Resumo
A ortotanásia refere-se à suspensão de métodos artificiais que prolongam a vida de um paciente sem perspectivas de cura. Trata-se de uma questão complexa, já que para muitos profissionais da saúde a morte é considerada um fracasso, de modo que é necessário abordar a temática em meio acadêmico. Diante disso, este trabalho visa entender a perspectiva de docentes de medicina sobre a ortotanásia. Para tanto, o estudo traz uma investigação qualiquantitativa realizada entre maio e julho de 2019 com docentes do curso de medicina de uma universidade federal do Norte do país, por meio de questionário on-line. Os resultados mostram que o tema não é bem abordado na formação médica, sendo essencial uma didática mais consistente sobre ortotanásia em meio acadêmico.
Educação médica; Assistência terminal; Morte; Medicina
Abstract
Orthothanasia is the suspension of artificial methods that prolong the life of a patient with no prospects of cure. Such concept is a complex issue, since many health care professionals consider death to be a failure, highlighting the need for its inclusion in academia. Consequently, this study sought to understand how medical professors view orthothanasia. To this end, we conducted a qualitative-quantitative research between May and July 2019, via online questionnaire, with medical professors from a federal university in Northern Brazil. Results show that this issue is poorly addressed in medical education, and a more consistent pedagogical approach to orthothanasia in academia is essential.
Education, medical; Terminal care; Death; Medicine
Resumen
Ortotanasia se refiere a la suspensión de métodos artificiales que prolongan la vida de un paciente sin posibilidad de cura. Sin embargo, practicarlo no es tan simple, ya que, para muchos profesionales de la salud, la muerte se considera un fracaso. Por lo tanto, es necesario acercarse a la muerte en un entorno académico. Por lo tanto, el objetivo era comprender la perspectiva de enseñanza adoptada por los profesores de medicina en una universidad federal en el norte del país sobre la ortotanasia. Con este fin, el estudio trae una investigación cualitativa y cuantitativa de mayo a julio de 2019 con profesores del Curso de Medicina, a través de un cuestionario en línea. Entre los resultados obtenidos, se pudo notar que aún existen vacíos en el énfasis del tema en la educación médica, y es fundamental su inserción didáctica más consistente en el ámbito académico.
Educación médica; Cuidado terminal; Muerte; Medicina
Na Grécia Antiga, os médicos eram considerados divindades com o poder de curar doenças e proporcionar longevidade e até imortalidade. Na Idade Moderna, a ciência e racionalidade tomaram espaço, tornando os médicos “semideuses” em profissionais comuns e falhos. Atualmente a medicina está vinculada à tecnologia em diversas áreas, sobretudo nos campos de diagnóstico, cirurgia, anestesiologia e reanimação, com o objetivo de promover a manutenção mais significativa da vida e controlar enfermidades, alongando progressivamente o processo de morte natural 11. Cavalcante RS. Distanásia e ortotanásia: ética e legalidade na prática da anestesiologia. São Paulo: Editora Unesp; 2018. .
Houve significativos progressos no desenvolvimento da saúde, como melhorias no saneamento básico, na qualidade de vida e no aumento da longevidade, dentre os avanços. Apesar disso, há também muitos procedimentos invasivos, onerosos, dolorosos e, em última análise, ineficientes, visto que o objetivo final – impedir a morte a todo custo – não pode ser atingido 11. Cavalcante RS. Distanásia e ortotanásia: ética e legalidade na prática da anestesiologia. São Paulo: Editora Unesp; 2018. . Portanto, esse cenário de contraste pode causar um prolongamento artificial da vida, que desrespeita a dignidade humana 22. Lima CAS. Ortotanásia, cuidados paliativos e direitos humanos. Rev Soc Bras Clin Med [Internet]. 2015 [acesso 24 ago 2021];13(1):14-7. Disponível: https://bit.ly/3Ca6JhG
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e até mesmo as características e diferenças entre pacientes homens e mulheres 33. Seifart C, Knorrenschild JR, Hofmann M, Nestoriuc Y, Rief W, Blanckenburg PV. Let us talk about death: gender effects in cancer patients’ preferences for end-of-life discussions. Support Care Cancer [Internet]. 2020 [acesso 24 ago 2021];28(10):4667-75. DOI: 10.1007/s00520-019-05275-1 .
