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Conflitos éticos e tomada de decisão sobre terapia renal substitutiva

Resumo

Este artigo teve por objetivo investigar se profissionais de saúde percebem o conflito ético e os problemas relacionados a tomada de decisão, e identificar a importância da participação do usuário nesse processo. Trata-se de estudo transversal descritivo no qual foram entrevistados 63 profissionais atuantes em quatro serviços de nefrologia do Rio de Janeiro. Após análise das entrevistas segundo a técnica de Bardin, emergiram dois eixos: 1) processo de tomada de decisão e 2) bioética no encaminhamento a terapia renal substitutiva. Conclui-se que o processo de tomada de decisão é pautado, em sua maioria, pela beneficência e não maleficência, tentando favorecer a condição clínica relacionada a não funcionamento renal. Porém, muitas vezes, as ações não consideram a autonomia e a participação do usuário, e nem sempre o conflito ético e os problemas relacionados à tomada de decisão são percebidos. O paternalismo ainda é presente e forte na população estudada.

Palavras-chave
Bioética; Insuficiência renal crônica; Relações médico-paciente

Abstract

This article aimed to explore whether healthcare professionals perceive ethical conflicts and issues related to decision making and to highlight the significance of patient involvement in this process. This is a descriptive cross-sectional study, where 63 professionals from four nephrology services in Rio de Janeiro were interviewed. Through analysis using Bardin’s technique, two main themes emerged: 1) the decision-making process; and 2) bioethical considerations regarding renal replacement therapy referral. The findings suggest that decision-making is primarily guided by the principles of beneficence and non-maleficence, with an emphasis on improving the clinical condition associated with renal failure. However, there is often a lack of consideration for patient autonomy and participation, and ethical conflicts and decision-making issues may not always be recognized. Paternalistic attitudes remain prevalent and strong within the studied population.

Keywords
Bioethics; Renal insufficiency, chronic; Physician-patient relations

Resumen

El objetivo de este artículo fue investigar si los profesionales de la salud perciben el conflicto ético y los problemas relacionados con la toma de decisiones, e identificar la importancia de la participación del usuario en este proceso. Se trata de un estudio transversal descriptivo en el que se entrevistó a 63 profesionales que trabajan en cuatro servicios de nefrología en Río de Janeiro. Los análisis de las entrevistas según la técnica de Bardin arrojaron dos ejes: 1) proceso de toma de decisiones y 2) bioética en la derivación a terapia de reemplazo renal. Se concluye que el proceso de toma de decisiones se basa, mayoritariamente, en la beneficencia y no maleficencia, tratando de favorecer la condición clínica relacionada con la insuficiencia renal. Sin embargo, a menudo, las acciones no tienen en cuenta la autonomía ni la participación del usuario, y no siempre se perciben el conflicto ético y los problemas relacionados con la toma de decisiones. El paternalismo sigue siendo presente y fuerte en la población analizada.

Palabras clave
Bioética; Insuficiencia renal crónica; Relación médico-paciente

A escolha da terapia renal substitutiva (TRS) por paciente em estágio avançado de doença renal crônica (DRC) depende de múltiplos fatores, como a oferta pelo sistema de saúde. Uma das principais questões é definir se o paciente irá à clínica periodicamente ou se terá acesso à independência do tratamento domiciliar. Essa decisão é influenciada pela localização e disponibilidade de tratamentos, estrutura domiciliar, apoio familiar e aspectos técnicos, como qualidade da água e disponibilidade de eletricidade 11. Daugirdas JT, Blake PG, Ing TS. Manual de diálise. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016..

Para os nefrologistas, esse é um processo de tomada de decisão complexo que pode gerar um conflito de cunho ético, sendo preciso analisar aspectos clínicos, legais e éticos envolvidos em cada caso. Vale ressaltar ainda que o usuário, juntamente com a equipe de saúde, pode identificar que a melhor alternativa seria não realizar nenhuma modalidade de TRS. Mesmo que a diálise não seja uma opção, pela vontade do paciente ou pela condição de saúde apresentada, é possível fornecer um cuidado digno que garanta qualidade de vida, mantendo esse usuário em tratamento conservador 22. Moura Neto JA, Moura AFDS, Suassuna JHR. When dialysis is not a good option: a narrative review of the dilemma of renouncing renal replacement therapy. In: Moura Neto JA, editor. Renal replacement therapy: controversies and future trends. New York: Nova Science; 2018. p. 43-59..

