Resumo
O artigo se propõe a descrever e analisar, na língua Guajá (família Tupí-Guaraní), o fenômeno que ocorre no núcleo de um predicado ao haver mudança de posição de uma expressão adverbial para o início da sentença. Com essa alteração de posição, surge um sufixo no núcleo do predicado e a marca de pessoa passa a ser expressa por um paradigma típico de orações menos finitas, o que nos leva a interpretar o processo como um tipo de subordinação. Do ponto de vista pragmático, a expressão adverbial, ao ser trazida para posição de destaque, ganha maior peso informacional na sentença, fazendo com que o predicado, que antes era a informação principal, se torne a informação secundária. Além de apresentar esse fenômeno no Guajá, comparamos sua ocorrência com a maneira como ele se apresenta em outras línguas da família, de modo a enfatizar as peculiaridades que ele assume nesta língua específica.
Palavras-chave Família Tupí-Guaraní; Guajá; Predicados; Expressões adverbiais; Omnipredicatividade
Abstract
This paper proposes to describe and analyze, in the Guajá language (Tupí-Guaraní family), the phenomenon that occurs at the head of a predicate when the adverbial expression shifts from the end of the sentence to the first position. This change in position causes a morphosyntactic structural change: a suffix appears at the head of the predicate, and the person prefixes are now expressed by a paradigm typical of less finite sentences, leading us to interpret the process as a type of subordination. From a pragmatic point of view, when brought to a prominent position, the adverbial expression gains greater informational weight in the sentence, with the effect that the predicate, which previously contained the main information, now represents secondary information. In addition to discussing this phenomenon in Guajá, we compare its occurrence with the way it appears in other languages of the family in order to emphasize the peculiarities taken on in this specific language.
Keywords Tupí-Guaraní family; Guajá; Predicates; Adverbial expressions; Omnipredicativity
INTRODUÇÃO
A língua Guajá pertence ao subgrupo VIII da família Tupí-Guaraní (Rodrigues, 1984-1985; Cabral, 1996) e é falada por cerca de 520 indivíduos (Garcia & Magalhães, 2020) do povo Awa Guajá, que vive no noroeste do estado do Maranhão. Nesta língua, observa-se, de maneira mais restrita do que em outras línguas da família, o fenômeno já discutido por autores que descreveram línguas geneticamente relacionadas (cf. Rodrigues, 1953, 1981, 2001; Betts, 2008 [1969]; Almeida et al., 1983; Vieira & Leite, 1998; Rodrigues, 2001, p. 88; Jensen, 1990; Praça, 2001; Seki, 2000) em que a estrutura da sentença sofre alteração sintática quando iniciada por expressões adverbiais, conforme ilustrado a seguir:
O exemplo (1) mostra o verbo ho ‘ir’, associado à marca de terceira pessoa da série I, exclusiva de verbos ativos, que expressa o argumento único deste verbo, seguido pela expressão adverbial formada pelo sintagma posposicional terẽ ø-pepe ‘dentro do trem’. Em (2), quando a posição é invertida e o mesmo verbo passa a ser precedido pela expressão adverbial, ele adquire um sufixo -ni (~ -ri) e passa a expressar seu argumento por meio da série II, uma série de marcadores pessoais tipicamente associada a argumentos expressos em orações subordinadas ou em itens lexicais nominalizados. Isso justifica, por ora, a escolha de glosar o referido sufixo como SUB ‘subordinador’. Tal denominação será melhor discutida na seção ‘Expressão de pessoa nas distintas classes de palavras’.
O fenômeno morfossintático ilustrado em (2) é observado no Guajá somente na fala de pessoas mais velhas. No entanto, ainda é possível encontrar, na variedade de todos os falantes – incluindo os mais jovens –, resquícios de tal estrutura em construções específicas, como em sentenças interrogativas e com partícula mostrativa, conforme será explicado mais à frente. Isso nos permite defender a hipótese de que ela está na iminência de desaparecer da língua e de permanecer apenas em ambientes em que o sufixo foi cristalizado e sua função original já não pode mais ser observada.
As evidências para a defesa desta hipótese serão apresentadas a partir da descrição pormenorizada do fenômeno no Guajá e de sua comparação com outras línguas da Família Tupí-Guaraní (FTG), mais conservadoras nesse aspecto, com o propósito de entender quais mudanças diacrônicas poderiam ser atestadas na língua que justifiquem sua perda de função e tendência ao desaparecimento.
A primeira parte deste artigo descreve as características essenciais do Guajá, necessárias para se compreender a hipótese aqui delineada sobre o fenômeno tratado, como as classes de palavras existentes, suas funções, a noção de valência associada a verbos, nomes e expressões adverbiais, além da expressão de pessoa em orações independentes, nominalizações e subordinações. A hipótese sobre as línguas Tupí-Guaraní (TG) serem descendentes de uma língua ancestral de tipologia omnipredicativa, bem como a associação das noções de construções téticas e hierarquia de predicados a essas línguas são ideias essenciais já discutidas em outros artigos, que tomamos como ponto de partida neste estudo para a explicitação do tópico central aqui abordado. Tais construtos teóricos são apresentados ao fim desta mesma seção.
A segunda parte tem como foco as sentenças com expressões adverbiais em primeira posição. Observaremos primeiramente como o fenômeno relacionado às expressões adverbiais antepostas se dá em algumas das línguas da FTG, sendo destinada uma subseção apenas para a descrição da estrutura no Guajá, com suas especificidades.
Mais à frente, é apresentada a análise do fenômeno da anteposição de expressões adverbiais, inicialmente a partir de uma perspectiva gramatical e, em seguida, a partir de uma perspectiva pragmática. Por fim, defende-se a hipótese de que tal fenômeno está desaparecendo da língua pela perda de sua função original.
CLASSES DE PALAVRAS E SUA VALÊNCIA
O Guajá possui as seguintes classes de palavras: 1) palavras lexicais: verbos, nomes e advérbios, 2) palavras gramaticais: pronomes, posposições e partículas. Interessa-nos, aqui, distinguir nomes de verbos e apresentar as características de um grupo de expressões de comportamento homogêneo, que intitulamos ‘expressões adverbiais’. Alguns elementos da classe das partículas também serão apresentados nesta seção.
No que se refere aos nomes e verbos, como em muitas outras línguas da família do Tupí-Guaraní, verifica-se também em Guajá que tanto os nomes, como nos exemplos (3) e (4), quanto os verbos, – como no exemplo (5), funcionam como predicado primariamente, isto é, não precisam receber nenhuma marca morfológica para que ocorram como predicado, conforme ilustrado a seguir. Mesmo assim, é possível distinguir uma classe gramatical da outra, uma vez que existem características únicas em cada uma das classes (Magalhães & Mattos, 2014).
Além das especificidades morfológicas, os verbos e nomes também têm um comportamento sintático distinto devido ao fato de que os verbos devem ser nominalizados para funcionarem como argumento – exemplo (6) –, enquanto que, no caso dos nomes, basta apenas que ocorram com o sufixo referenciante -a – exemplo (7) – para que funcionem primariamente como tal:
Com relação às expressões adverbiais, tratadas aqui como um grupo homogêneo, elas incluem a classe lexical dos advérbios – exemplo (8) –, além de sintagmas posposicionais – exemplo (9) – e nomes flexionados com o sufixo locativo -pe1 – exemplo (10):
Tais expressões adverbiais, em geral, são termos periféricos ao núcleo oracional, isto é, adjuntos, e, apesar de possuírem maior liberdade de posição dentro da sentença, ocorrem mais comumente em posição final. Justifica-se o tratamento deste conjunto de expressões como um grupo coeso, por apresentarem uma característica importante da língua: funcionam, assim como verbos e nomes, primariamente como predicado – exemplo (11) –, isto é, elas predicam sem a necessidade de se combinar com qualquer tipo de morfema derivacional ou cópula. Além disso, precisam ser nominalizadas para funcionar como argumento – exemplo (12):
O exemplo (11) ilustra uma expressão adverbial como núcleo de um predicado adverbial locativo independente, que tem como argumento o nome tapi’ira ‘anta’. Em (12), a expressão adverbial ocorre nominalizada, sendo o verbo wyhy ‘correr’ o núcleo do predicado.