Nesse contexto surge o conceito de ortotanásia, cuja etimologia, que significa “morte correta”, deriva dos termos gregos orthós (certo) e thánatos (morte) 44. Felix ZC, Costa SFG, Alves AMPM, Andrade CG, Duarte MCS, Brito FM. Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão integrativa da literatura. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 24 ago 2021];18(9):2733-46. DOI: 10.1590/S1413-81232013000900029 . Na prática, significa a suspensão de atos e métodos artificiais que prolonguem a vida de um paciente sem perspectivas de cura, com o objetivo de evitar sofrimento desnecessário e ofertar uma morte digna 22. Lima CAS. Ortotanásia, cuidados paliativos e direitos humanos. Rev Soc Bras Clin Med [Internet]. 2015 [acesso 24 ago 2021];13(1):14-7. Disponível: https://bit.ly/3Ca6JhG
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. Muito dessa proposta é englobado pelos cuidados paliativos, abordagem que cuida do paciente com doença que ameaça a condição da vida respeitando suas demandas sociais, espirituais, físicas e psicológicas, até que a morte ocorra, com dignidade.
Para tanto, o paciente ou – caso não seja possível ele próprio deliberar – sua família podem decidir pela ortotanásia 44. Felix ZC, Costa SFG, Alves AMPM, Andrade CG, Duarte MCS, Brito FM. Eutanásia, distanásia e ortotanásia: revisão integrativa da literatura. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 24 ago 2021];18(9):2733-46. DOI: 10.1590/S1413-81232013000900029 . Conforme pesquisa publicada pela NeoReviews , os cuidados paliativos podem ocorrer desde o período neonatal, sobretudo para crianças que nascem prematuras ou com alguma anomalia congênita, e atrasar esses serviços significaria perder oportunidades para a construção de relacionamentos, estabelecimento de vínculo familiar, atenção à espiritualidade e à saúde psicossocial da família 55. Santos MF, Bassitt DP. End of life in intensive care: family members acceptance of orthotanasia. Rev Bras Ter Intensiva [Internet]. 2011 [acesso 24 ago 2021]23(4):448-54. Disponível: https://bit.ly/3bh0kpd
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A legislação que respalda a prática da ortotanásia no Brasil consta no Projeto de Lei 6.715/2009, incluída no novo Código de Ética Médica, em 2010. Sendo assim, caso não haja possibilidades terapêuticas de cura a um paciente e seus familiares solicitem a suspensão de procedimentos médicos, a ortotanásia é legitimada. Porém, ainda desperta inseguranças na prática médica, pela ausência de lei específica para a prática no Brasil.
Em outros lugares do mundo, como é o caso da Noruega, já existem situações em que pacientes em estágio terminal podem ficar em suas casas, recebendo visitas de clínicos gerais, a fim de que morram com dignidade ao lado de entes queridos 66. Forman KR, Thompson-Branch A. Educational perspectives: palliative care education in neonatal-perinatal medicine fellowship. NeoReviews [Internet]. 2020 [acesso 24 ago 2021];21(2):72-9. Disponível: https://bit.ly/3mmiQTC
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. Entretanto, é necessário destacar que praticar a ortotanásia não é uma decisão tão simples. O paciente, sua família e a equipe médica enfrentam um dilema diante da escolha da morte, visto que esta ainda é considerada fracasso, vergonha e impotência.
