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Morte digna como direito: visibilidade jurídica da finitude

Resumo

O direito à morte digna é majoritariamente ignorado pelo ordenamento brasileiro. Essa invisibilidade do processo de finitude e suas consequências são tema deste estudo, que objetiva realizar um levantamento exploratório para identificar pontos relevantes que devem ser desenvolvidos para garantir um processo de finitude digno. Foram analisadas 50 publicações, mediante levantamento online e físico de obras publicadas até março de 2023. Os estudos analisados expressam preocupação com dilemas éticos do cuidar do ser humano em finitude, mas não analisam formas existentes de tutela da finitude nem quais searas ainda são carentes de normatização para dar eficácia a esse cuidado. Espera-se que esta pesquisa contribua para fortalecer o olhar crítico ao tema, considerando as atuais tutelas da finitude, os limites legais do Estado e os potenciais passos futuros para fazer avançar os estudos aplicados à atualização prática do ordenamento brasileiro.

Palavras-chave
Direitos humanos; Direitos civis; Valor da vida; Direito a morrer; Cuidados paliativos na terminalidade da vida

Abstract

The right to a dignified death is largely overlooked by Brazilian law. This neglect of the end-of-life process and its ramifications is the focus of this study, which aims at an exploratory survey to identify pertinent aspects requiring development to ensure a dignified end-of-life experience. In total, 50 publications were examined with online and physical surveys of works published up to March 2023. They express concerns regarding ethical dilemmas in caring for individuals nearing the end of life, yet they do not delve into existing mechanisms for safeguarding end-of-life dignity or identify areas that still lack standardization to ensure effective care. This study should contribute to the enhancement of critical perspectives on the issue of end-of-life experiences, considering current safeguards, the legal boundaries set by the State, and potential future strides toward advancing studies aimed at the practical update of the Brazilian legal system.

Keywords
Human rights; Civil rights; Value of life; Right to die; Hospice care

Resumen

El derecho a una muerte digna es ampliamente ignorado por el ordenamiento jurídico brasileño. Esta invisibilidad del proceso de finitud y sus consecuencias son el objeto de este estudio, que tiene como objetivo realizar una encuesta exploratoria para identificar los puntos relevantes que deben desarrollarse para garantizar un proceso de finitud digno. Se analizaron 50 publicaciones a través de una encuesta online y física de obras publicadas hasta marzo de 2023. Los estudios analizados expresan preocupación por los dilemas éticos de la atención a seres humanos en finitud, pero no analizan las formas de protección a la finitud existentes ni cuáles son las áreas que aún necesitan regulación para hacer efectiva esta atención. Se espera que esta investigación contribuya a fortalecer la visión crítica de la finitud, considerando la protección actual de la finitud, los límites jurídicos del Estado y los posibles pasos futuros para avanzar en los estudios aplicados a la actualización práctica del sistema jurídico brasileño.

Palabras clave
Derechos humanos; Derechos civiles; Valor de la vida; Derecho a morir; Cuidados paliativos al final de la vida

O nascimento com vida, o viver e a morte são realidades inexoráveis e, por isso, são fontes de discussão para todas as ciências humanas. No caso específico da morte, a sociedade não gosta sequer de pensar sobre a finitude humana, muito menos de discuti-la ou garantir dignidade ao processo de fim de vida. Entretanto, apesar de encarada como tabu, a morte, entendida como sinônimo do termo grego thánatos 11. Ferreira ABH. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1999. Morte; p. 1922., deve ser discutida tanto quanto a vida, em especial quando se vislumbra a invisibilidade das pessoas em processo de morte no Brasil.

Considerando essas pessoas invisibilizadas diariamente, este estudo pretende demonstrar que o processo de morte, assim como o luto, faz parte das experiências necessárias para que se tenha o direito à vida e à dignidade garantidos e operados em sua plenitude, uma vez que a morte nada mais é do que a última experiência da vida.

