Bioética como ciência da sobrevivência: análise do abuso do conhecimento

Resumo

Perante a realidade atual de exploração excessiva dos recursos naturais, a bioética promove um importante debate interdisciplinar abrangendo ramos éticos e científicos. Por muitos anos, um processo de industrialização expressivo aumentou a produção de bens de consumo e gerou uma mentalidade consumista. A valorização da lucratividade e do consumismo evidenciaram os impactos do conheci mento perigoso, a exemplo do uso indiscriminado de agrotóxicos e de testes de engenharia genética. Nesse contexto, a população teve acesso a uma quantidade extraordinária de informações, embora não soubesse como utilizá-las de maneira adequada, fato que salienta a importância da bioética para mediar conflitos, promovendo uma discussão entre especialistas e a população. Por fim, ressalta-se a necessidade de conscientizar as pessoas quanto aos impactos ambientais de suas atividades, objetivando mudar atitudes em relação ao ambiente e possibilitar um convívio mais harmônico entre os seres humanos e as diferentes espécies animais e vegetais.

Palavras-chave
Bioética; Sobrevivência; Conhecimento

Abstract

Given the current reality of excessive exploitation of natural resources, bioethics promotes an important interdisciplinary debate encompassing ethical and scientific branches. For many years, a significant industrialization process has increased the production of consumer goods and generated a consumerist mentality. The valuation of profitability and consumerism has highlighted the impacts of dangerous knowledge, such as the indiscriminate use of pesticides and genetic engineering tests. In this context, the population had access to an extraordinary amount of information, despite not knowing how to properly use it, a fact that highlights the importance of bioethics to mediate conflicts, promoting a discussion between experts and the population. Finally, the need to make people aware of the environmental impacts of their activities is stressed, aiming to change attitudes towards the environment and enabling a more harmonious coexistence between human beings and the different animal and plant species.

Keywords
Bioethics; Survivalship; Knowledge

Resumen

En el contexto actual de excesiva explotación de los recursos naturales, la bioética impulsa un importante debate interdisciplinar que abarca ramas éticas y científicas. Durante mucho tiempo, el proceso de industrialización incrementó la producción de bienes de consumo y generó una actitud consumista. La valorización de la rentabilidad y el consumismo puso en evidencia los impactos de conocimientos peligrosos, como el uso indiscriminado de plaguicidas y las pruebas de ingeniería genética. En este contexto, la población tuvo acceso a mucha información, aunque no sabía utilizarla adecuadamente, lo que destaca la importancia de la bioética para mediar en los conflictos, impulsando un debate entre los expertos y la población. Además, hay la necesidad de concienciar a las personas sobre los impactos ambientales de sus actividades para cambiar las actitudes hacia el medio ambiente y permitir una convivencia más armoniosa entre los seres humanos y las diferentes especies animales y vegetales.

Palabras clave
Bioética; Supervivencia; Conocimiento

O contexto de exploração excessiva de recursos naturais observado na sociedade moderna invoca o conceito de “conhecimento perigoso”, explorado a partir da publicação do livro Bioética: ponte para o futuro, de Van Rensselaer Potter ¹, bioquímico americano e importante pesquisador na área de oncologia que propôs uma análise interdisciplinar da ética e da ciência.

Salienta-se que a bioética brasileira se iniciou apenas na última década do século XX, sendo de origem estadunidense, e passou a refletir a respeito das limitações do conhecimento universalista para macroproblemas coletivos. Assim, manifestaram-se preocupações sobre temas que impactam a harmonia e o convívio da sociedade, bem como a respeito da questão ambiental ².

Em meio a isso, houve necessidade de abordar temáticas socioculturais sob diferentes perspectivas, analisando o impacto de ações humanas na capacidade de sobrevivência e manutenção das espécies ¹. Como exemplo desse tipo ação, pode-se citar o uso massivo de agrotóxicos na agricultura, o qual, ressalta-se, teve por consequência o aumento da produtividade agrícola. Entretanto, esse aumento foi acompanhado de impactos ambientais que modificam o habitat natural de espécies, alteram a microbiota local e contaminam águas de rios e mares, além de apresentarem impactos significativos na saúde humana ³.

Sendo assim, evidencia-se a importância de estudar a relação do aumento expressivo do conhecimento com o melhor método para usá-lo, em uma perspectiva interdisciplinar, buscando sempre a manutenção das espécies e a melhora da qualidade de vida da população como um todo. Nesse sentido, a fusão dos conhecimentos biológicos e dos valores humanos é fundamental para guiar o campo das políticas públicas e orientar as práticas humanas para um convívio mais harmônico entre as espécies e o meio ambiente.

