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Reflexões bioéticas

É possível observar em artigos, livros, encontros e mesmo nas discussões informais daqueles que se dedicam à bioética que a noção do que seja esse campo de estudo e pesquisa ainda se restringe aos conflitos e problemas estabelecidos na área biomédica, subsumida aos entraves nas relações entre profissionais e usuários dos serviços de saúde, bem como à ética no uso da tecnologia. Embora já se reconheça a relação direta da saúde e do adoecimento com a dinâmica da vida social, com a distribuição da riqueza e das oportunidades na sociedade, tais aspectos ainda são tratados como temas distantes do campo de atuação da bioética.

Essa dificuldade de se apropriar da reflexão social remete a diversos fatores. Se é possível relacionar o termo a Potter, que propôs na utilização pioneira do neologismo “bioética” uma perspectiva ecológica e abrangente 11. Potter VR. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall; 1971. p. 2., um breve levantamento naquelas primeiras décadas mostrará que sua apropriação pela área biomédica circunscreveu seu uso, remetendo univocamente bioética ao principialismo 22. Beauchamp T, Childress J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.. O reconhecimento de que a reflexão neste campo deve ir além de tal ambiente restrito, promovido há 12 anos pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos33. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 24 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
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, ainda não foi capaz de diminuir a resistência a incorporar discussões voltadas a questões sociais no âmbito da bioética.

Essa resistência pode ser facilmente entendida não apenas como decorrente do processo histórico, que definiu inicialmente a bioética como atinente à saúde, mas diz respeito também à importância dessa área que é intermediária no embate entre vida e morte. É no conhecimento desenvolvido pelas disciplinas biomédicas que as pessoas depositam suas esperanças de cura e seu desejo de superar as enfermidades ou até mesmo a morte. Diante de tantos impasses é natural que se precise da reflexão bioética na saúde.

Mas um exame mais atento pode mostrar que o fato de a bioética permanecer circunscrita a essa área também deriva de outras causas. Entender a complexidade da dinâmica social e sua relação com o processo saúde-adoecimento exige esforços analíticos capazes de articular de forma coerente relações de interdependência entre fenômenos. Exige ainda disposição para lidar com processos sociais que envolvem diversas circunstâncias e atores. Tais requisitos vão de encontro ao ritmo e à dinâmica da assistência que, cada vez mais, é instada a atender mais pessoas, em menos tempo e com maior resolutividade.

Portanto, ainda que limite o campo da bioética, circunscrever a discussão à clínica transmite certo conforto, pois reforça a sensação de controle sobre as variáveis intervenientes no processo de cuidar, o qual, por si só, já implica na busca para desvendar o enigma da doença. Acrescentar à incógnita de cada caso clínico o quadro amplo da vida social com seus múltiplos determinantes de adoecimento pode aumentar a angústia e a incerteza, pois frequentemente aponta para panoramas caóticos, nos quais todos os atores se sentem impotentes e perdidos.

Assim, a própria premência da clínica, que coloca cotidianamente os profissionais em verdadeiras batalhas, impede ou dificulta que a reflexão se expanda, alcançando a dimensão social. A consequência mais imediata é que os determinantes da saúde, como as características dos sistemas de tratamento e cuidado, infraestrutura, formação profissional, e outros aspectos que deveriam ser equacionados pela reflexão bioética, como a divisão de poder, riqueza e direitos na sociedade, condicionantes dos indicadores epidemiológicos e de saúde coletiva, quedam desconectados, incapazes de produzir respostas efetivas.

Mas, por mais que se queira restringir a reflexão à clínica, circunscrevendo-a às práticas de assistência e ao emprego da tecnologia, algumas vezes a realidade arromba a porta dos consultórios, lançando questões candentes, cujo grito não se consegue ignorar. Embora muitos desses dilemas não possam ser evitados pelo cuidado clínico, alguns precisam ser “olhados nos olhos” para que a bioética seja de fato ética aplicada e não se converta em simples repetição de fórmulas preconcebidas. Este é o caso das desigualdades de direitos e deveres entre as pessoas, que coloca algumas delas em condição de absoluta subordinação, concedendo a outras, por simples fenômeno aleatório, a prerrogativa da dominação 44. Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416..