É importante frisar que, com o avançar da medicina e o envelhecimento da população brasileira 22. Pirâmide etária. IBGE Educa [Internet]. [s.d.] [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/q1n90
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, é maior a probabilidade de se conviver com situações de deficiências adquiridas 33. Segalla JISF. Inclusão não é favor nem bondade. São Paulo: Matrioska; 2021. e com pessoas em situação de doenças incuráveis, ou seja, com um crescente número de pessoas que dependem de cuidados paliativos. Segundo a Academia Nacional de Cuidados Paliativos, 20 milhões de pessoas no mundo necessitam de cuidados paliativos, e estima-se que esse número salte para 40 milhões se forem considerados os estágios iniciais de diagnóstico 44. 20 milhões de pessoas necessitam de cuidados paliativos, diz Organização Mundial da Saúde. Academia Nacional de Cuidados Paliativos [Internet]. 2014 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tinyurl.com/459yev4j
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Na seara do direito, há múltiplas publicações em bioética que tratam de práticas possíveis para os momentos finais da vida ou para o encaminhamento da morte. A grande maioria delas aborda o direito comparado ou disserta sobre as práticas da ortotanásia, distanásia e eutanásia.

Contudo, no que tange ao regramento legal da finitude da vida no Brasil, há poucas leis e alguns normativos esparsos, em sua maioria ligados ao Conselho Federal de Medicina (CFM), que geram poucos efeitos perante o restante do ordenamento. Além disso, falta tratamento jurídico do processo de morte e compreensão do conceito e das necessidades para cumprimento dos princípios constitucionais nas fases de finitude da vida.

A discussão sobre os cuidados paliativos e o processo de finitude da pessoa humana é muito ampla e admite diversas frentes de debate, como custeio em algumas das situações que se abordarão ou tutela no contexto de política criminal e civil. Apesar dessas abordagens merecerem debate aprofundado, não se pretende exaurir tais pontos.

Definição para o direito da vida e da morte

A vida e a morte são tratadas pelo direito como institutos, com significados presumidos, pois não há uma definição cabalística para ambos. A vida é tratada no art. 5º, caput, da Constituição Federal:

Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida (...) 55. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 out 1988 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://bit.ly/3Bcb8SS
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.

E é retratada também no Código Civil de 2002, em seu art. 2º:

Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro 66. Brasil. Lei nº 10.046, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 10 jan 2002 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://bit.ly/3RjBU2z
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Também é largamente citada e protegida por meio de tratados e pactos internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), art. 6, §1º; o Pacto de San José da Costa Rica, art. 4º (1969); e o Tratado Internacional de Direitos Humanos (1948), art. 3º:

O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida 77. Pacto internacional dos direitos civis e políticos [Internet]. 1966 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tinyurl.com/4ss6w3y9
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Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente 88. Brasil. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 9 nov 1992 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tinyurl.com/4754nb84
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Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoa 99. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal de Direitos Humanos [Internet]. 10 dez 1948 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tinyurl.com/5fw8ctf4
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Nota-se dificuldade em definir juridicamente o termo “vida”, sendo possível reconhecer, contudo, que a lei vislumbra esse conceito como direito inviolável inerente à pessoa humana.

É importante citar o que a doutrina desenvolve sobre o vocábulo “vida”. Nesse sentido, Pontes de Miranda observa que o direito à vida é inato; quem nasce com vida, tem direito a ela (...). O consentimento do que sofre ato contra a vida (homicídio ou atentado contra a vida do consentinte) não exclui a contrariedade a direito, por isso mesmo que o direito à vida é irrenunciável. (...) O direito à vida é direito ubíquo: existe em qualquer ramo do direito, inclusive no sistema jurídico supraestatal. É absurdo reduzi-lo a direito privado 1010. Miranda P. Tratado de direito privado [Internet]. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2012 [acesso 13 mar 2024]. p. 70. Disponível: https://tny.im/12zGx
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Alfredo Orgaz, citado por Luciana Mendes Pereira Roberto, explica que a vida constitui um pressuposto essencial da qualidade de pessoa, e não um direito subjetivo desta, sendo tutelada publicamente, independentemente da vontade dos indivíduos. O consentimento dos indivíduos é absolutamente ineficaz para mudar esta tutela, não sendo possível, assim, haver um verdadeiro “direito” privado à vida. Neste sentido, são absolutamente nulos todos os atos jurídicos nos quais uma pessoa coloca sua vida à disposição de outra ou se submete a grave perigo 1111. Roberto LMP. O direito à vida. Scientia Iuris [Internet]. 2004 [acesso 13 mar 2024];7:340-53. p. 343. DOI: 10.5433/2178-8189.2004v7n0p340
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Jakobs 1212. Jakobs G. Suicídio, eutanásia e direito penal. São Paulo: Manole; 2003. p. 35., distintamente, afirma que o valor principal não é a vida como fenômeno biológico, mas sua qualidade ou, ao menos, sua suportabilidade, já que, como qualquer um pode julgar em qualquer momento, viver não significa preocupar-se continuamente pela saúde. Vale também a definição trazida por Calsamiglia, apresentada por Dias, segundo a qual o valor da vida não é o fato de sermos seres vivos, mas a conduta e os objetivos que alcançamos nela 1313. Dias R. O direito fundamental à morte digna: uma visão constitucional da eutanásia. Belo Horizonte: Fórum; 2012. p. 117..

