Resumo
A traqueostomia é procedimento frequentemente realizado em doentes críticos com ventilação mecânica prolongada ou presumidamente prolongada, embora suas indicações, benefícios e riscos sejam controversos. O termo de consentimento livre e esclarecido é necessário para procedimentos cirúrgicos e tem sido amplamente instituído, devendo ser obtido antes da traqueostomia em pacientes críticos. Este artigo faz revisão narrativa das indicações do procedimento e, considerando-o no caso de doentes críticos, aborda a aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido. Discutiram-se aspectos teóricos; o que deve constar nos documentos escritos; o que deve ser verbalizado para os doentes e seus familiares, além de outros aspectos práticos. Concluiu-se que os atuais termos de consentimento para traqueostomia em doente crítico não privilegiam a autonomia, pois evitam alocação de recursos para indicação do procedimento.
Traqueostomia; Cuidados críticos; Termos de consentimento
Abstract
Although tracheostomies are often performed in critical patients with prolonged or presumed prolonged mechanical ventilation, the recommendation, benefits and risks of the procedure remain controversial. Informed consent is widely established as a necessary process in surgical procedures and should be obtained prior to the performing of a tracheostomy. The present article provides a narrative review of the process of the medical recommendation of this procedure and, through the use of the tracheostomy in the critical patient, addresses the application of the informed consent term. Theoretical aspects are discussed, such as what should be included in written documents and what should be verbally explained to patients and their families, together with other practical aspects. It was found that the current terms of consent for tracheostomies in critical patients do not prioritize autonomy, as they avoid the allocation of the resources necessary for the recommendation of the procedure.
Tracheostomy; Critical care; Informed consent
Resumen
La traqueotomía es un procedimiento frecuentemente realizado en pacientes críticos con ventilación mecánica prolongada o presumiblemente prolongada, aunque sus indicaciones, beneficios y riesgos sean controvertidos. El documento de consentimiento libre e informado es necesario para la realización de procedimientos quirúrgicos y ha sido ampliamente instituido, debiendo ser obtenido antes de la traqueostomía en pacientes críticos. El presente artículo hace una revisión narrativa de las indicaciones de este procedimiento y, considerándolo en el caso de pacientes críticos, aborda la aplicación del documento de consentimiento libre e informado. Se discutieron aspectos teóricos; lo que debe constar en los documentos escritos; lo que debe ser verbalizado a los enfermos y a sus familiares, además de otros aspectos prácticos. Se concluye que los actuales documentos de consentimiento para traqueostomía en el paciente crítico no privilegian la autonomía, pues evitan la asignación de recursos para la indicación del procedimiento.
Traqueostomia Cuidados críticos; Término de consentimiento
A traqueostomia no doente crítico é frequentemente indicada pelos intensivistas em casos de tempo prolongado ou presumidamente prolongado de ventilação mecânica. Nessas circunstâncias, o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) deve ser obtido para realizar o procedimento. Para tanto, é necessário que os profissionais de saúde compreendam melhor os aspectos bioéticos envolvidos, considerando indicações, potenciais benefícios, riscos e alternativas.
Indicações e potenciais benefícios da traqueostomia
São considerados benefícios da traqueostomia em doentes críticos: redução de alterações anatômicas laríngeas e de carga inspiratória, e maior tolerância e facilidade do cuidado de enfermagem em relação a intubação orotraqueal 11. Pelosi P, Severgnini P. Tracheostomy must be individualized! Crit Care. [Internet]. 2004 [acesso 10 maio 2017];8(5):322-4. DOI: 10.1186/cc2966. A maioria desses benefícios é de difícil quantificação, e a identificação de desfechos mais consistentes é necessária. Revisões sistemáticas e metanálises têm comparado o melhor momento (precoce versus tardia versus não realização de traqueostomia) e a melhor técnica (cirúrgica ou percutânea por dilatação).
Andriolo e colaboradores 22. Gomes Silva BN, Andriolo RB, Saconato H, Atallah AN, Valente O. Early versus late tracheostomy for critically ill patients. Cochrane Database Syst Rev. [Internet]. 2015 jan 12 [acesso 10 maio 2017];1:CD007271. DOI: 10.1002/14651858.CD007271 em recente metanálise revisaram a literatura comparando traqueostomia precoce (≤ 10 dias) e tardia (> 10 dias) no cuidado de doentes criticamente enfermos, na qual foram incluídos oito estudos e 1.977 participantes. O resultado indicou redução de mortalidade para doentes submetidos à traqueostomia precoce em períodos variáveis entre 28 dias e dois anos. Contudo, os autores sugeriram que esses dados devem ser interpretados com cautela, pois a informação sobre subgrupos foi insuficiente, assim como características individuais associadas a maior benefício da traqueostomia precoce. Os resultados relacionados ao tempo de ventilação mecânica não foram considerados definitivos, mas apontaram benefício do procedimento. Não houve diferença em relação à incidência de pneumonia.
Meng e colaboradores 33. Meng L, Wang C, Li J, Zhang J. Early vs late tracheostomy in critically ill patients: a systematic review and meta-analysis. Clin Respir J. [Internet]. 2016 [acesso 10 maio 2017];10(6):684-92. DOI: 10.1111/crj.12286 compararam traqueostomia precoce (≤ 10 dias) e tardia (> 10 dias) considerando nove estudos randomizados e 2.040 participantes. Não foram encontradas diferenças em relação a mortalidade (hospitalar ou 30 dias), período de ventilação mecânica e internação na unidade de terapia intensiva (UTI). Doentes submetidos a traqueostomia precoce apresentaram menor tempo de sedação.
Huang e colaboradores 44. Huang H, Li Y, Ariani F, Chen X, Lin J. Timing of tracheostomy in critically ill patients: a meta-analysis. PLoS One. [Internet]. 2014 [acesso 11 maio 2017];9(3):e92981. DOI: 10.1371/journal.pone.0092981, em metanálise anterior, compararam traqueostomia precoce (≤ 10 dias), traqueostomia tardia (> 10 dias) e não realização de traqueostomia, analisando os últimos dois grupos conjuntamente. Verificaram-se nove estudos randomizados com 2.072 participantes. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas em relação a mortalidade aos 90 dias, tempo de ventilação mecânica e internação na UTI, e incidência de pneumonia.
