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Bioética e condição humana: contribuições para pensar o nascimento

Resumo

A bioética recorre à filosofia ao examinar conceitos e valores, problemas e ferramentas metodológicas e ao tratar de problemas específicos da vida humana no mundo moderno. Contudo, tanto na bioética quanto na filosofia, a compreensão existencial do que significa nascer é poucas vezes articulada, enquanto a dimensão existencial da morte e do morrer tem recebido mais atenção. Neste artigo, propomos reconsiderar a condição humana como pano de fundo de uma ética para a vida em seus múltiplos extratos e modulações, e a partir da qual se pode elaborar perspectiva filosófica que pense o nascimento como horizonte mais amplo para tratar problemas bioéticos específicos. Destacamos, neste artigo, algumas contribuições de Hannah Arendt e María Zambrano, duas pensadoras que se ocuparam da condição humana, entre o nascimento e a morte.

Bioética; Temas bioéticos; Nascimento vivo; Parto; Filosofia

Abstract

Bioethics uses philosophy in its practice of analysis of concepts and values, problems and methodological tools in order to deal with specific problems of human life in the modern world. We propose a reconsideration of the human condition as a background from which an ethic for life is constructed – in its multiple extracts and modulations – as a philosophical perspective to the thinking about birth in Bioethics, and as broader horizon for approaching more specific bioethical problems. We highlight in this article some contributions by Hannah Arendt and Maria Zambrano, two thinkers who addressed the human condition between birth and death. The existential understanding of what it means to be born is rarely articulated dimension from a philosophical and bioethical viewpoint, whereas the existential dimension of death and dying has received better attention in these areas.

Bioethics; Bioethical issues; Live birth; Parturition; Philosophy

Resumen

La bioética recurre a la filosofía en su práctica de examen conceptual y de valores, sus problemas y herramientas metodológicas, para tratar problemas específicos de la vida humana en el mundo moderno. Proponemos una reconsideración de la condición humana, como un trasfondo a partir del cual se elabora una ética para la vida – en sus múltiples dimensiones y modulaciones – como una perspectiva filosófica para pensar el nacimiento en la bioética, y como un horizonte más amplio para el tratamiento de problemas bioéticos específicos. Destacamos, en este artículo, algunas contribuciones de Hannah Arendt y de María Zambrano, dos pensadoras que se ocuparon de la condición humana, entre nacimiento y muerte. La comprensión existencial de lo que significa nacer es una dimensión raramente articulada, en filosofía y bioética, mientras que la consideración existencial de la muerte, y del morir, han recibido mayor atención en estas áreas.

Bioética; Discusiones bioéticas; Nacimiento vivo; Parto; Filosofía

A bioética, como ética aplicada à vida, cada vez mais assume caráter público e político, chamando o poder público à responsabilidade e criticando as formas vigentes de administração e atenção à vida, especialmente em contextos mais vulneráveis, como o da América Latina. Esse caráter público manifesta-se em documentos como a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.

De início entendida como uma ética aplicada, como mais uma forma de utilizar o método filosófico para responder aos questionamentos sobre os limites da vida, a bioética chega ao século XXI com uma visão mais ampliada dos problemas relacionados à vida humana, em busca de um sentido comum da humanidade11. Garrafa V, Kottow M, Saada A, organizadores. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Gaia; 2006. p. 271-2.. E, como campo multi, inter e transdisciplinar, passa a desenvolver reflexões críticas sobre seus fundamentos epistemológicos, linguagem e campo de investigação.

Integrante do grupo de disciplinas que tem contribuído com o projeto bioético, a filosofia tem sido utilizada na ética aplicada e no exame conceitual de categorias e questões relativas à vida em geral. Do mesmo modo, também os filósofos têm se envolvido mais diretamente com questões bioéticas 22. Warnock M. Os usos da filosofia. Campinas: Papirus; 1994.

3. Singer P. Repensar la vida y la muerte: el derrumbe de nuestra ética tradicional. Barcelona: Paidós; 1997.

4. Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; 2006.

5. Jonas H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo: Paulus; 2013.
-66. Habermas J. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes; 2004.. Buscando compreender as rupturas políticas e transformações tecnológicas do século XX, pensadoras como Hannah Arendt e María Zambrano se debruçaram sobre problemas relacionados à condição humana, com especial atenção a fenômenos como o que aqui nos concerne: o nascimento, visto pelas filósofas como evento mundano que integra o ser no decorrer de toda sua existência. Partiremos dessas análises, que ultrapassam a perspectiva meramente técnica ao pensar o nascimento em sua especificidade existencial, buscando apontar sua relevância e formas de incorporá-las à reflexão bioética.

Em que consiste a “condição humana”?

A existência só é possível sob certas condições. Diferente da concepção filosófica clássica de “natureza humana”, que supõe uma essência, substância ou conteúdo inerente ao ser humano (isto é, a humanidade abstrata, universal e homogênea), a compreensão existencial vê o indivíduo como condicionado e condicionante. Insolúvel pela ciência e a filosofia, o problema de uma natureza universal que defina a humanidade remete à teologia, que aborda as questões sobre a “natureza” de Deus e a “natureza” do homem em contexto de revelação divina.