Considerando que o conceito de valência (Gilbert, 1994, p. 4878) tem sido utilizado na análise linguística desde Tesnière (1959) e, mais recentemente, foi estendido a outras palavras lexicais (Sommerfeldt & Schreiber, 1996, entre outros), e, considerando ainda, como explicado, que em línguas da família Tupí-Guaraní, verbos, nomes e expressões adverbiais podem funcionar como predicados sem morfologia derivacional ou cópula (Cruz et al., 2019), para tratar das classes de palavras predicativas do Guajá adotaremos a noção de valência, que se refere ao número de argumentos que um núcleo lexical admite: um núcleo divalente admite dois argumentos; um monovalente admite apenas um.
Por fim, a classe das partículas é também importante para o presente estudo pelo fato de algumas delas ativarem a construção que analisamos aqui. As partículas do Guajá, conforme Magalhães (2007, p. 72), formam uma classe fechada de elementos tônicos2, independentes, não flexionáveis, que podem se associar sintaticamente a diferentes tipos de constituintes e que, diferentemente das palavras lexicais, operam como palavras funcionais. Algumas das partículas de posição inicial fixa ativam a construção que descreveremos mais à frente, desde que o sujeito seja de terceira pessoa. São elas: a partícula mostrativa3 kwa, a partícula permissiva amẽ e a partícula interrogativa mõ.
A partícula mostrativa kwa ocorre em orações que indicam a localização pontual de um referente. O exemplo (13) ilustra sua ocorrência:
A partícula amẽ ‘deixa’ é de posição fixa inicial usada para expressar permissão. Em geral, exige que o núcleo do predicado das orações iniciadas por ela ocorra no modo exortativo, como em (14):
A partícula interrogativa mõ “. . . introduz perguntas de informação e ocorre sempre combinada com outras partículas de posição fixa pós-núcleo do predicado, que exprimem os diferentes sentidos dessas perguntas” (Magalhães, 2007, p. 80), como em (15):
Como veremos mais à frente, quando o sujeito é de terceira pessoa, o núcleo do predicado precedido por essas partículas ocorre associado ao mesmo sufixo -ni (~ -ri) que caracteriza a estrutura em foco neste estudo.
EXPRESSÃO DE PESSOA NAS DISTINTAS CLASSES DE PALAVRAS
Para melhor entender as classes de palavras predicativas e sua valência, é importante apresentar as duas séries de marcadores pessoais que ocorrem na língua.
O paradigma de marcadores da série I é formado por prefixos pessoais que ocorrem exclusivamente com verbos – exemplos (16) e (17) –, expressando seu argumento com função semântica de agente. Já o paradigma da série II é formado por clíticos pronominais, ligados ao núcleo do predicado por meio de um linker (LK) prefixal cuja função sincrônica restringe-se a marcar a adjacência entre o núcleo de um predicado e seu dependente. Esta série expressa o argumento com papel semântico de paciente em predicados verbais – exemplos (18) e (19) –, o possuidor de nomes possuíveis – exemplo (20) – e o objeto de posposições – exemplo (21) –, sendo, portanto, um paradigma de marcas pessoais transcategorial. Há, ainda, conforme Magalhães e Mattos (2014), uma cisão da intransitividade formalmente expressa pelo uso exclusivo da série I em verbos intransitivos (monovalentes) eventivos e uso exclusivo da série II em verbos intransitivos (monovalentes) estativos. No caso da série I, a marca de terceira pessoa é prefixal, diferindo das demais, que são clíticas, conforme se pode observar na Tabela 1.
No caso de o núcleo ser um verbo divalente, é permitida apenas a marcação de um dos argumentos por meio de uma das séries. Essa marcação de pessoa dependerá de uma hierarquia referencial que tem a seguinte ordem em termos de pessoa: 1 = 2 > 34.
Os nomes e as expressões adverbiais, assim como os verbos, também podem selecionar argumentos, já que possuem uma estrutura argumental com relação a um núcleo. Assim, tanto os nomes quanto as expressões adverbias do Guajá podem ser divalentes ou monovalentes, de acordo com o número de argumentos que admitem quando na função de predicado5.
As expressões adverbiais monovalentes são aquelas que, em função de predicado, admitem apenas um argumento externo. Estas são formadas por advérbios – (22) – e por nomes associados ao sufixo locativo -pe – (23). Já as expressões adverbiais divalentes são formadas por posposições que, em função de predicado, expressam sempre, além do seu argumento externo, um argumento interno, como ilustrado em (24), em que a posposição -ehe ‘sobre’ contém um argumento interno, ijakara’a ‘cabelo dele’, e um argumento externo, ikya ‘piolho dele’6.
Considerando a estrutura argumental de sintagmas verbais, nominais e posposicionais em Guajá e a utilização da noção de valência para descrever a relação de um núcleo lexical com seus argumentos, seguimos aqui a análise de Queixalós (2005) para o Katukina (família Katukina), que pode ser aplicada também para o Guajá (e as línguas TG), de que a série II tem a função geral de expressar o argumento interno de qualquer uma dessas classes de palavras predicativas da língua.
No que se refere à expressão de pessoa em nominalizações e subordinações, esta não segue as mesmas regras ora apresentadas para as orações independentes.
No Guajá, há quatro tipos de nominalizações: três são sufixais e uma é prefixal. Em termos formais, a raiz verbal que ocorre com os morfemas nominalizadores compartilha com os nomes a característica de combinar apenas com as marcas de pessoa da série II, aquela que expressa o argumento interno dos diferentes tipos de sintagmas, conforme podemos verificar nos exemplos a seguir, do Guajá:
Podemos dizer que, quando as nominalizações formam nomes divalentes, sempre terão um complemento nominal como seu argumento interno, expresso ou por um sintagma nominal (SN), como em (25), ou pela série II de marcadores pessoais, como em (26). Além disso, a negação de núcleos lexicais nominalizados, como em (25), ocorre com o sufixo -’ým ~ -ỹ, o mesmo que se afixa a nomes, a exemplo de (27), expressando negação privativa:
No que diz respeito às orações subordinadas, estas, além de conterem um elemento subordinador, também se diferenciam das principais pelas mesmas características que as nominalizações: marcam seus argumentos sempre com a série II, sem levar em consideração a hierarquia de pessoa vigente nas orações independentes e são negadas por meio do mesmo morfema negativo -’ým ~ -ỹ7 que se associa a nomes, o que caracteriza as orações subordinadas como construções menos finitas.
São exemplos de orações subordinas do Guajá os dados a seguir, que ilustram uma oração subordinada adverbial de finalidade/simultaneidade – em (28) – e uma oração subordinada adverbial temporal – em (29) –, respectivamente:
Em resumo, podemos concluir que tanto as estruturas nominalizadas quanto as subordinadas da língua Guajá seguem um padrão ergativo de marcação de pessoa, ou seja, os verbos nominalizados ou subordinados sempre vão expressar seu argumento por meio da série II, a mesma que expressa o argumento paciente (interno) dos verbos divalentes. A ocorrência exclusiva da série II de marcadores pessoais com qualquer tipo de núcleo de predicado nominalizado ou subordinado nos leva a concluir que esta série está diretamente relacionada à expressão dos argumentos em estruturas menos finitas.
