Open-access Dois conflitos na saúde pública na pandemia

Resumo

A pandemia de covid-19 respondeu de forma inédita à atribuição de recursos escassos e insuficientes em situações de emergência (triagem) e às dificuldades para estabelecer medidas de confinamento que oscilavam entre medidas sugestivas, persuasivas e coercitivas. Os tradicionais critérios de triagem foram substituídos por extremo utilitarismo que se baseava em critérios médicos avaliados objetivamente para privilegiar pessoas gravemente doentes com prognóstico recuperável, aplicando medidas extremas de suporte e tratamento. As medidas de confinamento obrigatórias e o chamado à vacinação não tiveram respaldo científico convincente e foram irregularmente aplicadas e assoladas por incertezas e inseguranças, afetando os mais desfavorecidos e provocando manifestações públicas e desrespeito da população. A triagem baseada no utilitarismo causou temores e conflitos entre os tomadores de decisão médica e membros de comitês ad hoc. Isso mostra a necessidade de renovar o discurso bioético individualista e elitista em prol de privilegiar o bem comum sobre os interesses individuais.

Pandemias; Triagem; Vigilancia Sanitaria

Resumen

La pandemia del covid-19 ha respondido de forma inédita a la asignación de recursos escasos e insuficientes en emergencia (triage) y a las dificultades de establecer medidas de contención que fluctuaban entre ser sugerentes, persuasivas y coercitivas. Criterios clásicos de triage fueron reemplazados por un utilitarismo extremo basado en criterios médicos objetivamente evaluados para privilegiar personas gravemente enfermas con pronóstico recuperable al aplicar medidas extremas de soporte y tratamiento. Las medidas obligatorias de contención y el llamado a la vacunación no lograron respaldo científico convincente; aplicadas en forma irregular y plagada de incertidumbres e inseguridades, afectaron a los más desaventajados y causaron protestas públicas y desacatos. El triage basado en criterios médicos utilitaristas provocó desazones y serias tensiones mentales en los decidores médicos y miembros de comités ad hoc. Estas experiencias sugieren renovar el discurso bioético individualista y elitista en busca de privilegiar el bien común por sobre intereses individuales.

Pandemia; Triaje; Vigilancia Sanitaria

Abstract

The COVID-19 pandemic saw unprecedented responses to the allocation of scarce and insufficient triage resources and to the difficulties in establishing containment measures, which oscillated between suggestive, persuasive and coercive. Classical triage criteria were replaced by extreme utilitarianism based on objectively evaluated medical criteria to privilege the critically ill with a recoverable prognosis by applying extreme support and treatment measures. Mandatory containment measures and the call for vaccination failed to achieve convincing scientific support; applied irregularly and plagued by uncertainties and insecurities, they affected disadvantaged groups and caused public outcry and disrespect. Triage based on utilitarian medical criteria caused distress and serious mental strains in medical decision-makers and members of ad hoc committees. These experiences suggest renewing the individualistic and elitist bioethical discourse to privilege the common good over individual interests.

Pandemics; Triage; Health surveillance

A humanidade está cronicamente ferida desde que a globalização neoliberal instalou-se como a única alternativa político-econômica após o definhamento dos regimes socialistas, que se tornaram sistemas autoritários de governo com graves transgressões das liberdades pessoais e sociais, e abatidos por uma decadência econômica que manchou sua pureza doutrinária e os abriu ao capitalismo transnacional totalmente insensível à desigualdade, aos custos ambientais de sua atividade expansiva, e surdo à linguagem da ética.

Apanhada no turbilhão de um hiperativismo que alimenta um círculo recursivo e autopoiético de produção-consumo, o que o sociólogo Hartmut Rosa 1chama de sobrevivência da modernidade por uma “estabilização dinâmica”, a humanidade está dividida entre uma grande maioria vivendo em uma pobreza multifatorial com necessidades básicas insatisfeitas e uma minoria isolada em seu mundo de privilégio e luxúria.

A situação contemporânea inclui o surgimento do agressivo vírus SARS-CoV-2, que causou a pandemia da covid-19, levando a saúde pública a aplicar estratégias de prevenção e contenção. Nada disso passou despercebido pela bioética que, apesar de uma presença tímida nesses eventos, se propõe a manter suas diretrizes discursivas no pós-pandemia e refletir sobre políticas de saúde implementadas que divergem do pensamento bioético, ou que causaram inquietude e rejeição pública, manifestadas com força crescente no questionamento da eficácia de uma resposta da saúde diante de novas pandemias virais.