Moraes, no âmbito constitucional, diz que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais 1414. Moraes A. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas; 2002. p. 63. Além disso, Branco explica que não faria sentido declarar qualquer outro (direito) se, antes, não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância é superior a todo outro interesse 1515. Branco PGG. Curso de direito constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva; 2010. p. 441.

Complementarmente, Pontes de Miranda tratou do tema dual da morte diante do direito à vida, entendendo que se pensou que o direito à vida implicava direito à morte. O homem, se tem direito de viver, tem direito de morrer. (...) A todo direito corresponde dever, mas dever de outrem; (...) não há como se tirar do direito de viver o direito de morrer. Se houvesse tal direito, não se puniria a ajuda ao suicídio 1616. Miranda P. Tratado de direito privado [Internet]. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2012 [acesso 13 mar 2024]. p. 72. Disponível: https://tny.im/12zGx
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O tratamento da morte no ordenamento jurídico brasileiro é mais recente e ainda menos expressivo que o da vida e, assim como este, o conceito de morte não é definido de fato. O Código Civil discorre, em seu art. 6º, que a existência da pessoa natural termina com a morte, mas não define o que seria a morte 66. Brasil. Lei nº 10.046, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 10 jan 2002 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://bit.ly/3RjBU2z
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; e o Código Penal, art. 121, refere matar alguém: Pena – reclusão de seis a vinte anos 1717. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Reio de Janeiro, 7 dez 1940 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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. O objetivo do ordenamento, nesse caso, é proteger o direito à vida, tutelado pela Constituição Federal.

Por fim, a configuração de morte é explanada na Lei 9.434/1997, que versa sobre doação de órgãos:

Art. 3º – A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos (...), mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina 1818. Brasil. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 4 fev 1997 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/uzqOR
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Outra definição que merece ser abordada é a de Gardiner e colaboradores, que afirmam que há um consenso crescente sobre o conceito médico de morte, toda morte humana é anatomicamente localizada no cérebro. Isso é, a morte humana envolve uma irreversível perda na capacidade de consciência, combinada com a perda irreversível da capacidade de respirar 1919. Gardiner D, Shemie S, Manara A, Opdam H. International perspective on the diagnosis of death. Br J Anaesth [Internet]. 2012 [acesso 13 mar 2024];108(supl 1):14-28. DOI: 10.1093/bja/aer397
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. Assim, tanto no âm- bito legal quanto no da medicina, adota-se a morte encefálica como o momento em que cessa a vida 2020. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 240, p. 50-275, 23 nov 2017 [acesso 13 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://tny.im/ngTee
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Finalmente, é importante recorrer às definições filológicas dos termos:

Morte: sf. fim da vida, falecimento, termo, des- truição 2121. Cunha AG. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1999. Morte; p. 534..

Vida: [do lat. vita] s.f. (...) 2. Estado ou condição dos organismos que se mantêm nessa atividade desde o nascimento até a morte; existência. (...) 5. O espaço de tempo que decorre desde o nascimento até a morte; existência 2222. Ferreira ABH. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1999. Vida; p. 2.070..

