como é a máscara de Cara Grande? É uma coisa assim, como uma meia-lua... me dá uma folha (Figura 2)!
Você tem a árvore, essa é a árvore e normalmente ela vai no chão assim. Mas na árvore com que se faz a Cara Grande é um tronco que vem assim....E aqui eles cortaram a Cara Grande. Era certo tipo de árvore, não me lembro agora exatamente o nome da árvore, e é na base do tronco que eles cortaram a Cara Grande que tem essa forma semi-lunar. E depois foi tudo colado com as penugens de arara e de periquito etc etc... Mas como eu disse, eram para a cerimônia em pares – eu não me lembro exatamente o nome, não sou especialista em Tapirapé, pois estas são máscaras Tapirapé, do Rio Araguaia. Essas máscaras me parece que foram usadas numa cerimônia que - alguns anos outros não - existia nos Tapirapé. Não é possível que tinha, vamos dizer, 50 cerimônias de iniciação em dez anos. Ele então fez fazer essas máscaras e as mais recentes a gente pode dizer que foram cortados com bzzzzz...[som de serra elétrica]. Quer dizer, realmente, o objeto etnográfico... quem sabe?
MF - É um objeto etnográfico feito para venda. E todas as coleções dele eram assim, então?
RF - Sim. Agora, nessas coleções tem coisas muito válidas. Esse é um caso especial. E de novo aqui você vê que ele trabalha com tribos já aculturadas. Tapirapé eram missionárias, como se chamam, Petit Soeur dos franceses12. Eram três tribos que ele gostava. A terceira era Karajá. Ilha do Bananal, fácil de novo. E por que? As bonecas de cerâmica. Karajá para as bonecas, Tapirapé para Cara Grande, Ka’apor para arte plumária. O mundo inteiro tem essas coleções graças a ele; hoje seria impossível, porque não existem mais. Voilà. Mas o fato é... era assim que ele trabalhava.
RF - De vez em quando, certamente com dinheiro. Mas na maioria com objetos: faca, machado, anzóis, linha de nylon, tudo que eles precisavam e não tinham. E miçanga. Miçanga era o dinheiro com tribos da Amazônia recém-contactados. Se você não tinha miçanga, não valia a pena ir lá, porque eles queriam. Precisava saber o tamanho da miçanga e a cor. A cor era importante. Porque tem o vermelho, o azul... verde e amarelo ninguém queria. Mais importante era ter várias tonalidades de vermelho, várias tonalidades de azul, e branco. Eu, nos Xikrin, por gosto pessoal introduzi o preto em vez do azul, porque a pintura deles é genipapo, que é preto, e vermelho bem vermelho... Eu então experimentei e eles gostaram. Porque, vamos dizer, nos primeiros tempos a gente não trazia miçanga preta porque pensava que era melhor azul... era plus jolie. Mas eu experimentei nos Kayapó onde as duas cores de pintura corporal eram vermelho urucum e genipapo preto, eles gostaram e aceitaram. Agora hoje eu tô vendo gente que faz fotografia nos meus Xikrin, as cores preferidas, hoje, são amarelo e verde. Bandeira brasileira.
MF - Vocês – o senhor e Borys – tinham uma relação de amizade?
RF - Era uma das mais interessantes relações de amizade da minha vida. Mas nós éramos dois tipos diferentes.
MF - Diferentes como?
RF - Com métodos diferentes. E houve algumas brigas. Por desacordo e coisa assim... Em relação a coleções, etc. Por exemplo, ele fez a coleção Ka’apor para Genebra em 1965. E para mostrar como ele trabalhava: eu, em 1967, dois anos depois, fui nos Ka’apor para completar a coleção do Malkin porque ela era incompleta. Entende? O nível da arte plumária era completo, mas as outras coisas eram incompletas. Como eu passei muito no Goeldi em Belém para outros índios Kayapó, Wayana, então eu uma vez com a minha esposa fomos dar um pulo rápido em Canindé para completar a coleção do Malkin. Agora ela é completa. Mas isto para mostrar que ele era menos escrupuloso do que normalmente um etnólogo deve ser. Ele também colecionou no Peru, na Colômbia. Outras terras indígenas.