Sobre a alocação de recursos em situações normais e emergenciais, o subtema de triagem ou alocação de recursos escassos e insuficientes em situações de tomada de decisão, que Foucault 2 chamou de “viver deixando morrer”, se tornou o centro das atenções. Esta linguagem biopolítica reflete como a bioética tem sido ignorada na elaboração de critérios de triagem de emergência.

O segundo aspecto analisado aqui se refere ao conflito entre regulamentações sanitárias e a autonomia individual. Este conflito vem gerando uma agitação social que tem aumentado progressivamente até desencadear a situação paradoxal de manifestações públicas contra medidas de prevenção e contenção que são mantidas apesar do arrefecimento da pandemia e, portanto, são consideradas limitações com pouco embasamento.

A trajetória da triagem

A ideia da triagem médica surgiu durante a catástrofe humana das guerras napoleônicas, quando os escassos recursos da medicina militar deixaram sem tratamento aqueles que poderiam ser curados sem intervenção e aqueles cujos graves ferimentos levariam à morte ainda que recebessem cuidado médico, concentrando, então, os esforços em cuidar de soldados que só sobreviveriam com o tratamento disponível. A triagem baseada em critérios médicos se tornou uma forma administrativa de ordenar cuidados médicos de emergência, priorizando os pacientes mais graves e adiando os cuidados dos menos afetados, ou seja, eventualmente todos receberiam os cuidados necessários.

Se a triagem original é inclusiva/exclusiva, sua forma administrativa é inclusiva protelada. Isso é exemplificado pelo código de cores que costuma ser exibido nas salas de espera dos serviços de emergência: cinco categorias, desde pacientes que requerem reanimação e atenção imediata (código vermelho) àqueles que não requerem cuidados de emergência (azul) e serão tratados após as categorias de emergência (laranja), urgência (amarelo) e urgência menor (verde) terem sido tratadas. Todos serão atendidos por ordem de gravidade.

Em situações catastróficas – terremotos, acidentes em massa –, as pessoas sofrem múltiplos ferimentos simultaneamente, gerando uma demanda urgente por atendimento de trauma que excede os recursos materiais, terapêuticos e de pessoal disponíveis. A intenção de priorizar por ordem de gravidade é limitada por dificuldades em determinar o prognóstico a ser esperado em cada caso e compará-lo com o prognóstico de outros casos. Enquanto se espera por reforços médicos, uma triagem médica probabilística e incerta é usada para complementar uma triagem postergada à espera de recursos renovados.

Triagem em pandemias

Mais de dois séculos de experiência e uma vasta literatura sobre o assunto 3 foram silenciados pelas autoridades sanitárias e equipes médicas de emergência que pediram diretrizes éticas para lidar com a pandemia da covid-19 4,5. A Unesco optou por uma declaração precoce, urgindo que a saúde pública provesse serviços além de suas possibilidades reais: a escala massiva deste fenômeno global, por um período estendido (embora extraordinário), exige que os sistemas de saúde em cada região forneçam às suas populações respostas seguras, eficazes e baseadas em evidências, apesar de reconhecermos que, nestes casos, e dadas as características da pandemia da covid-19, o principal critério de alocação é a transparência 6.

Da mesma forma, a saúde pública foi convocada a trabalhar com critérios objetivos, transparentes e públicos 7. Entretanto, o caos da urgência, incerteza e desorientação não permite objetividade, segurança e evidência; o apelo à transparência pode ser um critério de comunicação, mas não de alocação.

No começo da pandemia, era impossível prever a agressividade, a propagação e a duração da covid-19, a pesquisa para o desenvolvimento de vacinas acontecia de forma frenética e os epidemiologistas avaliavam a imunidade de rebanho, pois viam a probabilidade do vírus se transformar em endêmico, a despeito do risco latente do surgimento de mutações mais agressivas. Várias vozes se ergueram para lembrar os esforços da bioética para desenvolver critérios e princípios éticos validados e amplamente reconhecidos 8,9. Entretanto, a inesperada virulência do SARS-CoV-2 e seu comportamento errático e imprevisível foram além do discurso bioético e levaram a decisões cruas de salvamento médico, realizadas com severos custos de estresse e desconforto para os tomadores de decisão e executores de ações, com consequências extremas que ameaçam a vida.