Como exemplo extremo desse fenômeno é possível citar a escravidão ou a situação análoga à escravidão, seu sucedâneo moderno. Tornar o outro coisa para se apropriar de sua vida 55. Agamben G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2002., reduzida à força de trabalho, é a verdadeira banalidade do mal66. Arendt H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras; 2000., perpetrada ordinariamente por todos que se deixam dominar pela ganância do lucro desmedido. Apoiada no açoite da fome e amparada pelo flagelo das guerras, a escravização de crianças, homens e mulheres é (ou deveria ser) uma ferida aberta na consciência da humanidade.

Entretanto, essa chaga não é verdadeiramente vista nem extirpada, persistindo com aparência ligeiramente diferente em todo mundo. Ora são crianças levadas de suas casas pelas guerras e submetidas a exércitos e milícias, ora aquelas vendidas por seus genitores para casamentos arranjados, prostituição e trabalhos forçados. As mulheres subjugadas pela guerra e fome também são vítimas preferenciais do tráfico de escravas. Utilizadas em trabalhos forçados ou para prostituição, enriquecem cartéis em todo o mundo 77. Nações Unidas no Brasil. Tráfico de pessoas teve 63 mil vítimas no mundo entre 2012 e 2014, diz agência da ONU [Internet]. 21 dez 2016 [atualizado 10 fev 2017; acesso 26 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/2ijBtnj
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Apesar da característica da sujeição ser em grande medida diferente, os homens também são constrangidos à escravidão 77. Nações Unidas no Brasil. Tráfico de pessoas teve 63 mil vítimas no mundo entre 2012 e 2014, diz agência da ONU [Internet]. 21 dez 2016 [atualizado 10 fev 2017; acesso 26 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/2ijBtnj
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,88. Costa PTM. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cad Pagu [Internet]. 2008 [acesso 25 out 2017];31:173-98. Disponível: https://goo.gl/NG8rYx
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. No Brasil, esse contingente é majoritariamente encontrado em fazendas no Norte, Sudeste e Centro-Oeste, bem como em pequenas manufaturas de roupas, calçados e objetos nas grandes cidades. Geralmente levados a tal situação crítica por falsa promessa de emprego, os que atualmente vivem em condição análoga à escravidão servem aos projetos de enriquecimento daqueles que não se constrangem em priorizar o próprio benefício e se aproveitar da vulnerabilidade de outro ser humano para sujeitá-lo.

Aparentemente, os signos de riqueza e poder que tais pessoas conquistam no processo (emulados e multiplicados exponencialmente pela comunicação digital) preenchem seu vazio existencial, toldando a consciência no frenesi do reconhecimento midiático e no consumo. Empresas e marcas tão conhecidas e desejadas mundialmente (a ponto de não necessitar qualquer apresentação), como Nestlé, Nike, Zara, Carrefour, Hershey’s, Apple, Coca-Cola, foram apontadas ou reconheceram ter praticado esse tipo de trabalho por meio da compra e venda de produtos obtidos mediante exploração da escravidão 99. Coca-Cola, Apple, Nestlé e Nike envolvidas em trabalho escravo. Você sabia? Metal Revista [Internet]. 22 jun 2016 [acesso 24 out 2017]; Notícias do trabalho. Disponível: http://bit.ly/2zbDvlE
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.

Se a ideia de tornar o outro escravo era corrente e não criava problemas morais àqueles que viviam em outros tempos, sendo prática comum e admitida na Antiguidade em diferentes culturas e civilizações, essa possibilidade vem sendo considerada ao longo dos séculos cada vez mais avessa à moralidade. À medida que foram se tornando nações, os países passaram a abolir a escravidão em suas constituições nacionais, eliminando-a mais ou menos lentamente do cotidiano. Esse processo permite entender que com o passar do tempo a apropriação da vida de outras pessoas foi sendo considerada cada vez mais abjeta.