MF - Bem, mas voltando a falar do senhor. Durante estes 20 anos em que o senhor esteve no Brasil, além do MPEG, estava ligado a algum outro museu específico?
RF - Sim, ao Museu Paulista, ao professor Baldus. No campo etnográfico o meu protetor era Baldus. No campo indigenista, os irmãos Villas-Bôas. Mas eu era muito amigo também do José da Gama Malcher; do Noel Nutels, o famoso médico dos índios; do Galvão; do Frikel13. Eu conhecia toda essa gente. Mas o meu protetor era o professor Baldus no Museu Paulista. Até a morte dele em 1970. Ele era o precursor da etnologia brasileira.
MF - E como era sua relação com Baldus? O senhor fazia coleções para ele?
RF - Ele era muito mais da cabeça e dos livros, ele não era um colecionador como nós, como Borys e eu. Mas ele também cuidava das coleções no Museu. A coleção Nambikwara do Lévi-Strauss está no museu de São Paulo. A do Roquette-Pinto, primeira coleção Nambikwara – que era uma coisa fantástica – no Rio, no Museu Nacional14. Agora não sei o que ainda existe dessas coleções15.
MF - Bom, tem coisas do Lévi-Strauss na França também, em Paris.
RF - Deve ter, mas lá eu não conheci. Eu conheci as coleções no Brasil, porque quando eu fiz a coleção Nambikwara em 1958, eu ia primeiro no Rio ver o que Roquette-Pinto achou na época, e ia também no Museu Paulista ver o que Lévi-Strauss achou na época. Quer dizer, Roquette-Pinto era 1912, e Lévi-Strauss 1939. Então tendo estas listas, eu ia no campo ver o que eu achava. E eu achei a metade do que eles acharam. Já eram objetos que tinham desaparecido. Assim que eu trabalhei sério, muito sério. Hoje essa profissão não existe mais. Desapareceu. Do jeito que a gente trabalhava nos Nambikwara, nos Kayapó ou nos Yanomami, não existe mais. Nós chegamos na última...no último momento do colecionismo. Logo depois, tudo mudou.
MF - Mudou como?
RF - Mudou porque as tribos foram forçadas ao contato e parte da cultura material desaparece, claro. Não há razão para os índios guardarem... Por algum tempo eles guardam, tem tribos que guardam mais que outras, mas muitas vezes as coisas desaparecem muito rápido. É uma pena, mas é assim. Quando houve nos anos 1970 essa pacificação forçada por conta da construção a Transamazônica, um francês fez um filme sobre isso, chamava ‘A Guerra da Pacificação’16. Todas estas tribos, Parakanã, Asurini, que foram forçadas ao contato onde passava a estrada. E agora o que vai mudar no Xingu é a barragem de Belo Monte. Isso é o pecado final. Isso acaba com Kayapó no Brasil Central. Isso vai ser a tragédia maior. A inundação de uma parte da região do Xingu. Uma das regiões das mais fantásticas do Brasil. Mas bom, eles vão dizer “o que você quer? Nós precisamos de eletricidade, em Belém, em Marabá, em Altamira...”. Vocês estão acabando com o seu país por razões de conforto e de lucro.
MF - E as suas coleções, onde estão atualmente?
RF - No Museu de Genebra. E em parte em Basiléia, em Berlim, em Gotemburgo – em parte. Aqui em Genebra, total. A única coleção que não está aqui é Xavante. Xavante está em Basiléia. Mas aqui em Genebra, il y a duas coleções Yanomami, duas coleções Kayapó – Kayapó quer dizer Xikrin e a outra é Kayapó do Xingu; duas coleções Yanomami, de grupos diferentes; uma coleção complementar de Ka’apor; uma coleção Nambikwara; uma coleção Wayana, e muitos objetos assim isolados de uma dúzia de tribos indígenas, que eu colecionei quando eu fui nas missões da Cruz Vermelha e da inglesa Aborigines17. Aí a gente visitou muitas tribos e eu podia, assim, como dizer, comprar objetos. E depois eu dei para o museu.