Segundo Hannah Arendt, é altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir as essências naturais de todas as coisas que nos rodeiam e não somos, sejamos capazes de fazer o mesmo a nosso respeito: seria como pular sobre nossas próprias sombras. Além disso, nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido que as outras coisas têm77. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 13..

As atividades e capacidades humanas – trabalhar, criar, conhecer, pensar, julgar, educar – não equivalem à natureza humana nem definem ou explicam quem somos pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto – essa sempre foi a opinião da filosofia, em contraposição às ciências que também se ocupam do ser humano 88. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 14.. Quem somos não é algo que se possa determinar do mesmo modo como estipulamos a natureza das coisas que fabricamos ou realizamos; sobre alguém podemos sugerir só o que parcialmente percebemos. A pergunta pelo nosso ser, por quem somos, como indivíduos e como sujeitos, difere da pergunta sobre o que somos, como objeto de conhecimento.

O que podemos saber, em sentido mais genérico, é que as pessoas são seres condicionados e ao mesmo tempo condicionantes. Pois, como aponta Arendt, além das condições sob as quais a vida é dada ao homem na Terra e, em parte, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições, produzidas por eles mesmos que, a despeito de sua origem humana e de sua variabilidade, possuem o mesmo poder condicionante das coisas naturais99. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 11-2..

O que condiciona a condição humana?

As condicionantes conhecidas não esgotam o sentido da existência humana, uma vez que a ela se agregam continuamente novas condições, em parte produzidas pelos seres humanos, em parte impostas pela natureza. Mas se antigas e novas condições não definem de modo absoluto o que é a humanidade nem respondem à pergunta sobre quem somos enquanto indivíduos, todavia é possível considerar seu impacto em nossa realidade.

Hannah Arendt, em sua obra “A condição humana”, emprega o termo clássico vita activa para designar as três atividades que considera fundamentais:

  1. O trabalho: atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, seu metabolismo e suas necessidades vitais; a condição humana do trabalho é a própria vida na Terra; o homem, enquanto ser que trabalha, define-se como animal laborans;

  2. A obra ou fabricação: atividade construtora do mundo humano, como artifício, artefato; ferramentas que organizam um cosmos que abriga e protege cada vida individual em suas fronteiras; a condição humana da obra é a mundanidade; e o “fazedor de obras” que constitui o mundo humano enquanto um artifício como um lar aqui na Terra, é designado como homo faber;

  3. A ação: atividade que ocorre diretamente entre os homens, por sua própria iniciativa, sem estarem constrangidos pela necessidade ou pela tarefa de construir ou preservar o mundo. Pela ação conjunta dos homens, a ordem do mundo pode ser mudada. A coexistência interpessoal, por meio de palavras e atos, corresponde à condição humana da pluralidade: a condição de toda a vida política – não apenas condição necessária (sine qua non), mas por meio da qual (per quam) a vida política ocorre 1010. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 9..

Além disso, estas condições (Terra, vida, mundo, pluralidade) não somente se relacionam entre si, mas estão intimamente relacionadas com a condição mais geral da existência humana: nascimento e morte, natalidade e mortalidade. O trabalho e a obra, bem como a ação, estão também enraizados na natalidade, na medida em que têm a tarefa de prover e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que nascem no mundo como estranhos, além de prevê-los e levá-los em conta1111. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 11..

Ou seja, o nascimento de “novos” implica que os “recém-chegados” vêm ao mundo como “estranhos” para as gerações mais velhas que já desenvolveram algum senso de familiaridade e hábitos. Da mesma forma, para os “novos”, o mundo é sempre considerado velho e fora da ordem.

Nossa primeira aparição como indivíduos no mundo se dá pelo nascimento biológico. Em nosso lento crescimento, e pela educação, desenvolvemos capacidades, talentos e senso de identidade. O nascimento, porém, não fica no passado, como evento terminado. Ele é a condição de nosso próprio começo, enquanto indivíduos únicos no mundo. Tornamo-nos “seres do mundo” por termos nascido nele: é por palavras e atos que nos inserimos no mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato de nosso aparecimento físico original1212. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 219..

O nascimento corresponde à condição humana mais geral da natalidade, uma vez que o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo, somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir1111. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 11.. Presente em todas as atividades, a natalidade é condição de toda iniciativa e possibilidade de novos começos, manifestando-se especialmente na ação entre seres humanos. E como a ação é a atividade política por excelência, a autora afirma que a natalidade e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico1111. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 11..

Também os seres humanos são “os mortais”, pois não existem apenas como membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação1313. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 23.. Nossa mortalidade reside no fato de que a vida individual, como história vital identificável desde o nascimento até a morte, embora advenha da vida biológica – tanto quanto a natalidade –, não se reduz à biologia. Nascemos no mundo, somos do mundo, o espaço humano no qual existimos enquanto dura nossa vida. O nascimento é mundano, no sentido fenomenológico do aparecer de alguém entre os demais, assim como morrer significa deixar de estar entre os homens1414. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 10.:

O nascimento e a morte de seres humanos não são simples ocorrências naturais, mas referem-se a um mundo no qual aparecem e do qual partem indivíduos únicos, entidades singulares, impermutáveis e irrepetíveis. Sem um mundo no qual os homens nascem e do qual se vão com a morte, haveria apenas um imutável eterno retorno, a perenidade imortal da espécie humana como a de todas as outras espécies animais 1515. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 119..