Dessa forma, discutir, estudar e compreender as diversas situações que essa conjuntura engloba é de fundamental importância para profissionais de saúde atuais e futuros, pacientes, familiares e sociedade, para que se possa preparar os envolvidos no enfrentamento da terminalidade, favorecendo uma formação ética e humanizada do cuidado 77. Kjellstadli C, Allore H, S Husebo BS, Flo E, Sandvik H, Hunskaar S. General practitioners; provision of end-of-life care and associations with dying at home: a registry-based longitudinal study. Family Practice [Internet]. 2020 [acesso 24 ago 2021];37(3):340-7. DOI: 10.1093/fampra/cmz059/5717352 .
Questões culturais e espirituais também contribuem para que profissionais da saúde tenham dificuldade em lidar com a morte, visto que a formação atual se pauta em um aprendizado técnico-científico, e enfoques emocionais, espirituais e sociais são pouco considerados. Assim, por ser tabu, a morte gera inquietação e estranheza 88. Santos LG, Mariana PM, Gradvohl SMO. Conhecimento, envolvimento e sentimentos de concluintes dos cursos de medicina, enfermagem e psicologia sobre ortotanásia. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 24 ago 2021];18(9):2645-51. Disponível: https://bit.ly/3vFt8kt
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. Por conseguinte, é vista como insucesso e fraqueza pelos profissionais 99. Teixeira AL. Gestões de vida e morte: um olhar sobre o morrer no contemporâneo. Rev Psicol [Internet]. 2016 [acesso 24 ago 2021];2(2):150-71. Disponível: https://bit.ly/3Gjq96o
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É evidente a necessidade de abordar de forma mais enfática a morte e a ortotanásia em meio acadêmico, a fim preparar melhor os futuros profissionais da saúde para essas questões consideradas hostis e de difícil enfrentamento. Outrossim, é importante estimular a humanização do processo de morte, colaborando para a melhoria nos cuidados ao doente e à sua família 1010. Fonseca A, Genovanini F. Cuidados paliativos na formação do profissional da área de saúde. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2013 [acesso 24 ago 2021];37(1):120-5. Disponível: https://bit.ly/3B8fyqT
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Método
Este artigo utilizou investigação qualiquantitativa, no período de maio a julho de 2019, com docentes do curso de medicina de uma universidade no Norte do Brasil. Os critérios de participação foram: atuar no colegiado de medicina da universidade, definir o ano de docência, informar a respectiva área de formação e aceitar participar da pesquisa livremente. Sendo assim, obteve-se adesão de 15 docentes.
O primeiro passo foi conseguir aceitação e autorização do estudo pelo comitê de ética em pesquisa da instituição, atendendo às diretrizes e normas do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes estavam cientes da finalidade do estudo e concordaram com a participação após leitura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Como eles não são identificados na pesquisa, não foi necessária assinatura.
Para facilitar a coleta dos dados e proporcionar tempo, sigilo e conforto aos entrevistados, disponibilizou-se um questionário on-line pelo Formulários Google, cujo link foi enviado ao e-mail e à conta de WhatsApp individual de cada docente. Havia 14 perguntas, a maioria era de múltipla escolha, tendo alternativas com apenas palavras ou números e frases curtas. O tempo estimado para resposta era de cinco minutos.
A entrevista evidenciou a formação do profissional; seu tempo de experiência; sua área de atuação; o significado da ortotanásia para cada entrevistado; o método e a frequência em que se aborda esse tema em sala; bem como o conforto na abordagem e a necessidade de discuti-lo na formação médica, levando em consideração a experiência no campo de trabalho com essa situação.
A análise dos dados foi facilitada pelo programa do questionário, que disponibiliza as respostas em quantidade bruta e percentuais em gráficos de cada alternativa. Sendo assim, é possível analisar quantitativamente as respostas e qualitativamente o grau de conhecimento e de entendimento do tema pelos respondentes. Para compreender as temáticas desveladas, utilizou-se a postura hermenêutica gadameriana, que ocorre dentro do círculo hermenêutico, ou seja, ao ler um texto, o contexto da tradição interage com o movimento do intérprete. Assim, o encontro entre o familiar e o estranhamento do texto seriam uma fusão de horizontes 1111. Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes; 2014. .