Interessante resultado foi alcançado por Siempos e colaboradores 55. Siempos II, Ntaidou TK, Filippidis FT, Choi AMK. Effect of early versus late or no tracheostomy on mortality and pneumonia of critically ill patients receiving mechanical ventilation: a systematic review and meta-analysis. Lancet Respir Med. [Internet]. 2015 [acesso 11 maio 2017];3:150-8. DOI: 10.1016/S2213-2600(15)00007-7, que realizaram metanálise de 13 estudos com 2.434 pacientes, comparando separadamente três grupos: doentes submetidos a traqueostomia precoce (≤ 1 semana) ou tardia (> 1 semana) e doentes não traqueostomizados. Também não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas em relação à mortalidade na UTI ou após um ano em qualquer dos três grupos. No entanto, doentes submetidos à traqueostomia precoce apresentaram menor incidência de pneumonia associada a ventilação mecânica.
McCredie e colaboradores 66. McCredie VA, Alali AS, Scales DC, Adhikari NKJ, Rubenfeld GD, Cuthbertson BH et al. Effect of early versus late tracheostomy or prolonged intubation in critically ill patients with acute brain injury: a systematic review and meta-analysis. Neurocrit Care. [Internet]. 2017 [acesso 11 maio 2017];26(1):14-25. DOI: 10.1007/s12028-016-0297-z publicaram recentemente metanálise incluindo dez estudos com 503 vítimas de injúria cerebral aguda (traumatismo cranioencefálico, hemorragia subaracnóidea aneurismática, acidente cérebro-vascular, pós-craniotomia, anóxia pós-parada cardiorrespiratória, estado epilético, meningite, encefalite e abscesso cerebral) comparando traqueostomia precoce (≤ 10 dias), tardia (> 10 dias) e não realização de traqueostomia. A precoce reduziu mortalidade em longo prazo (6 a 12 meses) e duração de ventilação mecânica, mas não mortalidade em curto prazo (intra-hospitalar ou em até 60 dias).
Cai e colaboradores 77. Cai S, Hu J, Liu D, Bai X, Xie J, Chen J et al. The influence of tracheostomy timing on outcomes in trauma patients: a meta-analysis. Injury. [Internet]. 2017 [acesso 11 maio 2017];48(4):866-73. DOI: 10.1016/j.injury.2017.02.023 avaliaram por metanálise os desfechos de vítimas de traumatismo cranioencefálico submetidas a traqueostomia precoce e a traqueostomia tardia ou não traqueostomizados. Não foi especificado o limite de tempo para definir precoce ou tardia. Esses intervalos variaram de até 4 dias para traqueostomia precoce e mais de 28 dias para traqueostomia tardia. Foram incluídos 20 estudos com 7.751 participantes. Os doentes submetidos a traqueostomia precoce apresentaram menor mortalidade, redução de tempo de internação em UTI ou hospital, de ventilação mecânica, e menor risco de pneumonia.
Embora a prevenção de estenose infraglótica seja considerada potencial benefício da traqueostomia, complicações de vias aéreas também podem ocorrer após o procedimento 88. Zias N, Chroneou A, Tabba MK, Gonzalez AV, Gray AW, Lamb CR et al. Post tracheostomy and post intubation tracheal stenosis: report of 31 cases and review of the literature. BMC Pulmonary Medicine. [Internet]. 2008 [acesso 10 maio 2017];8:18. DOI: 10.1186/1471-2466-8-18. Uma das complicações é a estenose traqueal, geralmente na região do estoma, que pode exigir intervenção cirúrgica com taxa de mortalidade pós-operatória de até 5% 99. Grillo HC, Donahue DM, Mathisen DJ, Wain JC, Wright CD. Postintubation tracheal stenosis: treatment and results. J Thorac Cardiovasc Surg. [Internet]. 1995 [acesso 9 maio 2017];109(3):486--92. DOI: 10.1016/S0022-5223(95)70279-2.
Mais recentemente, a técnica dilatacional percutânea tem sido preconizada como forma de evitar complicações da traqueostomia cirúrgica 1010. Putensen C, Theuerkauf N, Guenther U, Vargas M, Pelosi P. Percutaneous and surgical tracheostomy in critically ill adult patients: a meta-analysis. Crit Care. [Internet]. 2014 [acesso 9 maio 2017];18(6):544. DOI: 10.1186/s13054-014-0544-7. Pesquisa com 429 médicos de 59 países confirmou a disseminação da técnica com dilatação única, adotada em 42% dos casos, 74% destes realizados por médicos intensivistas. A traqueostomia cirúrgica correspondeu a 24% dos procedimentos.
O predomínio da técnica percutânea por dilatação única resulta da representação de países europeus no estudo, já que fora da Europa a técnica cirúrgica prevalece (36%) sobre as percutâneas analisadas separadamente. A maioria das traqueostomias cirúrgicas (84%) foi feita na própria UTI. As traqueostomias foram realizadas após 7 a 15 dias de admissão na UTI, geralmente indicadas por ventilação mecânica prolongada (54%) acompanhada por desmame difícil ou prolongado (24%) 1111. Vargas M, Sutherasan Y, Antonelli M, Brunetti I, Corcione A, Laffey JG et al. Tracheostomy procedures in the intensive care unit: an international survey. Crit Care. [Internet]. 2015 [acesso 12 maio 2017];19:291. DOI: 10.1186/s13054-015-1013-7.
