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As “Notas” de William Barnard e a Arqueologia marajoara

William Barnard’s “notes” and the Archaeology of Marajó

Resumo

O arquipélago de Marajó, localizado na foz do rio Amazonas, se tornou um dos mais destacáveis campos para o estudo da Arqueologia na região amazônica. Foi no século XIX que as primeiras investigações científicas e os primeiros estudos publicados sobre os tesos marajoaras emergiram. Daquele momento em diante, o Marajó passou a ser palco de inúmeras expedições dirigidas por cientistas brasileiros e estrangeiros interessados nos vestígios cerâmicos, testemunhos da ‘pré-história’ brasileira. Nomes como os de Domingos Soares Ferreira Penna, Ladislau Netto, Charles Hartt, Helen Palmatary, Betty Meggers e Clifford Evans aparecem com frequência nos trabalhos que buscam remontar a história das pesquisas arqueológicas na região. Outros pesquisadores, todavia, ainda que tenham produzido trabalhos de importância fundamental para o campo, ainda permanecem relativamente desconhecidos e pouco estudados. Este artigo tem por objetivo apresentar um desses nomes: William Stebbins Barnard, um dos primeiros expedicionários estrangeiros a visitar um teso marajoara, bem como disponibilizar a transcrição e tradução de parte de suas “Notas” de campo, documento inédito preservado hoje na Carl A. Kroch Library, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e que é considerado um dos primeiros estudos arqueológicos prospectivos da região marajoara em nível internacional.

Palavras-chave
Marajó; Arqueologia; William Stebbins Barnard

Abstract

The Marajó Archipelago, located at the mouth of the Amazon River, has become one of the most notable fields for studying archeology in the Amazon region. The first scientific investigations and earliest published studies about the mounds in this area emerged in the nineteenth century, and from that time Marajó became the focus of numerous expeditions led by Brazilian and foreign scientists interested in ceramic remains that bore witness to Brazilian “prehistory”. While names such as Domingos Soares Ferreira Penna, Ladislau Netto, Charles Hartt, Helen Palmatary, Betty Meggers, and Clifford Evans appear frequently in works that attempt to outline the history of archaeological research in the region, other researchers remain relatively unknown and poorly studied, even though their work was fundamentally important to the field. This article introduces one such person, William Stebbins Barnard, one of the first foreigners who undertook an expedition to visit a mound in Marajó, and also provides a transcription and translation of part of his field notes, an unpublished document that today is preserved in the Carl A. Kroch Library at Cornell University in the United States and considered one of the first prospective archaeological studies of Marajó on the international level.

Keywords
Marajó; Archaeology; William Stebbins Barnard

INTRODUÇÃO

Na noite do dia 23 de outubro de 1870, o estudante de zoologia da Universidade de Cornell, William Stebbins Barnard, desembarcou no Lago Arari, no centro do arquipélago de Marajó. Ele estava ali a mando de seu professor, Charles Frederick Hartt, chefe da Expedição Morgan, que o havia incumbido de estudar os ‘cemitérios indígenas’ daquele local, após ser informado pelo naturalista brasileiro Domingos Soares Ferreira Penna de sua existência.

A viagem resultou em um dos primeiros estudos prospectivos arqueológicos realizado por um estrangeiro no arquipélago. O documento1Antunes, A. P., Massarani, L. M., & Moreira, I. C. (2016). Uma análise da rede de auxiliares na expedição de Louis Agassiz ao Brasil (1865-1866). Revista Brasileira de História da Ciência, 9(1), 113-125. https://www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=2786
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escrito por Barnard é um relatório de pouco mais de 150 páginas, apresentado sob o título de “Notas” (Figura 1).

Figura 1
Capa das “Notas” de William Stebbins Barnard. Fonte: Rare and Manuscript Colletions, Biblioteca Carl A. Kroch, Universidade de Cornell, Estados Unidos.

As “Notas” descrevem não somente o dia a dia da viagem de Barnard até o teso do Pacoval e Guajará (ou ‘ilha Pacova’ e ‘ilha Guajará’, como chama o viajante), mas também carrega ricos registros sobre a fauna e a flora marajoara, temática que chamava mais a atenção do estudante de zoologia do que os vestígios arqueológicos propriamente ditos.

Barnard também tece breves considerações sobre a população local2Araújo, L. M. (2017). Representações marajoaras em relatos de viajantes: natureza, etnicidade e modos de vida no século XIX [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]., descreve vilas, como a de Cachoeira – a mais próxima do teso do Pacoval –, relata o dia a dia das fazendas que visitou no caminho, bem como deixa diversos registros iconográficos e alguns mapas da região.

Por fim, ele também formou uma pequena coleção – hoje, parte das “Coleções Antropológicas da Universidade de Cornell”3Araújo, L. M. (2021). O que os viajantes levaram, a cultura material marajoara em invenção nos museus brasileiros e norte-americanos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]. – de pouco mais de 200 objetos cerâmicos (em sua maioria, cacos que ele encontrou espalhados no chão dos dois tesos que visitou4Barreto, M. V. (1992). História da pesquisa arqueológica no Museu Paraense Emílio Goeldi. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Série Antropologia, 8(2), 203-294. https://repositorio.museu-goeldi.br/handle/mgoeldi/515
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).

Os sítios arqueológicos da região marajoara já eram conhecidos e explorados desde pelo menos meados do século XVIII. O naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, por exemplo, registra, no texto “Notícias da Ilha Grande de Joannes”5Blouin Jr., F. X. (2017). Defining the vision. In K. Barndt & C. M. Sinopoli (Orgs.), Objects lessons and the formation of knowledge: the University of Michigan Museums, Libraries, & Collections 1817-2017 (pp. 13-22). University of Michigan Press., que, no “lago chamado das Tartarugas” (rio Tartarugas), existiam diversas ilhas onde

. . . se tem achado e se acha ainda muitas panelas, ingassabas (que é o mesmo que cantaros ou potes), tudo muito bem feito; a maior parte dellas que se tem achado é debaixo da terra. Tambem se tem achado dentro de algumas panelas grandes alguns ossos de gente e caveiras, d’onde se collige ser costume daquelles indios serem sepultados daquella forma

(Ferreira, 1906Ferreira, A. R. (1906). Noticia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lugares que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas. Revista do Instituto Historico e Geographico do Brasil, 67(1), 294-301., p. 301).