A vida humana que ocorre no mundo entre o nascimento e a morte é bioi, ou modos de viver a vida; e uma vida humana única, que pode ser narrada, contada como biografia, é bios. A história de uma vida, sua biografia, é uma reta que corta o ciclo recorrente da vida contínua, “imortal”, da espécie (zoe).

Em Arendt, este elemento de iniciativa espontânea, condicionado pela natalidade, diz respeito ao caráter único de cada pessoa, em sua existência singular, que transpassa a vida da espécie. A existência é este aspecto de transcendência, de exteriorização de si (ex-sistere), a partir das condições em que a vida nos é dada. A natalidade equivale, pois, à liberdade que se realiza mais intensamente na ação. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável1616. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 220..

A autora enfatiza que a ação, tema central de sua reflexão política, não equivale ao “comportamento” que, em seu conformismo, habitualidade e previsibilidade estatística é a antítese da ação em sua inerente imprevisibilidade e flutuação. A sociedade de massas, afirma Arendt, onde o homem como animal social reina supremo, e onde aparentemente a sobrevivência da espécie poderia ser garantida em escala mundial, pode ao mesmo tempo ameaçar de extinção a humanidade1717. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 56.. Isto é decisivo em termos políticos, pois, segundo a pensadora:

Entregues a si mesmos, os assuntos humanos só podem seguir a lei da mortalidade, que é a mais certa lei e a única confiável de uma vida transcorrida entre o nascimento e a morte. O que interfere nessa lei é a faculdade de agir, uma vez que interrompe o curso inexorável e automático da vida cotidiana (…). Prosseguindo na direção da morte, o período de vida do homem arrastaria inevitavelmente todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-lo e iniciar algo novo, uma faculdade inerente à ação que é como um lembrete de que os homens, embora tenham de morrer, não nascem para morrer, mas para começar 1818. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 305..

“Vida” é um termo polissêmico, e Arendt percorre os sentidos que a palavra adquire ao longo da tradição filosófica: a vita activa (ou vita negotiosa, actuosa) contrapõe-se à vita contemplativa na língua dos romanos, o povo mais político que conhecemos 1919. Arendt H. A condição humana. 13ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2016. p. 9-10.; assim como já os gregos distinguiam entre bios politikos e bios theoretikos, ou seja, a vida pública e política na companhia dos demais, ou a vida dos pensadores ensimesmados.

Consideremos então a reflexão de María Zambrano sobre a vida humana, entre o nascimento e a morte, que apresenta aspectos fenomenológicos e hermenêuticos em comum com Arendt, embora a filósofa alemã se distinga por pensar politicamente a existência humana, enquanto Zambrano a entenda poeticamente2020. Wuensch AM. Hannah Arendt e María Zambrano: pensadoras do nascimento. In: Silva UR, Michelon FF, Senna NC, organizadores. Gênero, arte e memória: ensaios interdisciplinares. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas; 2009. p. 131-50.. Para a pensadora espanhola, o homem tem nascimento incompleto, jamais se conforma em viver naturalmente, necessitando sempre de algo mais – religião, filosofia, arte ou ciência 2121. Zambrano M. Hacia un saber sobre el alma. Buenos Aires: Losada; 2005. p. 104. (Tradução livre).

Na perspectiva de Zambrano, todos padecemos de nascimento incompleto em uma realidade inadequada e também hostil2222. Zambrano M. Hacia un saber sobre el alma. Buenos Aires: Losada; 2005. p. 105. (Tradução livre); daí o impulso existencial para a expressão e a criação como um desafio de completar o próprio nascimento ou renascer sucessivamente, nesta vida e neste mundo. Só o animal nasce de uma vez, enquanto o indivíduo, que nunca nasceu de todo, tem o trabalho de engendrar-se novamente, ou esperar ser engendrado2121. Zambrano M. Hacia un saber sobre el alma. Buenos Aires: Losada; 2005. p. 104. (Tradução livre). Podemos renascer porque nascemos, sendo o nascimento a condição de toda a vida humana e suas realizações, onde cada um se distingue, ultrapassando a si mesmo em meio a relação com os outros.

É no decorrer de sua vida que alguém pode constituir sua individualidade, em meio às relações que estabelece com os outros, com o mundo e consigo mesmo em seu projeto de vida. Individualizar-se envolve escolha, a mais decisiva entre todas: o que se faz de si mesmo. Nesta escolha fundamental se realiza a liberdade humana, a própria e a comum, pois não é possível escolher a si mesmo sem escolher, ao mesmo tempo, os outros2323. Zambrano M. La confesión: género literario. 2ª ed. Barcelona: Siruela; 1995. p. 55-6. (Tradução livre).