Além desse movimento existencial de abertura, a literatura permitiu construir um diálogo entre as temáticas encontradas e o conhecimento já instituído cientificamente para se alcançar o objetivo geral da pesquisa: compreender a perspectiva de ensino adotada por docentes de medicina de uma universidade federal do Norte do país sobre a ortotanásia.
Resultados e discussão
Os resultados apresentados foram, inicialmente, convalidados com uma taxa de 100% (n=15) de respostas positivas quanto à concordância em participar da pesquisa, cuja decisão foi livre e individual. Esse dado pode denotar o desinteresse em responder uma pesquisa que trata do tema da morte, já que o curso de medicina da universidade pesquisada conta com 62 docentes. Ou seja, apenas 24,19% dos professores responderam ao questionário.
Feita essa consideração, chega-se à primeira pergunta: “Para qual ano de graduação você ministra aulas?”. A lógica dessa questão reside no fato de que, à medida que avança no curso de medicina, é esperado que o aluno esteja mais habituado aos ambientes hospitalares, aos tratamentos médicos e à morte como possível consequência do processo de adoecimento, e que a abordagem dos docentes esteja de acordo como esses estágios 1212. Duarte AC, Almeida DV, Popim RC. A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de medicina. Interface [Internet]. 2015 [acesso 24 ago 2021];19(55):1207-19. DOI: 10.1590/1807-57622014.1093 .
É importante destacar que alguns professores lecionam em diversos anos, razão pela qual as porcentagens obtidas ultrapassam 100%. Os resultados demonstraram que 40% (6) eram docentes do primeiro ano; 53,3% (8) do segundo; 40% (6) do terceiro; 6,7% (1) do quarto; 20% (3) do quinto; e 26,7% (4) eram do sexto ano.
A prevalência de docentes dos três primeiros anos da graduação na pesquisa permite inferir que estes profissionais estão mais abertos ao tema da finitude humana e da ortotanásia que aqueles dos últimos anos, mais voltados ao ensino do tratamento e da intervenção médica. Caso haja algum treinamento de conscientização da importância do tema, é primordial priorizar a adesão dos professores dos anos mais avançados 1313. Kulicz MJ, Amarante DF, Nakatani HT, Arai Filho C, Okamoto CT. Terminalidade e testamento vital: o conhecimento de estudantes de medicina. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 24 ago 2021];26(3):420-8. DOI: 10.1590/1983-80422018263262 .
Outra questão que confunde pacientes em estado terminal e, portanto, reverbera nos profissionais de saúde, relaciona-se às incertezas no campo dos fármacos. Há poucos ensaios clínicos sobre o uso de medicamentos que podem adiar a morte, o que gera grande tensão e indecisão nos indivíduos, que não sabem se participam dessas pesquisas ou se transitam direto aos cuidados paliativos 1414. Cortez D, Halpin M. Uncertainty and certain death: the role of clinical trials in terminal cancer care. Sociol Health Illn [Internet]. 2020 [acesso 24 ago 2021];42(sup 1):130-44. DOI: 10.1111/1467-9566.13059 .
Esse entendimento engloba a próxima questão, sobre as diversas áreas de conhecimento dos entrevistados. Os respondentes eram das mais diversas áreas, e não só de especialidades médicas. A pesquisa alcançou docentes cuja formação era biomedicina (3), farmácia (1), fisioterapia (1), medicina (7), odontologia (1) e psicologia (2). Entre os médicos, houve respondentes com especialidade em urologia, clínica médica, cirurgia cardiovascular e neurologia infantil.
O período de atuação profissional, contado a partir da graduação, variou de 6 anos e meio até 30 anos, uma amostra bastante diversificada. A média aritmética ficou em 14,53 anos, ao passo que a mediana foi de 14 anos, bem próxima à média. A média foi de 9, 12 e 15 anos, com dois respondentes em cada um deles.
