Open-access Contribuições da teoria do reconhecimento para o cuidado em saúde

Resumo

Embasado em Axel Honneth, este estudo teórico descreve elementos da teoria do reconhecimento e suas interfaces com a autonomia de usuários(as) no cuidado em saúde, retratando as esferas do direito, do amor e da solidariedade em suas interfaces com a autonomia. A partir de considerações reflexivas sobre a prática profissional e o cuidado ofertado, conclui-se que a teoria do reconhecimento pode servir como estrutura que amplia a compreensão de situações do contexto de saúde, especialmente aquelas em que os elementos da esfera de reconhecimento são suprimidos ou prejudicados. A translação da teoria para o campo do cuidado de saúde abre perspectivas interessantes para compreender o valor do direito, do amor, da solidariedade na saúde e de possíveis consequências de sua inobservância.

Bioética; Autonomia pessoal; Liberdade; Teoria crítica

Abstract

Based on Axel Honneth, this theoretical study describes elements of the theory of recognition and its interfaces with user autonomy in healthcare, describing how the spheres of rights, love, and solidarity intersect with autonomy. From reflections on professional practice and the care offered, one concludes that the theory of recognition can serve as a framework that expands the understanding of healthcare situations, especially those in which elements of recognition are suppressed or impaired. Applying the theory to the field of healthcare opens interesting perspectives for understanding the value of rights, love, and solidarity in healthcare and the possible consequences of their non-observance.

Bioethics; Personal autonomy; Freedom; Critical theory

Resumen

Basado en Axel Honneth, este estudio teórico describe elementos de la teoría del reconocimiento y sus interfaces con la autonomía de los(las) usuarios(as) en el cuidado en salud, retratando las esferas del derecho, del amor y de la solidaridad en sus interfaces con la autonomía. Con base en las consideraciones reflexivas sobre la práctica profesional y el cuidado ofrecido, se concluye que la teoría del reconocimiento puede servir como un marco que amplíe la comprensión de las situaciones en el contexto sanitario, especialmente aquellas en las que los elementos de la esfera del reconocimiento están suprimidos o perjudicados. La traslación de la teoría al ámbito del cuidado de la salud abre interesantes perspectivas para comprender el valor del derecho, del amor, de la solidaridad en la salud, y las posibles consecuencias de su desconocimiento.

Bioética; Autonomía personal; Libertad; Teoría crítica

O termo “bioética”, neologismo atribuído a Van Rensselaer Potter, ganhou amplitude como campo de conhecimento por ter sido mais fortemente relacionado às questões limítrofes de vida e morte. Na atualidade, a bioética tem sido aplicada também à pesquisa com seres humanos, em saúde pública e políticas de saúde, trazendo uma abordagem mais ecológica e social 1 .

A bioética, como campo multidisciplinar e transversal no conhecimento, abarca relevantes reflexões acerca da autonomia de cidadãos para decidir sobre sua saúde e sua vida. No exercício da escolha, expressa no direito de decidir sobre si, usuários devem receber suficiente conteúdo comunicativo de profissionais da saúde para que optem de modo adequado entre as alternativas disponíveis. No entanto nem sempre acúmulo de experiências práticas individuais é suficiente para operar neste campo, que requer conhecimento de referenciais teóricos apropriados.

Pela ótica contemporânea do campo da saúde, perspectivas transdisciplinares devem ser somadas às disciplinares no melhor interesse de cada profissão, especialmente de usuários do sistema. Referenciais teóricos de medicina, enfermagem, ciências humanas e sociais, bem como outras disciplinas, podem ser coordenados no interesse de um diálogo interdisciplinar. Assim, entende-se que as contribuições do filósofo alemão Axel Honneth podem ser válidas para o intento de suportar a decisão autônoma por usuários, visto que sua perspectiva discute acerca de experiências de desrespeito sofridas pelo indivíduo levado a fazer escolhas sem ter condições para o adequado exercício dessa autonomia 2 .