Alguns fatores podem dificultar o processo de tomada de decisão, como a expectativa de que alguma alternativa de tratamento seja direcionada pelo médico e o paciente a considere a melhor possibilidade para seu caso. Além disso, também há o incentivo monetário para realização de TRS, uma vez que o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) para as clínicas ocorre por procedimentos realizados em cada paciente, e muitos serviços têm como proprietários médicos responsáveis pela assistência e orientação das modalidades disponíveis. Outro fator é o treinamento inadequado dos profissionais para lidar com a possibilidade de não realização de tratamento e aceitação do fim de vida, reforçando o paternalismo presente na atuação de profissionais de saúde contrários à decisão e à autonomia do usuário 22. Moura Neto JA, Moura AFDS, Suassuna JHR. When dialysis is not a good option: a narrative review of the dilemma of renouncing renal replacement therapy. In: Moura Neto JA, editor. Renal replacement therapy: controversies and future trends. New York: Nova Science; 2018. p. 43-59..

A Portaria 1.675/2018 33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.675, de 7 de junho de 2018. Altera a portaria de consolidação nº 3/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, e a portaria de consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre os critérios para a organização, funcionamento e financiamento do cuidado da pessoa com Doença Renal Crônica - DRC no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 8 jun 2018 [acesso 10 abr 2024]. Disponível: https://tny.im/O8Zz1
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do Ministério da Saúde estabelece que o usuário deve ser o foco do processo de escolha, cabendo a ele a decisão sobre qual modalidade de TRS realizará. Participar desse processo é efetivamente realizar escolhas dentro das possibilidades, segundo a condição clínica de saúde e os tratamentos disponíveis no SUS, em associação ao desejo do usuário. Já é conhecido que educação e o apoio de profissionais, oferecidos antes da tomada de decisão, podem auxiliar na escolha por modalidades que se adequem à rotina, como as realizadas em domicílio ou até mesmo as que proporcionem maior qualidade de vida 11. Daugirdas JT, Blake PG, Ing TS. Manual de diálise. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2016.,33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.675, de 7 de junho de 2018. Altera a portaria de consolidação nº 3/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, e a portaria de consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre os critérios para a organização, funcionamento e financiamento do cuidado da pessoa com Doença Renal Crônica - DRC no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 8 jun 2018 [acesso 10 abr 2024]. Disponível: https://tny.im/O8Zz1
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4. Morton RL, Howard K, Webster AC, Snelling P. Patient INformation about Options for Treatment (PINOT): a prospective national study of information given to incident CKD Stage 5 patients. Nephrol Dial Transplant [Internet]. 2011 [acesso 10 abr 2024];26(4):1266-74. DOI: 10.1093/ndt/gfq555
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-55. Santos RLG, Oliveira DRF, Nunes MGS, Barbosa RMP, Gouveia VA. Avaliação do conhecimento do paciente renal crônico em tratamento conservador sobre modalidades dialíticas. Rev Enferm UFPE [Internet]. 2015 [acesso 10 abr 2024];9(2):651-60. Disponível: https://tny.im/txJRj
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Nessa perspectiva, o estudo tem como objetivo identificar a importância da participação do usuário no processo de tomada de decisão para o estabelecimento da TRS na perspectiva dos profissionais. Também se busca verificar se os profissionais que tomam a decisão de instituir a TRS percebem o conflito ético e os problemas relacionados à tomada de decisão.

Método

Trata-se de estudo transversal, descritivo, de abordagem qualitativa em que foram entrevistados profissionais atuantes nos ambulatórios de tratamento conservador da DRC de quatro serviços de formação de especialistas em nefrologia do Rio de Janeiro. Conforme recomendado, todos os 65 membros das equipes, incluindo médico, nutricionista, enfermeiro, psicólogo e assistente social, foram convidados a participar. O convite foi feito por e-mail ou telefone fornecido pelos chefes de serviços. Foram explicados os objetivos da pesquisa e como ocorreria a participação, e, após o aceite, as entrevistas foram agendadas conforme preferência e disponibilidade dos profissionais.

