À memória de Aritana Yawalapíti e de Pedro Agostinho e Aritana Yawalapíti
O Alto Xingu é uma das regiões pioneiras da pesquisa etnológica nas terras baixas da América do Sul. Uma das contribuições mais decisivas dos estudos lá realizados, desde o fim do século XIX, incide principalmente sobre o entendimento de sistemas regionais multilíngues e multiétnicos entre povos indígenas do mundo. Esse entendimento foi construído a partir de uma longa relação de convergência crítica de temas clássicos da antropologia social – ritual, xamanismo, mitologia, música, cultura material, parentesco, corporalidade, história, economia entre outros – que singularizam o Alto Xingu na etnologia brasileira.
O Alto Xingu é conhecido como sendo uma área simultaneamente geográfica – que basicamente corresponde à bacia dos formadores do rio Xingu, no estado do Mato Grosso – e cultural multilíngue e multiétnica, cuja formação se inicia por volta do ano 1400 (Heckenberger, 2001Heckenberger, M. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée, 1000-2000 d.C. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Editora UFRJ.). A primeira e a segunda expedições científicas à região, respectivamente nos anos de 1884 e 1887, lideradas pelo etnólogo alemão Karl von den Steinen (1886Steinen, K. (1886). Durch Central Brasilien. Brockhaus., 1892)Steinen, K. (1894). Unter den Naturvökern Central-Brasiliens. Dietrich Reimer., ofereceram uma série de evidências que permitiram mais tarde caracterizar o Alto Xingu como uma área cultural singular, em contraste com os povos maiormente jê, carib e tupi que viviam/vivem nas imediações da bacia dos formadores do Xingu, seja ao norte, sul, leste e oeste desta (Galvão, 1950Galvão, E. (1950). O uso do propulsor entre as tribos do Alto Xingu. Revista do Museu Paulista, Nova Série, (4), 353-368., 1953Galvão, E. (1953). Cultura e sistema de parentesco das tribos do Alto Rio Xingu. Boletim do Museu Nacional, Nova Série, Antropologia, (14), 1-56.; Menezes Bastos, 1995Menezes Bastos, R. J. (1995). Indagação sobre os Kamayurá, o Alto-Xingu e outros nomes e coisas: uma etnologia da sociedade Xinguara. Anuário Antropológico, 19(1), 227-269. https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6592
https://periodicos.unb.br/index.php/anua...
). A região é, portanto, documentada desde muito cedo por pesquisadores especializados, resultando na constituição de um extenso corpus de dados na forma de coleções etnográficas, arqueológicas, fotográficas, cartográficas, fonográficas e anotações e registros etnográficos, demográficos e sanitários.
Embora a localização geográfica do Alto Xingu lhe permitisse estar relativamente resguardado de intrusões, isso não impediu que os povos xinguanos fossem gravemente afetados por sucessivas epidemias entre meados do século XIX e o ano de 1954, quando houve uma devastadora epidemia de sarampo. Os efeitos acumulativos dessas epidemias, somados ao estabelecimento de instituições do estado brasileiro, como a Força Aérea Brasileira, transformaram profundamente os povos da região e as relações entre eles e deles com a sociedade nacional. As primeiras pesquisas sistemáticas lá realizadas ocorreram sob esse contexto de intensas e traumáticas transformações.
Entre o final da década de 1940 e meados da década de 1960, os riscos de epidemias e genocídio forçaram um movimento de concentração das aldeias dos povos xinguanos a uma distância radial inferior a cinquenta quilômetros do posto administrativo Capitão Vasconcelos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), fundado em 1948. Esse movimento de concentração só começou a ser revertido no início de década de 1990. Os Wauja, por exemplo, fundaram a aldeia Ulupuwene no Alto Batovi, na esquina sudoeste da Terra Indígena do Xingu (TIX), em 2010, reocupando, muitas décadas depois, uma parte de seu território ancestral e se estabelecendo, de modo permanente, na maior proximidade possível do importante sítio sagrado Kamukuwaká, que ainda continua fora dos limites demarcados da TIX, infelizmente. A estabilização da segurança sanitária, o crescimento demográfico contínuo e acelerado a partir da década de 1980 e a transferência da administração da TIX para os indígenas, em 1982, permitem um novo cenário político e, com ele, a projeção nacional de lideranças xinguanas, que assumiram um papel de articuladores e mobilizadores durante a redemocratização e até os anos recentes. Os trabalhos de campo que baseiam os artigos desse dossiê foram realizados nesse período de expansão demográfica e de intensificação das relações com as cidades do entorno da TIX e para além delas, que resultaram num maior acesso dos xinguanos a serviços educacionais, especialmente formação graduada e pós-graduada, e novas oportunidades econômicas.
