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Observações sôbre as modificações em curso na entrada de Cananéia, de sua barra e da região adjacente: I. desgaste das costas. N.º 1 - Ponta da Trincheira (1952)

Observações sôbre as modificações em curso na entrada de Cananéia, de sua barra e da região adjacente. - I. Desgaste das costas. N.º 1 - Ponta da Trincheira (1952)

Viktor Sadowsky

A barra de Cananéia, situada entre as ilhas Comprida e do Cardoso, tem por si só, considerável importância para todo o sistema lagunar do litoral sul do E. de S. Paulo, não somente sob o ponto de vista oceanográfico, mas também sob o aspecto estritamente econômico. Baseada nessas; duas razões, uma equipe do Instituto Oceanográfico, iniciou estudos sistemáticos visando efetuar toda espécie de observações e pesquisas relacionadas com esse importantíssimo local.

Desse plano de trabalho faz parte, também, a investigação do desgaste observado na costa sul da Ilha Comprida. Aliás, esse fenômeno constitue, em si, fato conhecido e que, por se vir repetindo há tempos, permanece vivo na memória da população nativa que afirma terem as águas oceânicas contribuído poderosamente para alargar o canal de algumas dezenas de metros. Realmente, da antiga fortificação portuguesa situada na extremidade SO da Ilha Comprida, resta apenas o nome do cabo: "Ponta da Trincheira". Para que se tenha a possibilidade de avaliar as futuras alterações ocorridas na linha de costa da ilha como* também da largura do canal, com as possíveis conseqüências que tais. fatos venham acarretar para o destino do sistema lagunar e para a navegação nele exercida, é necessário em primeiro lugar que se possuam dados exatos no que concerne a velocidade da marcha da erosão costeira. Foi justamente esta a circunstância que nos levou a iniciar o presente estudo..

Atualmente, o canal do setor observado possue, aproximadamente,, uma largura de 1.200 m. O lugar mais estreito - na face externa da saída - conta com mais ou menos 1.000 m. A profundidade do leito encontra-se no limite de 20 m. Durante as corridas de maré, o movimento das águas está sujeito a ímpeto muito grande, em virtude do fato de ser relativamente muito pequena a largura do canal, em comparação com a enorme superfície do sistema lagunar. O desgaste da costa, ao norte, pode ser explicado pela direção da corrente e pelos ventos dominantes do quadrante sul. A tendência geral, porém, ocasionadora da erosão da linha de costa e do alargamento do canal, reside no fato de estar diminuindo cada vez mais a atividade auxiliar oriunda das duas ou três barras existentes no litoral sul, sobretudo Ararapira e Icapara, em virtude da constituição de barreiras representadas por bancos formados em torno de suas desembocaduras, constituindo assim obstáculos para as vias de penetração necessárias à manutenção do equilíbrio das águas. Em conseqüência disso, deve aumentar sempre a atividade da barra de Cananéia. A opinião geral reinante repousa na suposição de que o desgaste da costa, ao Norte, se ache compensado pelo acréscimo das margens situadas ao sul, não havendo interferência no alargamento do canal mas limitando-se, tão somente, à sua transferência na direção norte, o que contudo não foi comprovado pelas observações efetuadas. Dois pontos de controle situados na margem sul, ainda nada esclareceram sobre a tendência decisiva de qualquer acréscimo em condições normais, na margem da Ilha do Cardoso. Por outro lado, porém, a partir do momento em que tiveram início estas observações, a parte oriental da costa norte, antigamente muito desgastada, não somente cessou de recuar como, pelo contrário, exibiu em diversos lugares novas camadas de areia. Este fato, conforme observação feita pelo Prof. W. Besnard, pode estar correlacionado com o aparecimento de um grande banco de areia, formado justamente no caminho da principal corrente de maré montante (essa corrente é detida pelos baixios arenosos que circundam a entrada a partir dos setores que vão do N e NE até SW) . Segundo as mais recentes observações efetuadas em companhia do Diretor do Instituto, supomos que, por ocasião da maré média esse banco possuía superfície de, aproximadamente, 28 hectares, elevando-se, no local mais alto, a aproximadamente 1 m. Esse obstáculo exerce influência particular, à vista de estar opondo resistência à corrente habitual, auxiliando ao mesmo tempo, o afluxo de águas oceânicas nos rumos E e W, águas essas que, ao se dirigirem da barra de Cananéia até a região lagunar, não mais atingem e, conseqüentemente, não desgastam a margem oriental da costa norte.