Considerando essas definições, é interessante notar que a morte não é descrita como antônimo de vida, mas é o episódio que marca seu fim, ou seja, o último ato da vida. Dessa forma, entende-se que o exercício pleno do direito à vida depende do direito pleno à morte digna, amparado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Além disso, este artigo adotará a definição de vida de Alfredo Orgaz, citado por Roberto, segundo a qual a vida constitui um pressuposto essencial da qualidade de pessoa 1111. Roberto LMP. O direito à vida. Scientia Iuris [Internet]. 2004 [acesso 13 mar 2024];7:340-53. p. 343. DOI: 10.5433/2178-8189.2004v7n0p340
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, aliada ao entendimento de Günther Jakobs 1212. Jakobs G. Suicídio, eutanásia e direito penal. São Paulo: Manole; 2003. p. 35. de que o valor principal não é a vida como fenômeno biológico, senão sua qualidade ou, ao menos, sua suportabilidade. Já para a morte, será usada a acepção médica de que se trata da perda irreversível da consciência e da capacidade de respirar, conforme tratado por Gardiner e colaboradores 1919. Gardiner D, Shemie S, Manara A, Opdam H. International perspective on the diagnosis of death. Br J Anaesth [Internet]. 2012 [acesso 13 mar 2024];108(supl 1):14-28. DOI: 10.1093/bja/aer397
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Conforme Arantes, o direito à vida será garantido quando permitir que nossa morte se aproxime da gente, da forma mais serena e possível, isso é muito valioso e não poderia ser desperdiçado 2323. Arantes ACQ. A quem pertence a vida? Eutanásia, suicídio assistido e a bioética do fim [vídeo] [Internet]. 2023 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/meluL
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. Além disso, ela explica:

(...) porque a dignidade humana pode passar pela experiência de entrega. Da experiência de vivenciar sua finitude de uma maneira consciente como uma grande experiência humana. Então, (...) é uma experiência humana de extrema potência, é a maior decisão de entrega (...) a de viver sua finitude 2424. Arantes ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver [vídeo] [Internet]. 2013 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/mFf4l
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Assim, o direito à vida deve ser compreendido pelo Estado como aliado à dignidade, porque o ato de viver é diferente para cada pessoa e só pode ser compreendido se for abordada a dignidade de cada ser humano vivente e a “qualidade” individual dissertada por Jakobs 1212. Jakobs G. Suicídio, eutanásia e direito penal. São Paulo: Manole; 2003. p. 35., e, mais ainda, se permitir que o direito à morte ou ao processo de finitude seja vivido de forma plena, como defende Arantes 2323. Arantes ACQ. A quem pertence a vida? Eutanásia, suicídio assistido e a bioética do fim [vídeo] [Internet]. 2023 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/meluL
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. Nesse sentido, para significação deste artigo, quando há perda da dignidade e da qualidade de vida, potencialmente não se trata de direito à vida.

O olhar míope da sociedade brasileira sobre a finitude da vida

A sociedade brasileira não tem maturidade para discutir sobre a finitude, pois apresenta visão míope ou não enxerga o processo de morte, apesar de ser fato natural que a vida nada mais é que um caminho para a morte. Tal noção, somada ao envelhecimento populacional e ao desenvolvimento da medicina, deveria levar a sociedade a demonstrar interesse em discutir a finitude.

A medicina tem avançado no estudo da tanatologia e, mais ainda, tem desenvolvido o núcleo dos estudos paliativos nas últimas décadas. Ainda assim, apenas uma em cada dez pessoas no mundo recebe cuidados paliativos 2525. OMS divulga recursos para lidar com flagrante escassez de serviços de cuidados paliativos de qualidade. Organização Pan-Americana de Saúde [Internet]. 5 out 2021 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/47nnT
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. É importante destacar que há pouca regulação para os cuidados paliativos, e o pouco tratamento jurídico sobre o tema se deu com a Resolução CFM 1.805/2006 2626. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805/2006. Define que na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 227, p. 169, 28 nov 2006 [acesso 13 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://tny.im/va3iv
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e a Resolução CFM 2.217/2018 (Código de Ética Médica) 2727. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 1 nov 2018 [acesso 03 abr 2024]. Disponível: https://tinyurl.com/ybdyvsfh
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Um destaque que merece ser pontuado é que a Resolução CFM 1.805/2006 foi questionada judicialmente por meio da Ação Civil Pública (ACP) 0014718-75.2007.4.01.3400, proposta pelo Ministério Público Federal junto ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região, no Distrito Federal 2828. Brasil. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Seção Judiciária do Distrito Federal. 14ª Vara. Ação Civil Pública nº 0014718-75.2007.4.01.3400. Resolução CFM nº 18052006 suspender os efeitos da resolução. Juiz: Eduardo Santos da Rocha Penteado. Justiça Federal [Internet]. 2010 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/dc3OI
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. A promotoria inicialmente compreendeu que tal resolução autorizaria a prática da eutanásia, entendimento esse que foi afastado por meio da sentença que reconheceu que a prática da ortotanásia está de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro.