Entretanto, a prática continua vitimando milhões de pessoas em todo o mundo. Como as estatísticas não são exatas, estima-se que atualmente ainda existam entre 29,8 milhões 1010. Previdelli A. Os países com os maiores números de escravos atualmente. Exame [Internet]. 22 out 2013 [atualizado 13 set 2016; acesso 24 out 2017]; Mundo. Disponível: http://abr.ai/2i9z3t0
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e 45,8 milhões de pessoas submetidas à escravidão 1111. Germano F. Quais os países líderes em trabalho escravo? Sim, ainda existe trabalho escravo – e não é pouco. Superinteressante [Internet]. 2 jun 2016 [atualizado 12 jul 2017; acesso 27 out 2017]. Comportamento. Disponível: http://abr.ai/2iGFFCR
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. Os países nos quais se encontra mais trabalho escravo são Índia, China, Paquistão, Nigéria, Etiópia, Rússia, Tailândia, Congo, Mianmar e Bangladesh: na lista de 162 países, o Brasil aparece em 94º lugar, com um número estimado de 209.622 escravos1010. Previdelli A. Os países com os maiores números de escravos atualmente. Exame [Internet]. 22 out 2013 [atualizado 13 set 2016; acesso 24 out 2017]; Mundo. Disponível: http://abr.ai/2i9z3t0
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. Embora, desta vez, não sejamos os “campeões” da iniquidade, a existência estimada de mais de 200 mil pessoas vivendo em situação análoga à escravidão 129 anos após a abolição formal da escravatura no país mostra que a prática persiste.

Portanto, não pode deixar de surpreender o mundo e chocar a sociedade o fato de o governo brasileiro ter publicado em outubro de 2017 portaria do Ministério do Trabalho (MTB) – Portaria MTB 1.129/2017 1212. Brasil. Portaria MTB nº 1.129, de 13 de outubro de 2017. Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 16 out 2017 [acesso 27 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/2i9zPWW
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– considerada interna e externamente um retrocesso em termos de garantias dos direitos humanos 1313. Guimarães H. Temer minimiza efeitos da nova portaria sobre o trabalho escravo. Piauí [Internet]. 24 out 2017 [acesso 24 out 2017]; Lupa: País. Disponível: http://bit.ly/2lmbmT5
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,1414. Nações Unidas no Brasil. OIT diz que portaria sobre trabalho escravo poderá provocar retrocessos [Internet]. 19 out 2017 [atualizado 20 out 2017; acesso 24 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/2yP4Lpx
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. Alterando o disposto no artigo 149 do Código Penal 1515. Brasil. Art. 149 do Código Penal – Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 1940 [acesso 24 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/2i8hGII
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, o documento restringe a ideia de escravidão ao direito de ir e vir, eliminando da caracterização do delito a jornada exaustiva e as condições degradantes 1313. Guimarães H. Temer minimiza efeitos da nova portaria sobre o trabalho escravo. Piauí [Internet]. 24 out 2017 [acesso 24 out 2017]; Lupa: País. Disponível: http://bit.ly/2lmbmT5
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, como previa o Código: reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto1515. Brasil. Art. 149 do Código Penal – Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 1940 [acesso 24 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/2i8hGII
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Para entender o reflexo do texto da lei na dimensão ética é necessário pensar sobre alguns termos, que precisam ser criteriosamente considerados. Um deles é “submetendo-o”, no sentido de obrigar, subjugar, que equivale à supressão da autonomia e à eliminação da autonomia da vontade.

Na lei, o termo – submetendo-o – refere-se à forma como a pessoa está vinculada ao trabalho, que conforme o texto pode ser desde trabalhos forçados à jornada exaustiva, aspectos que caracterizariam o regime e o ritmo específicos do processo de trabalho. Porém, é essencial acrescentar que quando a intensidade, frequência e duração do trabalho denotam utilização máxima do tempo e energia da força de trabalho a ele submetida, indicam a exploração dos seres humanos uns pelos outros. Demonstram a condição análoga à escravidão.