A triagem em pandemias tem suas características próprias que, devido às pessoas gravemente afetadas e a uma alarmante redução dos recursos, principalmente em nações com atendimento médico precário, exigiram regulamentações ad hoc, uma vez que a pandemia é um processo prolongado e com vários picos de alarmantes que limitam ou excedem a disponibilidade de leitos em unidades de terapia intensiva (UTI), ventiladores mecânicos, recursos profissionais e equipamento de proteção individual para profissionais da “linha de frente”. Surgem, então, protocolos hospitalares estritamente utilitários que priorizam os escassos recursos para quem requer cuidados críticos e pacientes com maior probabilidade de sobrevivência por pelo menos um ano após a alta hospitalar 10.

Gravemente afetada desde o início da pandemia na Europa, a Itália não demorou a desenvolver critérios de triagem. A principal recomendação do Comitê de Ética da Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Ressuscitação e Cuidados Intensivos (Siaarti) foi garantir “a maior probabilidade de sobrevivência”, aplicando a escala de Avaliação Sequencial de Falência de Órgãos (Sofa) de multi-órgãos e multifuncional – respiratória, cardiovascular, hepática, coagulação, renal e neurológica. Nesta escala, as pontuações baixas são priorizadas na triagem, indicando menos disfunções e melhor prognóstico.

As primeiras versões do Siaarti especificavam critérios rigorosos de triagem, excluindo pacientes com mais de 80 anos de idade, que tinham disfunção orgânica ou sofriam de demência “além de um certo grau”11. Pouco tempo depois, esses critérios de exclusão foram abandonados e os médicos passaram a aplicar seu julgamento clínico e justificar suas decisões para incluir os pacientes com maior probabilidade de sobrevivência, como avaliado pela escala Sofa, o que um membro do comitê chamou de “utilitarismo suave”.

O Comitê Nacional Italiano de Bioética (CNB) também aceitou um critério estritamente médico, advertindo que o adotou como uma “triagem pandêmica excepcional”, baseada na preparação (preparedness), pertinência (appropriateness), em termos de eficácia terapêutica e na realidade (actuality) 12. A Academia Alfonsina reconheceu este critério como “o único bem possível” na situação de emergência pandêmica 13.

Como outras nações latino-americanas, a Argentina publicou um guia ético para o processo de triagem em pandemias, elaborado segundo os critérios médicos do Sofa: a alocação de recursos críticos deve ser baseada em critérios objetivos, técnicos, neutros e verificáveis 14. O único critério não médico para atribuir prioridade em situações extremas é o valor social das pessoas que trabalham nos serviços de emergência, pois elas estão mais expostas ao risco de contágio e, se adoecem, esgotam ainda mais o escasso e altamente especializado pessoal de saúde.

Os critérios de idade são ocasionalmente propostos, mas geralmente rejeitados como introduzindo o discriminatório idadismo15, embora alguns bioéticos argumentem que o prognóstico deve ser avaliado em anos de vida salva. Há muitos motivos razoáveis para equilibrar salvar mais vidas com salvar mais anos de vida; qualquer equilíbrio escolhido entre vidas e anos de vida tem que ser aplicado consistentemente 16, o que inevitavelmente discrimina os idosos.

A triagem na pandemia, baseada em critérios estritamente médicos de gravidade e prognóstico, tem sido geralmente aceita 17. No entanto, é um critério de inclusão/exclusão que inevitavelmente condena as pessoas afetadas por uma alta pontuação do Sofa a um processo de morte precoce, dificilmente mitigado pelas medidas paliativas que devem receber. A decisão de uma triagem de inclusão/exclusão gera angústia para os médicos que precisam tomar essas decisões, mesmo que sejam apoiados e acompanhados pelos comitês de triagem ad hoc.

Esses comitês aplicam três critérios baseados na avaliação médica: exclusão de quem não tem salvação (choque irreversível), priorização usando o Sofa, e avaliações constantes para remover ventiladores de pacientes em situação de “descompensação severa” 18,19 ou, de acordo com outro critério, se o paciente estiver em condição estável ou, pelo menos, se não for inútil nem piorar significativamente. A escassez de recursos mostrou a necessidade da triagem em tempo de guerra, repleta de decisões éticas. A hesitação em obedecer aos critérios de ordem de chegada ou “aplicar um cálculo horrivelmente utilitário” para decidir quem seria tratado ou deixado para morrer intensificou o estresse dos médicos 20.