MF - Em 1975 o senhor foi embora do Brasil. Como foi isso?
RF - Sim. Então... Em 1975 eu fui expulso pelos generais. Por que eu fui proibido? Eram as minhas críticas em publicações. Porque eu achei que era meu dever. Eu estava vendo coisas e então eu falei: não, isso não tá certo. No começo ninguém prestava muita atenção porque na minha época havia a mudança do SPI para FUNAI, houve nos sixties a revelação do massacre do Paralelo 11, era muita coisa assim acontecendo. Quer dizer que eu nem interessava aos militares. Mas aí aconteceu a Missão da Cruz Vermelha. Esse foi o golpe: a famosa expedição da Cruz Vermelha. Fui eu que fiz o itinerário, escolha de tribos e tudo. Aí eu me lembro muito bem: antes da missão sair pelo interior, houve no Rio uma reunião com oficiais brasileiros, generais, a Cruz Vermelha, militares etc. E o primeiro diretor nessa época do Serviço novo, a FUNAI, não era um militar, era um advogado...18 Eu me lembro muito bem, no fim da reunião ele me chamou pelo pré-nome e disse: Renato – ele me chamava assim – ele me disse: Você é o gato. Você é o gato. Isso quis dizer: você vai revelar coisas que nós não gostamos. Esse foi o começo do fim da minha carreira brasileira. Isso é 1970. Depois eu ainda fui o guia em 1972 da Aborigines ‘Protection Society Mission’, segunda missão oficial. Essa era a época do General Bandeira de Melo, e então o Bandeira de Melo falou depois dessa missão: nós tivemos duas missões de inquérito, mas não vai ter terceira! E também não disse mas pensou: o etnólogo suíço, o gato vai cair fora. Porque nas duas missões fui eu que fiz o itinerário, não os militares e não a Cruz Vermelha. Porque eu conhecia tudo muito bem nessa época.
Então voltei ao Brasil em 1975 com o meu amigo que era então alors futuro diretor do MEG [Museu de Etnografia de Genebra], o Louis Necker. O projeto era de novo nos Kayapó, mas também poderia ser Asurini no Baixo Xingu que eram recém-contatados, vizinhos e inimigos dos Xikrin. Então quando nós chegamos em 1975 em Brasília como sempre a gente fez, eu fui na FUNAI para pedir a autorização e lá...foi o fim. Disseram para eu voltar a São Paulo e a minha terra. Era o fim. À l’époque o embaixador da Suíça era o Stadelhofer e ele experimentou, como também os Villas-Bôas, mas não deu certo para salvar a situação. Então o meu amigo Louis Necker foi com duas jornalistas brasileiras no Parque do Xingu e eu voltei a São Paulo e para a Suíça. Foi o fim das minhas viagens no Brasil.
MF - Mas então antes de 1970, era possível fazer coleções etnográficas no Brasil apesar da ditadura, apesar dos militares?
RF - Sem problema. Bom, para a pessoa inteligente. Se era burro não podia fazer nada. Mas sim, sim, absolutamente. Não era proibido, não era escondido nem nada. Por exemplo, quando eu passava no Goeldi e algum objeto das minhas coleções interessava ao Museu porque ali não tinha, a gente dava. Normal. Para poder levar o resto para a Europa, porque já se tem isso no Brasil. Por isso, minhas coleções Kayapó, Nambikwara e Yanomami, que são as minhas melhores coleções, estão em Genebra. Para mostrar como tudo isso é normal.
MF - E a partir de 1970, como mudou?
RF - Foi primeiro a mudança SPI-FUNAI, isso foi em 1967. E logo com a ditadura militar, quer dizer que todos os diretores, à exceção do primeiro – que me chamava de gato – eram depois militares. Então ficou diferente, claro. Ficou impossível: não difícil, mas impossível. Ainda mais no meu caso, que fiquei conhecido como o guia da Cruz Vermelha... Tudo terminado. C’etait fini. Eu tinha de mudar de vida. Então eu voltei e cheguei a ser curador do Museu de Etnologia de Genebra graças ao Louis Necker.