Dois profissionais estavam de férias no momento do encerramento da coleta de dados e, por esse motivo, foram excluídos, totalizando ao final 63 entrevistas. A participação de 61 profissionais ocorreu de forma presencial em local restrito nos serviços em que atuavam, para garantir sigilo; e duas entrevistas foram realizadas pela plataforma Google Meet. Todos os depoimentos ocorreram somente após leitura, concordância e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

As entrevistas foram realizadas entre março e setembro de 2022, seguindo roteiro estruturado que continha perguntas sobre como é o processo de tomada de decisão para instituir a TRS; se é uma decisão individual ou de deliberação em equipe e quais profissionais participam dela; como o profissional esclarece os pacientes sobre todas as modalidades de tratamento disponíveis e se ele acredita que isso é uma competência de sua profissão; e se o profissional considera que o paciente pode escolher a melhor modalidade para si e por que pode ou não escolher.

Todas as entrevistas tiveram duração média de cinco minutos e foram gravadas em áudio, sendo posteriormente codificadas com a letra “E” seguida do número de ocorrência e transcritas na íntegra, para realização da análise de conteúdo de Bardin 66. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., sem utilização de software. As falas foram agregadas, sintetizadas, ordenadas e categorizadas por semelhança e repetição, emergindo em temas. Não foi trabalhada a saturação dos dados, uma vez que a proposta foi entrevistar todos os profissionais atuantes nas equipes dos quatro serviços.

A pesquisa foi realizada respeitando todos os preceitos éticos 77. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 13 jun 2013 [acesso 10 abr 2024]. Disponível: https://tny.im/8jh8C
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. O trabalho é um recorte da tese de doutorado Implicações bioéticas na escolha da terapia renal substitutiva: o olhar do profissional de saúde 88. Campos TS. Implicações bioéticas na escolha da terapia renal substitutiva: o olhar do profissional de saúde [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2023..

Resultados

Na análise dos dados, emergiram 191 unidades de significação (US) e 2.429 unidades de registro (UR). AS UR foram agrupadas por semelhança e os principais achados apresentados no Quadro 1 em dois eixos temáticos: 1) processo de tomada de decisão e 2) bioética no encaminhamento a TRS.

Quadro 1
Categorias emergidas da análise de conteúdo de Bardin

A partir da análise de conteúdo de Bardin, emergiram ainda categorias que identificaram os princípios bioéticos de acordo com a teoria principialista de Beauchamp e Childress 99. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002. de forma bem clara e evidente. Essas categorias reforçam a noção de que o trabalho é exercido com base na oferta de cuidados cujo objetivo é beneficiar a saúde e evitar danos desnecessários, assim como oferecer uma atenção justa e igualitária.

Além disso, há forte presença da autonomia, pela qual emerge a importância da participação do usuário no processo de tomada de decisão para o estabelecimento da TRS. Em contrapartida, também foi possível identificar o desrespeito à autonomia do usuário relacionado especialmente à família na tomada de decisão, mostrando que ainda é necessário reforçar o papel desse princípio, pois pode não ser claro a todos, conforme esperado 99. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002. (Quadro 2).

Quadro 2
Identificação clara dos princípios segundo a teoria principialista emergidos da análise de conteúdo de Bardin

Nas entrevistas, também se observou que os profissionais apresentam dificuldade para identificar conflitos éticos e demostram que sempre têm o objetivo de reduzir danos e trazer benefícios aos usuários. Porém é percebida forte obrigação moral quanto à satisfação das necessidades dos doentes, ao ponto de um participante relatar que acredita ser “certo” em sua forma de agir. Percebe-se uma moralidade comum, e os profissionais sentem-se livres de penalizações de ordem ética, mesmo quando acontece diferente do esperado:

“Porque a técnica correta não causa dano. Tem intercorrências, tem! Mas está dentro da técnica, e nem sempre eu vou ser cem por cento num procedimento” (E24).