Perspectivas panorâmicas sobre o Alto Xingu já foram apresentadas em duas coletâneas que precedem este dossiê. A primeira (Coelho, 1993Coelho, V. P. (Org.). (1993). Karl von den Steinen: um século de Antropologia no Xingu. Edusp.) e a segunda (Franchetto & Heckenberger, 2001Franchetto, B., & Heckenberger, M. (2001). (Orgs.). Os povos do Alto Xingu: história e cultura. Editora da UFRJ.) publicaram resultados de pesquisas de campo realizadas, respectivamente, entre as décadas de 1950 e 1980 e entre as décadas de 1970 e 1990. Pesquisas realizadas na década de 1970 sobrepõem-se, portanto, em ambas, adensando um panorama resultante do progressivo investimento em pesquisa pós-graduada no Brasil na segunda metade do século XX.
As duas primeiras décadas do século XXI foram bastante frutíferas para pesquisas monográficas e multidisciplinares no Alto Xingu, contemplando novos temas e abordagens, e aprofundando o desenvolvimento teórico em torno de temas paradigmáticos na região. Não apenas as pesquisas em antropologia, arqueologia e linguística se consolidaram, mas também o contexto da vida indígena no Brasil, e no Alto Xingu, atravessaram transformações significativas, com efeitos próprios sobre teorias e métodos, bem como sobre interpretações e paradigmas.
O presente dossiê, dividido em duas partes, reúne os resultados dessas transformações em doze artigos científicos multitemáticos, construídos a partir de pesquisas realizadas entre seis povos indígenas do Alto Xingu – Wauja, Mehinako e Yawalapíti (de língua arawak), Kalapalo e Kuikuro (de língua carib) e Kamayurá (de língua tupi-guarani). A primeira parte do dossiê traz artigos de autoria de Patrícia Rodrigues-Niu e Mafalda Ramos (“Entre o céu e a terra: subsídios para uma arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos”), Kanawayuri Kamaiurá e Mayaru Kamayurá (“Arquivo Kamayurá: pesquisa, documentação e transmissão da memória”), Marina Novo (“Territórios em expansão: reflexões sobre transformações recentes em uma aldeia kalapalo”), Amanda Horta (“Aqui não é igual aldeia: encontros entre indígenas do Território Indígena do Xingu, na cidade de Canarana, Mato Grosso, Brasil”), Carlos Costa (“A luta esportiva nos rituais pós-funerários: corporalidade, chefia e disputa política no Alto Xingu”) e João Carlos Almeida (“Esboço biográfico de Aritana Yawalapíti: a formação de um chefe prototípico”). A segunda parte do dossiê será publicada no volume 18, número 3, setembro - dezembro 2023, do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Apresentamos aqui os artigos da primeira parte.
Rodrigues-Niu e Ramos (2023)Rodrigues-Niu, P. F., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma Arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
apresentam um estudo arqueológico das práticas de sentido na longa duração a partir da abordagem de padrões de uso, mobilidade e (re)ocupação da paisagem na região da bacia do rio Kamukuwakewene/Batovi. As autoras analisam a combinação de sentidos temporais lineares e não lineares que definem o carácter multitemporal desse território. A análise abrange, ainda, os significados simbólicos de um dos sítios sagrados mais importantes para a cosmologia xinguana, a Gruta de Kamukuwaká, morada do chefe primordial homônimo.
O artigo de Kamaiurá e Kamayurá (2023)Kamaiurá, K., & Kamayurá, M. (2023). Arquivo Kamayurá: pesquisa, documentação e transmissão da memória. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220086. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0086
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
descreve a pesquisa que embasa a constituição do Arquivo Kamayurá, um projeto de reconhecimento e avaliação de registros histórico-antropológicos com os objetivos de sua salvaguarda e transmissão de conhecimentos kamayurá para futuras gerações. O Arquivo vem selecionando materiais coletados por pesquisadores antropólogos e linguistas que trabalharam ou que ainda trabalham com os Kamayurá desde a década de 1960.
Novo (2023)Novo, M. P. (2023). Territórios em expansão: reflexões sobre transformações recentes em uma aldeia Kalapalo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220012. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0012
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
analisa as transformações econômicas e sociais decorrentes da introdução de novas tecnologias de comunicação, de uma via de acesso terrestre às cidades e de novas relações monetárias. O argumento principal da autora é de que esses elementos “possibilitam aos Kalapalo a criação de conexões espaço-temporais, aproximando territórios e pessoas antes desconectados” (Novo, 2023Novo, M. P. (2023). Territórios em expansão: reflexões sobre transformações recentes em uma aldeia Kalapalo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220012. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0012
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
, p. 1).
O artigo de Horta (2023)Horta, A. (2023). Aqui não é igual aldeia: encontros entre indígenas do Território Indígena do Xingu, na cidade de Canarana, Mato Grosso, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220017. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0017
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
analisa a socialidade indígena na cidade de Canarana e suas relações de continuidade e descontinuidade com a socialidade nas aldeias do Alto Xingu, com ênfase sobre as gradações de parentesco e o tema da boa distância.