Embora sejam relatadas menores taxas de perda sanguínea e de complicações infecciosas com traqueostomia percutânea, não parece haver menor taxa de estenose traqueal 1212. Freeman BD, Morris PE. Tracheostomy practice in adults with acute respiratory failure. Crit Care Med. [Internet]. 2012 [acesso 12 maio 2017];40(10):2890-6. DOI: 10.1097/CCM.0b013e31825bc948. Complicações relacionadas ao procedimento cirúrgico são relativamente frequentes, embora evitáveis, geralmente associadas a material indisponível, treinamento inadequado de pessoal e falhas de comunicação 1313. Mortimer H, Kubba H. A retrospective case series of 318 tracheostomy-related adverse events over 6 years: a scottish context. Clin Otolaryngol. [Internet]. 2017 [acesso 9 maio 2017];42(4):936-40. DOI: 10.1111/coa.12774. Em relação à técnica percutânea, óbitos também têm sido relatados com incidência de 0,17% 1414. Simon M, Metschke M, Braune SA, Püschel K, Kluge S. Death after percutaneous dilatational tracheostomy: a systematic review and analysis of risk factors. Crit Care. [Internet]. 2013 [acesso 30 maio 2017];17(5):R258. DOI: 10.1186/cc13085.
Argumento favorável à indicação de traqueostomia em doentes críticos é a possibilidade de transferir seu cuidado para unidades semi-intensivas ou mesmo abertas, disponibilizando leitos críticos para outros doentes 1515. Venkat A. The threshold moment: ethical tensions surrounding decision making on tracheostomy for patients in the intensive care unit. J Clin Ethics. 2013;24(2):135-43. PMID: 23923812. Alguns doentes recebem alta da UTI com equipamentos de ventilação não invasiva usados invasivamente por traqueostomias. No entanto, a presença de cânulas de traqueostomia em unidades de internação é fator associado a maior mortalidade hospitalar 1616. Martinez GH, Fernandez R, Casado MS, Cuena R, Lopez-Reina P, Zamora S et al. Tracheostomy tube in place at intensive care unit discharge is associated with increased ward mortality. Respir Care. 2009;54(12):1644-52. PMID: 19961629, e o cuidado multidisciplinar parece reduzir complicações nesses casos 1717. Garrubba M, Turner T, Grieveson C. Multidisciplinary care for tracheostomy patients: a systematic review. Crit Care. [Internet]. 2009 [acesso 26 maio 2017];13(6):R177. DOI: 10.1186/cc8159.
A necessidade de traqueostomia consta em definições de doentes críticos crônicos, subgrupo com elevada mortalidade intra-hospitalar, internações prolongadas, sequelas neurocognitivas e musculares e, principalmente, dependência de ventilação mecânica por períodos mais longos 1818. Marchioni A, Fantini R, Antenora F, Clini E, Fabbri L. Chronic critical illness: the price of survival. Eur J Clin Invest. [Internet]. 2015 [acesso 29 maio 2017];45(12):1341-9. DOI: 10.1111/eci.12547.
De maneira geral parece haver benefício de traqueostomia precoce em doentes com injúrias neurológicas agudas em relação a traqueostomia tardia ou não realização do procedimento. Embora a traqueostomia precoce seja um pouco melhor que a tardia para o restante da população de doentes críticos, nenhum dos dois grupos em estudo parece ser definitivamente superior a não realização de traqueostomia e manutenção prolongada de intubação traqueal.
As potenciais complicações do procedimento, precoce ou tardio, também não devem diminuir ou ser decisivamente influenciadas pela adoção de técnica cirúrgica ou percutânea. É fundamental ainda reconhecer os riscos de transferir doentes para unidades abertas.
Teoria e prática do consentimento livre e esclarecido
A importância do consentimento informado foi evidenciada pela primeira vez em 1767 na Inglaterra, em julgamento a respeito de cirurgia realizada contra a vontade de um doente (caso Slater versus Baker & Stapleton) 1919. Shokrollahi K. Request for treatment: the evolution of consent. Ann R Coll Surg Engl. [Internet]. 2010 [acesso 11 maio 2017];92(2):93-100. DOI: 10.1308/003588410X12628812458851. Desde então se tornou tácita ou explicitamente estabelecido solicitar autorização expressa, do doente ou de seus representantes legais, para procedimentos invasivos 2020. Motta KM. Consentimento informado na prática médica. In: Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro. Bioética e medicina. Rio de Janeiro: Cremerj; 2006. p. 79-82.. O objetivo do consentimento informado é garantir o exercício da autonomia a partir do conhecimento das indicações, benefícios, riscos e alternativas terapêuticas 2121. Silva MF. Consentimento informado: estratégia para mitigar a vulnerabilidade na assistência hospitalar. Rev. bioét. (Impr.). [Internet]. 2017 [acesso 10 maio 2017];25(1):30-8. DOI: 10.1590/1983-80422017251163.
O consentimento deve resultar, mais do que de adequada informação unilateral, da comunicação efetiva entre os dois agentes: o médico que fornece as informações e o doente ou seu representante legal. Esses últimos são os legítimos sujeitos da ação ao consentir ou não com o procedimento. Por outro lado, transmitir unilateralmente a informação pode manter a atitude paternalista do profissional de saúde.
A assimetria entre emissor e receptor da informação deve-se a um problema de tradução do termo inglês informed consent para “consentimento informado” ou mesmo da versão francesa para “consentimento livre e esclarecido” (utilizada em nosso meio). Com a tradução, o sentido de comunicação e interação entre os indivíduos parece ter se perdido 2222. Schramm FR. Comunicação e consentimento na pesquisa e na clínica: análise conceitual. Rev. bioét. (Impr.). [Internet]. 2017 [acesso 1º jun 2017];25(1):11-8. DOI: 10.1590/1983-80422017251161, o que pode limitar a autonomia de quem consente com a prática da traqueostomia, especialmente ao se considerar o exíguo benefício e os riscos envolvidos.
A comunicação inadequada também pode gerar falsas expectativas frequentemente relatadas por doentes e familiares, os quais podem deduzir que a traqueostomia seja passo positivo para a evolução do quadro clínico 2323. Sherlock ZV, Wilson JA, Exley C. Tracheostomy in the acute setting: patient experience and information needs. J Crit Care. [Internet]. 2009 [acesso 9 maio 2017];24(4):501-7. DOI: 10.1016/j.jcrc.2008.10.007. Além disso, a indicação do procedimento como forma de transição do cuidado baseada no princípio da justiça, visando melhor alocação de leitos críticos, muitas vezes não é verbalizada pelos intensivistas, embora também faça parte do arcabouço teórico do TCLE 2424. Rincon F, Lee K. Ethical considerations in consenting critically ill patients for bedside clinical care and research. J Intensive Care Med. [Internet]. 2015 [acesso 9 maio 2017];30(3):141-50. DOI: 10.1177/0885066613503279. Assim, a beneficência torna-se secundária e a autonomia, limitada.