No mais, no estado de São Paulo, a Lei 10.241/ 1999 2929. São Paulo (Estado). Lei nº 10.241, de 17 de março de 1999. Dispõe sobre os direitos dos usuários dos serviços e das ações de saúde no Estado e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo [Internet]. São Paulo, nº 51, p. 1, 18 mar 1999 [acesso 13 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://tny.im/RgsKa
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dispõe sobre os direitos dos usuários de serviços de saúde para consentir ou recusar procedimentos, recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários e, ainda, optar pelo local de morte. Recentemente, essa lei foi revogada e compilada na Lei 17.832/2023 3030. São Paulo (Estado). Lei nº 17.832/2023. Consolida a legislação relativa à defesa do consumidor. Diário Oficial do Estado [Internet]. São Paulo, nº 108, 1 nov 2023 [acesso 13 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://tny.im/VuyMY
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, que preserva seu conteúdo integral. Essa legislação deu ao paciente de São Paulo a oportunidade para atuar de forma livre, voluntária e esclarecida, sendo, para muitos, o primeiro ordenamento jurídico a tratar da finitude com olhar atento à autonomia e à vontade do paciente.

Considerando, portanto, o desconforto da sociedade brasileira em enxergar a finitude e pacientes em situação terminal ou com doenças incu- ráveis, bem como discutir sobre esses assuntos, este artigo ressalta a necessidade de abordar tais temas, que dependem de regulamentação expressa sobre práticas relacionadas ao processo de morte e, mais do que isso, busca elucidar o direito a morte digna.

As “tanásias” e o processo de finitude da vida

Em vista do todo explanado e do tema suscitar bastante preocupação, definições e práticas que podem fazer parte do processo de morte serão brevemente esclarecidas: eutanásia, suicídio assistido, mistanásia, distanásia e ortotanásia.

Eutanásia por definição filológica é a “boa morte”, ou morte sem sofrimento. Sua prática significa ativamente dar fim à vida de alguém em vista de sua condição de sofrimento extremo e insuportável 3131. Siqueira-Batista R, Schramm FR. Conversações sobre a "boa morte": o debate bioético acerca da eutanásia. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 13 mar 2024];21(1):113-9. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
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. Pode ser comissiva, ou seja, quando há atuação médica ativa, ou omissiva, situação em que se deixa de praticar ato considerado ordinário para a manutenção da vida, como alimentação, hidratação, impedimento de engasgos ou higiene.

Tal prática, hoje, é reconhecida como homicídio privilegiado pelo Código Penal brasileiro 1717. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Reio de Janeiro, 7 dez 1940 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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(art. 121, §1º), conquanto que comprovada a prática por relevante valor moral e com o consentimento do paciente. No entanto, é autorizada em algumas nações, como Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Suíça, Colômbia e Canadá.

Suicídio assistido é o auxílio médico que consiste na disponibilização de substância capaz de pôr termo à vida, que será injetada ou ingerida pelo próprio paciente, sem a participação ativa por parte do médico. No Brasil, tal prática enquadra-se como crime de induzimento, insti- gação ou auxílio ao suicídio ou automutilação (art. 122 do Código Penal 1717. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Reio de Janeiro, 7 dez 1940 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://bit.ly/3FpmvYx
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).

A palavra “mistanásia”, em grego, significa morte miserável e refere-se a uma situação que, diferen- temente da eutanásia e do suicídio assistido, não acontece porque a pessoa deseja, mas por uma questão social estrutural. Trata-se da omissão estrutural de socorro, muitas vezes justificada pela “reserva do possível” no sistema de saúde público. Também ocorre quando, apesar de ter ingressado no sistema de saúde, o paciente é vítima de erro médico ou a má prática da medicina 3232. Marchetto PB, Bergel SD, Falavinha DHS, Rampin TTD, Garcia DK, editores. Temas fundamentais de direito e bioética. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2012..

A distanásia, cuja etimologia grega significa “morte penosa”, configura-se como um afastamento prolongado ou exagerado da morte 3333. Lopes AC. Os limites da vida e as limitações da justiça do Brasil. Conselho Federal de Medicina [Internet]. 2014 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/XLljA
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. Explica-se como a manutenção obsessiva da vida por métodos extraordinários e que não virão a reverter o quadro já identificado da saúde do paciente. Conforme Diniz 3434. Diniz MH. O estado atual do biodireito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva; 2002. p. 399., trata-se do prolongamento exagerado do processo de morte de um paciente terminal ou da imposição de tratamento inútil, nesse caso, não visa prolongar a vida, mas, sim, o processo de morte.