Dessa forma, este estudo propõe uma análise fundamentada na realidade atual da sociedade, refletindo sobre o impacto de contínuas atitudes humanas norteadas por conhecimentos limitados e reflexões escassas. Salientam-se aspectos importantes da bioética “potteriana” e seu potencial para impactar o desenvolvimento das sociedades, pautando as ações humanas em valores éticos e fatos biológicos.

Assim, busca-se avaliar alguns aspectos do mundo contemporâneo a partir do pensamento de Potter. Nesse sentido, destaca-se a importância de refletir sobre as atitudes humanas e preservar a continuidade da vida, visto que isso muitas vezes é esquecido.

Método

A análise se baseou em informações científicas que evidenciam os impactos ecológicos em diversas regiões do Brasil, considerando que os dados da atualidade são significativos para gerar extrema preocupação com a continuidade das espécies e a harmonia da vida no planeta.

O estudo se deu a partir da definição da pergunta da pesquisa “como o conhecimento perigoso tem afetado os ecossistemas e o convívio humano?”. Uma vez estabelecida a questão da investigação, foram definidas as palavras-chave que iriam compor a busca nos periódicos: “bioética”, “sustentabilidade”, “sobrevivência” e “conhecimento”, em inglês e português.

Com isso, a determinação de elegibilidade das informações pesquisadas se deu por critérios específicos, como: ter no máximo 10 anos de publicação, não apresentar conflitos de interesse, ter relação direta com o objeto de estudo e com a questão norteadora e estar disponível em português e/ou inglês. Utilizou-se como embasamento da pesquisa a obra Bioética: ponte para o futuro, de Van Rensselaer Potter ¹. Então procedeu-se à análise comparativa dos dados coletados e à leitura dos textos selecionados.

Resultados e discussão

Sobrevivência pautada nos conhecimentos bioéticos

Tendo em vista a singularidade do indivíduo humano, tanto biológica quanto cultural, ressalta-se a necessidade de um sistema ético visando a manutenção de sua sobrevivência em uma civilização harmônica e sustentável. No contexto contemporâneo, observa-se o processo de fadiga decisória, em que a qualidade das escolhas feitas se perde à medida que as pessoas são submetidas a um volume muito grande de alternativas.

Essas alternativas não apenas são apresentadas em grande quantidade, mas também têm inúmeras influências externas. Como aponta Potter ¹, isso remete ao antropólogo Clifford Geertz, para quem a sobrevivência do ser humano enquanto indivíduo depende da cultura e da sociedade, que são fatores importantes para guiar suas crenças e, por consequência, suas atitudes.

A partir disso, a realidade de avanço nos meios de comunicação e a hiperconexão podem ser nocivas à saúde mental da população, acarretando sobrecarga de informações, bem como aumento da pressão social em cada atividade do indivíduo. É fato que atualmente a tecnologia é uma ferramenta muito útil, contudo ela aumentou a influência de diferentes ideias e opiniões sobre as pessoas e promoveu mudanças em seu comportamento ⁴.

Com relação a isso, Potter ¹ afirma que a partir do progresso científico – e, por consequência, do advento de conhecimentos perigosos –, a população passou mais tempo preocupada com a produtividade e perdeu a capacidade de interagir socialmente, fato muito danoso ao convívio em sociedade.

Desse modo, fica evidente a importância de moldar as ações humanas de acordo com valores e fatos biológicos, exigindo a mediação da ética para pautar as atitudes em padrões morais e sociais. Isso remete às pontes que fundamentam a bioética potteriana: entre o presente e o futuro, entre a ciência e os valores, entre a natureza e a cultura, e entre o ser humano e a natureza ⁵. Desse modo, essa linha de raciocínio busca interesses de longo alcance, de maneira interdisciplinar, a favor do processo evolutivo e tendo como principal objetivo garantir a sobrevivência e a qualidade de vida das espécies ¹.

Logo, nota-se que a humanidade necessita de sabedoria para guiar o aumento exponencial das informações disponíveis à população ⁶. Para isso, é preciso conectar conhecimento técnico e a sabedoria de vida necessária para usar esse conhecimento, que deve considerar a relação entre aspectos biológicos – relacionados a ecologia, genética e natureza química – e propor um olhar subjetivo aos aspectos culturais e valores morais. Além disso, é imprescindível levar em conta integração, preservação e extensão do campo das informações ¹.

Diante dessa preocupação, a bioética propõe uma compreensão realista do conhecimento biológico e de suas limitações, buscando orientar o campo das políticas públicas para um contexto de convivência mais harmônico ⁷.

Percurso até realidade atual

Conceito científico-filosófico de progresso

Nesse sentido, deve-se ressaltar o conceito científico-filosófico de progresso proposto por Potter ¹, que define o conhecimento como infinito e nunca absoluto, de modo que é necessário sempre buscar a ampliação da aprendizagem, a fim de evitar o conhecimento perigoso. O autor afirma que nenhum indivíduo é capaz de dominar todo o conhecimento existente e que este deveria ser difundido para todas as pessoas.