O referencial bioético de princípios básicos (beneficência, não maleficência, autonomia e justiça) foi estruturado com base na teoria de princípios prima facie, desenvolvida por David Ross. A expressão latina indica uma obrigação que deve ser cumprida a menos que entre em conflito com uma obrigação de importância equivalente ou maior2525. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 4ª ed. New York: Oxford University Press; 1994.. Os princípios clássicos derivam de três raízes filosóficas, sem hierarquia clara entre elas 2626. Fortes PAC. Reflexões sobre a bioética e o consentimento esclarecido. Bioética. 1994;2(2);129-35..
A não maleficência é o princípio fundamental da tradição hipocrática e preconiza que o médico, em primeiro lugar, deve se abster de causar dano, sendo esta exigência moral da profissão. A beneficência, por sua vez, tem sido associada à excelência profissional desde os tempos da medicina grega e está expressa tanto no juramento de Hipócrates quanto na teoria utilitarista de John Stuart Mill 2525. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 4ª ed. New York: Oxford University Press; 1994.. Trata-se da aplicação de todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente para minimizar riscos e maximizar os benefícios do procedimento a ser executado.
Já a autonomia é a capacidade de decidir fazer ou buscar aquilo que se julga ser o melhor para si. Para que se possa exercer essa autodeterminação, são necessárias duas condições fundamentais: capacidade de agir intencionalmente, o que pressupõe compreensão, razão e deliberação para decidir coerentemente entre as alternativas apresentadas; e liberdade, no sentido de estar livre de quaisquer influências na tomada de decisão 2525. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 4ª ed. New York: Oxford University Press; 1994.. A autonomia está eticamente fundamentada na dignidade humana.
Beauchamp e Childress basearam-se em Immanuel Kant e John Stuart Mill para justificar o respeito à autodeterminação. Kant, em sua ética deontológica, explicita que a dignidade provém de condição moralmente autônoma e que, por isso, merece respeito e deve ser tratada como fim em si mesma, e nunca como meio. Mill, um dos expoentes do utilitarismo anglo-saxão do século XIX, posicionou-se de maneira semelhante ao sugerir que os cidadãos deveriam se desenvolver de acordo com as próprias convicções, desde que não interferissem na liberdade dos outros 2525. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 4ª ed. New York: Oxford University Press; 1994..
O TCLE, portanto, é decisão autônoma e capaz, verbal ou escrita, em relação a um tratamento específico, depois que o paciente recebeu informações sobre indicações, benefícios, riscos e possíveis alternativas 2525. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 4ª ed. New York: Oxford University Press; 1994.,2626. Fortes PAC. Reflexões sobre a bioética e o consentimento esclarecido. Bioética. 1994;2(2);129-35..
A ética biomédica tem dado ênfase à relação interpessoal de profissionais de saúde e pacientes, na qual beneficência, não maleficência e autonomia exercem papel de destaque, ofuscando, de certo modo, o princípio da justiça. Esta se associa em geral a relações entre grupos sociais, lidando com a equidade na distribuição de bens e recursos considerados comuns, na tentativa de igualar oportunidades de acesso a esses bens 2727. Kottow MH. Introducción a la bioética. Buenos Aires: Universitária; 1995.. O conceito de justiça como equidade é permeado pelas ideias de John Rawls. Para o autor, equidade deve ser entendida como normas de cooperação reconhecidas por pessoas livres e iguais em direitos que sejam válidas para todos os seres humanos, sem nenhum tipo de distinção 2828. Rawls J. Uma teoria da justiça. Lisboa: Presença; 1993..
Os princípios delineados por Beauchamp e Childress 2525. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 4ª ed. New York: Oxford University Press; 1994. não são hierarquizados, porém ao longo dos anos a autonomia vem se sobressaindo em relação aos demais, talvez por influência de Engelhardt 2929. Engelhardt Jr HT. The foundations of bioethics. 2ª ed. New York: Oxford University Press; 1996.. Na visão do autor, o princípio da autonomia, frequentemente rebatizado de princípio da permissão, torna-se a base do consenso entre diferentes morais e determina se uma ação é boa ou não, a despeito de outros critérios. Na prática clínica, essa perspectiva é potencialmente perigosa, pois pode permitir tratamentos discutíveis ou que não considerem as necessidades de terceiros, contemplados no arcabouço de Beauchamp e Childress 3030. Schmidt AV, Tittanegro GR. A autonomia principialista comparada a autonomia do libertarismo. Rev Pistis Prax Teol Pastor. 2009;1(1):173-98..
Uma visão ainda mais exacerbada de autonomia tem sido sugerida com a mudança de consentimento para solicitar tratamento (request for treatment), embora a proposta tenha o mérito de buscar reduzir a assimetria na relação entre médicos e doentes/familiares. Nesse caso, o usuário preencheria a requisição de procedimento, ou seja, um documento com indicações, benefícios, riscos, complicações e alternativas. Posteriormente, o médico esclareceria eventuais dúvidas e equívocos e, finalmente, em comum acordo, ambos definiriam o tratamento 1919. Shokrollahi K. Request for treatment: the evolution of consent. Ann R Coll Surg Engl. [Internet]. 2010 [acesso 11 maio 2017];92(2):93-100. DOI: 10.1308/003588410X12628812458851.