Domingos Soares Ferreira Penna é outro exemplo. Enquanto ocupava o cargo de secretário de governo, o naturalista realizou diversas viagens ao Marajó entre as décadas de 1860 e 1870 (algumas exclusivamente para estudar os sítios arqueológicos). Ele não só sabia da existência e da localização dos montículos, como também estava ciente da importância e dos significados dos vestígios cerâmicos neles encerrados (Cunha, 1989Cunha, O. R. (1989). Talento e atitude: estudos biográficos do Museu Emílio Goeldi. Museu Paraense Emílio Goeldi.; Sanjad, 2010Sanjad, N. (2010). A coruja de minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República (1866-1907). Instituto Brasileiro de Museus/Fundação Oswaldo Cruz/Museu Paraense Emílio Goeldi.).

Ainda que William Barnard não tenha sido o primeiro a visitar os tesos e sítios arqueológicos marajoaras, bem como ainda que seu relatório também não tenha sido o primeiro a registrar a existência das cerâmicas, o viajante deixou valiosas análises sobre os vestígios, os tesos e os grupos humanos que habitaram o arquipélago em um momento em que pouco ou quase nada se sabia sobre eles em nível internacional.

Apesar de sua importância, as “Notas” de Barnard ainda permanecem nos subterrâneos dos estudos históricos e arqueológicos sobre o Marajó, pois jamais foram publicadas. Somente parte do documento foi transcrito por Charles Hartt, em trabalhos como “The ancient indian pottery of Marajó, Brazil” (Hartt, 1871Hartt, C. F. (1871). The ancient Indian Pottery of Marajo, Brazil. The American Naturalist, 5(5), 259-271. https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/270759
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), “Nota sobre algumas tangas de barro cosido dos antigos indígenas da ilha de Marajó” (Hartt, 1876Hartt, C. F. (1876). Nota sobre algumas tangas de barro cosido dos antigos indígenas da Ilha de Marajó. Archivos do Museu Nacional, 1, 21-25.) e “Contribuições para a ethnologia do Valle do Amazonas” (Hartt, 1885Hartt, C. F. (1885). Contribuições para a ethnologia do Valle do Amazonas. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, 6, 1-174.), bem como as ideias do zoólogo são citadas indiretamente por outros naturalistas através dos trabalhos de Hartt.

De igual maneira, o próprio William Barnard ainda permanece como figura relativamente pouco conhecida, recebendo tímida ou nenhuma atenção da literatura especializada que, com frequência, o menciona apenas como ‘Barnard’ ou ‘W. S. Barnard’ (Barreto, 1992Barreto, M. V. (1992). História da pesquisa arqueológica no Museu Paraense Emílio Goeldi. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Série Antropologia, 8(2), 203-294. https://repositorio.museu-goeldi.br/handle/mgoeldi/515
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; Schaan, 2009Schaan, D. P. (2009). Cultura marajoara. SENAC Editoras/Federação de Comércio do Estado do Pará.).

Este trabalho tem por objetivo dar visibilidade aos escritos de Barnard através da transcrição de parte de suas “Notas”, nomeadamente as passagens em que o viajante tece comentários sobre a realidade arqueológica de Marajó. Esperamos com isso não somente possibilitar que outros estudiosos tenham acesso ao documento, mas também que as próprias ideias e interpretações do viajante sobre os vestígios cerâmicos sejam conhecidas.

Em suas “Notas”, Barnard tratou de temas como o processo de construção dos tesos, sua função, os diversos tempos de sua ocupação, registrou o tipo de vegetação que cobria os montículos, analisou as cerâmicas neles encerradas, lançou luz sobre os métodos de enterramento, bem como registrou os usos que vinham sendo dados pela população local aos tesos naqueles anos iniciais da década de 1870.

Ademais, parte das análises de William Barnard foram feitas em diálogo com intelectuais locais, como Domingos Soares Ferreira Penna. Assim, ao ler os comentários e interpretações presentes nessas notas, também temos a singular oportunidade de avaliar a construção de um conhecimento científico gestado em zonas de trocas intelectuais que conectavam cenários locais e globais (Mignolo, 2003Mignolo, W. (2003). Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar (1. ed.). Editora da UFMG.).

Por fim, mas não menos importante, vale ressaltar que as “Notas” de Barnard estão situadas temporalmente no que seria o princípio dos estudos arqueológicos em Marajó. Dessa forma, ao estudar o documento, temos a oportunidade de avaliar a construção dos primeiros ‘conceitos ou representações mentais’ sobre os coletivos humanos do arquipélago, muitos dos quais, não poucas vezes, ainda hoje persistem no imaginário popular (Hall, 2016Hall, S. (2016). Cultura e representação. Ed. PUC-Rio.; Araújo, 2021).

NOTA BIOGRÁFICA SOBRE WILLIAM BARNARD

William Stebbins Barnard nasceu em 28 de fevereiro de 1849, em uma fazenda no estado de Illinois, nos Estados Unidos (Figura 2). Filho de Theodore e Serena Barnard, desde a infância ele demonstrou interesse pelas ciências. Herriott (1936)Herriott, F. I. (1936). William Stebbins Barnard. Annals of Iowa, 20(5), 323-359. https://pubs.lib.uiowa.edu/annals-of-iowa/article/id/11649/download/pdf/
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comenta que um dos grandes passatempos do jovem Barnard era colecionar objetos indígenas que desenterrava de sítios próximos à sua casa – atividade que despertou sua atenção ao campo arqueológico.

Figura 2
William Stebbins Barnard. Fonte: Herriott (1936)Herriott, F. I. (1936). William Stebbins Barnard. Annals of Iowa, 20(5), 323-359. https://pubs.lib.uiowa.edu/annals-of-iowa/article/id/11649/download/pdf/
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.