É importante destacar que a prática da distanásia não pode ser enxergada como contrária à eutanásia, pois não há justificativa principiológica, legal ou ética para prolongar a vida de forma extraordinária. Ou seja, não há o dever de submeter pacientes ou parentes à distanásia; pelo contrário, tal prática muitas vezes estende o sofrimento e até aumenta a dor do paciente. Hoje, a distanásia não é considerada crime no ordenamento brasileiro, mas é proibida pelo Código de Ética Médica 2727. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 1 nov 2018 [acesso 03 abr 2024]. Disponível: https://tinyurl.com/ybdyvsfh
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Já a ortotanásia, termo que em grego significa “boa morte” ou “morte no tempo certo”, vislumbra a ideia de deixar morrer em seu tempo, de acordo com o processo natural, sem abreviar ou prolongar de forma desproporcional a vida 3434. Diniz MH. O estado atual do biodireito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva; 2002. p. 399.. O objetivo dessa prática médica, garantida pela Resolução CFM 1.805/2006 e pelo Código de Ética Médica 2727. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 1 nov 2018 [acesso 03 abr 2024]. Disponível: https://tinyurl.com/ybdyvsfh
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, não é pôr fim à vida, mas garantir que seja vivida da melhor forma, mesmo no caminhar da finitude. A ideia é permitir que a morte se aproxime da forma mais serena possível, sem dor ou sofrimento.

Ortotanásia está relacionada a cuidados palia- tivos, termo que se origina da palavra latina “pallium” e significa “capa” ou “proteção contra intempéries”. Quanto a isso, Arantes 2424. Arantes ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver [vídeo] [Internet]. 2013 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/mFf4l
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afirma que oferecer cuidados paliativos é proteger pacientes das intempéries de uma enfermidade, do sofrimento que uma doença em progressão pode causar. Desde logo, é adequado dizer que a ortotanásia cumpre com os direitos fundamentais, conquanto seja praticada de forma ciente e plena para todos, garantindo o não sofrimento e o bom convívio com o processo de morte.

Princípios que tratam da finitude

Conforme abordado, Roberto 1111. Roberto LMP. O direito à vida. Scientia Iuris [Internet]. 2004 [acesso 13 mar 2024];7:340-53. p. 343. DOI: 10.5433/2178-8189.2004v7n0p340
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menciona que, para Alfredo Orgaz, a vida não é um direito subjetivo, mas um pressuposto para a vinculação da qualidade de pessoa, tutelado publicamente e independente da vontade dos indivíduos, de forma que o consentimento do indivíduo é ineficaz para mudar tal tutela.

Assim, o direito à vida seria indisponível, não sendo um direito próprio de primeira geração, mas uma tutela pública. O que é temerário nessa disposição é que, se o direito à vida é integralmente tutelado pelo Estado, a situação é de potencial abuso por parte deste. Em sendo o direito à vida uma tutela pública, caminha-se para a definição contratual de sociedade dada por Hobbes 3535. Hobbes T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret; 2014., na qual há cessão da integralidade da liberdade da pessoa – incluindo o direito à vida – ao Estado de forma que o único ser que efetivamente é livre é o Soberano.

Entende-se como mais adequada para o Estado democrático de direito a visão de Locke 3636. Locke J. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2014., que entende que foi cedida apenas parte da liberdade individual de cada um para o contrato social, de forma que o direito à vida, em vista de seu valor, não seria cedido integralmente ao Estado. Diante dessa dualidade, destaca-se o entendimento abordado por Dias, para quem a pessoa, considerada como sujeito de direitos e nunca como objeto da intervenção do Estado ou de terceiros, forma a essência de todos os direitos fundamentais e deve ser respeitada como tal 3737. Dias R. O direito fundamental à morte digna: uma visão constitucional da eutanásia. Belo Horizonte: Fórum; 2012..

Ou seja, não é possível ao Estado decidir sobre a tutela da vida de cada pessoa, porque isso não lhe é cedido. O direito à vida é princípio para a constituição do Estado, de modo que de forma nenhuma foi cedido no momento do pacto social.