Ingressando na seara da ortotanásia, apesar de a maioria (66%) demonstrar reconhecer o seu conceito, 26,7% confundem-no com o de eutanásia, qual seja, provocar a morte de um paciente em profundo sofrimento e sem perspectiva de melhora. Já 6,67% acreditavam tratar-se de um prolongamento artificial da morte por meio do uso de aparelhos e equipamentos médicos.
Isso demonstra possível propagação de informação errada, tendo em vista que, a fim de se lecionar sobre a ortotanásia, é primordial que os facilitadores estejam familiarizados com seu conceito e sua aplicabilidade. Não basta estimular o ensino sem treinamento que possibilite a compreensão homogênea do seu teor e do seu alcance, com posterior repasse desses conhecimentos aos discentes. Caso assim não se proceda, o risco de disseminar uma informação errada é maior, prejudicando o já frágil ensino da temática 1313. Kulicz MJ, Amarante DF, Nakatani HT, Arai Filho C, Okamoto CT. Terminalidade e testamento vital: o conhecimento de estudantes de medicina. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 24 ago 2021];26(3):420-8. DOI: 10.1590/1983-80422018263262 .
Na sequência, relacionado à frequência das apresentações nas aulas, apenas 6,67% dos docentes abordaram a ortotanásia com frequência maior que três vezes em suas aulas, enquanto 26,7% contemplaram em dois momentos, e 33,3% trataram do tema apenas uma ou nenhuma vez em seus compromissos. Os percentuais se mostram baixos e insuficientes para sedimentação do conhecimento.
As formas de abordagem mais comuns foram casos clínicos (25%) e outras (16,7%), sendo citadas também, com 8,3% cada, palestras, debates/filmes, tutoriais, discussões clínicas e feedback de atividades. Conferências, simulações e dinâmicas nunca foram utilizadas. Esse resultado demonstra o potencial de exploração de outros métodos de ensino para trazer uma melhoria mais efetiva ao processo de ensino-aprendizagem, para além das metodologias clássicas próprias do problem-based learning (PBL), ou aprendizagem baseada em problemas (ABP), opção didática optada pela universidade no curso de graduação em medicina 1515. Cruz PO, Carvalho TB, Pinheiro LDP, Giovannini PE, Nascimento EGC, Fernandes TAAM. Percepção da efetividade dos métodos de ensino utilizados em um curso de medicina do nordeste do Brasil. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2019 [acesso 24 ago 2021];43(2):40-7. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2rb20180147 .
Normalmente, experiências vivenciadas in situ por médicos são trazidas aos alunos nas aulas e, com elas, os discentes são preparados para as situações mais corriqueiras na vivência médica. No caso da ortotanásia, aparentemente ela sequer é visualizada no cotidiano dos profissionais de saúde, com dez docentes (66,7%), ampla maioria, afirmando que nunca precisaram praticá-la em sua rotina de trabalho. Outros 13,3% indicaram aplicá-la em três ocasiões, ao passo que 20% afirmaram vivenciá-la em quatro ocasiões.
Esse dado levanta a seguinte reflexão: se a ortotanásia realmente não é aplicada de modo usual nas rotinas dos profissionais de saúde, ou eles não a conhecem ou não entendem do que se trata. Não se reconhece a aplicação do que se ignora, reiterando a importância de uma formação docente sobre o tema. O que se constata no processo de formação do curso de medicina é a prevalência de disciplinas teóricas e práticas específicas da graduação, em detrimento de temas de inserção curricular como ortotanásia 1616. Rodrigues VMR, Rodrigues KAI. Formação médica humanizada: conexões interdisciplinares entre medicina, educação, direitos humanos e políticas sociais para estudo da ortotanásia. Interdisciplinary Scientific Journal [Internet]. 2017 [acesso 24 ago 2021];4(1). Disponível: https://bit.ly/3GlOR5Y
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Em relação ao sentimento de realização/frustração profissional diante da morte de um paciente, em uma questão com resposta livre, cinco docentes (22,72%) referiram dor/tristeza, três (13,63%) declararam impotência, três (13,63%) afirmaram sentir calma/alívio/tranquilidade, ao passo que dois (9,09%) relataram que não têm contato e dois (9,09%) estatuem que nunca vivenciaram essa experiência ( Gráfico 1 ). Percebe-se que, ao ser apontada tristeza e impotência como resposta mais frequente, a formação profissional para lidar com a morte ainda não é satisfatória. O despreparo dos profissionais de saúde advém da importância dada ao tema da vida, fomentando, assim, o sentimento de fracasso em situação de óbito do paciente 1717. Costa DT, Garcia LF, Goldim JR. Morrer e morte na perspectiva de residentes multiprofissionais em hospital universitário. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2017 [acesso 24 ago 2021];25(3):544-53. DOI: 10.1590/1983-80422017253211
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Respostas ao questionamento “Qual o sentimento associado ao processo de morte de um paciente?”