Sua formação primária foi concluída em escolas próximas à fazenda de sua família. Em 1867, William Barnard ingressou na Faculdade de Artes Liberais, da Universidade do Michigan, todavia, ele permaneceu somente um ano naquela instituição, pois migrou para a recém-criada Universidade de Cornell, no estado de Nova Iorque, onde estudou Zoologia.

Em Cornell, Barnard foi aluno de Charles Hartt, geólogo que já havia visitado o Brasil entre 1865 e 1866 como membro da Expedição Thayer, chefiada pelo famoso professor da Universidade de Harvard, Louis Agassiz, e sua esposa, a também professora e cientista Elizabeth Agassiz (Antunes et al., 2016Antunes, A. P., Massarani, L. M., & Moreira, I. C. (2016). Uma análise da rede de auxiliares na expedição de Louis Agassiz ao Brasil (1865-1866). Revista Brasileira de História da Ciência, 9(1), 113-125. https://www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=2786
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).

Em 1870, Charles Hartt chefiou uma viagem científica própria ao Brasil, a primeira Expedição Morgan, que contou, dentre outros, com o jovem estudante de Zoologia, William Barnard, como membro do corpo técnico. Foi durante essa viagem que Barnard visitou o arquipélago de Marajó e produziu as “Notas” que são objeto deste artigo (Araújo, 2017Araújo, L. M. (2017). Representações marajoaras em relatos de viajantes: natureza, etnicidade e modos de vida no século XIX [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]., 2021Araújo, L. M. (2021). O que os viajantes levaram, a cultura material marajoara em invenção nos museus brasileiros e norte-americanos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará].).

Após se formar, em 1871, William Barnard partiu para estudar na Europa, onde conseguiu o título de doutor, em 1873. De volta aos Estados Unidos, ele foi conferencista em diversas universidades (majoritariamente instruindo sobre temas ligados à Zoologia). Entre 1876 e 1878, ele foi professor de Ciências Naturais na Faculdade de Oskaloosa, em Iowa, e, em 1879, ele retornou à Universidade de Cornell como professor assistente e conferencista, posição que manteve até 1881 (Herriott, 1936Herriott, F. I. (1936). William Stebbins Barnard. Annals of Iowa, 20(5), 323-359. https://pubs.lib.uiowa.edu/annals-of-iowa/article/id/11649/download/pdf/
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).

Ao longo de sua vida, Barnard fez diversas publicações, a maioria no campo da Entomologia. Seus importantes estudos com insetos o levaram a ocupar o posto de entomologista assistente no Bureau de Entomologia, em Washington, onde se dedicou especialmente ao estudo de pragas em plantações de algodão. Suas investigações no Bureau resultaram na criação de uma máquina de pulverizar inseticida em plantações de algodão, popularmente conhecida como Cyclone Nozzle (ou ‘bico ciclone’), que deu fama e notoriedade ao zoólogo, mas também rendeu diversas disputas judiciais em relação à patente do maquinário6Brice, W. R. (1989). Cornell geology through the years. College of Engineering..

Em 1886, William Barnard foi lecionar na Universidade de Drake, onde permaneceu até sua morte, em 13 de novembro de 1887. O zoólogo foi casado com Mary Nichols, com quem teve um filho, William Nichols Barnard, que também foi professor na Universidade de Cornell.

A PRIMEIRA EXPEDIÇÃO MORGAN (1870)

Na segunda metade do século XIX, os Estados Unidos viram um significativo crescimento no interesse pelas ciências. Estudiosos como David Browman e Stephen Williams (2013)Browman, D. L., & Williams, S. (2013). Anthropology at Harvard. A biographical history, 1790-1940. Peabody Museum Press. chamam de ‘renascença americana’ o período que se seguiu após a Guerra Civil, momento em que foi registrado um crescimento exponencial no número de novas universidades, museus e centros de pesquisa.

Resultado direto desse crescimento foi também o aumento na quantidade de expedições científicas enviadas para os quatro cantos do globo com o objetivo de formar coleções de história natural para os novos museus e universidades. Essas coleções tinham mais do que um papel memorial no contexto das instituições de ensino: assim como os livros nas bibliotecas, elas eram uma marca de excelência e recurso didático, pois permitiam estabelecer conexões com mundos para além das fronteiras nacionais, bem como realizar estudos comparativos em escala ampliada sem a necessidade do deslocamento físico (Brice, 1989Brice, W. R. (1989). Cornell geology through the years. College of Engineering.; Schwarcz, 1993Schwarcz, L. M. (1993). O espetáculo das raças. Companhia das Letras.; Possas, 2013Possas, H. C. G. (2013). Classificar e ordenar: os gabinetes de curiosidades e a história natural. In B. G. Figueiredo & D. G. Vidal (Orgs.), Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna (pp. 159-174). Fino Traço.; Blouin Jr., 2017Blouin Jr., F. X. (2017). Defining the vision. In K. Barndt & C. M. Sinopoli (Orgs.), Objects lessons and the formation of knowledge: the University of Michigan Museums, Libraries, & Collections 1817-2017 (pp. 13-22). University of Michigan Press.; Araújo, 2021Araújo, L. M. (2021). O que os viajantes levaram, a cultura material marajoara em invenção nos museus brasileiros e norte-americanos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará].).

A Universidade de Cornell foi criada dentro desse cenário, incorporando desde seu nascimento as expedições e a formação de coleções como parte essencial do processo educativo. O The Cornell University Register and Catalog ilustra bem esse quadro, ao apresentar as atividades que vinham sendo desenvolvidas no Departamento de Geologia:

Short excursions are made every year during term time, and, occasionally, long expeditions in vacation. Two expeditions have been made to the Amazonas, which have resulted in much good to the department, not only in training students in actual field work, but in adding very largely to the collection

(Cornell, 1875, p. 72)7Browman, D. L., & Williams, S. (2013). Anthropology at Harvard. A biographical history, 1790-1940. Peabody Museum Press..