A costa sul da Ilha Comprida, sempre sujeita à erosão, possue a seguinte constituição: a parte superior, acha-se coberta de mato que cresce sobre uma camada de solo vegetal de 15 a 25 cm de espessura. Em seguida vem uma camada de areia fina, limpa e alva, de 120 a 135 cm. A areia da porção superior é branca; na inferior, porém, mais densa, sua coloração é marron escuro avermelhado. Essas formações acham-se sobrepostas em espessa camada, conhecida no local pelo nome de "piçarra", provavelmente arenito em formação nitidamente estratificado (foto 1), cuja espessura depende da altura total da costa e já descrita no trabalho de Besnard (1950, p. 16-17). (1 (1 ) Pela designação de "piçarra", na região, são compreendidas as areias de antigas praias, impregnadas de material orgânico escuro, provenientes de manguesais. Trata-se, aparentemente, do mesmo tipo de sedimentos costeiros recentes, aos quais João J. Bigarella (1946, p. 96, 101-102) aplicou o nome mangrovita, nas ocorrências encontradas na planície litorânea paranaense. No final do presente trabalho, em anexo, reproduzimos uma análise granulométrica, mineralógica e fasciológica dos referidos sedimentos, feita pelo Dr. Rui O. de Freitas, do Depto. de Geol. e Paleont. da Fac. de Fil. da U. S. P. ) A atual constituição da costa explica as diversas velocidades da erosão. Assim, nas partes mais elevadas, que têm por base a sólida camada semelhante à piçarra, a erosão está se produzindo com mais lentidão, pois a ressaca abre cavidades nas quais se arremessam depois as camadas superiores. Nos locais mais baixos, a destruição provocada pela ressaca atua sobre a parte basal menos compacta, sobre as camadas facilmente removíveis de areia (foto 2). Em uma extremidade do setor observado, em situação muito baixa, as ondas de uma maré excepcionalmente alta (3.01 cm sobre o 0 teórico da Base do Instituto Oceanográfico) oriunda de uma tempestade vinda de SE, penetraram no terreno marginal, invadindo cerca de 8 m de extensão.

No segundo semestre de 1952, foi submetido à investigação um setor de, mais ou menos, 200 m da margem, iniciando-se no cabo SW e na direção E. O primeiro setor observado é mais elevado e conta, em média, com uma altura de 4 m. O segundo dista, aproximadamente, 70 m do primeiro; nele, a altura da costa é menor, atingindo em média 2 m, havendo mesmo, em alguns lugares, de 140 a 150 cm acima do nível superior da praia.

A fim de calcularmos a rapidez (tempo) da erosão, utilizamos, ao longo de todo o setor, uma corrente exibindo os pontos de controle ligados entre si, por meio dos quais já se efetua um trabalho sistemático de registro. Como centro, escolheu-se primeiramente o ponto geodésico do Instituto Oceanográfico, antigamente situado na parte SW da Ilha. Em seguida, porém, quando a erosão da costa começou a ameaçar a sua integridade, promoveu-se a transferência desse ponto para o interior da ilha, onde a sua posição foi também aproveitada para o estabelecimento de uma segunda linha muito mais eficiente, de pontos de controle. Para esse fim, em direção determinada (Ra 118º Z), abriu-se uma picada, situada a cerca de 10 a 12 m da orla costeira. Essa via de penetração foi dividida em setores medindo 10 m e de cada ponto representativo dessa divisão (de 10 m) traçou-se uma linha reta em direção à barra, em cuja extremidade figurava o ponto de controle. Deste último, efetuaram-se sistematicamente os cálculos a respeito do desgaste da costa. Nos locais em que a ação da ressaca se mostrou mais intensa, ergueram-se alguns pontos auxiliares de observação. Em virtude de dificuldades de ordem técnica, controlou-se somente a margem principal da ilha, não se tendo levado em consideração os depósitos de areia na face E ou S da barra. O trabalho teve início em data de 15-4-52, tendo-se planejado o seu prosseguimento até data indeterminada. Os cálculos das medidas são efetuados todo o dia 15 de cada mês. O quadro abaixo representa o croquis do setor estudado, em que figuram os pontos de controle.

Croquis (pg. 204)

Quanto ao andamento do desgaste, poderá êle ser avaliado pelo exame do quadro seguinte:

Pelo que se deduz dos fatos acima enumerados, a mais forte erosão verifica-se por ocasião das grandes tempestades do mês de Maio e, em parte, do de Outubro. Os grandes desgastes verificados no mês seguinte, decorrem da queda das margens nas cavidades abertas pela ação das vagas, verificada no mês anterior.

Estas observações preliminares baseam-se, unicamente, nos resultados obtidos durante os primeiros seis meses de trabalho. Desde que se conclua o primeiro ciclo anual, é possível e até provável que se constatem modificações nos fatos inicialmente registados, o que naturalmente poderá influir nas explicações preliminares aqui expostas.

Atualmente, continua-se a trabalhar no sentido de aumentar o número de pontos de controle em toda a costa norte.