Segundo Zambrano, somos seres de sucessivos renascimentos. Por meio do nascimento do que chamamos de “real” há parto contínuo de nós mesmos e da realidade, pois o homem é criatura em transe de contínuo nascimento2424. Zambrano M. Persona y democracía. Barcelona: Anthropos; 1996. p. 143. (Tradução livre). Por isso, parece ser condição da vida humana o ter que renascer, o ter que morrer e ressuscitar, sem sair deste mundo2525. Zambrano M. Persona y democracía. Barcelona: Anthropos; 2005. p. 10. (Tradução livre). Daí os contínuos renascimentos no decorrer de uma vida em trânsito, percurso, caminho entre o que ainda não somos e o que desejamos ser, da obscuridade de nossa origem à luz de determinado projeto, em sucessivo trabalho de parto de si mesmo e da realidade, no qual nascer e criar são equivalentes a um místico “despertar”.

A condição do nascimento é o impulso de transcendência e liberdade que, em Zambrano, se traduz pela impossibilidade de descansar na vida anônima e na necessidade de autenticidade que move a busca de realização do próprio ser singular em meio à cultura. O nascimento é imanente ao ser humano como ser vivente, em sua tendência de transcender-se rumo à própria individualidade. Quem não morre ao separar-se de outro ser – posto que nascimento é sempre separação – terá de enfrentar situações-limite no decorrer de sua vida e há de sentir que precisa nascer por si mesmo2626. Zambrano M. Persona y democracía. Barcelona: Anthropos; 2005. p. 45. (Tradução livre).

Para Zambrano, a confissão é o modo como o vivente se interroga sobre as dores que padece e se pergunta pelas razões de sua existência, um método para encontrar esse sujeito a quem ocorrem dores, e como alguém que se distingue do que lhe acontece2727. Zambrano M. Persona y democracía. Barcelona: Anthropos; 1995. p. 107. (Tradução livre). Por isso, a confissão torna-se o modo privilegiado de dizer, relatando o movimento vital em que alguém põe sua existência em questão, vislumbrando-se a si mesmo “desde fora”: um existente vivente, em sua particular percepção da condição humana.

Enquanto Arendt apresenta a biografia2828. Wuensch AM. Op. cit. p. 146. como a narrativa de uma vida, a história de um ser único em sua existência, Zambrano define a confissão, ou autobiografia 2929. Wuensch AM. Op. cit. p. 138., como o relato da busca de autoconhecimento de um ser humano em seu despertar nesta vida em trânsito. Por meio de suas próprias palavras, o vivente conta sua trajetória de individuação ao buscar reconciliar-se com a realidade “inadequada e hostil”. Como gênero literário, a confissão é típica de momentos de crise, quando a existência humana se revela para nós; pois é próprio da cultura, de todas as culturas, manter encoberta a existência nua do homem3030. Zambrano M. Op. cit. 1995. p. 34. (Tradução livre). Para Zambrano, o que uma crise revela é justamente o que está encoberto pela cultura:

Aparecem as entranhas da vida humana, o desamparo do homem que se encontra sem apoio, sem ponto de referência; de uma vida que não flui para meta alguma e que não encontra justificação. Então, em meio a tanta desgraça, nós, que vivemos em crise, temos, talvez, o privilégio de poder ver mais claramente o que se põe a descoberto pela própria crise: a vida humana, a nossa vida 3131. Zambrano M. Op. cit. 2005. p. 93. (Tradução livre).

Em Zambrano, como em Arendt, “vida” é conceito amplo que inclui, relaciona e distingue a vida humana em suas formas de expressão e criação cultural, sendo, em seus começos, já proposta e profecia de mediação. Esta vida – não é necessário dizer social, uma vez que a vida humana o é, de raiz – exige congenitamente a mediação entre a matéria não viva e as formas viventes, mesmo aquelas ainda não reveladas – sem que se possa separar o pensamento da vida, posto que toda vida é forma ou a persegue; toda a vida, e a vida toda3232. Zambrano M. La vocación del maestro. In: Cambres GG. La aurora de la razón poética. Málaga: Editorial Agora; 2000. p. 135. (Tradução livre). Além disso,

a vida precisa do pensamento, mas precisa porque não pode continuar no estado em que espontaneamente se produz. Porque não basta nascer uma vez e movimentar-se num mundo de instrumentos úteis. A vida humana sempre pede para ser transformada, pois precisa estar continuamente convertendo-se, quando entra em contato com certas verdades. Pois é sempre necessário que este pensamento seja assimilado e renasça, como renasce a vida, diariamente. Se o pensamento segue vivendo, terá que nascer e renascer tantas vezes quanto chegam as gerações no tempo da história 3333. Zambrano M. La vocación del maestro. In: Cambres GG. La aurora de la razón poética. Málaga: Editorial Agora; 2005. p. 68-9. (Tradução livre).

Segundo Arendt e Zambrano, nascimento e morte não são contrários irreconciliáveis, mas condições da própria existência humana no mundo e na Terra. Nas palavras da filósofa espanhola:

Nascimento e morte, aurora e anoitecer são os instantes mais promissores do processo vital. A ilimitação do nascimento, e esta liberação que se produz no instante anterior a toda morte, têm uma grande semelhança; são os instantes de máxima liberdade, em que se manifesta em uma pura presença esta realidade que, enquanto dura o que é propriamente vida, está encerrada em uma forma. Nascimento e morte consistem em destruição de uma forma, trânsitos 3434. Zambrano M. La vocación del maestro. In: Cambres GG. La aurora de la razón poética. Málaga: Editorial Agora; 2000. p. 149. (Tradução livre).