Foi nesse contexto que Charles Frederick Hartt tornou-se professor na recém-criada Universidade de Cornell e organizou a primeira Expedição Morgan8Cornell University. (1875). School of Geology and Palaentology. The Cornell University Register and Catalogue 1874-1875. Cornell University.. A escolha pelo Brasil não foi aleatória, pois o geólogo já nutria grande interesse pelo país desde sua participação, ainda enquanto estudante, na Expedição Thayer.

Segundo registrou Hartt (1870)Hartt, C. F. (1870). The Expedition to Brazil. The Cornell Era., no periódico The Cornell Era, de 1 de junho de 1870, a primeira Expedição Morgan contou, além do próprio Charles Hartt como chefe, com o auxílio do também professor A. N. Prentiss (botânico) e de nove estudantes voluntários: W. S. Barnard (História Natural), C. J. Powers (História Natural), P. P. Stanton (História Natural), O. A. Derby (História Natural), P. M. Johnson (História Natural), D. B. Wilmot (História Natural), H. H. Smith (Geologia), T. B. Comstock (História Natural e fotógrafo) e H. Kendall (secretário).

Ainda segundo o periódico, o propósito da expedição era primeiramente educar os estudantes no campo, treinando-os em contato direto com a natureza tropical. Paralelamente, Hartt também tinha interesse pessoal no desenvolvimento de estudos nas montanhas do vale amazônico, pois queria pôr em teste a teoria do drift de Louis Agassiz (Hartt, 1874Hartt, C. F. (1874). Contributions to the geology and physical geography of lower Amazonas. Bulletin of the Buffalo Society of Natural Sciences, 1, 201-235.).

Foi justamente por estar ocupado com as análises sobre o drift que Charles Hartt não pôde ir pessoalmente ao Marajó. No artigo “The ancient indian pottery of Marajó, Brazil” (Hartt, 1871Hartt, C. F. (1871). The ancient Indian Pottery of Marajo, Brazil. The American Naturalist, 5(5), 259-271. https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/270759
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), publicado pela revista The American Naturalist, o geólogo argumenta que, quando de passagem por Belém, ele foi chamado à atenção por Domingos Soares Ferreira Penna, então secretário de governo, sobre a existência de cerâmica indígena no arquipélago de Marajó. Ele, entretanto, estava ocupado com as pesquisas na serra do Ererê, em Monte Alegre, tendo optado por mandar William Stebbings Barnard no seu lugar para fazer as prospecções e escrever o relatório que é objeto deste artigo.

A viagem que Barnard fez ao Marajó foi empreendida entre 11 de outubro e 6 de novembro de 18709Cornell University. (s.d.). Department of Anthropology. Anthropology Collections. https://anthropology.cornell.edu/anthropology-collections
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. Em suas “Notas”, não são dados maiores detalhes sobre seus acompanhantes na empreitada, apenas é mencionado que ele embarcou com um grupo (“a party”, no original), provavelmente guias e ajudantes que ele contratou.

O estudante de Zoologia chegou ao rio Arari na noite do dia 23 de outubro de 1870 e, já no dia seguinte, partiu para a ‘ilha Pacova’. Os trabalhos no teso se iniciaram no dia 25, e as primeiras observações só foram registradas no dia 27.

Barnard permaneceu na região do lago Arari até o dia 30 de outubro, quando foi informado sobre a existência de outros tesos. Segundo ele, o Sr. João de Souza Batista, então administrador da Fazenda da Nação, organizou uma excursão até o lago Guajará, pois lá havia outro montículo.

O viajante chegou no lago no dia 31 e iniciou os trabalhos no monte já no dia 1º de novembro. A estadia no local foi breve, no dia 4 de novembro ele retornou para a Fazenda da Nação, no lago Arari, e no dia 6 iniciou a viagem de retorno a Belém10Cunha, O. R. (1989). Talento e atitude: estudos biográficos do Museu Emílio Goeldi. Museu Paraense Emílio Goeldi..

SOBRE A TRANSCRIÇÃO E A TRADUÇÃO

Conforme já mencionado, as “Notas” de Barnard compreendem cerca de 150 páginas – ainda que a numeração termine em 286. O grande interesse de William Barnard era a Zoologia, por isso a maior parte de seu relatório é constituída por comentários e ilustrações da fauna e da flora da região marajoara. Apenas uma pequena fração (cerca de 16 páginas e algumas notas avulsas entre elas) é de interesse arqueológico; elas relatam os trabalhos que foram realizados nos tesos, bem como as primeiras interpretações feitas por Barnard e Ferreira Penna.

O leitor perceberá que a transcrição que segue, às vezes, pula algumas laudas, bem como verá que existem páginas com conteúdo diminuto. Isso ocorre porque a todo momento Barnard interrompia a narrativa arqueológica para fazer registros zoológicos, unindo temáticas distintas em um mesmo espaço. Como o foco aqui são as considerações do viajante sobre a arqueologia marajoara, optamos por suprimir a maior parte das notas sobre fauna e flora, mantendo somente aquelas que tenham relação com a temática deste trabalho.

Buscamos manter o máximo da grafia original na transcrição (incluindo letras maiúsculas, abreviações e repetições de termos). Todavia, percebemos que eventualmente se fazia necessária a adição de algum comentário ou informação (às vezes, sobre datas, palavras com grafia confusa etc.), os quais foram sempre escritos entre colchetes. As “Notas” de Barnard também trazem uns poucos desenhos e mapas que foram produzidos pelo viajante. Esse material se revelou de importância seminal para os estudos arqueológicos e, por isso, são aqui reproduzidos (Figuras 3 a 11).

Por fim, com intuito de promover o acesso dos escritos de Barnard aos mais variados públicos, oferecemos uma tradução das “Notas”, a qual é apresentada na última seção deste trabalho.