Discussão

A forma como a notícia de necessidade de terapia é apresentada precisa ser planejada pelo profissional para possibilitar a compreensão e diminuir problemas na aceitação do tratamento. A comunicação de notícias sobre doenças incuráveis é delicada e precisa de capacitação dos profissionais envolvidos, a fim de que sejam capazes de demonstrar maior segurança, promovendo uma tomada de decisão compartilhada 1010. Freiberger MH, Carvalho DD, Bonamigo EL. Comunicação de más notícias a pacientes na perspectiva de estudantes de medicina. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 10 abr 2024];27(2):318-25. DOI: 10.1590/1983-80422019272316
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Assim, esse processo deve passar pela constatação do que é qualidade de vida para o paciente, não sendo adequado que o profissional de saúde defina valores, atitudes e informações que devem ser passadas sobre a condição de saúde do usuário, critérios que serão fundamentais para a tomada de decisão. Com isso, é possível perceber a necessidade, ouvir os desejos da pessoa e preservar sua intimidade, fornecendo apoio ao reconhecer demandas espirituais, sociais e psicológicas para enfrentar as mudanças impostas por essa situação 1111. Sanchez-Tomero JA. Thoughts on the start and withdrawal of dialysis. Nefrologia [Internet]. 2013 [acesso 10 abr 2024];33(6):758-3. DOI: 10.3265/Nefrologia.pre2013.Jul.12053
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,1212. Simões Â, Sapeta P. Conceito de dignidade na enfermagem: análise teórica da ética do cuidado. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 10 abr 2024];27(2):244-52. DOI: 10.1590/1983-80422019272306
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Apesar de estar bem clara e instituída a importância desse processo compartilhado, muitas vezes profissionais de saúde não estão preparados nem se sentem seguros para conversar com o usuário e participar do processo de tomada de decisão em diálise.

Em estudo que avaliou o conhecimento de 676 pacientes (entre os estágios 3 a 5 e em tratamento conservador) sobre as diferentes modalidades de TRS, 43% relataram nenhum conhecimento de HD, 57% de DP e 66% de transplante. Quando questionados quanto a seu nível de conhecimento sobre a doença, um em cada três relatou conhecimento limitado ou nenhum conhecimento sobre sua DRC e suas opções de tratamento. Também foi evidente que a frequência a consultas com profissional nefrologista antes do início da TRS não garante melhor conhecimento sobre as possibilidades de TRS 1313. Finkelstein FO, Story K, Firanek C, Barre P, Takano T, Soroka S et al. Perceived knowledge among patients cared for by nephrologists about chronic kidney disease and end-stage renal disease therapies. Kidney Int [Internet]. 2008 [acesso 10 abr 2024];74(9):1178-84. DOI: 10.1038/ki.2008.376
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Experimento realizado na Espanha treinou enfermeiros, médicos, nutricionistas e psicólogos especialistas em nefrologia que atendem usuários no momento de escolha da TRS para participar do processo de tomada de decisão. No treinamento, desenvolveram habilidades e confiança por meio de ensinamentos de técnicas de comunicação de notícias difíceis e princípios e conceitos bioéticos. Os 36 profissionais capacitados referiram maior confiança e indicaram a falta de preparo para discussões sobre o processo de escolha da TRS em suas formações básicas 1414. Garcia-Llana H, Bajo MA, Bardero J, Selgas R, Del Peso G. The Communication and Bioethical Training (CoBiT) Program for assisting dialysis decision-making in Spanish ACKD units. Psychol Health Med [Internet]. 2017 [acesso 10 abr 2024];22(4):474-82. DOI: 10.1080/13548506.2016.1199888
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Esse treinamento ajudou no processo compartilhado de tomada de decisão nas unidades de nefrologia da Espanha. Assim, trabalho em equipe, bioética e habilidades de comunicação são os principais ingredientes de um cenário de sucesso 1414. Garcia-Llana H, Bajo MA, Bardero J, Selgas R, Del Peso G. The Communication and Bioethical Training (CoBiT) Program for assisting dialysis decision-making in Spanish ACKD units. Psychol Health Med [Internet]. 2017 [acesso 10 abr 2024];22(4):474-82. DOI: 10.1080/13548506.2016.1199888
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. Talvez seja importante pensar na possibilidade de preparar os profissionais brasileiros com essas técnicas, a fim de, consequentemente, levar essas informações de maneira mais satisfatória para as equipes.