Mas por que examinar apenas o nascimento, e não o parto 3535. Rattner D. Humanização na atenção a nascimentos e partos: breve referencial teórico. Interface Comun Saúde Educ [Internet]. 2009 [acesso 1º ago 2017];13(Supl 1):595-602. Disponível: https://bit.ly/2QxkkrC
https://bit.ly/2QxkkrC...
,3636. Santos ML. Os desafios de uma filosofia para a humanização do parto e do nascimento. Tempus [Internet]. 2010 [acesso 1º ago 2017];4(4):17-24. Disponível: https://bit.ly/2z1Grjn
https://bit.ly/2z1Grjn...
, uma vez que essas são duas perspectivas do mesmo fenômeno, o “vir ao mundo”, em seus trânsitos e formas de vida em movimento? A reflexão filosófica sobre o nascimento exige que a pergunta seja levada em conta. Podemos responder, provisoriamente, que o nascimento é experiência universal, posto que nós todos nascemos de parto. Mas a experiência do parto, considerados os distintos sujeitos aí envolvidos, não é algo habitualmente considerado pela filosofia tradicional.

Mesmo reconhecendo que é intrigante a ausência de uma “filosofia do parto” na filosofia em geral e nas reflexões de Arendt e Zambrano em particular – sem adentrar o trabalho do médico Michel Odent sobre o tema 3737. Odent M. O camponês e a parteira: uma alternativa à industrialização da agricultura e do parto. São Paulo: Ground; 2003.,3838. Odent M. O renascimento do parto. Florianópolis: Saint Gemain; 2002. –, cabe enfatizar a importância da reflexão filosófica, política e poética do nascimento, destacando sua força simbólica na tradição filosófica que deu grande destaque à morte e ao morrer. As palavras da filósofa italiana Adriana Cavarero apontam nesta direção: a categoria arendtiana de nascimento – como enraizamento de fato – e, portanto, real, do sujeito singular concreto; e o princípio de realidade que o nascimento funda; é este o fato ao qual o discurso verdadeiro deve restituir significação3939. Cavarero A. Decir el nacimiento. In: Diótima. Traer al mundo el mundo: objeto y objetividad a la luz de la diferencia sexual. Madri: Icaria; 1996. p. 115-46. p. 130-5. (Tradução livre).

O nascimento é importante para a filosofia e a bioética?

A natalidade, em Arendt, deve ser considerada categoria filosófica política e mundana, não metafísica. Hans Jonas, contemporâneo e leitor de Arendt 55. Jonas H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo: Paulus; 2013.,4040. Jonas H. Actuar, conocer, pensar: la obra filosófica de Hannah Arendt. In: Birulés F, organizador. Hannah Arendt: el orgullo de pensar. Barcelona: Gedisa; 2000. p. 23-40., reflete, em sua homenagem póstuma à pensadora:

Para Hannah Arendt, a mortalidade se junta à natalidade como categoria decisiva da existência humana; ela mesma formulou a expressão “Natalität”, como um conceito contrário ao de “Mortalität”. Isto nos chama atenção. Ao falar de “natalidade”, Hannah Arendt não só cunha uma palavra nova, mas introduz com ela uma nova categoria na doutrina filosófica do ser humano. A mortalidade desde sempre ocupou a reflexão. E a meditatio mortis, a meditação sobre a morte, nunca esteve separada do centro da reflexão religiosa e filosófica. Mas a sua contrapartida, o fato de que cada um de nós seja nascido e entre no mundo como um recém-chegado, permaneceu surpreendentemente descuidado no pensamento sobre o nosso ser 4141. Jonas H. Actuar, conocer, pensar: la obra filosófica de Hannah Arendt. In: Birulés F, organizador. Hannah Arendt: el orgullo de pensar. Barcelona: Gedisa; . 2000. p. 28. (Tradução livre).

Também Jürgen Habermas considera e reinterpreta diversas categorias arendtianas, utilizando-as para tratar de temas emergentes relativos à “tecnicização da vida”, como a reprodução humana assistida e a manipulação genética, pelos seus impactos na compreensão filosófica da “natureza humana”. Ao referir-se à liberdade como parte de algo naturalmente indisponível, o filósofo afirma que a naturalidade do nascimento também cumpre o papel conceitualmente necessário deste início indisponível. Raras vezes a filosofia tematizou essas questões. Às exceções pertence Hannah Arendt, que apresentou a natalidade no âmbito de sua teoria da ação4242. Habermas J. Op. cit. p. 81..

A passagem das considerações filosóficas sobre o nascimento para as abordagens bioéticas sobre o início da vida e suas articulações com a terminalidade da vida ainda não estão bem estabelecidas. O nascimento e os modos de nascer são tratados predominantemente de pontos de vista estritamente científico e técnico, isto é, fatual e empírico, sem um correspondente existencial. Neste sentido, pelo menos duas contribuições de Arendt e Zambrano são fundamentais para a bioética.