NOTES BY W. S. BARNARD

[page 194 – 23/10/1870]:

At 12:55 P.M. we landed on/ the left bank of the mouth of the Lake/ Arary – here the mud is a sticky/ blueish clay – and scattered with/ fragments of pottery from/ Pacova Island, the ancient/ Cemetary of the Indians –

[page 195]:

Lake Arary:

This pottery of the Indians/ is often very nicely ornamented or/ figured with signs. There is no/ gravel here – soil black mixed with/ finely crumbled coarse sand/ stone – too coarse to be called sand./ On shore but a few trees low and shrubly.

[page 198]:

Oct. 24th 1870.

Did not sleep well last night be-/cause the carapanãs and mosquitos/ were so bad, but paced to and fro all/ night like a soldier on guard.

Start for Pacóva Island this/ morning and arrive. From here/ up the Igarape on the other side of/ it. There we shot a large/ number of birds – maguari,/ 2 kinds of/ araras.

Oct. 25th ‘70

Today worked for pots, &c, examining the/ island. – Took a perarucú in the/ evening.

[page 211]:

Figure 3
Sketch Map of Lake Arary.

[page 212]:

Figure 4
Pacova its elevation.

[page 214 – 27/10/1870]:

Lake Arary (p. 211)

This lake is about 6 leagues long &/ about (1) one league wide. The Rio Arary/ flows out on the east side about midway/ its length. Directly West of this Rio lies/ Pacova Island built by the ancient/ Indians as a cemetary in which/ their dead were deposited in Earthen/ Pots. The lake when at its lowest sab [sic]/ has they say many other islands very low,/ but now it has but this one. This Island/ was probably formed/ by cutting off a low/ point of land & build-/ing it up with dust/ from the channel cut./ It lies just South of/ a point at the South/ of the mouth of the Igarapé das Armas-

Figure 5
Map Pacova Island (in the left: “Terra firma”; above: “Ig. Das Armas Terra firma”; in the right; “ridge of Land 4-10 ft wide with trees”).

[inserted leaf between pages 214-215]:

The Island is covered by native trees except/ on its highest part. There it is mostly/ without trees havind only a few which/ were planted; such as pacovas, lemons,/ &c, &c. - all marked on the/ Topographical map (p. 215).

The water is shallow near the is-/land and at 200 jds out meas-/ured only about (6) six ft.

Three of four trees on the main/ part of the Island were very large,/ probably 2-3 ft in diam. From these/ perhaps something of the age of the/ Island could be determined.

In these large trees were to be/ seen Uorobús and Pombos al-/most constantly. The Island/ seemed to be a kind of acamp-/ing place at presente for cruisers/ on the lake.

[back of the inserted leaf between pages 214-215]:

The pot on which my observation at/ the top of p. 216, was founded, had been/ crushed in sideways & therefor the/ bones may have been in/ an indisturbed position since/ the pot was in place.

Sr. Penna agrees with me in/ thinking that the bones were dried/ and probably free from flesh when/ placed in these vessels.

I should judge the Island to be/ about 12 ft high.

Bordering on/ L. Guajará is an elevated tract/ of ground (4 or 5 acres?) bearing/ some fragments of Indian Earthen/ware. It was a cemetary also.

Its elevation is but very slightly/ above the surrounding land. It/ is covered with forest and many/ planted fruit-trees (mamão, lemon,/ Bananas (see P. 242 and 241. Field book).

[page 215]:

Figure 6
Topographic map of Pacova Island.

[page 216]:

[vertical text]: see inserted leaf

I found very small sotten fragments of bones/ From the arrangement of the bones in/ the Pots I concluded that the boddies/ must have been placed in the/ position seen in Fig. B. (??) [Figura 7].

But these pots are so small/ that I have all the time won-/dered how the boddies ever enter-/ed them. It seems impossible/ to put a man in them./ The men must have Either been very small,/ or forced in these by some powerful process – or/ cut up & placed in pieces or the pots must have/ been made around them or only the bones may have been deposited. I brought home/ two of the pots badly broken, as a general/ rule the pots were of the size of these – though/ I saw one 2 inches broader, They are not all/ of the same shape as these – some are in/ the shape of Fig A. [Figura 8] others/ similar to “figure C” [Figura 9]. a/ great many diferent outlines/ are formed.

Figure 7
Fig. B (position of man).
Figure 8
Fig. A (1 - Fragment of skull. 2 - part of ilium; 3 - parts of shin bone; 4 - Toes and fingers).
Figure 9
Fig. C.

[inserted leaf between pages 216-217]:

The execution shown in the general form, at the detail of ornamentation of their Earthen/ware indicates a considerably/ advanced artistic taste and aprecia-/tion,/ also that certain ones must have/ been specialists in the manu-/facture of the vases. This,/ the large number/ of the pots in each cemetery,/ and the num-/ber of diferente kinds of fruit/ trees grown on/ the two cemetaries which/ I visited make me [conclude]/ that these people cultivated plants to/ some extent./ I think/ that these cemetaries marked permanent camps/ or small villages.

[back of the inserted leaf between pages 216-217]

Their/ implements for warfare,/ hunting, trapping,/ fishing, digging, cutting,/ grinding,/ forming pottery, &c,/ have disappeared/ and hence must have been/ of perishable organic materials,/ such as wood and bone.

[page 217]:

This Island is 10-15 ft (?) high, and from/ the arrangement of pots it seems to have/ been built in the following manner –/ pots are numerous at the water/ level – above this the whole Island from the/ stratified appearance of its Earth was evi-/dently built up. From the water level up/ to the upper surface nearly the Earth/ contains pots. one series above another though much scattered, as though/ when the Island was low & was filled with/ pots, they built it higher & placed an-/other layer above, &c, to the top – Three/ or four pots may be found one above/ another. These pots are well made,/ strong & generally ornamented – some/ are ornamented in excelente style – Four/ of these Pots are almost perfect but/ all are craccked. The beach of this/ Island is covered with fragments of these brok-/en pots from 2-3 inches deep.