A natureza utilitária da triagem médica na pandemia 21 é inquietante, e especialmente estressante quando surge a necessidade de uma decisão de tirar um paciente do ventilador para “salvar a vida” de outro que sobreviverá devido a um prognóstico favorável, se tratado sem demora. É complexo reconhecer que os pacientes mais graves são os que sofreram ao longo de sua existência devido às desigualdades e às inadequações no atendimento médico. O critério de admissão por ordem de chegada – first come, first served – é outra forma de discriminação em favor de quem conta com o meio de transporte e comunicação mais eficiente. Porém, é um critério inevitável, dado que as pandemias são processos prolongados e com desdobramentos imprevisíveis.

A triagem em pandemias continuará a ser pragmática e estritamente médica onde há um grande descompasso entre as necessidades de emergência e os recursos disponíveis. Essa situação afeta mais duramente as sociedades mais pobres, já que a única solução ou mitigação é o aumento de espaços, de pessoal e de equipamentos médicos de emergência, o que requer não só vontade política, mas também meios econômicos e a expectativa de despertar a solidariedade adormecida em devaneios teóricos.

O trabalho dos comitês de ética, na pesquisa e no cuidado, tem sido prejudicado por incertezas, falta de precedentes e falta de orientação diante das restrições materiais e de recursos humanos 22. Os estudos empíricos iniciais confirmam a vontade de aplicar avaliações médicas rigorosas em emergências pandêmicas, apesar do fato de que em todas as outras situações os valores bioéticos e os critérios pessoais dos cuidadores têm precedência. Terminada a emergência atual, será necessário refletir sobre tais questões, uma vez que todos os critérios baseados em valores tendem a discriminar os desfavorecidos.

Polícia médica

Saúde pública entre o bem comum e a autonomia individual

O pioneiro da saúde pública, Johann Peter Frank 23(1745-1821), publicou seu monumental System einer vollstaendigen medicinischen Polizey (Um sistema completo para uma polícia médica), no qual menciona o termo “polícia médica”, que já havia sido usado por W. T. Rau 24 em um texto de 1764 no qual propunha uma polícia médica responsável pela vigilância e educação sanitária.

Embora Frank entendesse a polícia médica como uma estratégia para a administração da pólis, e não como uma ordem policial, como fiel adepto do cameralismo, ele não podia negar que seu objetivo era aumentar a produção de um povo saudável, a fim de encher os cofres do soberano absolutista. Assim, a aplicação de medidas higienistas e de saneamento eram do interesse dos cofres imperiais, adquirindo desde o início um tom autoritário e paternalista do qual a higiene e a saúde pública nunca se desprenderam.

A saúde pública tem sido esvaziada de conteúdo à medida que as democracias neoliberais entregam ao indivíduo a responsabilidade de prevenir doenças e promover a saúde, de acordo com pesquisas epidemiológicas que exploram os riscos populacionais que o profissional de saúde combina com o perfil único de seu paciente para indicar como levar uma “vida saudável”, em uma mudança do público para o privado, conhecida como a “nova saúde pública” 25.

A posição oposta confirma a responsabilidade pública de prestar cuidados de saúde de alta qualidade e de forma equitativa, a necessidade de prover o Estado com recursos suficientes através de impostos específicos ou de um sistema de seguro de saúde obrigatório, uma proposta que nem os países onde há medicina social abrangente foram capazes de alcançar ou sustentar a partir de Estados reduzidos pela globalização capitalista.

O individualismo da modernidade marca a deterioração da proteção estatal na garantia do acesso às necessidades básicas de bens e serviços, e as discordâncias não resolvidas (sem solução?) entre mandatos de saúde pública e resistências das autonomias individuais, uma questão que se agravou durante a pandemia da covid-19. Enquanto as autoridades tentam limitar as medidas de contenção, os cidadãos protestam contra todas as propostas de restringir a mobilidade na incidência de novos casos. Esse descompasso é particularmente doloroso no conflito entre os movimentos antivacina e a tendência impositiva dos programas de prevenção do governo.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), que complementa a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhece que em “tempo de emergência pública” os Estados podem derrogar suas obrigações nos termos do Pacto 26. Na esteira da pandemia da covid-19, muitas nações recorreram à instituição do Estado de Exceção na forma de um Estado de Catástrofe (Lei 18.415/1985, do Chile) 27. Esse estado é decretado diante de uma calamidade pública que coloca a população em risco, no qual são adotadas medidas administrativas restritivas que limitam a liberdade de circulação (toque de recolher), a liberdade de reunião (quarentena), alteram o direito de propriedade e dificultam as atividades comerciais, laborais e recreativas.