Outro termo que precisa ser sopesado delicadamente para compreender a lei é “restringindo”, usado como equivalente a cerceando. Seu uso indica que se especifica como condição análoga à escravidão a supressão da autonomia da pessoa sobre sua própria existência, especificando que é incapaz de impedir uma condição danosa a si. Para a bioética da proteção, por exemplo, seriam os grupos particularmente vulneráveis, ou literalmente vulnerados (ou afetados), [que] não são capazes, por alguma razão independente de suas vontades, de se defenderem sozinhos pelas condições desfavoráveis em que vivem ou devido ao abandono das instituições vigentes que não lhes oferecem o suporte necessário para enfrentar sua condição de afetados e tentar sair dela1616. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. Bioética [Internet]. 2008 [acesso 26 out 2016];16(1):11-23. p. 17. Disponível: http://bit.ly/2zcPijZ
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. Longe de ser subjetiva, a lei apontava claramente mais de uma condição para caracterizar a apropriação por terceiros da força de trabalho, definindo vários parâmetros capazes de situar condições análogas à escravidão.

Na esfera jurídica a medida não passou despercebida, levantando opiniões opostas. Houve quem rechaçasse a ideia e quem a considerasse salutar. Como divulgado pela mídia, a primeira avaliação pública a respeito teria partido da procuradora-geral da República Rachel Dodge 1717. Raquel Dodge volta a chamar de ‘retrocesso’ a portaria do trabalho escravo. Correio Braziliense [Internet]. 24 out 2017 [acesso 26 out 2017]; Economia. Disponível: http://bit.ly/2zcGoTu
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, secundada em intervalo de poucos dias pela decisão de Rosa Weber 1818. Ministra do STF suspende em liminar portaria sobre trabalho escravo. Correio Braziliense [Internet]. 24 out 2017 [acesso 26 out 2017]; Política e Brasil. Disponível: http://bit.ly/2yWGMEs
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, ministra do Supremo Tribunal Federal (STF). Veiculou-se que a procuradora teria feito críticas à Portaria MTB 1.129/2017 e registrou-se sentença da ministra do STF suspendendo seus efeitos, o que demonstra descontentamento com o novo texto.

Em contrapartida, matéria jornalística 1919. Kafruni S. Especialistas defendem novas regras. Correio Braziliense. 25 out 2017; Economia: 9. informa que professores de direito vinculados a universidades de renome no país e no exterior consideraram a norma positiva porque, segundo eles, faz distinção entre escravidão e trabalho com jornada exaustiva ou degradante, além de tentar tirar a subjetividade do conceito e dar mais objetividade jurídica ao que é trabalho escravo1919. Kafruni S. Especialistas defendem novas regras. Correio Braziliense. 25 out 2017; Economia: 9.. O artigo também traz a análise de representantes de entidades relacionadas ao segmento patronal da esfera trabalhista, que teriam classificado a medida como “correta”, “um avanço1919. Kafruni S. Especialistas defendem novas regras. Correio Braziliense. 25 out 2017; Economia: 9..

Os entrevistados enfatizaram que a medida impedirá os casos em que empregadores são autuados como infratores, mas de fato não estão cometendo o crime do qual são acusados. Falta explicar o que garantirá o direito daqueles milhares totalmente privados de autonomia tanto no que tange à manifestação de sua vontade quanto ao exercício de sua possibilidade de ação. Qual mecanismo irá salvaguardar a pessoa que está vulnerada por jornadas extenuantes e diminuída por condições degradantes de trabalho e de vida?