Análises reflexivas da teoria do reconhecimento têm sido realizadas para verificar sua eficácia em oferecer um quadro conceitual útil para compreender relações, lutas, opressões, necessidades de oprimidos, condições de injustiças e desigualdades. Ademais, a teoria do reconhecimento é contrastada com teorias diametralmente opostas para identificar de modo mais pormenorizado suas possibilidades explicativas e prescritivas 3 , 4 . Honneth elaborou uma teoria crítica na qual os processos de mudança social devem ser explicados à luz das ações direcionadas a restaurar o reconhecimento mútuo ou, justamente, aprimorá-las em nível superior.

A luta por reconhecimento pode ser a força motora do desenvolvimento de uma comunidade ética ( Sittlichkeit ). Esse processo se reflete na esfera da consciência humana e é compreendido na sequência das seguintes etapas: a relação do indivíduo consigo próprio; as relações institucionalizadas dos sujeitos entre si; e as relações reflexivas dos sujeitos socializados com o mundo a seu redor 2 . Sua perspectiva tem conferido maior entendimento de lutas e conflitos sociais, servindo de base às ciências sociais.

No contexto do cuidado em saúde, o cotidiano é permeado por situações e condições que interferem no exercício da autonomia por usuários, limitando as alternativas de decisão que impactam na vida, nas relações e nas atividades dos envolvidos. Notadamente, o hospital, com sua clássica organização disciplinar e suas rotinas e normas fortemente estruturadas, pode ser um ambiente limitador da autonomia das pessoas, capaz de deflagrar relevantes questões para o debate de natureza bioética, especialmente conformando implicações no conceito de reconhecimento.

O termo alemão Anerkennung pode ser traduzido como “reconhecimento”, com sentido mais estrito, algo compreendido por respeito, e não apenas “identificação cognitiva” 5 . Entretanto, mais do que a informação etimológica do termo, existe uma estrutura teórica que pode colocá-lo em perspectiva e auxiliar com reflexões úteis para a ação de profissionais da saúde. O trabalho em equipe interdisciplinar tem sido discutido à luz da teoria do reconhecimento 6 , assim como de algumas contribuições para a pesquisa em saúde 3 , 7 . Entretanto é preciso aprofundar a compreensão das interfaces teóricas com a autonomia do usuário.

Diante do exposto, o estudo apresenta uma questão reflexiva como ponto de partida para o aprofundamento na estrutura teórica: quais as interfaces entre a teoria do reconhecimento e a autonomia dos usuários no cuidado em saúde? Assim, objetiva-se descrever elementos da teoria do reconhecimento e suas interconexões com a autonomia dos usuários no cuidado em saúde.

Método

O estudo foi desenvolvido por meio do método de análise teórica, alinhado à teoria do reconhecimento, de Axel Honneth. Os procedimentos preparatórios para a construção do ensaio teórico foram: seleção do tema central para reflexão e discussão; triagem de publicações nacionais e estrangeiras alinhadas ao tema e ao referencial teórico, com reconhecimento entre seus pares e que apresentassem constructos substantivos que permitissem a discussão.

Posteriormente, decodificaram-se os pressupostos e conceitos da referida teoria para produzir linhas argumentativas que apresentassem potenciais contribuições para compreender situações ligadas à prática de cuidado, concernentes à autonomia dos usuários. A decodificação identificou características gerais dos pressupostos e da teoria do reconhecimento; elementos da esfera de reconhecimento; e adoção do reconhecimento e autonomia como temas privilegiados na reflexão para o cuidado em saúde. Constataram-se também implicações da manifestação dos elementos de antítese aos da esfera de reconhecimento sobre as relações de usuários e profissionais de saúde.

Resultados e discussão

Características gerais dos pressupostos e do pensamento teórico de Honneth

A partir dos escritos de Hegel, Axel Honneth fundamenta a ideia de que a luta por reconhecimento se constitui como a gramática moral dos conflitos sociais. O grande avanço filosófico da teoria do reconhecimento é estabelecer uma ponte entre a ideia original de Hegel e a imanência da psicologia social de George Herbert Mead, visto que abarca a atual situação intelectual societária 8 . Os escritos de Honneth permitem interpretar a teoria hegeliana da intersubjetividade em um panorama teórico pós-metafísico, construindo a hipótese de que a experiência do desrespeito (não reconhecimento) é a fonte emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos 9 .