A primeira é tomar o nascimento como tema fundamental para refletir sobre o início mundano da vida do indivíduo. Bem entendido, não se trata de considerar somente determinados nascimentos, marcados por circunstâncias específicas (como pobreza, doença ou reprodução assistida), mas o fato mesmo de nascer, de termos nascido e de sermos seres natais, mesmo o nascimento dito “normal”. Esta contribuição filosófica, de apresentar o nascer humano como problema de fundo, torna o estudo da condição humana importante para a bioética. Desse modo, a filosofia existencial do nascimento ou da natalidade pode dar suporte ao “estudo das populações” ou às especialidades médicas e sua casuística, redimensionando-as no campo bioético de modo a considerar a existência humana desde o nascimento, sem reduzi-la ou confiná-la ao nível biológico da fertilidade. Um diálogo interdisciplinar é iniciado a partir da pergunta: o que significa nascer?

A segunda contribuição das autoras é o desenvolvimento de um pensamento de caráter fenomenológico-existencial – no caso de Arendt, em diálogo crítico com Martin Heidegger e Karl Jaspers; no caso de Zambrano, com José Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno – que coloca o nascimento em plano não meramente biológico, fisiológico ou médico, mas simbólico, como um cuidar de si mesmo na existência. Em Arendt, o nascimento é politizado; em Zambrano, poetizado – duas formas de ressimbolizá-lo e redimensioná-lo, gerando expressões que a princípio parecem soar sem sentido para a bioética: “segundo nascimento”, “nascimento incompleto”, “transnascer”, “renascimentos contínuos” etc. Termos carregados de sentido simbólico ou metafórico, não “fictício” ou “literário”, mas que remetem à própria condição humana em suas vicissitudes estruturais.

Retomemos a tripartição arendtiana da vita activa entre atividades do trabalho, fabricação e ação. Colocado em cada um desses níveis, o nascimento será considerado de três modos muito diferentes: 1) como produto biológico do corpo humano; 2) como produto ou obra da ciência e da técnica médica – por exemplo, a reprodução assistida; ou 3) como resultado da coexistência entre os seres humanos. Em geral, os bioeticistas têm grande apreço pela primeira dimensão, mas tendem a rejeitar a segunda – a reprodução como mera produção de novos humanos – e permanecem muito longe da terceira, na qual o nascimento é visto como interação simbólica carregada de sentido, ação política. As expressões genéricas “ter filhos” e “procriar” escondem diferenças gigantescas entre gerar filhos, fabricar filhos e agir entre gerações em processos de interação política e criação simbólica na cultura.

O que propomos aqui, com base em Arendt e Zambrano, é reconsiderar a perspectiva bioética sobre o início da vida, tendo-o como o princípio que caracteriza a vida humana no mundo e a trajetória biográfica ou autobiográfica de cada indivíduo. Esta proposta distancia-se da argumentação de Peter Singer, que insiste em nos lembrar de nosso gênero próximo (animal senciente) para depois buscar a ética apropriada à nossa diferença humana específica (linguística, argumentativa, calculadora de consequências). Para pensar em novos padrões éticos relativos à “procriação assistida” por meio da tecnologia médica, Singer usa casos exemplares e singulares, como o de Louise Brown (1978), o primeiro bebê de proveta 4343. Singer P. Ética prática. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2002. p. 146., e o de Trisha Marshall (1993), que, apesar da morte cerebral, teve sua gravidez preservada tecnicamente 4444. Singer P. Ética prática. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1997. p. 23.. No entanto, esses casos extremos podem encobrir o extraordinário que constitui o próprio nascimento de cada um de nós.

O estudo da casuística poderia beneficiar-se de um viés fenomenológico e existencial, político e poético. Para tanto, precisaríamos recorrer às investigações sobre o juízo, considerado por Arendt a mais política das atividades mentais4545. Arendt H. Lições sobre a filosofia política de Kant. 2ª ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Relume- -Dumará; 1994., a faculdade humana de julgar acontecimentos singulares e sem precedentes. Ao sugerir este tópico, ressaltamos que as novas realidades, constantemente incorporadas à condição humana, cobram de nós a compreensão do “que estamos fazendo”, levando à dimensão pública o debate sobre o significado das novas tecnologias e desenvolvimentos científicos sobre o nosso modo de vida, bem como o impacto das decisões políticas coletivas ou dos governos sobre as próximas gerações, em relação à vida que vivemos ou proporcionamos aos que nasceram ou vão nascer:

A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência 4646. Arendt H. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. 3ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras; 1989. p. 12..