CONCLUSÕES

1) Do que se poude verificar no decurso dêsses meses, chegar-se-á à seguinte hipótese: A ação erosiva da Ponta da Trincheira parece ser o resultado de dois fenômenos similares e, ao mesmo tempo, distintos:

a) desgaste constante mas relativamente fraco devido principalmente à ação das vagas vindas dos setores de ventos predominantes dos quadrantes S e SE;

b) correntes de montante que provocam a evacuação dos materiais retirados pelas vagas.

Até o presente, não nos é dado ainda indicar, de maneira plausível, os locais em que esse material se deposita, podendo-se contudo admitir a possibilidade de que o baixio grande seja, em parte, conseqüência dessa ação. De fato, a porção desse baixio que se acha voltada para a barra (rumo L) é composta de areia fina que, sem dúvida, não pode representar elemento terrígeno proveniente da parte adjacente da Ilha de Cananéia, que é pantanosa e coberta de mangue.

2) As violentas tempestades vindas sempre de S e SE, sobretudo quando coincidem com a preamar (tal como se verificou em Maio de 1952), ocasionam modificações rápidas e intensas, de que as circunstâncias acima enumeradas se aproveitam para efetuar o seu trabalho de desgaste quotidiano.

3) É possível que a nossa suposição a respeito das recentes modificações de direção da corrente de montante seja prematura, mas, em todo o caso, é conveniente atentar para a coincidência da formação de um enorme acúmulo de areia, justamente no antigo canal que passava perto da Ponta de Itacuruçá, com a extrema rapidez com que se processou o desgaste da Ponta da Trincheira. Atualmente, da primeira ponta, parte uma língua arenosa que segue em direção ao baixio, só deixando entre êste e a Ilha do Cardoso, uma passagem navegável de, aproximadamente, 30 m.

Finalizando, julgamos razoável a seguinte suposição. A medida que se processa o desgaste da Ponta da Trincheira e que se verifica o recuo sempre crescente, rumo W, da ponta E da Ilha do Cardoso, as correntes de maré vão se modificando gradualmente. Essa progressão acentuar-se-á cada vez mais, robustecendo sempre o braço N da corrente, isto é, o que ruma para o Mar de Cananéia. Pode-se admitir que, dentro do período de mais ou menos um ano, o regime de correntes será seriamente modificado, circunstância que poderá, sobretudo, afetar as águas de profundidade da Baía de Trapandé e do Mar do Cubatão.

ANÁLISE DAS AMOSTRAS DE CANANÉIA

AMOSTRA N.º 2

I - Granulometria

Pêso da amostra 40 gramas

RESULTADO: Areia bem selecionada. Classe mais freqüente ..... 82,5º Coeficiente de seleção ..... 1,22 Primeiro quartel ..... 0,200 mm Terceiro quartel ..... 0,130 mm Diâmetro mediano .... 0,165 mm

II - Composição Mineralógica

A - Minerais Pesados 1 - Distênio 1 a 4: alotígenos ou detritais 2 - Zirconita 3 - Granada 4 - Turmalina 5 - Baritina 5: autígeno

B - Leves

1 - Quartzo

C - Matéria orgânica abundante

III - Conclusão : Sedimento mixto de origem marinha e continental. Origem marinha: boa seleção da areia. Origem continental: Matéria orgânica abundante. Trata-se de um depósito de praia elevado por epeirogênese e tomado por mangues. Fonte do sedimento : pelos minerais pesados verifica-se que o sedimento provém da degradação de rochas metamórficas.

BIBLIOGRAFIA

  • BESNARD, W., 1950. Considerações gerais em torno da região lagunar de Cananéia-Iguape. I - Bol. Inst. Paulista de Oceanografia, vol. I, n.ş 1, p. 9-26. S. Paulo.
  • BIGARELLA, J. J., 1946. Contribuição ao estudo da planície litorânea do Estado do Paraná. Arq. Biol. Tecn, do I. B. P. T. Curitiba, Parnaá, v. 1, art. 7, p. 75-111, 44 t., maps. Curitiba.
  • (1
    ) Pela designação de "piçarra", na região, são compreendidas as areias de antigas praias, impregnadas de material orgânico escuro, provenientes de manguesais. Trata-se, aparentemente, do mesmo tipo de sedimentos costeiros recentes, aos quais João J. Bigarella (1946, p. 96, 101-102) aplicou o nome
    mangrovita, nas ocorrências encontradas na planície litorânea paranaense. No final do presente trabalho, em anexo, reproduzimos uma análise granulométrica, mineralógica e fasciológica dos referidos sedimentos, feita pelo Dr. Rui O. de Freitas, do Depto. de Geol. e Paleont. da Fac. de Fil. da U. S. P.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 1952
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