Pouco se sabe do impacto de diferenças socioculturais na obtenção do TCLE. O predomínio do individualismo anglo-saxão tem sido identificado como potencial fonte de conflito em sociedades em que a família é culturalmente preponderante, como na China 3131. Bian L. Medical individualism or medical familism? A critical analysis of China’s new guidelines for informed consent: the basic norms of the documentation of the medical record. J Med Philos. [Internet]. 2015 [acesso 8 maio 2017];40:371-86. DOI: 10.1093/jmp/jhv016. Um ato pode atender às três principais condições para configurar-se como autônomo – ser intencional, realizado com compreensão adequada e sem controle externo – e mesmo assim não o ser verdadeiramente por falta de autenticidade. Além disso, é considerado autêntico quando coerente com o sistema de valores e atitudes gerais assumidos reflexiva e conscientemente, o que pode ser obstáculo quando se considera diferenças socioculturais 3232. Junges JR. Exigências éticas do consentimento informado. Rev. Bioética. 2007;15(1):77-82..
Outra questão controversa é a defesa de que para qualquer consentimento para procedimento cirúrgico haja dados sobre o desempenho individual dos profissionais. As medidas de desempenho foram usadas inicialmente para melhorar a qualidade nas instituições. A pressão para tornar públicas essas informações surgiu em razão das cirurgias de revascularização miocárdica. Em tese, a partir das informações de desempenho, os pacientes poderiam fazer melhores escolhas, justificando, portanto, sua presença nos termos de consentimento 3333. Clarke S, Oakley J. Informed consent and surgeons’ performance. J Med Philos. [Internet]. 2004 [acesso 10 maio 2017];29(1):11-35. DOI: 10.1076/jmep.29.1.11.30415,3434. Burger I, Schill K, Goodman S. Disclosure of individual surgeon’s performance rates during informed consent ethical and epistemological considerations. Ann Surg. [Internet]. 2007 [acesso 9 maio 2017];245(4):507-13. DOI: 10.1097/01.sla.0000242713.82125.d1.
A adesão a padrões de termo de consentimento adequadamente documentados, além da verbalização da natureza do procedimento, de riscos e alternativas, pode ser problemática. De fato, pesquisas têm demonstrado adesão reduzida de cirurgiões a padrões mínimos de TCLE 3535. Braddock C III, Hudak PL, Feldman JJ, Bereknyei S, Frankel RM, Levinson W. Surgery is certainly one good option: quality and time-efficiency of informed decision-making in surgery. J Bone Joint Surg Am. [Internet]. 2008 [acesso 6 maio 2017];90(9):1830. DOI: 10.2106/JBJS.G.00840,3636. Braddock CH III, Edwards KA, Hasenberg NM, Laidley TL, Levinson W. Informed decision making in outpatient practice: time to get back to basics. Jama. 1999;282:2313. PMID: 10612318. Estudo no Brasil mostrou que embora profissionais considerem o TCLE importante, não o utilizam rotineiramente. Além disso, quando é utilizado, entendem como desnecessário transmitir todas as informações. Além disso, omitem algumas delas não somente por considerá-las dispensáveis, mas para facilitar a prática médica.
Muitas vezes busca-se evitar que o enfermo perceba os riscos, o que poderia levá-lo a recusar o tratamento proposto. Nesse estudo qualitativo, a necessidade de informação foi definida como “fundamental” apenas uma vez pelos entrevistados, demonstrando a despreocupação com esse dever 3737. Oliveira VL, Pimentel D, Vieira MJ. O uso do termo de consentimento livre e esclarecido na prática médica. Rev. bioét. (Impr.). 2010;18(3):705-24..
Contradições entre diretrizes clínicas e prática assistencial são comuns. Os pacientes sabem bem menos do que os profissionais acreditam e do que deveriam saber a respeito dos procedimentos neles realizados. A prática do consentimento, por consequência, geralmente responde apenas a objetivos administrativos ou legais 3838. Goldstein M. Health information technology and the idea of informed consent. J Law Med Ethics. [Internet]. 2010 [acesso 7 maio 2017];38(1):27-35. DOI: 10.1111/j.1748-720X.2010.00463.x. Estudo realizado na Espanha sobre a percepção de pacientes acerca do TCLE demonstrou que reconheciam o documento mais como formalidade do que como obrigação ética, alguns se sentindo, inclusive, coagidos a assiná-lo 3939. Busquets M, Caïs J. Informed consent: a study of patients with life-threatening illnesses. Nurs Ethics [Internet]. 2015 [acesso 19 maio 2017];24(4):430-40. DOI: 10.1177/0969733015614880.
O parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), parecer consulta CFM 8.334/2000, julga necessário o TCLE, porém considera que informações repassadas aos pacientes sobre o procedimento não precisam constar no termo 4040. Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM nº 22, de 11 de agosto de 2004. O consentimento esclarecido não precisa ser firmado para produzir efeitos, salvo em casos de pesquisa médica ou quando tratar-se de cirurgias mutiladoras necessárias para preservar a vida do paciente [Internet]. 2004 [acesso 20 maio 2017]. Disponível: http://bit.ly/2y1JRE9
http://bit.ly/2y1JRE9...
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O consentimento livre e esclarecido do doente crítico
O consentimento informado é particularmente importante para doentes críticos por estarem entre os mais vulneráveis no ambiente hospitalar 4141. Schweickert W, Hall J. Informed consent in the intensive care unit: ensuring understanding in a complex environment. Curr Opin Crit Care. 2005;11(6):624-8. PMID: 16292071. O cuidado com esses pacientes e a alocação de recursos complexos geram grandes desafios em relação ao exercício dos denominados princípios bioéticos centrais na prática clínica: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
Exercer autonomia depende de capacidade decisória, informação adequada, compreensão, escolha voluntária e autorização formal para receber determinada intervenção 2424. Rincon F, Lee K. Ethical considerations in consenting critically ill patients for bedside clinical care and research. J Intensive Care Med. [Internet]. 2015 [acesso 9 maio 2017];30(3):141-50. DOI: 10.1177/0885066613503279. Um problema no caso de doentes críticos é a incapacidade de decidir, o que implica julgamento médico e pode enviesar o exercício da autonomia. O profissional precisa determinar se o doente compreendeu e reteve a informação relevante para a decisão, e a usou no processo decisório, ciente das consequências de tomar decisão contrária à proposta ou de não decidir. Ademais, deve ponderar sobre a capacidade do paciente de comunicar sua decisão 2525. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 4ª ed. New York: Oxford University Press; 1994..