Estudo brasileiro que entrevistou 75 profissionais atuantes em municípios de Minas Gerais, dos quais 26,7% eram médicos, 32% enfermeiros e 41,3% técnicos de enfermagem, mostrou que a TRS mais indicada pelos médicos foi a HD, em mais de 90% dos casos, e menos de 10% indicariam DP como primeira escolha. As autoras acreditam que o pequeno percentual de pacientes em TRS domiciliar deve-se a falta de informação dos profissionais de saúde ou a informações inadequadas 1515. Schreider A, Fernandes NMS. Avaliação do conhecimento sobre terapia renal substitutiva dos profissionais de saúde nas regiões de Juiz de Fora, São João Nepomuceno e Santos Dumont. J Bras Nefrol [Internet]. 2015 [acesso 10 abr 2024];37(3): 82-4. DOI: 10.5935/0101-2800.20150059
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Vale destacar que esses dados são semelhantes aos deste trabalho, que, apesar de não ter quantificado o percentual de profissionais que indicam a HD, demonstrou que a maioria dos profissionais opta por essa modalidade, evidenciando um grande problema estrutural relacionado à DP.

É preciso observar três elementos que influenciam a tomada de decisão: 1) fatores do paciente (valores individuais e situações da vida, autonomia e emoções desencadeadas); 2) fatores educacionais (informações que o usuário foi capaz de absorver, tempo apropriado para fornecimento de informações e recursos disponíveis e utilizados para orientação); e 3) sistemas de apoio (relacionamento com a equipe de saúde e auxílio da família e amigos). Esses elementos devem ser investigados e avaliados pelos profissionais de saúde que estão participando do processo de escolha da TRS, a fim de proporcionar a tomada de decisão informada e compartilhada 1616. Cassidy BP, Harwood L, Getchell LE, Smith M, Sibbald SL, Moist LM. Educational support around dialysis modality decision making in patients with chronic kidney disease: qualitative study. Can J Kidney Health Dis [Internet]. 2018 [acesso 10 abr 2024];5:2054358118803323. DOI: 10.1177/2054358118803323
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Vale ressaltar que uma decisão considerada inadequada influenciará diretamente a satisfação do usuário em relação ao tratamento. Uma avaliação dos sentimentos negativos relacionados ao tratamento mostra que 17,7% referem insegurança, 18,6% medo, 21,8% se sentem ansiosos, 13,2% alegam estar revoltados e 29,1% apontam desconforto na realização da TRS. O estudo reforça que os comportamentos apresentados no momento da decisão têm consequências que serão sentidas de formas diversas pelos pacientes e pela equipe que os atende 1717. Pereira E, Chemin J, Menegatti CL, Riella MC. Escolha do método dialítico: variáveis clínicas e psicossociais relacionadas ao tratamento. J Bras Nefrol [Internet]. 2016 [acesso 10 abr 2024];38(2):215-24. DOI: 10.5935/0101-2800.20160031
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Outro ponto importante a se destacar é que, na tomada de decisão, tem aumentado a cada dia a frequência de usuários que recusam ou abandonam o tratamento, em fase inicial de diálise ou até mesmo quando esse tratamento já está em sua rotina. Os profissionais de saúde responsáveis pelo cuidado vivenciam conflitos éticos, que passam pelo direito do paciente de morrer com dignidade e pelas perspectivas religiosas, filosóficas e jurídicas sobre sentido da vida e da morte, autonomia e terminalidade 1818. Rodrigues RADC, Silva ÉQ. Diálise e direito de morrer. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 10 abr 2024];27(3):394-400. DOI: 10.1590/1983-80422019273322
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Porém, muitas vezes, há um “desconforto” por parte da equipe em manter o usuário sem realizar nenhuma TRS. Por esse motivo, com frequência surge a “necessidade” de instituir todas as possibilidades tecnológicas disponíveis para prolongar a vida, por vontade do médico ou da família, levando à ocorrência de distanásia. O procedimento de diálise é utilizado constantemente com esse intuito, garantindo aos profissionais a falsa possibilidade de oferecer o melhor aos pacientes sob seu cuidado, mesmo sabendo que incluir o procedimento mudaria muito pouco o resultado e a finitude desse paciente 1111. Sanchez-Tomero JA. Thoughts on the start and withdrawal of dialysis. Nefrologia [Internet]. 2013 [acesso 10 abr 2024];33(6):758-3. DOI: 10.3265/Nefrologia.pre2013.Jul.12053
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Isso acontece frequentemente com idosos. Com os participantes deste estudo, a moralidade relacionada a esse quesito foi apresentada de forma muito clara, especialmente na oferta de cuidados a jovens e a pessoas com mais idade.