MF - E lá o senhor era curador das coleções das Américas?
RF - Não, porque já tinha alguém para América, um certo Daniel Schoepf, que trabalhava com uma só tribo no Brasil, os Wayana do Rio Paru. Eu trabalhava com meia dúzia de tribos diferentes. Eu voltei a Genebra e trabalhei no museu com as coleções do Pacífico. Pacífico e filme etnográfico, eu tinha duas ocupações. Metade trabalhava pelo Pacífico e metade filme etnográfico. Organizei cada ano um festival de filme etnográfico em Genebra. E no fim das minhas pesquisas e coleções dos anos 1960 fiz a exposição ‘Indiens d’Amazonie’19. Essa foi a primeira exibição Índios Brasileiros da Amazônia na Europa. Tá dito aqui no prefácio.
MF - E então o senhor ficou bastante tempo no museu?
RF - 15 anos. Eu fiquei no museu como curador de 1983 a 1998. 15 anos. Eu não podia mais porque com 65 anos você tem que cair fora.
MF - E nesse tempo o senhor trabalhou também com as coleções do Brasil, fez alguma coisa nesse sentido também?
RF - Não, só trabalhava com filme etnográfico e com as coleções do Pacífico do museu. Não eram coleções que eu tinha feito. Eram coleções antigas do museu sobre as ilhas do Pacífico. Os navegadores, tudo isso. Aí eu fiz outra exibição20.
MF - E o senhor gostava desse trabalho?
RF - Eu gostei, mas no meu interior era índios do Brasil, sempre dia e noite. Quando você está envolvido como eu estava envolvido... não existe mais nada. É impossível. Claro, eu fiz meu trabalho porque eu era pago para fazer o trabalho, mas na minha cabeça era índios do Brasil. E logo quando eu deixei o museu, 1998, o que eu fiz? Eu comecei a publicar os livros.
MF - Fale um pouco dos seus livros, então.
RF - Meu último livro “Yanomami”21. A gente em francês para dizer que uma coisa é muito bonita, a gente diz la cerise sur le gateau...22 Você sabe? Isso quer dizer, o mais bonito. Então esse livro... aliás, olha a cor dele: é de cerise. Urucum. Você tá vendo como eu sou esteto, nas minhas coisas? E tudo isso para fazer uma homenagem aos índios. Então esse livro que eu vou lhe dar, “Yanomami”, é um livro todo eu que fiz. E o título é “Premier et derniers Amazoniens”. Isso quer dizer, os Yanomami, os primeiros e os últimos. Eu explico no texto: pode ser que os Yanomami tenham sido dos primeiros a chegar pelo norte e agora são os últimos a desaparecer pelo sul. Por isso premier et dernier. Então eu dedico o livro aos meus amigos, os índios da América.
MF - Então o senhor tem vontade de voltar ao Brasil?
RF - Agora não. Mas vou te dizer que a terra brasileira é a terra que eu mais gostei na minha vida. O povo brasileiro... eu não estou falando dos militares nem dos policiais e outros funcionários. Não estou falando da corrupção. Estou falando do povo, além dos índios. Nunca vou esquecer a bondade, a gentileza do povo brasileiro. Dos brasileiros do interior e das cidades de Belém, Manaus e Cuiabá, em todo lugar que eu fui. Não estou falando, mais uma vez, dos funcionários, não. Que eles eram ruins. Não sei como é agora. Mas o povo brasileiro e sobretudo esse meu amor para os índios.
MF - O senhor pretende publicar algum outro livro?