TIPOLOGIA OMNIPREDICATIVA, CONSTRUÇÕES TÉTICAS E HIERARQUIA DE PREDICADOS
Mesmo sendo possível, conforme explicado anteriormente, diferenciar as classes lexicais, a função predicativa dessas distintas classes, associada a outras características importantes a serem detalhadas nesta seção, levaram Queixalós (2001, 2006) a propor a hipótese de que as línguas da FTG, que têm comportamento semelhante ao do Guajá nesse aspecto, seriam descendentes de uma protolíngua em que os elementos de todas as classes lexicais eram capazes de predicar primariamente (isto é, predicavam sem a necessidade de cópula) e deixavam de ser o predicado da sentença ao serem associados a um sufixo -a cuja função é a de desempenhar um papel de criador de uma expressão capaz de referir8. Línguas que têm essa propriedade, além de outras características essenciais9, podem ser consideradas de tipologia omnipredicativa, termo cunhado por Launey (2004), para descrever o Nahuatl Clássico.
A partir da análise de Launey (1986) de que os sintagmas expletivos das línguas omnipredicativas são predicados subordinados ao predicado principal, e da comparação da propriedade similar das línguas omnipredicativas com as línguas descritas como não configuracionais (Jelinek, 1984, 1993) em que os afixos pronominais presentes no predicado constituem a própria expressão dos argumentos, Queixalós (2006) conclui, adicionalmente, que nas línguas de tipologia omnipredicativa: 1) o predicado principal, provido do seu núcleo lexical e os seus argumentos pronominais, é uma sentença morfossintaticamente completa; e 2) uma oração com mais de uma palavra lexical é na verdade uma sentença complexa, feita de vários predicados.
Levando em consideração a definição de Launey (1986) e a hipótese de Queixalós (2006), Magalhães et al. (2019) compararam quatro línguas da FTG – Tupinambá, Apyãwa, Guajá e Nheengatú – em relação às suas características omnipredicativas e defenderam que essas línguas, por serem derivadas de uma protolíngua omnipredicativa comum, possuem diferentes graus de omnipredicatividade10, conforme a maior proximidade ou o afastamento dessas características com relação à língua ancestral.
É importante frisar, portanto, que a alegada natureza onmipredicativa Tupí-Guaraní não é afirmada nas línguas atuais, mas em um proto-Tupí, cujos descendentes atualmente observáveis mostram estágios variavelmente reduzidos de omnipredicatividade. Trata-se, portanto, de um cenário diacrônico inescapavelmente especulativo.
Vale também salientar que, em muitos aspectos, a noção de omnipredicatividade se alinha à de não configuracionalidade (Hale, 1983), uma vez que ambos os tipos de línguas são descritos (a partir de perspectivas distintas) como tendo características muito semelhantes. As propriedades convergentes entre essas duas abordagens, presentes no Guajá e nas línguas TG citadas neste artigo, são: i) os nomes funcionam primariamente como predicados, sem necessidade de cópula; ii) o predicado é o único constituinte oracional obrigatório; iii) o predicado consiste em um item lexical ligado a marcas de pessoa pronominais ou morfológicas; iv) a expressão da pessoa no predicado é, de fato, a realização do argumento desse predicado (‘argumentos indexados’ no sentido de Haspelmath, 2013); v) os sintagmas nominais são opcionais e acrescentados no nível da oração (Jelinek, 1984; Baker, 1995), isto é, figuram como adjuntos correferenciais às marcas de pessoa no predicado, o que equivale a afirmar que funcionam como um aposto à morfologia de indexação de argumento; vi) os constituintes, especialmente sintagmas nominais, são sintagmaticamente descontínuos (Hale, 1983); vii) a ordem dos constituintes não é estabelecida por sintaxe, mas por fatores pragmáticos.
Assim, de uma perspectiva formal, outros autores apresentam análises de línguas TG como tendo propriedades não configuracionais: Leite (2001), para o Apyãwa (Tapirape), e Vieira (1993), para o Assurini do Trocará.
Partimos, então, do pressuposto de que, apesar de hipotéticas, as análises das línguas TG como omnipredicativas têm fundamento e defendemos que o fenômeno investigado neste estudo contribui para corroborar a hipótese de Magalhães et al. (2019) de que o Guajá – bem como, de acordo com as autoras, o Kamaiurá – vem perdendo suas características omnipredicativas, ao explicarmos que a anteposição das expressões adverbiais e a consequente alteração na forma do predicado verbal é uma importante ilustração da propriedade omnipredicativa dessas línguas que está desaparecendo do Guajá, conforme veremos com mais detalhes na próxima seção.
Antes disso, no entanto, é necessário esclarecermos outra característica essencial para a análise desse fenômeno: a interpretação de que as línguas TG mais conservadoras no que diz respeito à omnipredicatividade organizam as informações em termos de sentenças téticas, e não categóricas, conceitos a serem definidos a seguir.
Marty (1918 citado em Casielles & Progovac, 2012) explica as construções téticas a partir da sua contraposição com relação às construções categóricas. O autor explica que as estruturas categóricas são aquelas que podem ser divididas em duas, o que ele chama de double judgement, cuja definição se dá pelo envolvimento de dois atos sucessivos – a escolha de uma entidade e o que se pode dizer sobre ela, o que é traduzido para o que conhecemos comumente, na sintaxe, como sujeito e predicado.
Em contraposição a essa estrutura de duplo julgamento, existem as construções téticas, ou simple judgments, em que a sentença inteira é a informação mais importante, não havendo divisão entre entidade e o que se diz sobre ela. Uma construção tética não leva em consideração as consequências sintáticas da estrutura informacional tema/rema (ou tópico/foco) – ou seja, tudo está no rema, não havendo tema. Trataremos mais à frente dessas noções em uma análise pragmática.
Apesar de construções com verbos existenciais ou impessoais serem comumente téticas, todos os outros tipos de verbos podem figurar nessas construções, a depender da língua. Kuroda (1972), em sua análise para o japonês, mostra que a variação de um elemento morfológico na sentença pode ou não indicar uma construção tética. Em línguas de ordem sujeito-verbo (SV), como o português, o espanhol e o sérvio, conforme salienta Sasse (1987), a inversão do sujeito para uma posição pós-verbal pode caracterizar uma construção tética, como em português ‘Chegaram os convidados’, por exemplo.
Como interpretamos, seguindo Queixalós (2006), que as línguas TG expressam toda a informação principal no núcleo do predicado, tanto o predicado em si como seus argumentos – por meio das marcas de pessoa –, sendo o restante adjunto11, apresentamos aqui a proposta de análise de que essas línguas tendem a organizar suas informações por meio de construções téticas, por serem formadas por estruturas sintaticamente mais simples, que envolvem uma “. . . unidade evento/tema”12 (Casielles & Progovac, 2012, p. 43), não havendo a divisão da sentença em tópico e comentário/foco (ou tema e rema, nos termos de Mathesius, 1939), como existe nas sentenças categóricas.
Como dito, essa hipótese fundamenta-se na propriedade das línguas TG de terem os sintagmas nominais funcionando não como argumentos, mas como adjuntos correferenciais13 (Queixalós, 2006) cuja função é a de expressar a referência dos verdadeiros argumentos: os índices de pessoa14. Sendo assim, a estrutura das sentenças dessas línguas seria sintaticamente simples, não se podendo separar o comentário/foco do tópico, já que todas as informações se concentram no núcleo do predicado.
Vale ressaltar que Casielles e Progovac (2012) defendem a hipótese de que as construções téticas devem ser interpretadas como ‘fósseis’ proto-sintáticos, isto é, como um ponto de partida que deriva, a partir dele, novas estruturas que permitem a evolução da sintaxe.
Voltando às línguas omnipredicativas, Launey (2004) esclarece que, se nessas línguas todas as principais classes de palavras predicam primariamente, quando se tem mais de um predicado na sentença é necessário que haja uma hierarquia entre os predicados, havendo um que se sobressaia em relação ao outro.