Miranda 1010. Miranda P. Tratado de direito privado [Internet]. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2012 [acesso 13 mar 2024]. p. 70. Disponível: https://tny.im/12zGx
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enxerga que a vida é indisponível não por ser tutelada publicamente pelo Estado, mas porque todo direito necessariamente implica um dever. No caso, o direito de viver é também o dever de viver, caso contrário, o ordenamento brasileiro autorizaria o auxílio ao suicídio e a prática da eutanásia.

Apesar disso, parte da doutrina enxerga que o direito à vida implica o direito à morte, uma vez que a vida deve ser compreendida para além do fenômeno biológico ou de sua tutela legal. É preciso considerá-la em toda a complexidade que o próprio termo exige, atentando-se principalmente à significação individual de vida, seus limites e desejos, sua qualidade e continuidade, ou seja, sua dignidade, conforme explicam Jakobs 1212. Jakobs G. Suicídio, eutanásia e direito penal. São Paulo: Manole; 2003. p. 35. e Calsamiglia, citados por Dias 1313. Dias R. O direito fundamental à morte digna: uma visão constitucional da eutanásia. Belo Horizonte: Fórum; 2012. p. 117..

É importante destacar os autores que defendem a possibilidade de dispor da própria vida, do direito à morte. Dworkin 3838. Dworkin R. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2009. sinaliza, ao tratar da eutanásia, que, pelo princípio da autonomia, as pessoas podem decidir por si próprias acerca de pôr fim em suas vidas quando quiserem, nos casos em que suas decisões não sejam irracionais. Para Siqueira-Batista e Schramm, o direito à liberdade e à autonomia pressupõe que cada indivíduo pode, diretamente, dispor da sua vida da forma que lhe convier optando pela morte no exaurir de suas forças 3131. Siqueira-Batista R, Schramm FR. Conversações sobre a "boa morte": o debate bioético acerca da eutanásia. Cad Saúde Pública [Internet]. 2005 [acesso 13 mar 2024];21(1):113-9. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
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O princípio da dignidade da pessoa humana deve ser compreendido como o direito de as pessoas nunca serem tratadas de maneira que se negue a evidente importância de suas próprias vidas 3939. Dworkin R. Op. cit. p. 339.. Ou seja, para efetivação desse princípio no processo de morte, é necessário que cada um seja tratado com a importância devida e com atenção àquilo que é considerado vida por cada um.

Ainda no que tange à liberdade e à vida, Kant 4040. Kant E. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret; 2018. destaca que, se todo ser racional tem vontade, necessariamente ele age com liberdade – compreendida como o direito de não ser constrangido pela escolha alheia. Assim, o ser humano seria soberano de si e poderia se modelar da forma como desejar, inclusive para pôr fim à própria vida. Considerando, portanto, essa confrontação de princípios, enxerga-se a não efetivação dos direitos fundamentais àqueles que se encontram no processo de morte.

Cuidados paliativos, morte digna e limites do Estado brasileiro

Como abordado, vida é individual de cada sujeito e é um direito fundamental individual, limitado apenas no que tange à eutanásia e ao auxílio ao suicídio. Assim, o Estado é silente no que tange a todos os outros momentos e situações de finitude.

Com o avanço da medicina, o tratamento que melhor olha para o paciente em processo de morte são os cuidados paliativos. Essa opção, para além do tratar a enfermidade, garante escuta ativa às vontades do paciente e traz vida para alguém que já foi condenado pela sociedade. Arantes explica que a coisa mais ética que podemos fazer em cuidado paliativo é ouvir como a gente gostaria de ser ouvido 2424. Arantes ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver [vídeo] [Internet]. 2013 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/mFf4l
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Além disso, nesse processo de cuidado, é possível respeitar o tema da morte de forma que o paciente enxergue o processo e reconheça que ele está acontecendo, sem dor e no tempo certo. Isso porque, na sociedade atual, é necessário entender que a vida também é vida no processo de morte. Por isso se diz que a morte digna não é um direito próprio ou segregado do direito à vida, mas o último ato da vida e que, por consequência, só há direito à vida plena quando se exerce o direito à morte digna.