[page 218]:

[vertical text]: Lake Arary in the rainy season is but the point of the/ bahia as they call it which comes down from the Amazonas (P. 233)

There may have been picked up/ a great many interesting/ fragments & some cups-/heads & other parts of broken/ images & ornamentations.

The fragments of pottery are so nu-/merous that the beach of the op-/posite side of the Lake is well scat-/tered with them. On the S.E./ side these are being torn out with/ the water when it is high – it has/ already made a large excava-/tion so the Island forms a/ frow [sic] there (chart (a.a.a), also the/ Island is covered with trees – mostly/ such as we see in the forest, but/ some were evidently planted/ there the mucujas, mamãos,

[page 219]:

Lemons, Guyabas & Pacovas –

The Island propper has an oblong/ shape 90x40 yards (paces). To the north/ of this was started an addition, moon-/shaped, this is low & small, but they say full of/ pots. It is divided now from the main Island/ by water a four deep. This is covered with/ forest trees & contains some pots also (see Topographical/ map ‘Z’).

[page 221]:

I learn that there are other Indian/ cemetaries on this Island - There is one/ on the Rio Anajas & another farther up/ the campus –

[page 241 – at Lake Guajará]:

Between the house, this Igy [sic - igarapé?] &/ the lake is a higher tract of/ land (Island) which like Pacova

[page 242 – 01/11/1870]:

Island was an old Cemetary/ of the Indians. This tract is quite/ large & probably includes 4 or 5/ acres covered with forest &/ fruit-trees. The fruit trees here are/ quite abundant, mamão, lemon,/ genepapú, Bananas, Guajara, Guyaba,/ mango & others planted here by the/ ancient Indians & now form a/ kind of matto or forest together with/ the forest-trees. Beneath the ground is/ cleard & tramped herd & smooth/ by the great number of cattle/ which browse, seek shelter & sleep/ here. The ground is strewn/ with fragments of Pots.

[page 244]:

Forta Leisa, a Fazenda/ (retira) near here is/ Campus Island buint up high/ (8-12 ft) by the Indians & is an old Cemetary.

[page 245]:

Camûti. = Island made in Rio Anajas/ by Indians and used as a Ceme-/tary. near the Fazenda de São Louise.

[page 260]:

Figure 10
Island Cemetary.
Figure 11
Barnard’s signature.

“NOTAS” POR W. S. BARNARD

[p. 194 – 23/10/1870]:

Às 12:55 p.m., nós chegamos à margem esquerda da boca do lago Arari – aqui a lama é uma argila pegajosa azulada – e com fragmentos espalhados de cerâmica da ilha Pacova, o antigo cemitério dos indígenas11Ferreira, A. R. (s.d.). Notícias da Ilha Grande de Joanes; dos rios e igarapés que tem na sua circunferência; de alguns lagos que se têm descoberto e de algumas coisas curiosas [Manuscrito 04,2,021, nº 10]. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. https://acervo.bn.gov.br/sophia_web/acervo/detalhe/1538114?guid=1693484437486&returnUrl=%2fsophia_web%2fresultado%2flistar%3fguid%3d1693484437486%26quantidadePaginas%3d1%26codigoRegistro%3d1538114%231538114&i=10
https://acervo.bn.gov.br/sophia_web/acer...
.

[p. 195]:

Lago Arari:

Essa cerâmica indígena é frequentemente muito bem ornamentada ou adornada com símbolos. Não há cascalho aqui – solo preto misturado com arenito grosso finamente quebrado – muito grosso para ser chamado areia. Na margem, somente umas poucas árvores baixas e arbustivas.

[p. 198]:

24 de out. [outubro] de 1870.

Não dormi bem noite passada, porque os carapanãs e mosquitos estavam muito maus, andaram de um lado para o outro a noite toda, como um soldado em guarda.

Partida para ilha Pacova esta manhã e chegada. Daqui até o igarapé do outro lado. Lá, nós atiramos em um grande número de pássaros – maguari, 2 tipos de araras.

25 de out. [outubro] de 1870

Hoje trabalhei [para encontrar] potes, etc. examinando a ilha – peguei um pirarucu à tarde.

[p. 211]:

Figura 3. Esboço, mapa do lago Arari.

[p. 212]:

Figura 4. Pacova e sua elevação.

[p. 214 – 27/10/1870]:

Lago Arari:

Este lago tem cerca de 6 léguas de comprimento e cerca de (1) uma de largura. O rio Arari deságua nele no lado leste, próximo do meio do seu comprimento. Diretamente a oeste deste rio está a ilha Pacova, construída pelos antigos indígenas como um cemitério, no qual seus mortos eram depositados em potes de barro. O lago quando está seu mais baixo sab [sic], dizem que há outras ilhas baixas, mas agora há somente esta. Esta ilha provavelmente foi formada cortando-se um ponto baixo de terreno e erguendo-a com a terra [retirada] do corte. Ele [corte] se localiza logo ao sul de um ponto ao sul da boca do igarapé das Armas.

Figura 5. Mapa [da] ilha Pacova (à esq.: “Terra firma” [sic]; acima: “Ig. das Armas terra firma” [“terra firme”]; à dir.: “cume de terra 4-10 pés de largura com árvores”).

[nota inserida entre as páginas 214-215]:

A ilha é coberta por árvores nativas, exceto em sua parte mais alta. Lá é majoritariamente sem árvores, tendo apenas umas poucas que foram plantadas como pacovas, limões etc. – todas marcadas no mapa topográfico [da] p. 215.

A água é rasa perto da ilha e a 200 jardas de distância mediu (6) seis pés.

Três das quatro árvores da parte principal da ilha eram muito grandes, provavelmente 2-3 pés em diam. [diâmetro]. Delas talvez algo da idade da ilha possa ser determinado.

Nessas grandes árvores era possível ver urubus e pombos quase constantemente. A ilha parece ser uma espécie de local de acampamento no presente para cruzadores no lago.

[verso da nota inserida entre as páginas 214-215]:

O pote sobre o qual a minha observação no topo da p. 216 foi fundada havia sido quebrado nas laterais e, portanto, os ossos podem ter estado em uma posição não perturbada, desde que o pote estivesse no lugar.