É por isso que se interpreta que, nesse tipo de língua, os predicados que têm como núcleo nomes em sentenças em que há um predicado verbal expressando um evento são sintagmas que exercem a função de predicados subordinados e coindexados à marca de pessoa do predicado verbal principal. No caso das línguas TG, o sufixo referenciante (RFR) -a ~ -Ø marcaria os nomes cuja função primária como núcleo de predicado é substituída pela função de adjunto correferencial: ao receber o sufixo, eles tornam-se capazes de referir, como defende Queixalós (2006).
Assim, levando-se em consideração as hipóteses ora apresentadas, interpretamos que o mesmo tipo de análise pode ser estendido para o caso de uma sentença formada por um predicado verbal e outro adverbial (lembrando que expressões adverbiais podem funcionar primariamente como predicados nas línguas dessa família): o verbo, sendo naturalmente o elemento mais importante da sentença, figura como núcleo do predicado hierarquicamente mais alto, enquanto o predicado adverbial, que traz informações complementares e periféricas, figura como predicado subordinado, hierarquicamente inferior ao predicado verbal.
Nesse contexto, o exemplo (30) teria três predicados, um nominal, um verbal e um adverbial, sendo naturalmente um superior ao outro, uma vez que deve haver uma hierarquia entre eles. Nesta sentença, o predicado principal, ou dominante, é o predicado verbal o-ho <3.I-ir> ‘(ele) foi embora’, acompanhado por dois predicados secundários, opcionais, adjuntos e hierarquicamente inferiores: um predicado cujo núcleo nominal Kamairu, associado ao sufixo referenciante -a, é um adjunto correferencial ao argumento o- (3.I), expresso no núcleo do predicado verbal; e um predicado cujo núcleo é uma expressão adverbial terẽ ø-pepe <trem LK-dentro> ‘de trem’15:
Assim, uma interpretação literal dessa sentença seria ‘(O que é Kamairu) foi embora estando em um trem’, sendo o predicado verbal naturalmente mais saliente em termos hierárquicos.
Em resumo, partimos do princípio de que no Guajá: i) todos os elementos das classes lexicais nomes, verbos, bem como as expressões adverbiais, predicam primariamente; ii) os sintagmas de núcleo lexical nominal que correferem com os prefixos verbais são adjuntos sem relação gramatical com o predicado, assim como as expressões adverbiais; iii) uma oração com mais de uma palavra lexical é na verdade uma sentença complexa, feita de vários predicados, organizados entre si hierarquicamente; iv) o predicado verbal, provido do seu núcleo lexical e os seus argumentos pronominais, é o principal, sendo os demais adjuntos, o que faz dele uma sentença morfossintaticamente completa; v) em termos informacionais, essa sentença morfossintaticamente completa forma uma ‘unidade evento/tema’, não havendo a divisão da sentença em tópico e comentário/foco.
Levando em consideração essa análise, as próximas seções apresentarão a construção que é objeto de investigação deste artigo e discorrerão sobre o efeito sintático e pragmático resultante da alteração na ordem entre os predicados verbal e adverbial na sentença.
SENTENÇAS COM SINTAGMAS ADVERBIAIS ANTEPOSTOS
Para descrever o fenômeno na língua Guajá, apresentamos, primeiramente, a ilustração de sua ocorrência num trecho de narrativa, em que um Awa Guajá narra a história do contato da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) com seu grupo familiar, que vivia como caçador e coletor, na ocasião em que foram levados da floresta para o lugar em que hoje está assentada uma das aldeias.
A sentença destacada em sublinhado apresenta uma expressão adverbial amõ-mehe͂ ‘outro dia/tempos depois’ em posição inicial, seguida pelo predicado que tem como núcleo o verbo ru ‘trazer’ que, por sua vez, recebe o sufixo -ni, confirmando o que se observa em outras línguas da família, como o Tupinambá, Apiãwa, Kamaiurá e Parintintim, que ativam essa estrutura quando o predicado é iniciado por um elemento adverbial.
Na língua Guajá, o fenômeno em questão possui algumas especificidades quando comparado com sua manifestação em outras línguas, as quais serão apresentadas a seguir. Como nas línguas citadas, a referida estrutura ocorre com predicados que têm como núcleo verbos eventivos, sejam eles divalentes, como em (32), ou monovalentes, em (33), mas é encontrada apenas na variedade dos Awa Guajá mais velhos, o que evidencia a sua tendência a desaparecer. Na variedade desses falantes, quando o predicado tem como núcleo uma expressão adverbial que ocorre no início da sentença, há a modificação no verbo, que passa a receber o sufixo -ni ~ -ri, associado obrigatoriamente à marca da série II, como vimos na seção anterior. Essa alteração na estrutura morfossintática só ocorre com predicados que têm argumento de terceira pessoa na função de sujeito (ou argumento único, no caso dos predicados monovalentes), isto é, o predicado verbal posposto à expressão adverbial nunca vai receber o sufixo -ni ~ -ri, nem ser associado à marca da série II, se o sujeito for de primeira ou segunda pessoas.
Da mesma forma que no Apyãwa e no Kamaiurá, no Guajá o SN que antecede o predicado verbal subordinado nunca ocorre dentro do sintagma, isto é, o verbo obrigatoriamente expressa seu argumento por meio da série II16, mesmo que o SN referente a ele esteja contíguo à forma verbal, conforme os exemplos (34) e (33).
Chamamos especial atenção para o exemplo (35), da fala de um Awa Guajá mais velho, em que o verbo monovalente ativo ho ‘ir’ ocorre, como esperado, com o sufixo subordinador e a marca de pessoa da série II, comparado aos exemplos (36) e (37), que explicitam a variação na fala dos mais jovens, deixando clara a transição para a perda dessa estrutura: em (36), a forma verbal ainda ocorre associada ao sufixo subordinador, mas já tem como expressão de pessoa a série I, típica de predicados finitos. Já em (37), o predicado verbal perdeu tanto o sufixo subordinador quanto a expressão da pessoa por meio da série II, típica de predicados menos finitos.
Outra diferença importante da manifestação dessa estrutura no Guajá que o diferencia de outras línguas já documentadas é que, de acordo com Magalhães (2007) e Praça et al. (2017), o Guajá é a única língua encontrada até o momento que apresenta a referida estrutura morfossintática ocorrendo não apenas com predicados que têm verbos eventivos como núcleo, mas também com predicados cujo núcleo é um verbo estativo ou um nome, como ilustrado em (38), com o verbo kira ‘estar.gordo’, e (39), com o nome kwarahy ‘sol’, respectivamente. Nesses casos, a estrutura é ativada por partículas de posição inicial obrigatória específicas, tais como a partícula mostrativa kwa (39), a partícula interrogativa mõ, como em (38) e (40), e a partícula permissiva ame͂,, como em (41). Além disso, quando são essas partículas que ativam a estrutura com o sufixo -ni ~-ri, a estrutura tende a ser encontrada tanto na variedade dos falantes mais velhos quanto na dos mais jovens, apesar de já haver registros de perda da marcação mesmo nesse ambiente.
Como analisar, de acordo com o que foi até agora apresentado acerca dessa construção, os exemplos (38) a (41), em que não é uma expressão adverbial que ativa a alteração morfológica no núcleo do predicado, mas três diferentes partículas: kwa, uma partícula mostrativa (Magalhães, 2007, p. 75) que ocorre em orações que indicam a localização pontual, mõ, uma partícula interrogativa que introduz perguntas de informação (Magalhães, 2007, p. 78), e ame͂,, uma partícula que introduz pedidos de permissão (Magalhães, 2007, p. 79)?
Vale a pena aqui salientar que outras línguas da família, como o Parintintim e o Apyãwa, também apresentam essa mesma construção associada a partículas interrogativas na posição inicial da sentença. O Parintintim, por exemplo, ativa a estrutura aqui em análise quando o verbo é antecedido pela partícula interrogativa marã ‘como’:
Não temos uma resposta definitiva para esses casos, mas, por ser uma interrogação um pedido de informação sobre um elemento necessariamente novo (já que ele é solicitado), há uma afinidade natural entre a interrogação e a noção de rema. Isto é, o elemento que interroga está no lugar da informação que se espera na resposta, e que, necessariamente, será o rema da resposta, seja qual for a sintaxe da mesma. Essa linha de raciocínio vai na mesma direção da hipótese que defenderemos mais adiante sobre o elemento mais à esquerda do predicado principal estar assumindo uma função de rema.