Em complementação, todas as seguintes respostas obtiveram uma resposta afirmativa (4,54%): aprendizagem, devastação, insegurança, satisfação, resignação, e não trabalha com risco de morte. Difícil considerar um profissional de saúde que não trabalha sob hipótese alguma com o risco de morte, uma vez que um paciente, mesmo estável, pode decair e vir a óbito por complicações do processo saúde-doença. Salta aos olhos também, nesse setor, que a maioria das respostas se relacionou a aspectos negativos sobre a morte, que, apesar de ser parte do ciclo natural de vida, é encarada como evitável a qualquer custo por muitos profissionais. Porém, essa perspectiva pode estar atrelada ao paradigma da cura, no qual o desejo de prolongar a vida por meio de métodos e tecnologias viabiliza que se adote a ética resolutiva acrítica 1818. Pessini L. Vida e morte na UTI: a ética no fio da navalha. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2016 [acesso 21 jan 2020];24(1):54-63. DOI: 10.1590/1983-80422016241106 .
É preciso considerar, também, nesse quesito, as condições em que se deu a morte, como faixa etária e condições de saúde agudas ou crônicas, que podem trazer diferentes sensações perante o mesmo fato – a morte. Resultado igual, nesse caso, não implica o mesmo processo, e é exatamente por isso que a morte deve ser abordada de modo global, tratando-se casos em diferentes situações, e não apenas como imperativo categórico com o qual se deve obter familiaridade.
A maioria dos docentes respondeu se sentir bem para abordar a temática da morte em sala de aula. Em uma escala de zero a cinco para indicar o grau de conforto com o tema, sendo cinco o nível mais confortável/seguro, 26,7% assinalaram três; 26,7%, quatro; e 33,3%, cinco ( Gráfico 2 ). Esse dado demonstra que a ortotanásia não é tratada como tabu, mas como temática que não causa maiores transtornos àqueles que a enfrentam.
Número de docentes de acordo com o grau de conforto que sentem ao abordar o tema ortotanásia em sala
Por outro lado, a maioria dos docentes se mostrou insatisfeita com a frequência com que a ortotanásia é abordada em ambientes acadêmicos, de modo que as respostas zero (35,7%), um (42,9%), dois (14,3%) e três (7,1%) foram as únicas citadas, em uma escala de zero a cinco, sendo zero completamente insatisfeito ( Gráfico 3 ).
Número de docentes de acordo com o grau de satisfação com que o tema ortotanásia é abordado em sala
Em seguida perguntou-se-lhes se o tema da ortotanásia deveria ser mais abordado, e dez (66,7%) docentes afirmaram que é necessário, ao passo que cinco (33,3%) disseram que talvez seja preciso. Essas respostas contradizem a questão sobre a segurança dos docentes para lidar com o assunto, uma vez que, se estão realmente bem preparados, não há razões para que não a abordem.