Inevitavelmente, a linguagem jurídica é vítima de generalizações, imprecisões e exigências de interpretação, o que explica porque declarações e leis que restringem as liberdades pessoais em situações excepcionais causam agitação e mal-estar social, que se manifestam em desacato e mobilizações que não estão isentas de violência.

Desde o final do século passado, a saúde pública tomou consciência da necessidade de um código de ética que valide e legitime as suas políticas 28, incentivando atividades acadêmicas mais ruidosas e que se tornam eficazes quando ancoradas nos quatro princípios individualistas de Georgetown 29.

(Bio)ética na saúde pública

Quando sabemos que temos o poder de evitar danos significativos, adquirimos a responsabilidade de fazê-lo30. A legitimidade ética da ação de saúde pública repousa na convicção de que os benefícios superam em muito os efeitos colaterais indesejáveis tanto para o indivíduo, quanto para a população. Apesar das incertezas de uma pandemia, o chamado princípio da precaução é invocado, a despeito das falhas que o sujeitam a críticas e rejeições. A ética da proteção propõe reforçar a legitimidade da imposição de medidas sanitárias obrigatórias que satisfaçam pelo menos quatro condições para serem convincentes e aplicáveis

  1. Reconhecimento de um problema que realmente causa ou ameaça causar danos de proporções inaceitáveis à comunidade.

  2. Capacidade de prevenir ou resolver uma grande parte do problema (eficácia) com ações comprovadamente eficientes – os benefícios superam os efeitos negativos aceitáveis/aceitos – que devem ser proporcionais à magnitude da tarefa empreendida.

  3. A certeza da aleatoriedade dos efeitos indesejados. Todos os participantes em ações de saúde pública devem ter a mesma probabilidade de sofrer efeitos negativos indesejados.

  4. Aceitabilidade das disposições disciplinares necessárias para obter resultados mais efetivos, incluindo restrições à autonomia, que são essenciais para dissuadir dissidentes e “viajantes que voam pela noite”.

A atual pandemia apresenta uma situação de extrema incerteza e insegurança, agravada pelas imprevisíveis mutações do SARS-CoV-2, que modificam sua virulência e velocidade de propagação ao ponto de pôr em dúvida as diversas medidas de contenção, bem como o grau e duração da proteção das vacinas 32. A falta de direção levou a medidas de saúde contraditórias e variáveis, em algumas nações, de cunho autoritário, em outras, planos regionalmente desarticulados e com graves consequências para as economias nacionais, corporativas e individuais.

Assim, a incerteza e a manipulação de dados estatísticos reduziram a já frágil confiança dos cidadãos em seus governantes 33. A saúde pública perdeu toda a orientação sobre seu escopo e limites de ação e a autoridade para definir tanto políticas de saúde rotineiras, quanto excepcionais. A ideia de saúde pública tornou-se polissêmica e vítima de oscilações políticas entre ser uma disciplina de responsabilidade pública e a tendência insistente da forma individual de controlar riscos que cumpre com ser ética e assumir responsabilidades e obrigações como “bons cidadãos” empenhados em levar uma vida saudável, com iniciativas pessoais de prevenção e cuidado de sua saúde 34.

Escolher o conceito de saúde coletiva pode selar o escopo das políticas de saúde para proteger as populações, e não os indivíduos, com consequências deletérias, especialmente em regiões onde as iniquidades de saúde não podem ser suportadas pela população sem posses, que depende de um Estado robusto e eficaz. Quanto mais desprivilegiada é uma população, mais necessário é desenvolver um robusto Estado de proteção.

Como argumenta Amartya Sen35, um sistema democrático que defenda os direitos políticos, civis e sociais é indispensável para evitar desastres econômicos e sociais. A saúde coletiva que não é insistente e permanentemente democrática está condenada ao fracasso por ineficácia, pois as imposições políticas obrigatórias sem legitimidade levam ao conflito e ao desacato.