Por outro lado, a existência de um advérbio mõ na língua Apyãwa (Ap) – exemplo (43) – poderia ilustrar a origem adverbial da partícula interrogativa do Guajá, justificando a ativação também dessa construção nos casos em que a partícula interrogativa introduz a sentença. Assim, uma possibilidade que precisa ser melhor investigada é a de que ela teria se gramaticalizado a partir de um advérbio e, nesse processo, o sufixo -ni teria se cristalizado como parte de um dos itens lexicais da sentença, já tendo perdido sua função original.
O tipo de negação utilizado no Apyãwa associado ao dêitico mõ, ilustrado no exemplo (44), evidencia que esta palavra, que pode ser interpretada como um advérbio locativo na língua, funciona como predicado, uma vez que a negação nã=...-j é específica de predicados no Apyãwa:
No caso da anteposição da partícula mostrativa – exemplo (39) –, uma possível justificativa para a alteração morfológica do nome que ocorre como predicado é propor a hipótese de que esta partícula tenha origem locativa, uma vez que observamos, por exemplo, a existência de advérbios locativos com a mesma raiz no Guajá, como kwatete ‘perto’ e kwa’ate ‘no alto e próximo’, que poderiam atestar a origem adverbial da partícula.
Até o momento, não temos uma hipótese para reconstruir a partícula permissiva ame͂, como tendo também se gramaticalizado a partir de uma expressão adverbial. Porém, a exemplo das hipóteses tecidas para as demais partículas que ativam essa estrutura menos finita, entendemos que esta possa ter seguido percurso similar.
Observadas essas especificidades do Guajá com relação às demais línguas aqui citadas, defendemos a hipótese de que esta estrutura está na iminência de desaparecer da língua nas sentenças antecedidas por expressões adverbiais, uma vez que ela é encontrada basicamente apenas na fala dos mais velhos. Ao mesmo tempo, o sufixo -ni ~ -ri tende a permanecer em todas as variedades cristalizado em ambientes em que a sentença é iniciada por partículas de posição inicial obrigatória. Assim, o que queremos defender é que, sincronicamente, na variedade dos mais jovens, o referido sufixo se encontra desprovido de qualquer função gramatical que um dia exerceu e se cristaliza nessas estruturas iniciadas pelas três partículas, passando a fazer parte de um dos itens lexicais da sentença. Uma evidência adicional para a análise de que tal morfema perdeu sua função na fala dos mais jovens, estando cristalizado, é a constatação por Magalhães (notas de campo não publicadas) de que os falantes que ainda realizam a estrutura, ao escreverem frases como a seguinte, tendem a usar a forma verbal marcada com os prefixos da série I e a desassociar o morfema -ni da raiz do verbo que originalmente o ancorava.
Assim, ao invés de escreverem mõ ihoni mi͂pe, há registros de escrita evidenciada no exemplo (45) pelos falantes como mõ iho ni mi͂pe ou mõ iho nimi͂pe. Essa seria uma evidência de que sufixo já não é mais interpretado pelos falantes como parte da informação verbal, mas como um morfema associado ao sintagma posterior ao verbo.
ANÁLISE GRAMATICAL E PRAGMÁTICA DA ESTRUTURA
Vimos até aqui que as expressões adverbiais funcionam primariamente como predicado no Guajá e que normalmente ocorrem mais à direita da sentença, como uma informação adicional. No entanto, como expressões adverbiais que são, podem ocorrer também em outras posições da sentença, que não ao final.
Ater-nos-emos aqui às construções que apresentam expressões adverbiais deslocadas para o início da sentença, construções essas que, em algumas línguas Tupí-Guaraní, causam uma alteração morfossintática no núcleo do predicado verbal, conforme já descrito anteriormente.
No caso do Guajá, quando uma expressão adverbial aparece no início da sentença na variedade dos falantes mais velhos, o predicado verbal que a segue passa a receber um sufixo -ni ~ -ri, além de passar a ser associado obrigatoriamente às marcas de pessoa da série II.
Uma restrição importante para a ocorrência dessa estrutura, no Guajá, conforme explicado na seção anterior, é a de que o sujeito da oração seja de terceira pessoa, isto é, caso o sujeito seja de primeira ou segunda pessoa, mesmo que a expressão adverbial ocorra na primeira posição, não haverá qualquer mudança no padrão morfossintático do verbo. Quando comparado com outras línguas com relação a essa característica, o Guajá se assemelha ao Apyãwa (Praça, 2007) e Kamaiurá (Seki, 2000), em que o fenômeno ocorre apenas com 3ª pessoa, e se diferencia do Paritintim (Betts, 2008 [1969]), em que a alteração no núcleo verbal ocorre com todas as pessoas do discurso, e do Tupinambá (Rodrigues, 1953), em que ela ocorre com a 1ª e a 3ª pessoas.
Além disso, não apenas verbos eventivos divalentes e monovalentes, mas também os monovalentes estativos e predicados nominais podem ser encontrados nesse tipo de construção, o que difere o Guajá das demais línguas da família até agora descritas.
Considerando que esse tipo de construção foi muitas vezes interpretado como ‘modo’ na análise de línguas da família Tupí-Guaraní, Praça et al. (2017, p. 41) questionam a validade desse tratamento por entenderem que, na literatura especializada, o conceito de modo aparece como expressão flexional da modalidade (cf. Bybee et al., 1994). Assim, qual seria a validade para estudos tipológicos de se considerar uma forma menos finita do verbo como uma instância de ‘modo’, indagam as autoras.
O Guajá apresenta evidência adicional para esse questionamento, uma vez que o verbo ocorre associado ao sufixo -ni ~ -ri também quando expresso no modo exortativo, marcado pelo prefixo t- ~ ta= ~ ti=, conforme exemplo (46)17. O dado prova que não seria possível interpretarmos o chamado “modo indicativo II” (Rodrigues, 1953, p. 126), ou “modo circunstancial” (Seki, 2000, p. 131), como modo, pois a mesma raiz verbal não poderia expressar ao mesmo tempo dois distintos modos.
A hipótese geral a ser adotada aqui é a proposta de Praça et al. (2017) que defendem que a mudança ocorrida no núcleo do predicado quando uma expressão adverbial o antecede indica que ele assumiu uma forma menos finita, como ocorre com as orações subordinadas adverbiais apresentadas em seção anterior, que também recebem um sufixo subordinador e passam a expressar seus argumentos por meio da série II. Na construção aqui em foco, a expressão adverbial se tornaria a oração principal, uma vez que as expressões adverbiais em Guajá possuem a função primária de predicado, e o que antes era uma oração independente passa a ser uma oração subordinada à expressão adverbial.
Em (1), repetido como (47), a expressão adverbial terẽ ø-pepe ‘de trem’ está subordinada ao predicado verbal que tem como núcleo o verbo ho ‘ir’, e que é o predicado naturalmente dominante e expressa seu argumento por meio de uma marca de pessoa da série I:
Em (2), repetido como (48), a expressão adverbial terẽ ø-pepe ‘de trem’ torna-se o predicado dominante, e o predicado verbal, que tem como núcleo o verbo ho ‘ir’, fica subordinado ao primeiro, tornando-se, assim, menos finito, o que é evidenciado pelo fato de que ele passa a expressar seu argumento por meio de um prefixo da série II e a receber um sufixo, como observado nas demais orações subordinadas da língua. Portanto, entendemos que o sufixo -ni ~ -ri deve ser interpretado como um sufixo subordinador em termos sintáticos18:
O fato de, em Guajá, esse fenômeno ocorrer não só com verbos, mas também com nomes, como em (39), nos leva a considerar mais adequado denominar esse sufixo de subordinador, e não de nominalizador19. Como explicado, interpretamos que, toda vez que o sufixo ni ~ ri ocorre, ele está associado a um predicado que está subordinado a outro, uma vez que eles precisam estar hierarquicamente organizados na sentença.