O artigo seguinte, de autoria de Costa (2023)Costa, C. E. (2023). A luta esportiva nos rituais pós-funerários: corporalidade, chefia e disputa política no Alto Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220019. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0019
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
, realiza uma revisão conceitual e etnográfica sobre a luta corporal xinguana (kindene) a partir de trabalhos de campo do autor feitos entre os Kalapalo. Kindene é analisada como elemento fundamental da produção de chefes (anetü), ou seja, um tipo específico de pessoa, cujo prestígio político é reconhecido, entre outras coisas, pelo tratamento que seu corpo recebe de seus genitores durante a reclusão pubertária e pela sua habilidade como lutador de kindene.
O dossiê é concluído com o artigo de Almeida (2023)Almeida, J. C. (2023). Esboço biográfico de Aritana Yawalapíti: a formação de um chefe prototípico. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220023. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0023
https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELD...
, dedicado à biografia de Aritana Yawalapíti, considerado um chefe de caráter modelar, de capacidades diplomáticas excepcionais, com profundo conhecimento da ritualística e da etiqueta xinguana. Sua biografia oferece elementos importantes para entender a noção xinguana de chefe prototípico e de reconhecimento supralocal. O falecimento de Aritana em 2020 causou imensa tristeza em todas as aldeias do Alto Xingu, e as principais delas cumpriram ritos de luto em solidariedade à sua família. Muitos dos autores deste dossiê tiveram o prazer e o privilégio de desfrutar da sua generosidade, de presenciar seus modos elegantes e de testemunhar o extraordinário senso de responsabilidade com que Aritana conduziu a vida política e ritual do Alto Xingu. Os autores do dossiê deixam aqui registradas sua estima e admiração por esse grande dono de apapalu.
A partida de Aritana e, com ele, de muitas outras pessoas de referência nas comunidades xinguanas aconteceu por ocasião da epidemia de SARS-CoV-2. Essa ocasião radicalmente adversa, e que trazia tantas memórias difíceis de outros momentos de sua história, foi enfrentada pelos povos do Alto Xingu com sua já bem conhecida clareza, organização e resistência. Já cumpridos os lutos formais dessas perdas, evitamos aqui enfatizar a tristeza, esperando que os estudos que seguem sejam gestos de compromisso continuado dos pesquisadores que atuam na região com a lição xinguana de se restabelecer regularmente a força da vida.
-
Barcelos Neto, A., & Valentini, L. (2023). Introdução ao dossiê “Antropologia, arqueologia e linguística no Alto Xingu”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20230037. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0037.
REFERÊNCIAS
- Almeida, J. C. (2023). Esboço biográfico de Aritana Yawalapíti: a formação de um chefe prototípico. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220023. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0023
» https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0023 - Coelho, V. P. (Org.). (1993). Karl von den Steinen: um século de Antropologia no Xingu Edusp.
- Costa, C. E. (2023). A luta esportiva nos rituais pós-funerários: corporalidade, chefia e disputa política no Alto Xingu. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220019. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0019
» https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0019 - Franchetto, B., & Heckenberger, M. (2001). (Orgs.). Os povos do Alto Xingu: história e cultura Editora da UFRJ.
- Galvão, E. (1950). O uso do propulsor entre as tribos do Alto Xingu. Revista do Museu Paulista, Nova Série, (4), 353-368.
- Galvão, E. (1953). Cultura e sistema de parentesco das tribos do Alto Rio Xingu. Boletim do Museu Nacional, Nova Série, Antropologia, (14), 1-56.
- Heckenberger, M. (2001). Estrutura, história e transformação: a cultura xinguana na longue durée, 1000-2000 d.C. In B. Franchetto & M. Heckenberger (Orgs.), Os povos do Alto Xingu: história e cultura (pp. 21-62). Editora UFRJ.
- Horta, A. (2023). Aqui não é igual aldeia: encontros entre indígenas do Território Indígena do Xingu, na cidade de Canarana, Mato Grosso, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220017. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0017
» https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0017 - Kamaiurá, K., & Kamayurá, M. (2023). Arquivo Kamayurá: pesquisa, documentação e transmissão da memória. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220086. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0086
» https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0086 - Menezes Bastos, R. J. (1995). Indagação sobre os Kamayurá, o Alto-Xingu e outros nomes e coisas: uma etnologia da sociedade Xinguara. Anuário Antropológico, 19(1), 227-269. https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6592
» https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6592 - Novo, M. P. (2023). Territórios em expansão: reflexões sobre transformações recentes em uma aldeia Kalapalo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220012. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0012
» https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0012 - Rodrigues-Niu, P. F., & Ramos, M. (2023). Entre o céu e a terra: subsídios para uma Arqueologia de territórios multitemporais alto-xinguanos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 18(1), e20220022. http://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022
» https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2022-0022 - Steinen, K. (1886). Durch Central Brasilien Brockhaus.
- Steinen, K. (1894). Unter den Naturvökern Central-Brasiliens Dietrich Reimer.
Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
31 Mar 2023 -
Aceito
01 Abr 2023