No entendimento de Honneth, as lutas moralmente motivadas de grupos sociais e a tentativa coletiva de estabelecer, institucional e culturalmente, formas ampliadas de reconhecimento recíproco realizam a transformação normativamente gerida das sociedades 2 . Por este motivo, assim como Hegel, propõe uma tipologia progressiva das esferas de reconhecimento: amor, direito e solidariedade.

A primeira esfera, do amor, permite ao indivíduo ter confiança em si mesmo, indispensável para a autorrealização pessoal. Somente o sentimento de ser reconhecido e aprovado confere autoconfiança, capacitando-o a participar da vida em sociedade. Na esfera jurídica ou do direito, a pessoa precisa constatar que a vida plena de sentido só é possível com reconhecimento de direitos e deveres 2 , que, no desfecho do reconhecimento bem-sucedido, é acompanhado de progresso no modo de socialização do indivíduo que se reconhece com direitos, autônomo e como membro social de uma comunidade jurídica. Na última esfera, solidariedade, o sujeito é reconhecido como digno de estima social.

Conceito de reconhecimento como tema privilegiado no cuidado em saúde

Precisamente no âmbito hospitalar, as decisões autônomas dos usuários permitem eleger o melhor tipo de tratamento e assistência necessários para atender às suas necessidades vitais diárias. É dever dos profissionais de saúde respeitar os usuários enquanto sujeitos de direitos, informando-os de modo amplo e claro sobre suas patologias, condições de saúde e opções de tratamento, permitindo que tenham poder de determinar e exercitar sua autonomia. Contudo esse princípio nem sempre é de fácil translação na prática profissional diante dos desafios sistêmicos do cuidado.

Portanto recomenda-se que, como ponto de partida para que a teoria do reconhecimento sirva de suporte à prática em saúde, seja aceita como pressuposto a afirmação de que o respeito a usuários deve refletir as três esferas de reconhecimento propostas pelo filósofo alemão: o direito, o amor e a solidariedade. É desejável que tais esferas sejam ponto de partida da construção do cuidado em saúde, visto que, na posição inversa, constatam-se três formas de desrespeito: violação, privação de direitos e degradação, respectivamente. Quando o indivíduo está na condição de cidadão ou usuário, tende a opor resistência a essas formas de não reconhecimento.

A formação do usuário e cidadão signatário do uso do direito à saúde tem sido um dos pilares das políticas de humanização do sistema de saúde do Brasil. Portanto, situações constituídas de condições como privação do direito, violação de oportunidades de tomada de decisão e degradação de condição humana são motivos de conflitos. A falta de reconhecimento pode ocorrer nas relações entre profissionais de saúde e usuários, acarretando sérios desentendimentos, como os vistos no cotidiano hospitalar, que, por vezes, chegam à grande mídia. Tais conflitos supostamente interferem no alcance de nível mais elevado de qualidade de assistência e tratamento 10 .

Assim, é importante que a equipe de saúde delibere sobre o tratamento indicado ao(à) paciente com sua anuência e participação ativa, com base nas esferas do reconhecimento, a começar pela do direito, que pode influenciar no comprometimento com o paciente e em seu tratamento efetivo. Elementos como honestidade ao lidar com o outro e garantia da autonomia devem ser considerados, inclusive para subsidiar a tomada de decisão da pessoa sob cuidados profissionais.

Essa observação é importante pelo fato de o usuário, em situações cotidianas, correr o risco de ser suprimido de decidir sobre diferentes terapêuticas, sendo apenas informado sobre as particularidades do tratamento escolhido pela equipe de saúde, sem sua participação ativa. Ainda que na sociedade brasileira não seja comum que o usuário reivindique uma posição de conflito diante da supressão de seu direito de participação nas escolhas do cuidado, há que se considerar que, como responsáveis por zelar pela garantia de princípios, profissionais devem interagir de forma a não privar o usuário da participação.