Evidências mostram que doenças agudas podem interferir na compreensão da própria situação e na capacidade de avaliar riscos e benefícios 4242. Cassell EJ, Leon AC, Kaufman SG. Preliminary evidence of impaired thinking in sick patients. Ann Intern Med. 2001;134(12):1120-3. PMID: 11412052. Alterações neurocognitivas, depressão e ansiedade também podem prejudicar a capacidade decisória. Nos casos em que o doente não pode fazer escolhas, obter o TCLE por intermédio de substituto é uma alternativa 2424. Rincon F, Lee K. Ethical considerations in consenting critically ill patients for bedside clinical care and research. J Intensive Care Med. [Internet]. 2015 [acesso 9 maio 2017];30(3):141-50. DOI: 10.1177/0885066613503279. Estudo mostrou que a evasiva de profissional em responder questões formuladas diretamente também é fator estressor a ser considerado 4343. Bernat-Adell MD, Ballester-Arnal R, Abizanda-Campos R. ¿Es el paciente crítico competente para tomar decisiones? Razones psicológicas y psicopatológicas de la alteración cognitiva. Med Intensiva. [Internet]. 2012 [acesso 20 maio 2017]. 36:416-22. DOI: 10.1016/j.medin.2011.11.021.
Termos de consentimento para pacientes críticos são obtidos para procedimentos invasivos não urgentes realizados à beira do leito, assegurando que o doente ou seu representante consentiria. O modelo não inclui a traqueostomia realizada em bloco cirúrgico, para a qual consentimento específico é requerido 4444. Modra LJ, Hilton A, Hart GK. Informed consent for procedures in the intensive care unit: ethical and practical considerations. Crit Care Resusc. 2014;16(3):143-8. PMID: 24888290.
Termos de consentimento podem ser feitos para procedimento específico ou ter caráter universal. O uso de termos de consentimento universais é controverso, pois um dos requisitos para a validade de ato jurídico é que seu objeto seja determinado ou determinável 4545. Ragazzo CEJ. O dever de informar dos médicos e o consentimento informado. Curitiba: Juruá; 2007. p. 111.. Estudo identificou elevação na adesão à prática de autorização prévia com termos universais 4545. Ragazzo CEJ. O dever de informar dos médicos e o consentimento informado. Curitiba: Juruá; 2007. p. 111., porém outro trabalho demonstrou o oposto 4646. Davis N, Pohlman A, Gehlbach B, Kress JP, McAtee JA, Herlitz J et al. Improving the process of informed consent in the critically ill. Jama. [Internet]. 2003 [acesso 21 maio 2017];289(15):1963-8. DOI: 10.1001/jama.289.15.1963. Stuke e colaboradores 4848. Stuke L, Jennings A, Gunst M, Tyner T, Friese R, O’Keeffe T et al. Universal consent practice in academic intensive care units (ICUs). J Intensive Care Med. [Internet]. 2010 [acesso 11 maio 2017];25(1):46-52. DOI: 10.1177/0885066609350982 apontaram em estudo nos Estados Unidos (EUA) menor obtenção de consentimento informado em UTI cirúrgicas e para procedimentos como intubação não emergencial e introdução de cateteres intra-arteriais, além de prevalência de apenas 14% de termos de consentimento universais para pacientes críticos.
Uma das dificuldades levantadas pelos médicos intensivistas para obter o consentimento é o gasto de tempo para sua aplicação, que pode atrasar a assistência ao doente. No entanto, Marsillio e Morris demonstraram que o tempo necessário para obter o documento foi de apenas cinco minutos, embora questões logísticas referentes à presença dos familiares não tenham sido levadas em conta 4949. Marsillio LE, Morris MC. Informed consent for bedside procedures in the pediatric intensive care unit: a preliminary report. Pediatr Crit Care Med. [Internet]. 2011 [acesso 13 maio 2017];12(6):e266-70. DOI: 10.1097/PCC.0b013e31820aba87.
Cabe ressaltar que estudo realizado na Austrália sobre a expectativa dos doentes e seus familiares em relação ao consentimento demonstrou que apenas 27% dos usuários gostariam de solicitar consentimento prévio a cada procedimento eletivo, enquanto 59% achariam suficiente o consentimento não escrito 5050. Modra LJ, Hart GK, Hilton A, Moore S. Informed consent in the intensive care unit: the experiences and expectations of patients and their families. Crit Care Resusc. 2014;16(4):262-8. PMID: 25437219. Estudo que avaliou a satisfação de familiares com a introdução do consentimento universal para diferentes procedimentos mostrou resultados favoráveis a essa prática, porém a traqueostomia lato sensu não estava incluída no documento 5151. Dhillon A, Tardini F, Bittner E, Schmidt U, Allain R, Bigatello L. Benefit of using a bundled consent of intensive care procedures as part of an early Family meeting. J Crit Care. [Internet]. 2014 [acesso 9 maio 2017];29(6):919-22. DOI: 10.1016/j.jcrc.2014.07.004.
Consentimento livre e esclarecido para traqueostomia
Aderir à obtenção do TCLE para realização de traqueostomia em doente crítico é um dos seis indicadores de qualidade da Spanish Society of Intensive and Critical Care Medicine and Coronary Units. Questionário respondido por 68 UTI na Espanha mostrou adesão de 92% a esse quesito 5252. López Camps V, García García MA, Martín Delgado MC, Añón Elizalde JM, Masnou Burrallo N, Rubio Sanchiz O et al. National survey on the indicators of quality in bioethics of the SEMICYUC in the departments of intensive care medicine in Spain. Med Intensiva. [Internet]. 2017 abr 4 [acesso 1º jun 2017];pii:S0210-5691(17):30059-1. DOI: 10.1016/j.medin.2017.01.007.
Vargas e colaboradores 1111. Vargas M, Sutherasan Y, Antonelli M, Brunetti I, Corcione A, Laffey JG et al. Tracheostomy procedures in the intensive care unit: an international survey. Crit Care. [Internet]. 2015 [acesso 12 maio 2017];19:291. DOI: 10.1186/s13054-015-1013-7 em questionário com 429 médicos de 59 países mostraram que somente em 61% das ocasiões o consentimento informado era previamente obtido para a traqueostomia, geralmente em países não europeus que participaram do estudo (88% das ocasiões).