Ao serem questionados se tiveram um bom preparo sobre o tema na graduação, os docentes foram unânimes em afirmar que não foram bem instruídos, tiveram uma educação que corrobora o simbolismo da morte como erro, implicando frustração profissional. No entanto, hoje reconhecem a importância do tema, de modo que essa realidade poderia ser mudada caso a ortotanásia fosse mais discutida e de maneira não negativa, como possibilidade terapêutica útil. Isso é constatado na afirmação de insegurança ao falar sobre o assunto devido à pouca abordagem na graduação, perpetuando despreparo no enfrentamento da morte 88. Santos LG, Mariana PM, Gradvohl SMO. Conhecimento, envolvimento e sentimentos de concluintes dos cursos de medicina, enfermagem e psicologia sobre ortotanásia. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 24 ago 2021];18(9):2645-51. Disponível: https://bit.ly/3vFt8kt
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Outro tópico presente no campo da ortotanásia e dos cuidados paliativos são as experiências em fim de vida (EFV) ou sonhos em fim de vida (SFV), que se referem a fenômenos que ocorrem horas, dias ou semanas antes da morte de um indivíduo. Nesses casos, os pacientes geralmente descrevem encontros com amigos ou familiares já falecidos 1919. Kerr CW, Donnelly JP, Wright ST, Kuszczak SM, Banas A, Grant AP, Luczkiewicz DL. End-of-life dreams and visions: a longitudinal study of hospice patients’ experiences. J Palliat Med [Internet]. 2014 [acesso 24 ago 2021];17(3):296-303. DOI: 10.1089/jpm.2013.0371 . Esses eventos são psicologicamente e existencialmente significativos, visto que podem proporcionar conforto, promover a discussão de preocupações com a vida em vigília e diminuir o medo da morte.
A literatura distingue essas ocorrências de distúrbios neurológicos, demência ou delírio. Isto é relevante, pois tais fenômenos são historicamente classificados como efeito dessas disfunções cognitivas, acarretando medo e vergonha tanto nos pacientes ao contarem suas experiências, quanto nos médicos ao subnotificarem os casos, por receio de julgamento 2020. Levy K, Grant PC, Kerr CW. End-of-life dreams and visions in pediatric patients: a case study. J Palliat Med [Internet]. 2020 [acesso 24 ago 2021];23(11):1549-52. DOI: 10.1089/jpm.2019.0547 . Nota-se, dessa maneira, que se cria uma cascata de acontecimentos que levam a ortotanásia e a morte a serem pouco estudadas, ensinadas ou compreendidas.
A questão seguinte, também de resposta livre, indagava o que a morte representa para o docente. Das 18 referências feitas, cinco (27,78%) a consideram como passagem/transição; quatro (22,22%) como início ou fechamento de um ciclo, sendo uma como início e três como fim; quatro (22,22%) como fim, sem fazer referência a nenhum outro substantivo; duas (11,11%) como parte do ciclo de vida; e uma (5,56%) como mistério, cumprimento de missão e vida eterna, respectivamente.
Nota-se que, entre profissionais de saúde, apenas 11,11% reconhecem a morte como parte do ciclo de vida biológico, o que evidencia, mesmo nesses indivíduos, o seu misticismo e a sua incerteza. É preciso, então, entender a morte como processo natural, para que se possa assegurar ao paciente dignidade no complemento de seu ciclo vital, e amenizar a agonia vivenciada no momento de finalidade 2121. Pessini L, Siqueira JE. Reflexões sobre cuidados a pacientes críticos em final de vida. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 24 ago 2021];27(1):29-37. DOI: 10.1590/1983-80422019271283 . Soma-se a isso o que aponta a pesquisa divulgada pela revista Palliative Medicine , afirmando que a espiritualidade se mostra um significativo suporte e apoio para diversas famílias teístas não religiosas 2222. Cai S, Guo Q, Luo Y, Zhou Y, Abbas A, Zhou X, Peng X. Spiritual needs and communicating about death in nonreligious theistic families in pediatric palliative care: a qualitative study. Palliat Med [Internet]. 2020 [acesso 24 ago 2021];34(4):533-40. DOI: 10.1177/0269216319896747 .