Entende-se que a releitura da teoria do reconhecimento proposta por Honneth 2 oferece um modelo abrangente e original de compreensão da realidade social, um texto necessário às disciplinas que militam no campo. No momento em que o emprego dessa teoria esclarece que o não reconhecimento dos usuários como sujeitos autônomos evidencia a luta pela dignidade humana, pela integridade física e pelo reconhecimento do valor de diversas culturas e modos de vida, atinge-se uma oportunidade de translação da teoria para a prática do cuidado em saúde.

Desse modo, com relação ao princípio do respeito pela autonomia, é importante frisar que é imprescindível exigir aos profissionais de saúde que aceitem que os usuários se autogovernem, ou seja, atuem de forma livre em suas decisões e em seus atos, sendo limitados apenas pela esfera do direito, que também os convoca à responsabilidade no trato com profissionais e outros usuários. As esferas de reconhecimento possibilitam, na prática profissional, redimensionar a interpretação do cuidado, em termos de gramática moral, relacionada ao contexto social a que pertence o usuário. Isso inclui valores culturais de toda a ordem e os modos como estes são vivenciados.

Partindo para as reflexões sobre a esfera do amor, compreende-se que o reconhecimento tem caráter de assentimento e encorajamento afetivo, em que os indivíduos expressam sentimentos de estima. A experiência intersubjetiva do amor constitui o pressuposto psíquico do desenvolvimento de todas as outras atitudes de autorrespeito 2 . Busca-se o reconhecimento como afirmação da autonomia, acompanhada pela dedicação, quando se fala do reconhecimento como elemento constitutivo do amor: só aquela ligação simbioticamente alimentada, que surge da delimitação reciprocamente querida, cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação autônoma na vida pública 11 .

Autoconfiança, autoestima e autorrespeito permitem que o indivíduo se reconheça e se aproprie de sua autonomia, e identifique no outro suas capacidades. Mas somente na medida em que todo membro de uma sociedade se coloca em condições de estimar a si próprio, pode-se falar então de um estado pós-tradicional de solidariedade social 12 .

Ademais, a relação de reconhecimento se traduz no respeito pela autonomia que os profissionais de saúde devem ter com o usuário. Aqui, a comunicação deve ser compreendida como orientação para a emancipação, ou seja, a capacidade de reconhecer na racionalidade do outro as condições que possibilitarão uma escolha livre. Apoiado na teoria do agir comunicativo de Habermas, Honneth apresenta sua teoria como construção de uma racionalidade que se comunica por meio do princípio da liberdade, que constitui o motor das sociedades democráticas de direito.

Considerando a abordagem de Honneth sobre a liberdade, o usuário deve ter, por parte dos profissionais, a garantia de reconhecimento da sua liberdade. Todavia, para que isso ocorra, é necessário que suas decisões se fundamentem na racionalidade (autonomia), e não simplesmente em seus desejos subjetivos (heteronomia). Apesar de se tratar de uma relação contratual, que implica direitos e deveres, o respeito pela autonomia do paciente não pode colocar em risco ou anular a finalidade ( telos ) beneficente do ato profissional 2 .

A concepção do cuidado humanizado em saúde compreende elementos intersubjetivos, que incluem a ambiguidade. Por isso é preciso refletir constantemente sobre os conflitos entre escolhas pessoais e profissionais na esfera da comunicação em saúde. Só assim será possível à equipe de saúde identificar, no processo de comunicação, as fragilidades potencialmente impeditivas do reconhecimento do usuário como sujeito autônomo. É importante que profissionais de saúde verifiquem tais fragilidades é e um novo entendimento sobre o cuidado, que passa a ser também compreendido como ampliação do reconhecimento do outro como sujeito autônomo.