Em estudo anterior, realizado na Itália, a obtenção do consentimento para a traqueostomia diferiu entre doentes conscientes (82% das ocasiões) e inconscientes (62% das ocasiões). Informações sobre os benefícios e riscos constavam em consentimentos informados em apenas 61% das UTI participantes. Esses dados não foram condizentes com a legislação italiana, que exige o TCLE para procedimentos cirúrgicos eletivos 5353. Vargas M, Servillo G, Antonelli M, Brunetti I, De Stefano F, Putensen C et al. Informed consent for tracheostomy procedures in intensive care unit: an Italian National survey. Minerva Anestesiol. 2013;79(7):741-9. PMID: 23652173. No estudo realizado por Stuke e colaboradores 4848. Stuke L, Jennings A, Gunst M, Tyner T, Friese R, O’Keeffe T et al. Universal consent practice in academic intensive care units (ICUs). J Intensive Care Med. [Internet]. 2010 [acesso 11 maio 2017];25(1):46-52. DOI: 10.1177/0885066609350982 a taxa de obtenção do documento para traqueostomia atingiu 97%.
Embora não tenhamos dados do nível de adequação dos termos para traqueostomias nem da forma como ocorre a comunicação de intensivistas ou cirurgiões a doentes e familiares, é possível supor que a documentação seja adequada e ocorra incompleta verbalização dos aspectos relacionados ao procedimento em nosso país. Consentimentos específicos atualizados com a melhor evidência disponível, além de estímulos a comunicação efetiva, têm melhorado a adesão a boas práticas em outros contextos 5454. Hall DE, Hanusa BH, Fine MJ, Arnold RM. Do surgeons and patients discuss what they document on consent forms? J Surg Res. [Internet]. 2015 [acesso 19 maio 2017];197(1):67-77. DOI: 10.1016/j.jss.2015.03.058. De fato, em nosso meio também é destacada a necessidade de TCLE com a maior especificidade possível 5555. Silva CERF. Formulários de autorização de tratamento: proteção ou coação? In: Luz NW, Oliveira Neto FJR, Thomaz JB, organizadores. O ato médico. Rio de Janeiro: Rubio; 2002. p. 253-71.. A inclusão de traqueostomia em termos de consentimento universais, mesmo para minitraqueostomias ou procedimentos percutâneos, não parece adequada.
Aspecto a ser considerado é a frustração de doentes e familiares com a evolução da doença crítica crônica e a falsa expectativa relacionada à realização da traqueostomia. É possível inferir que muitos doentes ou familiares não teriam concordado com o tratamento retrospectivamente. De fato, estudo constatou que a taxa de consentimento seria influenciada retrospectivamente em uma unidade neurointensiva em razão de pior prognóstico neurológico 5656. Kiphuth IC, Köhrmann M, Kuramatsu JB, Mauer C, Breuer L, Schellinger PD et al. Retrospective agreement and consent to neurocritical care is influenced by functional outcome. Crit Care. [Internet]. 2010 [acesso 12 maio 2017];14(4):R144. DOI: 10.1186/cc9210.
Processos decisórios nos casos de traqueostomia
Lidar com a incerteza prognóstica é tarefa difícil para muitos médicos intensivistas 5757. Luther VP, Crandall SJ. Commentary: ambiguity and uncertainty: neglected elements of medical education curricula? Acad Med. [Internet]. 2011 [acesso 7 maio 2017];86(7):799-800. DOI: 10.1097/ACM.0b013e31821da915. Incertezas científicas podem derivar da incapacidade de determinar o risco de evento futuro, quanto a força ou a qualidade de evidências para estimar o risco, ou podem advir de achados conflitantes em diferentes estudos. A dificuldade do profissional em expor incertezas, na forma de probabilidades, reduz a capacidade de tomar decisões compartilhadas com pacientes e familiares 5858. Politi MC, Légaré F. Physicians’ reactions to uncertainty in the context of shared decision making. Patient Educ Couns. [Internet]. 2010 [acesso 5 maio 2017];80(20):155-7. DOI: 10.1016/j.pec.2009.10.030.
A incapacidade de lidar com a incerteza pode passar a impressão de que a decisão é exclusivamente técnica e não um complexo julgamento de valores 5959. Schuster RA, Hong SY, Arnold RM, White DB. Do physicians disclose uncertainty when discussing prognosis in grave critical illness? Narrat Inq Bioeth. [Internet]. 2012 [acesso 22 maio 2017];2(2):125-35. DOI:10.1353/nib.2012.0033. Diante da incerteza explicitada, fica claro que a resolução depende dos valores do doente ou de seus decisores substitutos a respeito dos benefícios e riscos envolvidos 6060. Luce JM. End-of-life decision making in the intensive care unit. Am J Respir Crit Care Med. [Internet]. 2010 [acesso 23 maio 2017];182(1):6-11. DOI: 10.1164/rccm.201001-0071CI. Essa incapacidade, predominantemente estudada em relação ao prognóstico de doentes críticos, também pode ser determinante quando a traqueostomia é solicitada, já que os benefícios desse procedimento podem não ser tão marcados, especialmente em doentes sem injúrias neurológicas agudas.
Somente compreendendo indicações, benefícios esperados, riscos envolvidos e a alternativa de não realizar o procedimento, mantendo o doente intubado prolongadamente, é que uma decisão autônoma legítima pode ser tomada. Educação formal pode ajudar profissionais de saúde a se sentirem mais confortáveis com a necessidade de comunicar incertezas em forma de risco e probabilidades 5858. Politi MC, Légaré F. Physicians’ reactions to uncertainty in the context of shared decision making. Patient Educ Couns. [Internet]. 2010 [acesso 5 maio 2017];80(20):155-7. DOI: 10.1016/j.pec.2009.10.030. A capacidade do profissional de transmitir com veracidade o quadro clínico, riscos e benefícios do procedimento proposto pode influenciar a compreensão do doente e de seus familiares.