Afetadas pelo ressurgimento de casos positivos para a variante ômicron, várias nações endureceram as medidas de contenção, o que desencadeou grandes movimentos de protesto social. O decreto de tributação da saúde exige dar à população menos favorecida a possibilidade material de cumprir com os requisitos – renda mínima para suspender empregos informais, fácil acesso a residências de isolamento, apoio para viagens indispensáveis evitando congestionamentos e falta de distância dos meios públicos habituais, acesso garantido a vacinas para quem mora distante, para os deficientes e idosos. Somente dessa forma medidas de saúde coercitivas serão validamente éticas para irem adiante 36.

Claramente, essas condições não foram satisfeitas após dois anos de pandemia descontrolada. Embora o benefício protetivo da vacina seja indiscutível, muitas incertezas permanecem sobre sua eficácia imunológica, duração e possíveis, embora raríssimas, complicações. Isso fortalece os movimentos antivacina, especialmente porque veem a precariedade em que vivem grandes grupos sociais menos favorecidos e empobrecidos, e sua desigualdade crônica de acesso aos cuidados de saúde; condições de vida que os impedem de ter espaço de vida para o isolamento, além da precariedade do trabalho, em grande parte informal, tornando impossível o cumprimento das quarentenas.

No caso de futuras pandemias virais, seria desejável aumentar a preparação sanitária para enfrentá-las, como proposto no final da pandemia de SARS de 2002, mas sem grandes efeitos. As incertezas e inseguranças não resolvidas na atual pandemia tornam difícil prever as características da próxima invasão viral, mas a experiência da covid-19 confirma que a legitimidade das medidas coercitivas obrigatórias depende de níveis cognitivos convincentes, bem como da preocupação e da capacidade do Estado em aliviar e compensar as dificuldades que tais medidas causam à população carente de recursos e reservas.

Considerações finais

A bioética não tem desempenhado um papel decisivo na atual pandemia. Gilbert Meilaender, reconhecendo mais uma vez que a bioética não é uma especialização, relata um trabalho assinado por quase 1400 “bioéticos” e publicado pelo The Hastings Center, no qual enfatizam que existe uma vasta literatura de bioética sobre como abordar as decisões de triagem 37.

Entretanto, a urgência da pandemia forçou a implementação da triagem clássica, baseada em critérios estritamente médicos, para priorizar as pessoas gravemente afetadas, mas com probabilidade de responder favoravelmente ao tratamento intensivo com ventilação mecânica, o que adiou quaisquer considerações bioéticas para depois que a emergência diminuiu. Entre a SARS (2002) e a covid-19 (2019), foi dito que a bioética não pode servir como base para refletir sobre os equilíbrios necessários em defesa da saúde pública. Ao iniciarmos o processo de moldar uma ética para a saúde pública, torna-se claro que a bioética é o lugar errado para começar 38.

Vários autores reconhecem que combater o vírus com medidas baseadas em estatísticas epidemiológicas é necessário e presumivelmente suficiente para acabar com esta pandemia, ou transformá-la em uma endemia controlável. Entretanto, a pandemia intensificou os efeitos de uma modernidade exacerbada que produz grande deterioração ambiental e danos sociais, de difícil reversão. A forma de vencer a batalha atual nos ancorar-nos, novamente, em um mundo em rápida entropia, que será atingido por novos micro-organismos e exacerbará a virulência daqueles já conhecidos.

Enquanto isso, devemos continuar buscando vacinas, aumentando nossa capacidade de cuidados críticos em termos de UTI e aumentando a disponibilidade de leitos. Ao invés de adquirir mais ventiladores, é fundamental criar um fundo de saúde de emergência para adquirir o que as futuras pandemias tornem necessário, conforme as peculiaridades patogênicas dos ataques virais que virão.

Portanto, é desejável renovar o discurso sugerido por, entre outros, A. Honneth 39, reconhecendo que em situações de emergência os critérios individualistas não podem prevalecer, nos concentrando em uma reflexão ética mais imaginativa para transformar as políticas de saúde em um campo de ação eficaz, eficiente e eticamente legitimado, que proponha decisões que privilegiem o bem comum sobre os interesses individuais. É isso o que é a bioética.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2022
  • Revisado
    20 Mar 2022
  • Aceito
    28 Set 2022
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