A maioria dos médicos compreende a importância de seu papel no auxílio para que pacientes façam melhores escolhas e, assim, evitem danos, o que promove beneficência. Porém, é difícil aceitar que seu papel é aconselhar sobre as opções de tratamento, avaliando as informações necessárias para a decisão individual, permitindo a autonomia e respeitando a escolha do usuário, mesmo que ela conflite com a beneficência ou a não maleficência. Os profissionais são treinados a apontar as possibilidades de tratamento de acordo com seu julgamento clínico, mas muitos têm dificuldade em aceitar decisões do paciente que contrariam sua avaliação sobre o que seria a melhor opção 1919. Lam DY, O'Hare AM, Vig EK. Decisions about dialysis initiation in the elderly. J Pain Symptom Manage [Internet]. 2013 [acesso 10 abr 2024];46(2):298-302. DOI: 10.1016/j.jpainsymman.2013.05.014
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,2020. Noble H, Brazil K, Burn A, Hallahan S, Normand C, Roderick P et al. Clinician views of patient decisional conflict when deciding between dialysis and conservative management: Qualitative findings from the PAlliative Care inchronic Kidney diSease (PACKS). Palliat Med [Internet]. 2017 [acesso 10 abr 2024];31(10):921-31. DOI: 10.1177/0269216317704625
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Balon 2121. Balon R. Paradoxes of retreat from paternalism. Ann Clin Psychiatry [Internet]. 2019 [acesso 10 abr 2024];31(4):233-4. Disponível: https://tny.im/ZkQuh
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sugere que a beneficência não partilhada pela autonomia evidencia a prática médica paternalista, pois nessas situações o médico entende que a indicação de tratamento relacionada a seu conhecimento sobre o assunto é o ideal para o paciente. Além disso, o profissional tem dificuldade de ver o usuário como autônomo, uma vez que nenhum indivíduo, em princípio, está inteiramente livre de influências externas, exercendo autonomia plena. Essa dificuldade é acentuada em um contexto de adoecimento, que traz limites ao exercício pleno da vontade de manter a vida como antes.

Associado a isso, existe a figura do profissional de saúde/cuidador como referência de “pai”, com poder de fazer as melhores escolhas, porém ações relacionadas ao paternalismo têm sido consideradas cada vez mais ultrapassadas. Por esse motivo, muito se debate sobre a necessidade de evitar essas ações, seja como simples aconselhamento e convencimento do paciente ao informar os tratamentos disponíveis para sua condição de saúde, seja, até mesmo, para impedir um suposto suicídio, quando ele escolhe não prolongar a vida/tratamento 2121. Balon R. Paradoxes of retreat from paternalism. Ann Clin Psychiatry [Internet]. 2019 [acesso 10 abr 2024];31(4):233-4. Disponível: https://tny.im/ZkQuh
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,2222. Almeida JLT. Da moral paternalista ao modelo de respeito à autonomia do paciente: os desafios para o ensino da ética médica. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2000 [acesso 10 abr 2024];24(1):27-30. Disponível: https://tny.im/MHKo2
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Considerações finais

O processo de tomada de decisão desses profissionais é pautado, em sua maioria, pela beneficência e não maleficência, tentando favorecer a condição clínica relacionada ao não funcionamento renal. Porém, muitas vezes, essas ações não consideram a autonomia, a participação do usuário e quanto esse tratamento pode ser limitante para vida. Infelizmente, nem sempre o conflito ético e os problemas relacionados à tomada de decisão são percebidos pelos profissionais responsáveis pela instituição da TRS.

Foi ressaltada a importância da participação do usuário na decisão para o estabelecimento da TRS, porém nem sempre essa participação é realizada, uma vez que há dificuldade de instituição de todas as modalidades de TRS pelo próprio sistema de saúde (direito à fila do transplante somente após início de HD ou DP, preemptivo apenas para doado vivo e falta de vagas para DP). Ou seja, apesar da referência ao direito do usuário ser frequente, muitas vezes ele não é informado ou convidado a participar desse processo.

O paternalismo ainda é presente e forte na população estudada, ponto que precisa ser repensado, uma vez que é desejável que em centros de formação de profissionais haja estímulo a uma educação que favoreça a ética, tanto em questões teóricas, como práticas. Dessa forma, o reflexo dessa postura atingiria todos os locais nos quais há oferta de cuidado em nefrologia, visto que esses profissionais atuam em outros locais após conclusão da especialização.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2023
  • Revisado
    10 Abr 2024
  • Aceito
    17 Abr 2024
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