Quando familiares e amigos tentam interpretar o livre anseio do paciente, consciente de suas decisões, pode haver conflito na relação com profissionais de saúde. Se, por um lado, a presença constante de familiares e amigos facilita entendimentos e constitui uma rede de suporte relevante ao cuidado em saúde, por outro, essa mesma presença pode configurar uma ameaça à livre expressão do paciente, tornando-se um risco elevado para sua autonomia. Embora se trate de uma questão extremamente complexa, são bem-vindos os esforços profissionais de equilibrar tais componentes para a melhora do relacionamento entre os praticantes do cuidado.

A estima, que tem lugar no ambiente onde são respeitadas as esferas do direito e do amor, se relaciona positivamente à construção da esfera da solidariedade, que é tão marcante nos princípios constitucionais estabelecidos no pacto social da Constituição do Brasil, aprovada em 1988. Entretanto, na esfera da solidariedade, também se incluem as dimensões de realidades particulares, como as dos atos profissionais na busca pela oferta de cuidado ético e humanizado.

Implicações da manifestação do desrespeito e considerações para profissionais de saúde

A integridade do indivíduo se deve ao reconhecimento. Sempre que essa premissa for violada ou privada em forma de negação ou degradação, o desrespeito tende a se manifestar, como em casos de ofensa ou rebaixamento, o que pode ter potencial de prejudicar a identidade do indivíduo. A privação de direitos básicos impede que o indivíduo se aproprie de sua vontade. A experiência de desrespeito sofrida impulsiona o sujeito à resistência e ao conflito, em uma luta por reconhecimento. Se na primeira forma de desrespeito estão as experiências que minam a autoconfiança e conduzem a pessoa ao desrespeito social 13 , na segunda está a experiência de seu rebaixamento.

As particularidades nas formas de desrespeito na esfera de reconhecimento jurídico – a saber, a privação de direitos – representam uma limitação da autonomia pessoal e a não consideração do indivíduo como sujeito capaz de formar juízo moral, visto que não lhe é concedida imputabilidade moral na mesma medida em que a outros membros da sociedade. A experiência da privação de direitos se mede não somente pelo grau de universalização, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos 2 .

Por fim, o rebaixamento expresso na degradação diz respeito negativamente ao valor social. A honra e dignidade de um indivíduo são relativas à medida de estima social concedida a sua maneira de autorrealização 2 . Quando pessoas são degradadas a condições em que são consideradas desvalorizadas ou deficientes, anula-se a possibilidade de atribuírem valor social a suas próprias capacidades. Consequentemente, perde-se estima social, ou seja, a compreensão de si como estimado por suas propriedades e capacidades 2 .

Com a experiência de degradação ou rebaixamento, além da humilhação social, os indivíduos são ameaçados em sua identidade e, possivelmente, serão impulsionados a lutar por reconhecimento social, negado de modo injustificado. Se o assentimento social não ocorre 14 , 15 , podem ser ocasionadas reações emocionais negativas, como ira, indignação e tristeza.

No país, a saúde é um direito conquistado que se alinha à esfera jurídica. Entretanto, quando é oferecida em condições degradantes, seja para usuários ou profissionais, os mecanismos de humilhação social são deflagrados. Em tais condições, as pessoas tendem a agir com respostas que vão desde a aceitação com passividade a formas violentas. No contexto da saúde, a supressão das esferas do amor e da solidariedade criam condições de baixo reconhecimento com a degradação. Contudo alguns estratos sociais nem sempre estão interessados em se engajar para eliminar a degradação e priorizar o resgate das esferas do reconhecimento, concentrando-se em culpabilizar outros personagens e desconsiderando a dimensão complexa e sistêmica do cuidado em saúde.

Ainda por conta da degradação, os sentimentos dos indivíduos de modo geral representam as reações afetivas no contrachoque do sucesso ou insucesso das intenções práticas daqueles com quem se relacionam. O sujeito é oprimido por um sentimento de falta do próprio valor, pois há uma dependência constitutiva de sua própria pessoa para com o reconhecimento por parte dos outros 16 . Consequentemente, é uma luta por reconhecimento que, como força moral, promove desenvolvimentos e progressos na realidade da vida social do ser humano 17 .