Em um contexto de ordem predicado verbal/predicado adverbial, a hipótese de Alves (2020) é a de que a expressão adverbial naturalmente já cumpre o papel de informação menos importante quando aparece em uma sentença posposta a um predicado verbal. No entanto, quando ela assume a primeira posição, o predicado verbal torna-se menos finito para se conformar à posição de predicado mais baixo na hierarquia dos predicados da sentença.
Nossa análise sobre o que ocorre em termos informacionais quando uma expressão adverbial é trazida para uma posição de destaque, ou seja, mais à esquerda da oração, é a de que a intenção do falante é a de dar a ela maior relevância, isto é, o status de informação mais importante na sentença, o que se é tradicionalmente conhecido como foco, ou rema, conforme detalharemos mais à frente.
No diálogo a seguir, do Guajá (Magalhães, 2006, notas de campo não publicadas), a relevância das expressões adverbiais destacadas em sublinhado é evidente. Em todos os casos, elas são a informação mais importante da sentença e ocorrem no início desta:
Em sua análise do Parintintim, Betts (2008 [1969]) explica o fenômeno da alteração da forma verbal nessas construções – exemplos (50) e (51) –, a que denomina ‘forma demonstrativa do verbo’ como sendo aquela relacionada ao que o narrador considera como tópico, em contraste com a forma verbal sem sufixo, a que denomina ‘forma declarativa do verbo’, que seria usada quando o narrador considera a informação como o desenvolvimento de um tópico20.
Em outras palavras, “. . . a forma demonstrativa do verbo apresenta o tópico do discurso, e a forma declarativa do verbo apresenta seu desenvolvimento”21 (Betts, 2008 [1969], p. 10, tradução nossa). No entanto, nossa análise do Parintintim vai na mesma linha do que entendemos ser o fenômeno no Guajá: a expressão adverbial está funcionando como a informação nova apresentada na sentença, tratando-se, portanto, de foco/rema, e não de tópico.
Diferentemente do Kamaiurá e Apyãwa, mas da mesma forma que no Tupinambá, no Parintintim o predicado verbal que recebe o sufixo -i pode se associar não apenas a argumentos internos expressos pela marca de pessoa mais nominal (NA) (que corresponde à série II), como em (50), mas também a SN que exercem essa mesma função, conforme o exemplo (51):
Para interpretar os dados do Guajá, nos baseamos na análise de Alves (2020) que propõe que as línguas da família Tupí-Guaraní são línguas que possuem, assim como o Nahuatl Clássico e o Paez, uma ‘dominância remática’ (Launey, 1998). Isso significa que tais línguas organizam sua estrutura informacional em termos de predicado dominante, que será simplesmente o centro informativo, provido das propriedades remáticas. Para melhor entendermos essa afirmação, será necessário esclarecer o conceito de ‘rema’, que contrasta com o de ‘tema’.
Mathesius (1939) define tema como a informação que já é sabida ou facilmente presumida na situação apresentada e o rema como ‘aquilo que o falante declara sobre o tema do enunciado’. Firbas (1964, 1972) define a noção de rema como a informação nova e refina a noção de tema de Mathesius (1939) como aquilo que possui menor grau de ‘dinamismo comunicativo’22. O dinamismo comunicativo é compreendido como a contribuição que um elemento apresenta para o desenvolvimento da comunicação a partir da sua capacidade de impulsioná-la:
Pelo grau de dinamismo comunicativo realizado por um elemento linguístico, compreendo até que ponto o elemento contribui para o desenvolvimento da comunicação, e que, por assim dizer, impulsiona a comunicação. . . . o elemento que carrega o menor grau de dinamismo comunicativo é chamado de “tema” e aquele que carrega o mais alto, o rema (Firbas, 1972, p. 79 citado em Mithun, 1987, p. 16, tradução nossa)23.
Mithun (1987), Launey (2004) e Praça (2007) são autores que adotam o conceito de tema e rema descritos pelos linguistas associados à Escola de Praga, para tratar da ordem pragmática mais comum encontrada nas línguas por eles estudadas.
No caso do Guajá e das línguas TG aqui citadas, conforme Alves (2020), não podemos interpretar a expressão adverbial anteposta ao predicado verbal como tópico (ou tema), uma vez que ela não é o referente da proposição24. Não se trata também de topicalização, uma vez que o elemento da sentença que sofre inversão de ordem canônica não se torna o tópico discursivo ou oracional25. A expressão adverbial em primeira posição também não configura uma construção de foco contrastivo26, ocorrendo tanto em pergunta quanto em resposta sem que necessariamente esteja pressupondo uma informação divergente. Aliás, o Guajá possui uma partícula específica para foco contrastivo, a partícula xipe (Magalhães, 2007, p. 96), que nunca foi encontrada associada a expressões adverbiais; somente a pronomes pessoais, nomes e verbos27.
O que está realmente acontecendo nessas sentenças em termos informacionais é que a atenção está voltada para a expressão adverbial; dá-se à expressão adverbial o status de nova informação mais importante da sentença. Isso é chamado de foco28, se nos pautarmos na dicotomia tópico-foco, ou rema, se nos pautarmos nas definições cunhadas por Mathesius (1939), citadas anteriormente. Uma diferença importante é a de que a relação tema-rema, conforme apresentada por Mathesius (1939) e posteriormente por Firbas (1964, 1972), não é dicotômica, como a de tópico e foco, mas hierárquica, funcionando em um nível mais vasto na frase (e no discurso). Optamos por usar aquela terminologia, e não esta, para alinharmos nossa explicação da estrutura informacional do Guajá à análise de Launey (2004) para as línguas omnipredicativas, considerando a organização hierárquica dos predicados que compõem a sentença.
Em termos pragmáticos, Praça (2007, p. 122) descreve o fenômeno, denominado por ela de Indicativo II, no Apyãwa (ou Tapirapé), como a ‘rematização’ das expressões adverbiais. Ela explica que tais expressões ocupam, no Apyãwa, usualmente a posição final da sentença, não apresentando informação essencial para o predicado em que ocorrem. No entanto, ao serem removidas para a posição esquerda da sentença, tornam-se o rema, isto é, a informação mais importante, contextualizando o evento descrito pelo verbo.
Concordando com Praça (2007), e considerando nossa reflexão sobre as línguas TG apresentarem suas informações em termos de construções téticas (isto é, não separando tema de rema), teríamos nas construções com expressões adverbiais antepostas dois predicados, um adverbial e outro verbal, organizados em termos hierárquicos, sendo que o predicado verbal, que naturalmente ocupa a posição de maior relevância informacional, como ilustrado em (52), deixa de ser o rema por causa do deslocamento do advérbio para a primeira posição, assumindo este último um lugar de destaque na estrutura informacional e tornando-se o predicado mais relevante hierarquicamente, como ilustrado em (53):
Em resumo, o verbo perde sua forma finita como resultado de toda uma reorganização hierárquica pragmática da sentença.
Essa desrematização do predicado verbal é atestada pela mudança do verbo, que toma uma forma não finita na recuperação de seus argumentos, que é a mesma forma das nominalizações e subordinações das línguas da família. Os argumentos passam, então, a ser expressos pela série II de marcadores de pessoa e a desrematização do predicado é marcada por um sufixo, cognato do sufixo -i ~ -w, reconstruído por Jensen (1990, p. 105) para o proto-Tupí-Guaraní, no caso do Guajá, o sufixo -ri ~ -ni. Isso significa que, não apenas qualquer raiz lexical, quando funciona como rema, atrai as marcas finitas para si, conforme explica Launey (2004) para as línguas omnipredicativas, mas, na direção oposta, se o verbo não é o rema, ele torna-se menos finito.