Sr. Penna concorda comigo em pensar que os ossos foram ressecados e, provavelmente, livres de carne quando colocados nesses vasos.

Eu devo julgar que a ilha tem cerca de 12 pés de altura.

Beirando o L. [Lago] Guajará há um terreno elevado (4 ou 5 acres?), com alguns fragmentos de cerâmica indígena. Ele também era um cemitério.

Sua elevação é ligeiramente acima da terra ao redor. Ele é coberto com uma floresta e muitas árvores frutíferas plantadas (mamão, limão, bananas (ver p. 242 e 241 [do] caderno de campo)).

[p. 215]:

Figura 6. Mapa topográfico da Ilha Pacova.

[p. 216]:

[texto na vertical]: ver folha [nota] inserida

Eu encontrei fragmentos de ossos muito pequenos e moles. Da disposição dos ossos nos potes eu concluí que os corpos devem ter sido colocados na posição vista na fig. B [Figura 7].

Mas esses potes são tão pequenos que a todo momento eu tenho pensado em como os corpos entraram lá. Parece impossível colocar um homem neles. O homem deveria ser muito pequeno ou forçado para dentro através de algum processo muito forte – ou cortados e colocados em partes ou os potes devem ter sido feitos ao redor deles ou somente os ossos podem ter sido depositados. Eu trouxe para casa dois potes muito quebrados, como regra geral, os potes eram do tamanho desses – ainda que eu tenha visto um 2 polegadas maior. Eles não têm todos o mesmo formato – alguns são no formato da fig. A [Figura 8], outros similares à “figura C” [Figura 9], muitos contornos diferentes são modelados.

Figura 7. Fig. B (posição do homem).

Figura 8. Fig. A (1 - fragmento de crânio; 2 - parte do ílio; 3 - parte de ossos da canela [tíbia ou fíbula?]; 4 - dedos dos pés e mãos).

Figura 9. Fig. C.

[nota inserida entre as páginas 216-217]:

A execução mostrada na forma geral, no detalhe da ornamentação das cerâmicas deles, indica um gosto artístico e apreciação consideravelmente avançados, também que alguns devem ter sido especialistas na manufatura dos vasos. O grande número de potes em cada cemitério e a quantidade de diferentes tipos de árvores frutíferas plantadas nos dois cemitérios que eu visitei me levam a [concluir] que essas pessoas cultivaram plantas em certa medida. Eu acho que esses cemitérios marcavam acampamentos permanentes ou pequenas vilas.

[verso da nota inserida entre as páginas 216-217]:

Seus implementos de guerra, caça, armadilha, pesca, de cavar, cortar, esmerilhamento, modelar cerâmica etc. desapareceram e, por isso, devem ter sido de materiais orgânicos perecíveis, como madeira e osso.

[p. 217]:

A ilha tem 10-15 pés de altura e pela organização dos potes ela parece ter sido construída da seguinte maneira – potes são numerosos no nível da água – acima disso, toda a ilha, a partir da aparência estratificada de sua terra, foi evidentemente elevada. Do nível da água até a superfície mais alta há potes, uma série acima da outra, apesar de muito espalhados, como se, quando a ilha era baixa e estava cheia de potes, eles a elevavam e colocavam outra camada acima etc. até o topo – três ou quatro potes podem ser encontrados um em cima do outro. Esses potes são bem feitos, fortes e geralmente ornamentados – alguns são ornamentados em excelente estilo –, quatro desses potes estão quase perfeitos, mas todos estão rachados. A praia dessa ilha é coberta com fragmentos desses potes quebrados a 2-3 polegadas de profundidade.

[p. 218]:

[texto na vertical]: O lago Arari, na estação chuvosa, é só a ponta da baía, como chamam, que desce do Amazonas12Ferreira, A. R. (1783). Notícia Histórica da Ilha Grande de Joannes ou Marajó. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=62151
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/ind...
.

Lá, podem ser coletados diversos fragmentos interessantes, algumas bocas de copos e outras partes quebradas de figuras e ornamentações.

Os fragmentos de cerâmica são tão numerosos que a praia do lado oposto do lago tem diversos deles espalhados. No lado S.E. [sudeste], estes estão sendo arrancados pela água quando ela se eleva – ela já fez uma grande escavação a ponto de a ilha formar um frow [sic] (mapa (a.a.a)), a ilha também é coberta com árvores – a maioria como as que vemos na floresta, mas algumas foram evidentemente plantadas lá, [como] os maracujás, mamões,

[p. 219]:

limões, goiabas e pacovas.

A própria ilha tem um formato oblongo, 90 x 40 jardas (passos). Ao norte dela, foi iniciado um acréscimo em forma de lua; este é baixo e pequeno, mas dizem que está cheio de potes. Está agora separado da ilha principal por água de quatro [pés?] de profundidade. Este é coberto com árvores de floresta e contém alguns potes também (ver mapa topográfico ‘Z’).

[p. 221]:

Eu descobri que existem outros cemitérios indígenas nesta ilha – há um no rio Anajás e outro mais distante acima dos campos.

[p. 241 – Lago Guajará]:

Entre a casa, este Igy [sic – igarapé?] e o lago, está um terreno mais alto (ilha) que é como [a ilha] Pacova.

[p. 242 – 01/11/1870]:

A ilha [Guajará] era um antigo cemitério indígena. Este trato é bem grande e provavelmente inclui 4 ou 5 acres cobertos com florestas e árvores frutíferas. As árvores frutíferas são muito abundantes, mamão, limão, jenipapo, bananas, guajará, goiaba, manga e outras [frutas] plantadas aqui pelos antigos indígenas e que agora formam uma espécie de mato ou floresta junto com as árvores de floresta. Abaixo, o solo é limpo, e o pasto é amassado e liso pelo grande número de gado que pasta, procura abrigo e dorme aqui. O solo é coberto com fragmentos de potes.