Nesse sentido, é possível diferenciar tal ideia da noção de sabedoria, representada pelo conhecimento moral. Assim, entende-se que a sabedoria é necessária para guiar a sociedade a um contexto utópico de harmonia, chamado de “ciência da sobrevivência” pelo autor ¹.

Diante do que foi explicado, destaca-se que se acreditava que o progresso estava culminando em um contexto de extrema razão e aumento exponencial no número de informações disponíveis à população. Entretanto a realidade alcançada é preocupante, marcada por conhecimentos perigosos com diversas consequências ao planeta e à natureza, gerando desordem ao ambiente, a exemplo da guerra biológica e do aumento dos estudos no campo da biologia molecular ¹.

Os avanços da ciência e da tecnologia proporcionaram o aumento da produção e disponibilidade de alimentos, essenciais para o crescimento e manutenção da vida das socie- dades. Contudo, aqueles que eram considerados avanços significativos – pesticidas e herbicidas – passaram a ser vistos como grandes inimigos da saúde humana ¹.

Diante dessa observação, evidencia-se que avanços não apenas na ciência, mas em todos os campos, provêm de ideias individuais, experimentos e inventos, de modo que ideias de um indivíduo podem ser muito úteis ao desenvolvimento humano. Por outro lado, as mesmas invenções e descobertas úteis podem ser nocivas à sobrevivência da população, como ocorreu em experimentos feitos pelo regime nazista. Ou seja, uma ideia não é necessariamente válida apenas por parecer correta por seu idealizador, pois depende da motivação, dos interesses e do uso do pensa- mento perigoso ¹.

Conceito de conhecimento perigoso

Desde o princípio, houve ampla dependência do ser humano em relação ao meio ambiente que o cercava. Mas, perante a limitação da biodisponibilidade da natureza, o homem – gradualmente – se apropriou dos recursos disponíveis, a ponto de diminuir a variedade de espécies, visto que aumentava a biodisponibilidade apenas daquelas que lhe convinham, como ocorre com alimentos, gado e produtos consumíveis ¹.

Em meio a essa realidade, propõe-se uma analogia, conforme foi feito por Norman Berrill ⁸ – biólogo inglês que viveu no século XX. Segundo ele, o homem está para o meio ambiente tal qual o câncer está para o corpo, multiplicando-se de maneira exacerbada e exigindo recursos indiscriminadamente, prejudicando assim a continuidade do sistema em que está inserido.

Agrava a situação o fato de que o conhecimento perigoso não é reconhecido como tal no momento de sua descoberta, mas somente após ter produzido consequências nocivas. Esse foi o caso da adoção de pesticidas e herbicidas, bombas atômicas, gás tóxico VX e césio-137, bem como de fármacos e outras substâncias químicas que causam dependências significativas.

Assim, o avanço do conhecimento científico e tecnológico foi caracterizado por um crescimento exponencial no número de informações relevantes. Logo, cientistas passaram a se especializar cada vez mais e tornaram-se incapazes de, individualmente, organizar seu conhecimento especializado no contexto mais amplo da ciência e da sociedade. Por isso, Potter destaca a necessidade de um debate interdisciplinar, como afirma Furnari ⁹.

Nesse sentido, vê-se a dificuldade de lidar com o conhecimento perigoso, pois busca-se um aprofundamento maior mesmo quando é sabido que o contexto ecológico do mundo já atingiu níveis possivelmente sem retorno, em uma realidade de emergência pública, caracterizada por problemáticas como a escassez de água, falta de saneamento básico e “inversão atmosférica” em muitas localidades ¹.

Logo, torna-se importante propor uma interação mais inteligente no meio, de modo conservador e responsável, a fim de corrigir erros do passado e alcançar uma realidade que hoje parece utópica, pautada em um sistema de valores comuns que represente uma obrigação com as próximas gerações ¹.

Ética médica

Diante da realidade conflituosa da atualidade, destaca-se a importância do Código de Ética Médica para regulamentar decisões complexas em que não cabem a simples concepção e ponto de vista do médico ¹⁰. Desse modo, ressaltam-se diversas situações nas quais a prática médica pode ter implicações indesejadas à saúde e aos valores individuais. Isso ocorre, por exemplo, em casos de tratamento de pacientes com dor crônica, engenharia genética, medidas extremas de suporte avançado de vida e procedimentos como o aborto.

A esse respeito, em um contexto no qual a medicina preventiva é muitas vezes negligenciada, a sociedade põe sua fé e expectativa no tratamento, e não na prevenção. Além disso, apresenta comportamentos nocivos, como alimentação inadequada e em excesso, falta de exercícios físicos e negligência da saúde mental, e é exposta a poluentes e toxinas ¹¹.