A PERDA DO FENÔMENO E SUA FUNÇÃO NO GUAJÁ
Vimos até aqui que a estrutura analisada tem forte ligação com as características de tipologia omnipredicativa, pelo fato de que, no Guajá e nas demais línguas TG citadas, as expressões adverbiais funcionam primariamente como predicado e pela análise aqui apresentada de que esses predicados, quando ocorrem em primeira posição, se tornam o predicado principal da oração. Assim, concluímos que a mudança morfossintática ativada pela anteposição das expressões adverbiais está diretamente associada à tipologia omnipredicativa das línguas da família Tupí-Guaraní e que sua ocorrência de maneira produtiva em qualquer dessas línguas atestaria um grau conservador com relação às características omnipredicativas herdadas de uma língua ancestral totalmente omnipredicativa, em que uma oração com mais de uma palavra lexical é na verdade uma sentença complexa, feita de vários predicados, organizados entre si hierarquicamente.
Se o fenômeno aqui descrito pode ser diretamente associado ao grau de omnipredicatividade da língua, o fato de ele estar na iminência de desparecer no Guajá, conforme atestado em seções anteriores, seria uma evidência de que o Guajá vem gradativamente se diferenciando das línguas mais conservadoras que mantêm grande parte dos traços omnipredicativos, como o Tupinambá e Apyãwa.
Logo, a perda da produtividade dessa estrutura subordinada do Guajá parece estar diretamente relacionada à perda da capacidade de um predicado adverbial se apresentar como hierarquicamente superior a um predicado verbal, sobrando apenas a estratégia da mudança da ordem básica verbo-advérbio para marcar o foco na informação expressa pelo advérbio, caso da variante falada pelos Guajá mais jovens.
Comparando o Guajá com as demais línguas da FTG, podemos inferir, conforme Alves (2020), que, numa análise diacrônica, a rematização das expressões adverbiais e a consequente ativação da forma subordinada do predicado principal ocorria no Guajá com todos os tipos de predicado, incluindo verbos estativos e nomes (e possivelmente com o verbo flexionado em todas as pessoas, como atesta o Parintintim), e que a estrutura foi se perdendo gradativamente, devido à perda de sua função, ficando restrita apenas aos predicados verbais ativos, na variedade dos falantes mais velhos. No entanto, resquícios desta estrutura, que teria sido mais produtiva, permanecem nas sentenças iniciadas por partículas que podem ter se gramaticalizado a partir de advérbios e pela partícula interrogativa mõ. Nesses casos, tanto predicados verbais, sejam eles ativos ou estativos, quanto predicados nominais são encontrados com o sufixo -ni ~ -ri atualmente. Isso parece indicar que o sufixo permaneceu petrificado à raiz de algum item lexical da sentença após as expressões adverbiais se gramaticalizarem em partículas de posição inicial, tendo o sufixo perdido sincronicamente sua função subordinadora nesses contextos. Porém, mesmo nestes casos, como dito, já é possível encontrar atualmente registros sem o referido sufixo, numa clara evidência de que também há uma tendência de desparecimento destas estruturas. Naturalmente, ele só deixa de existir fonologicamente porque o seu papel gramatical, de marcar a desrematização do predicado verbal, se tornou obsoleto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema discutido neste estudo não é novo e foi, mais recentemente, abordado em artigo de Praça et al. (2017). No entanto, um estudo detalhado sobre o caso específico da língua Guajá ainda não havia sido publicado e esperamos, com o presente artigo, contribuir para essa lacuna, abordando não apenas hipóteses relacionadas aos aspectos gramaticais e pragmáticos desta construção, mas também tecendo considerações diacrônicas sobre a língua a partir da comparação de sua estrutura com outras línguas da família.
A relação com outras línguas geneticamente relacionadas, aliás, principalmente as que ainda não foram muito exploradas com relação ao fenômeno, inspiram que novos estudos sejam realizados, buscando uma investigação ainda mais aprofundada sobre esse interessante fenômeno das línguas Tupí-Guaraní.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos pareceristas e editores, que contribuíram com as suas valiosas sugestões, e ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que, por meio de bolsa de mestrado concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), possibilitou a pesquisa sobre o tema deste artigo.
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1
A distinção entre o sufixo locativo -pe e as posposições é a de que estas vêm sempre acompanhadas de um prefixo de adjacência (LK) e podem ser associadas a pronomes clíticos (série II de marcadores pessoais), enquanto o primeiro se afixa somente a nomes.
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2
“As partículas diferenciam-se dos afixos por comportarem-se fonologicamente como palavras independentes. Diferenciam-se também dos clíticos (os proclíticos de negação n(a)=, de modo exortativo t(V)= e os pronomes dependentes), pois estes formam uma unidade fonológica indissolúvel com seu ‘hospedeiro’ que não pode ser interrompida por outros formativos ou palavras (a não ser por outros elementos clíticos). As partículas, por sua vez, permitem a presença de palavras independentes entre elas e o constituinte a que se associam.” (Magalhães, 2007, p. 72).
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3
O termo ‘mostrativo’ (Brugmann, 1904; Wackernagel, 1928) é usado em referência ao ‘campo mostrativo’ e simbólico da linguagem que, no jogo intersubjetivo que envolve os interlocutores, promove a marcação imediata de alguma entidade concreta ou abstrata com olhos, dedos e cabeça. A opção por esse termo justifica-se pelo fato de a partícula mostrativa não se tratar do próprio elemento dêitico, mas introduzir orações que indicam a localização pontual de um referente vindo, geralmente, acompanhada de gestos do falante apontando a direção do referente.
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4
Conforme Alves (2018, p. 6), “. . . isso quer dizer que nas orações em que aparecem dois argumentos, as primeiras e segundas pessoas são hierarquicamente superiores ao argumento de terceira pessoa, sendo elas as marcadas no verbo. Caso ambos sejam de terceira pessoa, como não se aplica uma hierarquia de pessoa, a marcação no núcleo do predicado será sempre a do participante que tiver papel semântico de ‘agente’. Já nas orações em que os dois argumentos são de 1ª e 2ª pessoa, será expresso no verbo o participante que exerce a função de ‘paciente’ [independentemente da pessoa]”.
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5
Para mais informações sobre valência nominal, entendida como aquela em que o núcleo nominal em função de predicado, devido à sua semântica lexical, pode ser monovalente ou divalente, sendo esse último aquele que ocorre associado a um argumento interno obrigatório (como os chamados nomes relacionais ou nomes possuíveis), confira Kinkade (1983), Ágel e Fischer (2012) e Vapnarsky (2013). Partindo do princípio de que o conceito de valência pode ser estendido a nomes que exigem, assim como os verbos, argumentos, também as expressões adverbiais, quando exigem argumentos obrigatórios, podem ser interpretadas como elementos providos de valência em nossa análise. Assim, as posposições, que ocorrem sempre com argumento interno obrigatório, são uma classe de palavras divalente.
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6
Seguimos a análise de Cruz et al. (2019, p. 71), que defendem que o “. . . complemento de posposições tradicionalmente chamado de ‘objeto de posposição’ é também interpretado . . . . como o argumento interno de uma posposição, uma vez que recebe o mesmo marcador morfológico que os argumentos internos de nomes e verbos . . .”.
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7
As orações independentes, ou principais, por sua vez, expressam a negação por meio de outra marca morfossintática, a saber, o proclítico n(V) associado ao sufixo de negação -i.
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8
Cabe frisar, no entanto, que nomes em função de predicado equativo recebem o sufixo referenciante, o que se justifica, segundo Queixalós (2006), pela análise de que o sufixo a- ‘referrer’ institui uma expressão capaz de referir, e não uma expressão que de fato necessariamente refere. Nesses casos, o núcleo do predicado nominal que recebe o sufixo referenciante remete a uma classe definida pelo seu elemento único, dado como entidade existente e individualmente identificável: o referente do sujeito se identifica ao elemento único da classe delimitada pela expressão em função de predicado, que recebe o referido sufixo.