A situação se torna eticamente mais complexa quando se considera outra questão correlata, que se refere à suspensão da divulgação da “lista suja” do trabalho escravo pelo MTB 2020. Lis L. ‘Lista suja’ do trabalho escravo só será divulgada após determinação de ministro, prevê portaria. G1 [Internet]. 16 out 2017 [acesso 24 out 2017]; Economia. Disponível: https://glo.bo/2ztxD4q
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. Em sentença da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, o juiz Rubens Curado Silveira ressaltou que o Ministério tem o dever e a responsabilidade pela publicação da lista, mas não [tem] a sua propriedade2121. Azevedo A. Ministério é obrigado a divulgar lista suja. Correio Braziliense. 25 out 2017; Economia: 9.. A preocupação em figurar na lista das empresas autuadas por praticar trabalho escravo parece diretamente relacionada ao impedimento de conseguir financiamento bancário em instituições financeiras públicas e privadas 2222. Leite H. Justiça obriga governo a publicar “lista suja” do trabalho escravo. Correio Braziliense [Internet]. 15 mar 2017 [acesso 26 out 2017]; Política e Brasil. Disponível: http://bit.ly/2hf8Rxh
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. A não divulgação da lista configura retrocesso social, fator de vulneração para grupos e segmentos pauperizados e destituídos de poder 1717. Raquel Dodge volta a chamar de ‘retrocesso’ a portaria do trabalho escravo. Correio Braziliense [Internet]. 24 out 2017 [acesso 26 out 2017]; Economia. Disponível: http://bit.ly/2zcGoTu
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Diante dessa flagrante afronta à dignidade humana e aos direitos inalienáveis de todos os seres humanos, e considerando especialmente os segmentos e grupos mais vulneráveis da população, que acabam vitimados por essa medida perversa, os estudiosos e pesquisadores de bioética não podem ficar alheios ou impassíveis. Não devemos nos enganar e fechar os olhos, considerando que a questão não tem relação com a discussão acadêmica nem é atinente à área da saúde: a vida e a morte de pessoas estão imbricadas nesta medida, que flexibiliza a caracterização da escravidão moderna em nosso país e, com certeza, ampliará a multidão de vulnerados 1616. Schramm FR. Bioética da proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev. Bioética [Internet]. 2008 [acesso 26 out 2016];16(1):11-23. p. 17. Disponível: http://bit.ly/2zcPijZ
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Precisamos pensar que tão grave quanto o texto em si é sua moralidade subliminar que admite e aplaude a “distinção” entre trabalho forçado, degradante, exaustivo e escravo. A formulação dessa gradação conceitual reifica a existência de um tipo de padrão moral extremamente preocupante, que deve ser objeto de atenção da sociedade. Uma moralidade que preconiza coibir a escravidão sintetizada no direito de ir e vir, mas admite todos os demais aspectos que caracterizam a perda da autonomia na relação de trabalho.

Nesse sentido é fundamental assinalar que a reflexão bioética e o exercício de cidadania estão inexoravelmente comprometidos com questões como esta, que transcende a perspectiva profissional e invade o espaço público, exigindo de cada um discernimento ético no cotidiano. Trabalhar com diligência e coragem em prol da qualidade de vida e do bem-estar do outro é a tarefa daqueles que se dedicam às profissões da saúde. Clamar e exigir os direitos dos vulnerados, por sua vez, deve ser o objetivo de todos que lutam para garantir que a ética esteja presente na vida de toda humanidade.

Dora Porto
Editora científica

Referências

  • 1
    Potter VR. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall; 1971. p. 2.
  • 2
    Beauchamp T, Childress J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola; 2002.
  • 3
    Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração universal sobre bioética e direitos humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2005 [acesso 24 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/1TRJFa9
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  • 4
    Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics. 2003;17(5-6):399-416.
  • 5
    Agamben G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2002.
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  • 7
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    » http://bit.ly/2ijBtnj
  • 8
    Costa PTM. A construção da masculinidade e a banalidade do mal: outros aspectos do trabalho escravo contemporâneo. Cad Pagu [Internet]. 2008 [acesso 25 out 2017];31:173-98. Disponível: https://goo.gl/NG8rYx
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    Previdelli A. Os países com os maiores números de escravos atualmente. Exame [Internet]. 22 out 2013 [atualizado 13 set 2016; acesso 24 out 2017]; Mundo. Disponível: http://abr.ai/2i9z3t0
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  • 11
    Germano F. Quais os países líderes em trabalho escravo? Sim, ainda existe trabalho escravo – e não é pouco. Superinteressante [Internet]. 2 jun 2016 [atualizado 12 jul 2017; acesso 27 out 2017]. Comportamento. Disponível: http://abr.ai/2iGFFCR
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    Brasil. Portaria MTB nº 1.129, de 13 de outubro de 2017. Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho [Internet]. Diário Oficial da União. Brasília; 16 out 2017 [acesso 27 out 2017]. Disponível: http://bit.ly/2i9zPWW
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    Kafruni S. Especialistas defendem novas regras. Correio Braziliense. 25 out 2017; Economia: 9.
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    Azevedo A. Ministério é obrigado a divulgar lista suja. Correio Braziliense. 25 out 2017; Economia: 9.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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