Não se trata de fazer “ciência do particular”, mas, antes, de lembrar e considerar que exceções também criam suas próprias e novas regras – aspecto relevante para pesquisadores envolvidos no debate sobre a “liberdade procriativa”. Por exemplo, Maurizio Mori 4747. Mori M. Fecundação assistida e liberdade de procriação. Bioética [Internet]. 2001 [acesso 1º ago 2017];9(2):57-70. Disponível: https://bit.ly/2Ozvev6
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aponta a dificuldade em “limitar” o nascimento como fenômeno do desenvolvimento humano por meio da periodização do fenômeno em sentido biológico ou filosófico, optando pelo primeiro. Ao tratar das técnicas reprodutivas como evento extraordinário entre a liberdade de procriar ou não procriar, o autor parece ignorar que todo nascimento é extraordinário, seja ele natural ou técnico, posto que sempre podemos não nascer. O extraordinário de todo nascimento é sua profunda contingência: poderíamos não ter nascido ou ter nascido mortos. Nascidos vivos, a vida nos envolve no jogo mortal de nossa existência única e circunstancial, desafiando a nos tornarmos alguém: o que faremos, então, nós que viemos ao mundo entre os demais? Procriaremos ou não, por nossa vez? As respostas farão parte de nossa biografia (Arendt) ou autobiografia (Zambrano) das existências que se destacam sobre o pano de fundo dos estudos demográficos, a partir dos quais são planejadas as decisões tomadas no âmbito das “políticas de população e fertilidade”.

Mori, porém, não pensa a partir de perspectiva existencial, como nossas autoras. Já no início do texto, ele vê o direito de não procriar baseando-se apenas em motivos fatuais, como a situação demográfica da humanidade, aceitando sem crítica que, caso a questão ecológica e outras questões fatuais não existissem ou fossem superadas, o nascimento não colocaria nenhum problema. Não há em Mori apreciação do “ser do mundo” dos humanos enquanto tal, mas apenas de suas circunstâncias sociais e naturais. Mas, tomando o viés existencial, o que importa é o que os humanos fazem com as circunstâncias sociais e naturais, suas próprias respostas e escolhas. Em etapas mais avançadas de seu texto, Mori não vê sentido na expressão “bem-estar do nascituro” nem concebe como se poderia beneficiar alguém mediante a “liberdade negativa”. Ele simplesmente não visualiza os elementos existenciais do nascimento, que o tornam mais do que mero evento natural, problema social ou médico.

O nascimento humano deveria ser examinado com base na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 4848. Garrafa V, Kottow M, Saada A, organizadores. Op. cit. p. 255-75. em seus pontos mais fundamentais, destacando-se o artigo 16 (Proteção das gerações futuras), articulado com os demais artigos que tratam da dignidade humana e dos direitos fundamentais. Numa época de devastação e desenraizamento mundial das populações, a DUBDH propõe nova ordem de enraizamento ético, jurídico, político e ambiental.

O que foi novidade no século XX vem se tornando regra no século XXI. Pensar o nascimento, neste contexto e neste marco, é pensar o que estamos fazendo da humanidade e seu futuro. Precisamente porque pensam a partir de um referencial fenomenológico-existencial, a questão das gerações vindouras, para Arendt e Zambrano, não seria mero fato de sobrevivência física e biológica; às gerações futuras devemos prever e tentar garantir condições para uma existência digna. Quem nasce adquire identidade existencial; é um ser no mundo, gerado, não apenas cidadão, trabalhador, dirigente ou paciente, mas um ser natal-mortal que terá de se fazer em sua existência no mundo entre os outros.

Na perspectiva de Zambrano, podemos falar da sobrevivência poética das gerações futuras, no sentido de fornecer a estes aqueles elementos que completem seu nascimento incompleto, efetuando a contento o transnascer em seu migrar pelo mundo. Na bioética, mesmo entre aqueles que se opõem a uma visão puramente médica ou biológica da vida, o nascimento tende a ser considerado mero fato, acontecimento já ocorrido e fechado a elaborações simbólicas sucessivas como as propostas por Zambrano. Para a pensadora espanhola, nascer não é apenas surgir no mundo por via de parto, mas dispor de oportunidades para engendrar-se novamente em meio hostil, ser liberado para novos renascimentos e poder viver não apenas uma vida, mas constituí-la como autobiografia, numa personalização ou apropriação de seu próprio nascimento fatual.

Considerações finais

Habermas e Jonas já indicaram possibilidades de leitura da obra de Arendt para a filosofia e a bioética; sobre a contribuição do pensamento de Zambrano para a bioética, não foi encontrada literatura. É preciso estudar com cuidado os textos das duas pensadoras para delinear mais claramente sua presença na bioética. Começamos a fazer isso em nossa investigação 4949. Wuensch AM. Pensar o nascimento: contribuições política e poética de Hannah Arendt e María Zambrano para a bioética [tese] [Internet]. Brasília: UnB; 2017 [acesso 1º ago 2017]. Disponível: https://bit.ly/2AViPxY
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.

Entendemos a importância de contar com verbetes em dicionários técnicos de filosofia e bioética para marcar o estatuto filosófico existencial, político e poético da natalidade. No “Dicionário Houaiss da língua portuguesa”, encontramos amplo léxico nos verbetes “nascer”, “nascente”, “nascido”, “nascimento”, “nascituro”, “nascível” 5050. Houaiss A, Villar MS, Franco FMM. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2001. p. 1997.. No “Dicionário de filosofia” 5151. Abbagnano N. Dicionário de filosofia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 1998. p. 683., há um verbete sobre “morte”; no “Dicionário Oxford de filosofia” 5252. Blackburn S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar; 1997. p. 257. constam “morte”, “morte com dignidade” e “morte de Deus”. Mas, no “Vocabulário técnico e crítico da filosofia” 5353. Lalande A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes; 1999., nada encontramos sobre nascer ou morrer, nascimento e morte, ou natalidade e mortalidade.