Existem ainda alguns comportamentos danosos resultantes de mudanças nos hábitos adotadas pela maior parte da população, evidenciadas pela transição epidemiológica, com queda na taxa de fecundidade e aumento da expectativa de vida. A medicina moderna propiciou o aumento da capacidade da população de ter filhos, mesmo nos casos de idade elevada. Apesar disso, a medicina possibilitou o controle efetivo da natalidade e, em muitos países, incluindo o Brasil, a taxa de natalidade caiu vertiginosamente. Ainda, grandes catástrofes, como guerras, fome e a pandemia de covid-19, impactaram o aumento exponencial da população – sendo este resultante da interferência nos índices de natalidade e mortalidade da população – e culminaram na aplicação de medidas governamentais amplamente aplicadas para o controle da explosão populacional.

É preciso refletir sobre fatores como limites aceitáveis para intervenção nesses parâmetros e quão prejudicial ao planeta pode ser essa elevada quantidade de pessoas. Salienta-se que, para Potter ¹, a explosão demográfica é um dos grandes problemas com consequências no contexto contemporâneo. Ainda, deve-se estender essa reflexão para além dos fatores médicos mencionados, relembrando também a influência do desenvolvimento tecnológico e científico e da evolução cultural aliada à mudança de comportamentos.

Consumo inconsciente: contexto atual de globalização

Em um contexto cultural, ideias podem ser entendidas como unidades básicas de informação passíveis de interpretação, mutação, recombinação e expressão ao passarem de um indivíduo a outro. Esse processo é fundamental na evolução cultural, pois é capaz de modificar o modo de pensar de muitos indivíduos. Na sociedade moderna, isso se deu pela subversão de valores, aliada ao processo de globalização.

Esse processo se desenvolveu juntamente com a urbanização exacerbada e a qualquer custo, caracterizada pelo aumento exponencial da disponibilidade de informações e maior produtividade industrial. Nessa perspectiva, a população adotou uma mentalidade de consumo nunca vista antes, focando o progresso em relação a bens materiais e avanço tecnológico, ao passo que deixou em segundo plano a necessidade de cuidar da natureza, meio de que dependemos para a sobrevivência. Assim, houve adesão gradual a um pensamento materialista no qual mais é melhor e, dessa forma, observa-se a produtividade exacerbada voltada ao consumo imediato, sem medir as possíveis consequências para a sobrevivência a longo prazo ¹.

Papel da bioética: importância da sustentabilidade

A humanidade vive em um meio em constante transformação, sobrevivendo graças a sua capacidade de se adaptar – e apenas se de fato se adaptar. A adaptação representa um aprendizado e um novo modo de vida, e deve ser direcionada a um objetivo comum de toda a população: a sobrevivência das espécies e a qualidade de vida das próximas gerações. Com isso, torna-se possível um novo modelo de sustentabilidade, com práticas fundamentadas no essencialismo e na preservação dos bens ¹.

Além disso, é preciso pensar na realidade e no tipo de meio em que se quer viver, como se existisse essa escolha. Diante de tal esclarecimento, busca-se entender quais escolhas encaminham a realidade ao ambiente considerado ideal para a humanidade e colocar em prática tais atitudes, a fim de alcançar aquilo que foi idealizado.

O conhecimento conduz ao poder, produzindo novas dimensões de ordem e desordem – as quais são fundamentais para as mentes humanas, que estão sempre organizando fatos e recolhendo novas combinações de informação –, alterando o ambiente e gerando consequências práticas na vida dos indivíduos ¹. Diante das informações apresentadas, o papel da ciência é promover o debate e a troca de conhecimentos, visando sempre a melhores perspectivas para as sociedades, a fim de encaminhar a população a um contexto de maior clareza e harmonia.

Considerações finais

É evidente a importância de aliar a ciência à ética, e aplicar esses conceitos no cotidiano dos indivíduos, devendo-se relembrar o processo pelo qual as civilizações passaram para chegar à realidade de avanço tecnológico e materialismo da atualidade. Esse cenário é caracterizado pelo conhecimento perigoso, que tem consequências devastadoras aos ecossistemas.

Por fim, tendo em vista a sobrevivência e manutenção das espécies como principais objetivos, busca-se a sabedoria para usar o conhecimento de forma adequada, tendo como foco retardar os danos causados à natureza e adaptar a mentalidade de consumo e cuidado da população. Assim, gradualmente a humanidade se aproximaria da utopia de uma sobrevivência garantida, com qualidade de vida à população e sustentabilidade dos bens naturais.

Referências

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  14 Jun 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  03 Jul 2021
• Revisado
  20 Out 2023
• Aceito
  09 Jan 2023