RF - Não, por hora não tenho idéia nenhuma. O que eu vou publicar proximamente é um artigo sobre os Nambikwara. Porque eu descobri que os índios mais fantásticos que eu encontrei são os Nambikwara. O Lévi-Strauss, ele mesmo diz que nos Nambikwara ele foi para descobrir o modo de vida o mais simples. E ele diz: “não só eu encontrei o modo de vida mais simples, mas não tinha modo de vida: eram homens, só”23. Era essa a frase dele. E é verdade que os Nambikwara são muito especiais. Muito atípico. Eu vou fazer um artigo numa região assim, das mais loucas do Brasil: Vila Bela da Santíssima Trindade. É um lugar no Alto Guaporé, na fronteira com a Bolívia e por dentro era a região onde Rondon constriuiu a famosa linha telegráfica, que ia de Cuiabá, Porto Velho, a Manaus. E lá tem um lugar que chama Vila Bela e na região ao redor tinha ainda em 1968 Nambikwara sem contato. Uma centena, uns 150 ou 200, nada mais. E nós fomos lá com a Arlette, a minha esposa. Uma região pobre de savana com alguma árvore mas é muito mais, assim, cerrado. É uma paisagem fim do mundo. Com mosquito e nada para comer. Nem flores ou animais para caça: muito pouco. E lá no meio esses Nambikwara, atípicos, que dormiam nas cinzas e não se pareciam com nenhum outro índio do Brasil. Cabelo comprido, nu, poucos adornos, era uma coisa fantástica. Então meu último artigo é sobre eles. É um pouco um resumo da minha vida de etnógrafo, pesquisador e colecionador.
MF - O senhor tirou fotografias?
RF - Nessa expedição foi a única da minha vida na qual eu fui proibido pelos próprios índios [a fazer fotografias]. Não temos fotografias nenhumas. Mas você tem as fotografias do Lévi-Strauss (1994), que são maravilhosas. Você viu já? No “Saudades do Brasil”24. É lá que você vê as fotografias. Você sabe que ele também, no fim da vida, vem com um título desses, uma homenagem ao Brasil, sua terra, aos índios, com essas fotografias sem pretensão de fotógrafo nem nada... Lévi-Strauss, esses são os grandes homens, os grandes conhecedores.... Você tá vendo?
MF - Mas a vida do senhor também é muito interessante!
RF - Sim, eu acho que sim, para mim. Mas não sei interessa aos outros. O que eu fiz para os índios, eu fiz o que foi possível. Mas não sou grande escritor como o Lévi-Strauss.
MF - O seu maior talento então talvez sejam as fotografias?
RF - A senhora que sabe, mas eu não sei se aspessoas acham também.
MF - Eu acho.
RF - Ah! Muito obrigado!
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1
Jean Manzon (1915-1990), fotógrafo francês. Entre 1943-51 foi fotógrafo da revista brasileira “O Cruzeiro”. Nesta condição, publicou em junho de 1944 uma fotorreportagem chamada “Enfrentando os Chavantes”, que veiculava pela primeira vez a famosa imagem em que alguns índios Xavante aparecem atirando flechas em direção ao avião de onde são fotografados por Jean Manzon. A foto foi republicada várias vezes por diversos veículos de mídia nacional e internacional. Ver Tacca (2011) e Martins (2007).
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2
O Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961 durante o governo Jânio Quadros. Ali, já em 1954 havia sido criado o Posto Indígena Capitão Vasconcelos, que em 1961 passou a se chamar Posto Indígena Leonardo Villas-Bôas, em homenagem ao sertanista. Para mais informações sobre o Parque Indígena do Xingu, o SPI, e os irmãos Villas-Bôas, ver, entre outros, Freire (2011) e Villas-Bôas, O. e Villas-Bôas, C. (2012).
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3
Atualmente, Museum der Kulturen Basel.
- 4
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5
Padre salesiano Antonio Colbacchini (1881-1960). Ver Colbacchini e Albisetti (1942) e Montero (2007).
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6
O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil vigorou de 1933 até 1968. Ver Grupioni (1998). Sobre Heloisa Alberto Torres (1895-1977), ver Corrêa (2003).
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7
Protásio Frikel (1912-1974), missionário franciscano que durante cerca de 35 anos trabalhou com diversos povos indígenas da Amazônia, especialmente com os Tiriyo. Ver Becher (1975).
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8
Ver Fuerst (2006) e Vidal (1977).
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9
Para alguns dados sobre o sertanista João Carvalho e a atração dos Parakanã, ver Fausto (2001, p. 92-93).
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10
Glenbow Museum, Calgary, Canadá.