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9
Launey (2004) afirma que a característica mais importante do tipo omnipredicativo é: a) a de que todos os itens lexicais podem ser usados como predicados, exceto as designações (nomes próprios e pronomes), que não predicam porque já ‘referem’ por si mesmas. Essa característica é compreendida pelo autor como necessária, mas não suficiente para definir o tipo omnipredicativo. Assim, para que esse tipo de língua seja identificado, outras características devem estar associadas: b) os argumentos são predicados subordinados (Launey, 1986, 1994; Thompson & Thompson, 1980; Jelinek, 1993); c) essa subordinação é possível se, e somente se, haja uma coindexação entre um argumento no predicado principal e no predicado subordinado (Launey, 2004); d) a predicabilidade nos nomes comuns é condição para designação, isto é, pode-se referir a uma entidade como [o peixe] se, e somente se, for previamente admitido que [isto] é um peixe; e) em outras palavras, mičin, em Nahuatl, não significa ‘peixe’, mas ‘ser peixe’, e um sintagma como «in mičin» (demonstrativo peixe), deve ser traduzido como ‘aquele que é peixe’(Launey, 2004, p. 54, tradução nossa), sendo o demonstrativo in o responsável por instituir a função argumental do termo que o segue.
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10
Os diferentes graus dizem respeito à perda gradativa das características omnipredicativas observadas em algumas línguas da família.
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11
Vale ressaltar que as línguas denominadas de não configuracionais (Hale, 1983; Jelinek, 1984) têm características muito similares ao fenômeno que Launey (2004) descreve como omnipredicatividade, entre elas a propriedade de expressar os argumentos por meio dos índices de pessoa, conforme explica Jelinek (1984), em sua análise dos dados Warlpiri.
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“We have questioned the assumption that SV (agent-action) structures are basic and primary and have shown that thetic VS unaccusative structures, involving an event/theme unit, are better candidates for simple, primary proto-syntactic “fossils”. We have shown that thetic unaccusative structures are simpler syntactically, prosodically, semantically and informationally. . .” (Casielles & Progovac, 2012, p. 43).
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13
Importante esclarecer desde já que os adjuntos correferenciais são diferentes dos adjuntos adverbiais (ou expressões adverbiais). Conforme Magalhães et al. (2019, p. 159), aqueles têm a função de “. . . esclarecer a referência dos índices pessoais, que são os verdadeiros argumentos. . .”, já esses, que têm função de complementar a informação expressa pelo predicado, são os únicos que causam a ocorrência do fenômeno em foco neste artigo. No entanto, o que ambos têm em comum é a característica de serem não nucleares, periféricos, daí a noção de ‘adjunto’.
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14
Na nossa análise, todos os SN, mesmo os que não têm morfologia correferencial marcada no verbo, são adjuntos. A hierarquia de pessoa presente na língua, que determina qual dos dois argumentos de um verbo transitivo deve ser expresso no núcleo do predicado verbal, ao realizar o mapeamento semântico dos participantes relacionados à pessoa, supre a necessidade de que ambos precisem ser concretamente expressos, uma vez que é possível saber qual será o outro participante. Além disso, propriedades morfossintáticas, como a ausência de caso nos SN, a ordem livre dos SN em relação ao núcleo do predicado e o controle da correferência e da reflexiva por parte dos índices pessoais, corroboram essa análise. No nosso entendimento, o papel dos SN se restringe somente à função de esclarecer a referência do participante de terceira pessoa.
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Ambos os predicados, nominal e adverbial, são interpretados por nós como adjunto: o primeiro porque tem a função exclusiva de especificar a referência do participante nuclear expresso pela marca de pessoa no verbo; o segundo porque tem a função de especificar o instrumento por meio do qual o evento verbal se realizou.
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Há também dados em que se observa a completa ausência de marcadores pessoais. Isso ocorre não apenas nas sentenças com expressão adverbial anteposta, mas também em orações subordinadas adverbiais e nominalizações. Trata-se de uma tendência mais geral, já observada em Magalhães et al. (2019) de perda da marcação da série II na língua Guajá.
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17
Curiosamente, nos dados em que o sufixo -ni ~ -ri ocorre concomitantemente ao modo exortativo, encontramos essa marca ocorrendo em verbos cujo sujeito é de primeira pessoa, e não apenas de terceira. Isso pode indicar que, num passado remoto, a forma subordinada do verbo ocorria com todas as pessoas, como hoje é atestado no Parintintim.
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18
No que se refere à classificação do sufixo -ni como derivacional ou flexional, entendemos que, nas línguas TG em que suas formas cognatas ocorrem, ele tem características flexionais por ocorrer com qualquer raiz verbal sem causar alteração significativa em seu conteúdo semântico e, além disso, ser requerido pela sintaxe. No entanto, não seria prototipicamente flexional pelo fato de as raízes que se associam a esse sufixo ocorrerem obrigatoriamente com os marcadores pessoais da série II, tradicionalmente associados na literatura especializada sobre a FTG a formas nominalizadas ou subordinadas dos verbos.
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19
Apesar de ser possível uma análise em que esse sufixo seja interpretado como nominalizador (Sasse, 1987) no caso das línguas em que ele não ocorre com predicados nominais, optamos por interpretar como subordinador pelos motivos apresentados nesta seção e inspiradas pela análise de Launey (1994, 2004) para as línguas omnipredicativas.
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20
No original: “The demonstrative-declarative distinction then enables the narrator to say which of these events he considers as topic (demonstrative) and which he considers to be a development of the topic (declarative)” (Betts, 2008 [1969], p. 10).
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21
No original: “The demonstrative form of the verb presents the topic of the discourse, and the declarative form of the verb presents its development” (Betts, 2008 [1969], p. 10).
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O conceito de dinamismo comunicativo foi apresentado para explicar que a relação tema/rema não é dicotômica (como são as de tópico e foco), podendo, inclusive, existir graus intermediários de dinamismo comunicativo.
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No original: “By the degree of communicative dynamism carried by a linguistic element, I understand the extent to which the element contributes to the development of the communication, to which, as it were, it ‘pushes the communication forward. . . . that element carrying the lowest degree of communicative dynamism is called the “theme”, that carrying the highest, the rheme” (Firbas, 1972, p. 79).
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A noção clássica de tópico é a de que se trata da “. . . entidade sobre a qual algo é dito, enquanto aquilo que é dito sobre a entidade é o comentário” (Crystal, 1997, p. 391); ver também Dik (1978, p. 19). Para os linguistas que consideram tópico principalmente a partir de um ponto de vista discursivo (Givón, 1976, 1983, 1990; Dixon, 2010, p. 340), a função de tópico só pode ser atribuída ao argumento de uma sentença.
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25
Topicalização se refere a construções sintáticas em que há a inversão de ordem de uma expressão que passa a funcionar como o tópico da sentença ou da oração, em oposição a uma posição canônica mais à direita.
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Foco contrastivo é definido por Givón (2001, p. 230) como aquilo que pressupõe algo que divirja do que está em evidência, algo que se oponha ao apresentado.
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Exemplo da partícula de foco contrastivo xipe associada ao pronome pessoal jaha ‘eu’: jaha xipe a-mamõ <eu FOC 1.I-jogar> ‘fui eu que joguei (e não outro)’ (Magalhães, 2007, p. 95).
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Nas abordagens que descrevem foco em termos dos seus efeitos semântico-pragmáticos, esse conceito está quase sempre ligado à ideia de novidade, de informação nova, isto é, à informação que contrasta de algum modo com porções da informação antecedente, pré-existente, no contexto de enunciação (background).
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ABREVIATURAS
Editado por
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Responsabilidade editorial: Hein van der Voort
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Maio 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
08 Out 2020 -
Aceito
28 Jul 2021