O cenário é similar em obras do campo da bioética, que retoma referências tradicionais da filosofia e de outras ciências naturais e humanas. Na “Encyclopedia of bioethics” 5454. Post SG. Encyclopedia of bioethics. 3ª ed. 4 vol. New York: MacMillan Reference; 2004. e no “Diccionario latinoamericano de bioética” 5555. Tealdi JC. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. encontram-se considerações filosóficas, médicas, antropológicas, sociológicas, psicológicas e teológicas sobre a morte e o morrer e sobre temáticas associadas à terminalidade da vida, como eutanásia, suicídio, morte cerebral, pena de morte, genocídio e infanticídio.

Especialmente no “Diccionario latinoamericano” – relevante por sua atenção a temas, conceitos e ferramentas da bioética e por seu empenho em reunir aportes e linhas de investigação latino-americanas – novamente deparamos com o padrão da tradição: há um capítulo sobre “Muerte y morir5656. Tealdi JC. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 484., mas nada encontramos, por exemplo, sobre Nacimiento y nacer. Há um capítulo sobre “Vida y vivir5757. Tealdi JC. Diccionario latinoamericano de bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 595., o que, no entanto, gera estranha polaridade entre vida e morte, em vez de contribuições para pensar a vida, existencialmente considerada, entre o nascimento e a morte.

Na volumosa reflexão bioética latino-americana sobre reprodução humana, nascimento e parto, ainda buscamos consideração existencial desses temas. Aos trabalhos já mencionados anteriormente 3636. Santos ML. Os desafios de uma filosofia para a humanização do parto e do nascimento. Tempus [Internet]. 2010 [acesso 1º ago 2017];4(4):17-24. Disponível: https://bit.ly/2z1Grjn
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,3737. Odent M. O camponês e a parteira: uma alternativa à industrialização da agricultura e do parto. São Paulo: Ground; 2003., acrescentamos: o de Schramm e Braz 5858. Schramm FR, Braz M. Bioética e saúde: novos tempos para mulheres e crianças? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005., que organizaram em livro material significativo sobre políticas públicas de saúde para mulheres e crianças, sob a rubrica de bioética do início da vida; o manual de Kottow 5959. Kottow M. Introducción a la bioética. Santiago de Chile: Editorial Universitária; 1995., que contém um longo capítulo em que são destacadas as questões da naturaleza y generaciones futuras e dilemas en relación a la reproducción humana; e a dissertação de mestrado de Feitosa 6060. Feitosa SF. Pluralismo moral e direito à vida: apontamentos bioéticos sobre a prática do infanticídio em comunidades indígenas no Brasil [dissertação] [Internet]. Brasília: UnB; 2010 [acesso 9 nov 2018]. p. 44-50. Disponível: https://bit.ly/2QwaGpl
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, que dedica um capítulo à “insuficiência do nascimento biológico”.

Incluímos a referência ao livro “Bioética cotidiana”61, de Giovanni Berlinguer, por sua influência histórica e conceitual na bioética brasileira, destacando seu primeiro capítulo, “Nascer hoje, entre a natureza e a ciência. Todavia, é significativa a observação de Berlinguer: uma maior dedicação ao fato de que o nascido, à medida que cresce, encontra mais dificuldade de construir o seu caminho na vida, é uma questão pela qual, segundo o autor, tanto a bioética quanto a política ainda mostram escasso interesse6262. Berlinguer G. Bioética cotidiana. Brasília: Editora UnB; 2004. p. 103-4..

Além de novos verbetes em dicionários técnicos, seria necessário introduzir de maneira mais incisiva abordagens existenciais e vitais ligadas à condição humana nos trabalhos de bioética, desde dissertações e teses até artigos e livros. O tema do nascimento poderia ser o ponto inicial, mas não o terminal; na verdade, todos os problemas bioéticos têm dupla dimensão, físico-biológica e existencial, sendo esta última largamente negligenciada na literatura.

O nascimento, como problema de fundo para a bioética e a filosofia, diz respeito à dignidade possível, política e poética da vida humana em sua radical contingência e sua articulação com a morte, como parte estruturante dos seres natais no drama de sua humana existência. Trata-se de pensar o que estamos fazendo a este respeito e, especialmente, como o nascimento deve ser considerado na formação filosófica e bioética – na transmissão de um cânone nem sempre bem examinado em seus pressupostos – em sua tarefa de educar as gerações já nascidas. Talvez essa perspectiva seja um dos elementos indispensáveis para refletir sobre os fundamentos da bioética, sobretudo em suas correntes mais atentas à condição humana, em distintas apresentações históricas, culturais e sociais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    3 Ago 2017
  • Revisado
    24 Abr 2018
  • Aceito
    26 Abr 2018
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