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11
Máscara Tapirapé, chamada de tawã.
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12
As missionárias Irmãzinhas de Jesus instalaram-se junto aos Tapirapé no início da década de 1950. Ver Dalcides (2002).
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13
José Maria da Gama Malcher foi presidente do SPI entre 1951 e 1955; Noel Nuttels (1913-73), médico e indigenista, foi presidente do SPI entre 1963 e 1964.
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14
Sobre expedição e a coleção de Roquette-Pinto, ver Roquette-Pinto (1975). Sobre a expedição e a coleção Nambikwara de Lévi-Strauss, ver Lévi-Strauss (1998, p. 233-299); Grupioni (1998, p. 113-161) e Castro Faria (2001).
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15
A coleção Nambikwara de Roquette-Pinto continua depositada no Museu Nacional do Rio de Janeiro. A coleção de Lévi-Strauss encontrase atualmente no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). Ver respectivamente em Santos (2011) e Dorta (2000, p. 25-31).
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16
‘La guerre de pacification en Amazonie’, dirigido por Billon (1973).
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17
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, baseado em Genebra, organizou em 1970 uma expedição médica aos indígenas da bacia amazônica. Em 1972, a Aborigines Protection Society organizou e co-financiou uma expedição humanitária para avaliar a situação de diferentes povos indígenas no Brasil. Ver Brooks et al. (1973).
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18
José de Queiroz Campos, presidente da FUNAI entre dezembro de 1967 e junho de 1970.
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19
À exposição correspondeu o catálogo ‘Indiens d’Amazonie’ - Brésil. Ver (Indiens... 1971). Ver o prefácio para contextualização da exposição.
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20
A esta exposição pertenceu o catálogo ‘Navigateurs des Mers du Sud’. Ver Fuerst (1988).
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21
Ver Fuerst (2011).
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22
Literalmente, a cereja em cima do bolo.
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23
Fuerst refere-se ao capítulo sobre os Nambikwara em “Tristes Trópicos”. Ver Lévi-Strauss (1998).
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24
Ver Lévi-Strauss (1994).
AGRADECIMENTOS
Agradeço a René Fuerst pela generosidade com que conversou comigo, pela revisão dos detalhes desta entrevista, e por conceder autorização a sua publicação.
REFERÊNCIAS
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- BROOKS, Edwin; FUERST, René; HEMMING, John; HUXLEY, Francis. Tribes of the Amazon Basil in Brazil 1972: report for the aborigines protection society. London: Charles Knight & Co, 1973.
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- COLBACCHINI, Antonio; ALBISETTI, César. Os boróros orientais: orarimogodogue do planalto oriental do Mato Grosso. São Paulo: Nacional, 1942.
- CORRÊA, Mariza. Antropólogas e antropologia Belo Horizonte: UFMG, 2003.
- DALCIDES, Biscalquin. O renascer do povo Tapirapé: diário das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld, 1952-1954. São Paulo: Salesiana, 2002.
- DORTA, Sonia Ferraro. Coleções: breve histórico e perfil. In: DORTA, Sonia Ferraro; CURY, Marília Xavier. A plumária indígena brasileira no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. p. 25-31.
- FAUSTO, Carlos. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp, 2001.
- FREIRE, Carlos Augusto da Rocha (Org.). Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio-FUNAI, 2011.
- FUERST, René. Trajetória desde o despertar do primeiro interesse pelo Brasil até os anos 1970 Genebra, Suíça, 2014. Entrevista concedida a Mariana Françozo.
- FUERST, René. Yanomami: premiers et derniers Amazoniens. Milan: 5 Continents, 2011.
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- FUERST, René. Adieu l’Amazonie: mémoires d`um ethonologue engagé. Genéve: Musée d´Ethnographie Genéve, 1998.
- FUERST, René. Navigateurs des mers du Sud Genéve: Musée d´Ethnographie Genéve, 1988.
- GRUPIONI, Luíz Donizete Benzi. Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. São Paulo: Hucitec/Anpocs, 1998.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2017
Histórico
-
Recebido
07 Out 2014 -
Aceito
22 Nov 2016