Por fim, solicitou-se que os docentes apresentassem, livremente, sugestões sobre como se deve abordar a ortotanásia na graduação de medicina da universidade em questão. Fizeram 21 referências, e as mais citadas, com três (14,29%) cada, foram a abordagem em equipe multidisciplinar e tutoriais/conferências/palestras. A equipe multidisciplinar traz consigo a divisão da assunção de culpa, já que, ao compartilhar a decisão pela ortotanásia, e não a sua tomada de forma individualizada, possibilita uma sensação de responsabilidade menos negativista no âmbito individual. Assim, a atuação da equipe multiprofissional é indispensável para mediar os entraves daqueles profissionais que individualmente desejam prolongar a vida a qualquer custo em detrimento dos princípios éticos do cuidado 2323. Tavares CTS, Martins JMR, Simões IAR. Ortotanásia e distanásia: percepções da equipe multiprofissional na unidade de terapia intensiva. Enferm Brasil [Internet]. 2016 [acesso 21 jan 2020];15(2):68-74. DOI: 10.33233/eb.v15i2.169 .
Outras possibilidades de abordagem foram oficinas/rodas de conversa (9,52%), cinema/teatro/outros métodos não convencionais (9,52%) e casos clínicos (9,52%). Houve menção, ainda, cada uma com frequência de 4,76%, a contato com profissionais treinados em uma disciplina específica incrustada ao team-based learning (TBL) no hospital universitário, em simulações e em estágios.
A possibilidade de criar uma disciplina sobre a ortotanásia e reflexões acerca da morte digna se mostra um grande desafio no cenário brasileiro e seria um marco na mudança de paradigma em que os cursos de graduação em medicina encaram o tema. Até porque, a literatura sobre morte digna é escassa, especialmente do ponto de vista médico, o que torna a ideia ainda mais importante 2424. Zanatta FN, Stamm AMNF, Kretzer LP, Teixeira SP, Arruda FWS. Morte digna: percepção de médicos de hospital de ensino. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 21 jan 2020];28(1):119-27. DOI: 10.1590/1983-80422020281374 .
Considerações finais
Com base nos resultados e discussões, percebe-se que é impossível transformar a medicina sem considerar a forma como se ensina. Novos métodos e temas considerados relevantes para o enfrentamento da morte precisam ser mais bem explorados, uma vez que não se pode admitir que o senso comum continue a permear a prática da ortotanásia, em detrimento do avanço científico e da legislação que a abordam.
Como não tiveram uma formação satisfatória na graduação, é preciso que se oferte treinamento especializado aos docentes dos cursos de medicina a fim de prepará-los para abordar a ortotanásia de forma mais clara e didática, dissociando-a da frustração profissional. Por meio dos resultados obtidos, demonstra-se que eles a consideram essencial e, para que o reconhecimento da falha se transforme em mudança, urge dar o primeiro passo e tirá-los da zona de conforto.
A concepção de médico “semideus” precisa ser superada não só formalmente, mas na prática. Reconhecer a limitação do conhecimento humano para lidar com as diversas possibilidades encontradas no processo saúde-doença parece ser o primeiro passo para incluir a ortotanásia como possibilidade real de tratamento, recolocando o paciente como fim do processo terapêutico, e não o conhecimento médico per se .
Dessa forma, os pacientes terão modelos mais claros de tratamento médico e de cura, afastando falsas esperanças de melhora sabidamente impossíveis. Além disso, os médicos lidarão melhor com a responsabilidade sobre a vida de outro indivíduo e terão, na equipe interdisciplinar, o suporte necessário para enfrentar dilemas morais. Essas mudanças beneficiariam a construção da relação médico-paciente-familiares embasada em cuidados e presença, e principalmente na dignidade da pessoa humana.
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Aprovação CAE 10801419.3.0000.0003
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Mar 2022 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2021
Histórico
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Recebido
4 Maio 2020 -
Revisado
29 Set 2021 -
Aceito
19 Out 2021