Para minimizar os riscos inerentes ao desrespeito, a interação entre profissionais e usuário não pode prescindir das decisões do paciente sempre que seu estado clínico permitir expressá-las, tornando-se um “relacionamento contratual”. Isso implica observância de direitos e deveres para ambas as partes. Também há que se garantir o reconhecimento do paciente acerca do domínio sobre sua própria vida e liberdade.

As profissões do campo da saúde têm construído, por meio de seus arcabouços regulamentares, instrumentos que incorporam esferas do reconhecimento e limitam sua supressão. O Código de Ética Médica 18 veda ao médico suprimir o direito do paciente de decidir livremente sobre si ou seu bem-estar, princípio diretamente relacionado à autonomia. O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem 19 determina a profissionais o dever de assegurar condições para que usuários disponham de todas as informações necessárias para tomar decisões.

Nos casos em que os profissionais da saúde negligenciam o respeito pela autonomia do usuário, é necessário considerar as sanções a que estão sujeitos. A negligência, entendida como omissão, é o oposto de diligência, que significa agir com amor, cuidado e atenção, evitando falhas. Para ambas as profissões, tal infração pode atingir as esferas ética, civil e criminal.

As sanções disciplinares para os médicos estão no artigo 22 da Lei 3.268/1957, na seguinte hierarquia, a depender da gravidade: advertência confidencial em aviso reservado, censura confidencial em aviso reservado, censura pública em publicação oficial, suspensão do exercício profissional por até 30 dias e cassação do exercício profissional, referendado pelo conselho federal. Para a enfermagem, as penalidades constantes na Resolução do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) 564/2017, Capítulo IV – das infrações e penalidades –, art. 108, podem ser, hierarquicamente, a depender da gravidade: advertência verbal, multa, censura, suspensão do direito ao exercício profissional (por até 90 dias) e cassação – esta última, implementada pelo Cofen.

Um exame cuidadoso das regulamentações das profissões do campo da saúde resultará na localização de outros deveres e direitos alinhados à preservação de elementos concernentes às esferas do reconhecimento. Isso indica que a teoria do reconhecimento corrobora a importância de uma atuação voltada à garantia de cuidado, zelo, informação, preservação de direitos e solidariedade. Ademais, apresenta os riscos de suprimir os elementos de relevância para a teoria 20 .

Considerações finais

Como estrutura teórica capaz de subsidiar a ação do cuidado em saúde, a teoria do reconhecimento propõe relevantes elementos, considerando que dilemas e conflitos tendem a decorrer de condições em que não são observadas as esferas do direito, do amor e da solidariedade. Desse modo, reivindicações de reconhecimento, refletidas pelo exercício da autonomia, e a satisfação das necessidades e aspirações não transcorrem isoladas do contexto de uma cultura cotidiana na qual são aferidas como legítimas. A gramática moral das lutas sociais se insere no processo em que se renovam as prescrições bioéticas que norteiam o autorrespeito e a autoestima, sempre pensadas pela teoria, na perspectiva da socialização intersubjetiva.

A translação de elementos da teoria do reconhecimento – especialmente expressos nas esferas do direito, do amor e da solidariedade – e sua relação com a autonomia, quando trazidas para o campo da saúde, podem servir de referencial para as práticas de comunicação inseridas no pacto terapêutico estabelecido entre profissionais e usuários. Destaca-se que o reconhecimento desponta como necessário à análise da integralidade da assistência; tratando-se de uma postura profissional e pessoal de reconhecer no outro uma intencionalidade que nos é familiar.

Em outras palavras, apenas com a percepção de que o usuário é um indivíduo semelhante àqueles que compõem a equipe de saúde é possível suprimir a reificação e mudar postura e práticas assistenciais calcadas em modelos que esvaziem a dimensão humana dos usuários do sistema de saúde. Assim como os usuários, profissionais são dotados de valores morais que orientam sua própria vida e saúde, e esse reconhecimento os leva a operar nos limites dos melhores valores éticos de sua profissão.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2020
  • Revisado
    27 Set 2021
  • Aceito
    23 Out 2021
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