O Brasil ainda tem um caminho a percorrer referente ao desenvolvimento dos cuidados básicos de saúde e dos cuidados paliativos. Apenas quando houver maturidade dos cuidados paliativos e sua garantia, o Estado poderá, por exemplo, discutir a regulamentação ou não da eutanásia. Conforme explica Arantes: a gente ainda não tem maturidade (como sociedade) para discutir a morte natural. Que dirá a eutanásia ou o suicídio assistido 2424. Arantes ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver [vídeo] [Internet]. 2013 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/mFf4l
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A eutanásia, muitas vezes, é vista como solução ao sofrimento imensurável de pacientes em estado terminal. Na realidade, o paciente não deveria decidir entre a finitude antecipada da vida e o sofrimento imensurável, mas entre a ausência de sofrimento, cuidados paliativos e antecipação da finitude. Por conta disso, vislumbra-se que a dis- cussão de regulamentação ou não da eutanásia ainda está longe de ser possível, sendo sua criminalização utilizada como política pública para evitar prejuízos à sociedade 2323. Arantes ACQ. A quem pertence a vida? Eutanásia, suicídio assistido e a bioética do fim [vídeo] [Internet]. 2023 [acesso 13 mar 2024]. Disponível: https://tny.im/meluL
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É necessário, portanto, discutir a finitude fora do âmbito médico, considerando sua pauta social, jurídica, de saúde pública e orçamentária, temas esses que não cabem a este artigo por serem muito profundos e poderem ser estudados de forma individualizada.

Considerações finais

A morte e a finitude são tabus na sociedade brasileira, de forma que o próprio processo de finitude e a morte digna são invisibilizados e ignorados como temáticas a serem discutidas e encaradas. Devido à inexistência desse debate, a sociedade brasileira não detém maturidade social e civil para discutir a morte, seus contornos e limites como último ato da vida.

Por se tratar de ato essencialmente natural, que acontece com toda criatura, confirma-se a necessidade de discussões sobre o tema, especialmente na seara sociológica e jurídica, possibilitando maior compreensão sobre o assunto do ponto de vista ético e social, bem como médico-jurídico.

A pessoa em processo de finitude é, portanto, especialmente no âmbito jurídico, ignorada e reiteradamente invisibilizada, prejudicando o desenvolvimento de normas, entendimento e compreensão social sobre a temática da morte. Em razão disso, não há, no ordenamento jurídico brasileiro, definição legislativa expressa sobre a definição de “vida”, de forma que o uso e limites desse termo variam entre seus intérpretes e fatos concretos; o mesmo acontece com o termo “morte” e suas consequências jurídicas.

Essa lacuna normativa gera prejuízo, pois dificulta o desenvolvimento de boas práticas e institutos salutares aos cuidados no processo de morte. É necessário desenvolver instrumentos legais que contornem os limites e abordem a temática de forma mais precisa, para facilitar o processo de finitude. Entre esses instrumentos estão definição de vida e morte legal, delimitação de práticas de cuidados paliativos, impedimento da prática da distanásia e regulamentação dos meios jurídicos para manifestação da última vontade.

No âmbito da saúde pública, é preciso ampliar o acesso aos cuidados essenciais ao processo de finitude, garantindo-os como direitos fundamentais e, inclusive, cobrando posicionamento, estudo, capacitação e mensuração da possibilidade de expansão dos cuidados paliativos. Essas melhorias pressupõem a disponibilização, pela administração pública, de ambientes adequados para exercício da função de apoio ao processo de finitude, a fim de possibilitar a morte digna, tanto a pacientes em situação terminal quanto àqueles com doenças incuráveis em progressão.

Diante desse contexto, propõe-se que “vida” passe a ser juridicamente compreendida como o pressuposto essencial da qualidade de pessoa, que envolve o fenômeno biológico conjuntamente com uma valoração principal, qual seja, a qualidade ou, ao menos, a suportabilidade de sua automanutenção. Nota-se que tal qualidade e nível de suportabilidade são diferentes para cada um no caso concreto. Da mesma forma, propõe-se que “morte” seja compreendida como o último ato a ser desempenhado por uma criatura, de forma que o direito à vida seja exercido de forma plena e, em âmbito médico-jurídico, como a irreversível perda da capacidade de consciência, combinada com a perda irreversível da capacidade de respirar.

Assim, apenas com a ampliação da discussão sobre a morte e o processo de finitude, o desenvolvimento de maturidade social e a garantia da morte digna, e a prática plena dos cuidados paliativos, será viável e justificável a discussão sobre a tutela penal para a prática da eutanásia e do auxílio ao suicídio.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2023
  • Revisado
    13 Mar 2024
  • Aceito
    18 Mar 2024
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