A possibilidade de que doentes e familiares recusem a traqueostomia é real, se seu benefício não for embasado, assim como seus riscos, além da possibilidade de não aceitarem o princípio da justiça relativo à alocação de leitos para outros enfermos.
Aspecto pouco enfatizado diz respeito a que riscos devem constar no termo de consentimento e quais devem ser verbalizados. Não existem diretrizes explícitas quanto a isso, mas de maneira geral todos os riscos graves e os mais frequentes, mesmo quando menos graves, devem ser informados no termo de consentimento 6161. Paterick TJ, Carson GV, Allen MC, Paterick TE. Medical informed consent: general considerations for physicians. Mayo Clin Proc. [Internet]. 2008 [acesso 18 maio 2017];83(3):313-9. DOI: 10.4065/83.3.313.
Na Inglaterra, por exemplo, o National Health Service recomenda que constem complicações com percentuais acima de 1 e 2%, além de quaisquer complicações graves, mesmo que mais raras. Rajab e colaboradores 6262. Rajab TK, Ahmad UM, Kelly E. Implications of late complications from adhesions for preoperative informed consent. J R Soc Med. [Internet]. 2010 [acesso 9 maio 2017];103(8):317-21. DOI: 10.1258/jrsm.2010.090378 sugerem que complicações tardias como o surgimento de aderências (bridas) após intervenções abdômino-pélvicas sejam citadas ao se solicitar TCLE para procedimentos cirúrgicos abdominais. De forma análoga, entendemos que a estenose traqueal deve ser lembrada como complicação tardia quando da solicitação do consentimento. A possibilidade de não realizar o tratamento deve ser considerada 6161. Paterick TJ, Carson GV, Allen MC, Paterick TE. Medical informed consent: general considerations for physicians. Mayo Clin Proc. [Internet]. 2008 [acesso 18 maio 2017];83(3):313-9. DOI: 10.4065/83.3.313, o que também é importante no que se refere à traqueostomia em paciente crítico.
Como amplamente recomendado, a linguagem deve ser acessível ao doente ou seus familiares 6161. Paterick TJ, Carson GV, Allen MC, Paterick TE. Medical informed consent: general considerations for physicians. Mayo Clin Proc. [Internet]. 2008 [acesso 18 maio 2017];83(3):313-9. DOI: 10.4065/83.3.313. O termo pode ser retirado a qualquer momento, e data e horário devem ser registrados. A priori, de maneira geral, considera-se que mesmo um indivíduo mentalmente doente pode negar tratamento 6161. Paterick TJ, Carson GV, Allen MC, Paterick TE. Medical informed consent: general considerations for physicians. Mayo Clin Proc. [Internet]. 2008 [acesso 18 maio 2017];83(3):313-9. DOI: 10.4065/83.3.313.
Paradoxo relevante surge da possível transferência excessiva de responsabilidade para o enfermo e seus familiares. Nenhuma regra é aplicável a todos os indivíduos. Schwartz considera que a transferência de responsabilidade possa ter ido longe demais 6363. Schwartz B. The paradox of choice: why more is less. New York: Ecco; 2004.. Muitas vezes, os doentes não desejam essa liberdade. Embora satisfeitos por ter sua autonomia respeitada, podem exercitá-la optando por abandoná-la 6363. Schwartz B. The paradox of choice: why more is less. New York: Ecco; 2004..
É fundamental não reduzir o termo a pura formalidade, mediante diálogo entre médico e paciente. A transparência e a redução da assimetria entre os dois agentes asseguram o respeito à autonomia do paciente. Dessa forma, uma decisão suficientemente autônoma pode ser tomada, sem que todas as informações precisem estar necessariamente escritas no documento, desde que verbalizadas.
A autonomia deve estar em equilíbrio com os demais princípios básicos. O predomínio exacerbado da autonomia pode criar distorções potencialmente perigosas em relação à alocação de recursos, comprometendo o princípio da justiça. Por outro lado, médicos intensivistas têm dificuldade em reconhecer, diante de doentes e familiares, a alocação de recursos (leitos críticos), garantida pelo princípio da justiça, como indicação para a traqueostomia. Isso pode levar à superestimação de benefícios e minimização de riscos do procedimento, gerando desconforto nos profissionais, mesmo que essa sensação não seja acompanhada de reflexão. Essa dissonância cognitiva pode ser caracterizada como ficção moral 6464. Miller FG, Truog RD, Brock DW. Moral fictions and medical ethics. Bioethics. [Internet]. 2010 [acesso 4 maio 2017];24(9):453-60. DOI: 10.1111/j.1467-8519.2009.01738x, pois os profissionais se sentem desconfortáveis em colocar a justiça, que atende a critérios coletivos, acima dos demais princípios clássicos (autonomia, beneficência e não maleficência), voltados sobretudo à dimensão individual.
Considerações finais
O levantamento das metanálises sobre realização da traqueostomia e obtenção do TCLE para o procedimento mostrou que pode ser necessário revisar os termos e a forma de comunicação entre médicos e doentes ou seus decisores substitutos. Esses documentos devem conter indicações, benefícios, riscos precoces e tardios, além de alternativas ao procedimento proposto. Além disso, esses aspectos devem ser verbalizados no momento em que se solicita a anuência.
Também pode ser fundamental reconhecer a justiça como um dos princípios envolvidos na indicação da traqueostomia, para que a decisão tomada seja realmente livre e esclarecida. A justiça na alocação de recursos como indicação da traqueostomia fatalmente entrará em conflito com a autonomia do doente e seus representantes, porém a solução desse conflito passa por uma relação transparente entre os agentes envolvidos.
Conclui-se que a traqueostomia, independente da técnica do procedimento, não pode ser contemplada pelos termos de consentimento universais atualmente utilizados para doentes críticos. A traqueostomia não é considerada pela maioria dos atuais TCLE, pois estes, em geral, não esclarecem os benefícios, não informam todos os riscos, e não abrangem a não realização da traqueostomia como alternativa viável. Além disso, não integram a justiça como princípio motivador da indicação do procedimento.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2017
Histórico
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Recebido
7 Jun 2017 -
Revisado
18 Ago 2017 -
Aceito
21 Ago 2017