[p. 244]:

Forta Leisa [Fortaleza], uma fazenda (retiro) próxima daqui é uma ilha de campo erguida até 8-12 pés pelos indígenas e é um antigo cemitério.

[p. 245]:

Camûti [Camutins] = Ilha feita no rio Anajás pelos indígenas e usada como cemitério próximo à Fazenda de São Louise [São Luís].

[p. 260]:

Figura 10. Mapa do lago Guajará.

Figura 11. Assinatura de Barnard.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001.

  • Araújo, L. M., & Sarraf-Pacheco, A. (2023). As “Notas” de William Barnard e a Arqueologia marajoara. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(3), e20220067. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0067.
  • 1
    O manuscrito, hoje, é parte da Rare and Manuscript Colletions, da biblioteca Carl A. Kroch, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos.
  • 2
    Para saber mais, ver Araújo (2021)Araújo, L. M. (2021). O que os viajantes levaram, a cultura material marajoara em invenção nos museus brasileiros e norte-americanos [Tese de doutorado, Universidade Federal do Pará]..
  • 3
    No original: “Cornell University Anthropological Collections”. Para mais informações, ver Cornell University (s.d.)Cornell University. (s.d.). Department of Anthropology. Anthropology Collections. https://anthropology.cornell.edu/anthropology-collections
    https://anthropology.cornell.edu/anthrop...
    .
  • 4
    De acordo com Hartt (1871Hartt, C. F. (1871). The ancient Indian Pottery of Marajo, Brazil. The American Naturalist, 5(5), 259-271. https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdf/10.1086/270759
    https://doi.org/10.1086/270759...
    , 1885)Hartt, C. F. (1885). Contribuições para a ethnologia do Valle do Amazonas. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, 6, 1-174., Barnard não realizou escavações no teso, pois não tinha materiais apropriados. Ele apenas coletou ‘aquilo que estava ao alcance da mão’, ou seja, cacos que estavam espalhados no solo do montículo.
  • 5
    Esse manuscrito (Ferreira, s.d.Ferreira, A. R. (s.d.). Notícias da Ilha Grande de Joanes; dos rios e igarapés que tem na sua circunferência; de alguns lagos que se têm descoberto e de algumas coisas curiosas [Manuscrito 04,2,021, nº 10]. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. https://acervo.bn.gov.br/sophia_web/acervo/detalhe/1538114?guid=1693484437486&returnUrl=%2fsophia_web%2fresultado%2flistar%3fguid%3d1693484437486%26quantidadePaginas%3d1%26codigoRegistro%3d1538114%231538114&i=10
    https://acervo.bn.gov.br/sophia_web/acer...
    ) foi publicado pela primeira vez em 1906 pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Ferreira, 1906Ferreira, A. R. (1906). Noticia da Ilha Grande de Joannes dos rios e igarapés que tem na sua circumferencia, de alguns lugares que se tem descoberto e de algumas couzas curiozas. Revista do Instituto Historico e Geographico do Brasil, 67(1), 294-301.). Já em 2006, foi publicado pela Kappa Editorial em obra inteiramente dedicada a Alexandre Rodrigues Ferreira (Ferreira, 2006Ferreira, A. R. (2006). Notícias da Ilha Grande de Joanes dos rios e igarapés que tem na sua circunferência; de alguns lagos que se têm descoberto e de algumas coisas curiosas. In Autor, Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira (Vol. 3, pp. 65-70). Kapa Editorial.). O documento não é assinado pelo naturalista, mas credita-se a ele a autoria pelas características da escrita, caligrafia, bem como por figurar entre os papéis deixados por ele após sua morte. O texto não foi publicado anteriormente, pois seria apenas um rascunho ou primeira versão do “Noticia Histórica da Ilha Grande de Joanes ou Marajó”, escrito e publicado em dezembro de 1783 por Ferreira (Ferreira, 1783Ferreira, A. R. (1783). Notícia Histórica da Ilha Grande de Joannes ou Marajó. Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=62151
    http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/ind...
    ).
  • 6
    Grande parte da documentação de William Barnard preservada hoje na biblioteca Carl A. Kroch, da Universidade de Cornell, é referente ao processo de criação do maquinário e a processos judiciais.
  • 7
    Em tradução livre: “Pequenas excursões são feitas todos os anos durante o período letivo e ocasionalmente longas expedições durante as férias. Duas expedições foram feitas ao Amazonas, que resultaram em muitos benefícios para o departamento, não só no treinamento de alunos no trabalho de campo real, mas em grandes adições às coleções”.
  • 8
    O nome da expedição é uma homenagem ao político e empresário norte-americano Edwin Morgan, um dos principais patrocinadores da viagem.
  • 9
    Barnard fez anotações em seu diário até o dia 6 de outubro de 1870. Daí em diante, há um grande hiato nos registros, e ele só voltou a escrever novamente no dia 17 de outubro, quando já estava deixando o Pará para retornar aos Estados Unidos.
  • 10
    O último registro que Barnard escreveu no seu diário foi no dia 8 de dezembro de 1870, quando já estava próximo dos Estados Unidos. Aparentemente, o estudante de Zoologia fez a viagem de retorno sozinho, pois em momento algum ele registrou a presença de qualquer outro membro da Expedição Morgan no barco.
  • 11
    Ainda que Barnard utilize em suas notas o termo ‘indian’ (‘índio’, em português) – vocábulo genérico cunhado por colonizadores europeus para designar indistintamente qualquer nativo das Américas –, optamos por substituí-lo por ‘indígena’ (‘natural do lugar onde vive’), cuja acepção manifesta a diversidade e a individualidade desses grupos.
  • 12
    Durante o período do inverno amazônico (dezembro a maio), a região dos campos marajoaras (porção leste e norte do arquipélago) é inundada pela elevação do nível dos rios. O lago Arari, nesse intervalo, une suas águas com a de diversos afluentes que transbordaram, formando uma imensa baía, da qual o lago é apenas um pequeno ponto dentro daquele universo aquático.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Responsabilidade editorial: Martijn van den Bel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2022
  • Aceito
    10 Maio 2023
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