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Percepção da morte para médicos e alunos de medicina

Resumo

A carga psicoemocional gerada com a morte de pacientes é uma das questões mais difíceis de serem enfrentadas na medicina. Este levantamento de dados, de caráter descritivo e abordagem quantitativa, teve como objetivo principal analisar a atitude de médicos e a percepção de estudantes de medicina em relação ao fim da vida. Os dados foram organizados em duas categorias: percepção dos entrevistados quanto à morte e influência da experiência médica para superar o óbito de enfermos. Os resultados mostram que os discentes se sentem despreparados para enfrentar essa realidade, e a vivência profissional é o principal fator de compreensão dos médicos sobre o tema. Conclui-se que a tanatologia e seus desdobramentos são lacuna na formação em medicina, tornando a morte questão crítica e dolorosa da profissão. Aprovação CEP-Fadip CAAE 68401717.6.0000.8063

Tanatologia; Educação médica; Atitude frente à morte; Bioética

Abstract

The psycho-emotional pressure generated with the death of a patient is one of the most difficult issues to be faced in medicine. This survey aims to analyze how physicians and medical students perceive the end of life. The study was characterized as a data survey, with a descriptive and quantitative approach. The data were organized into two categories for analysis: perception of death; and the influence of the medical experience in facing patient death. The results show that students feel unprepared to face this reality and that the professional experience is the main modifying factor of the doctors’ understanding of the death. It is concluded that thanatology and its unfoldings are part of an academic gap in medicine, and the confrontation of death is a painful issue for professionals. Aprovação CEP-Fadip CAAE 68401717.6.0000.8063

Thanatology; Education, Medical; Attitude to death; Bioethics

Resumen

La carga psicoemocional generada por la muerte de pacientes es una de las cuestiones más difíciles a enfrentar en la medicina. Esta recolección de datos, de carácter descriptivo y de abordaje cuantitativo, tuvo como objetivo principal analizar la actitud de médicos y la percepción de estudiantes de medicina en relación con el fin de la vida. Los datos se organizaron en dos categorías: percepción de los entrevistados respecto de la muerte e influencia de la experiencia médica para superar la muerte de pacientes. Los resultados muestran que los estudiantes no se sienten preparados para enfrentar esa realidad, y la vivencia profesional es el principal factor de comprensión de los médicos sobre el tema. Se concluye que la tanatología y sus desdoblamientos son una laguna en la formación en medicina, tornando a la muerte una cuestión crítica y dolorosa de la profesión. Aprovação CEP-Fadip CAAE 68401717.6.0000.8063

Tanatología; Educación médica; Actitud frente a la muerte; Bioética

Desde a Antiguidade, muitas pessoas veem a medicina sob a perspectiva do mito da infalibilidade, segundo o qual a morte de pacientes representa sinônimo de fracasso profissional 11. Stinghen MS, Salamoni M, Rubianne S, Sanches LC. Morte, sinônimo de fracasso? In: Anais do II Encontro de Bioética do Paraná; 4-6 nov 2009; Curitiba. Curitiba: Champanhat; 2009.,22. Amaral MXG, Achette D, Barbosa LNF, Bruscatto WL, Kavabata NK. Reações emocionais do médico residente frente ao paciente em cuidados paliativos. Rev SBPH [Internet]. 2008 [acesso 22 set 2017];11(1):61-87. Disponível: https://bit.ly/2MGLEWN
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. Além disso, o cenário atual mostra que o suicídio entre médicos em formação e profissionais no mercado de trabalho é maior, quando comparado a outras profissões 33. Santa ND, Cantilino A. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina: revisão de literatura. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2016 [acesso 20 out 2017];40(4):772-80. DOI: 10.1590/1981-52712015v40n4e00262015. O médico lida com a morte diariamente, estando sujeito a pressões psicoemocionais constantes.

O despreparo e a dificuldade para conviver com sentimentos dos pacientes, principalmente aqueles que necessitam de cuidados paliativos, somados a sobrecarga emocional da profissão, excesso de novas informações diárias, longas horas de trabalho e privações constantes de sono aumentam ainda mais o sofrimento mental e interferem na qualidade da prática clínica e na relação entre médicos, pacientes e familiares 33. Santa ND, Cantilino A. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina: revisão de literatura. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2016 [acesso 20 out 2017];40(4):772-80. DOI: 10.1590/1981-52712015v40n4e00262015

4. Dantas NDSM. Ideação suicída e empatia: um estudo correlacional em estudantes de medicina de uma universidade pública [dissertação] [Internet]. Recife: Universidade Federal do Pernambuco; 2015 [acesso 24 set 2017]. Disponível: https://bit.ly/2IFffdX
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-55. Myers MF, Dickstein LJ. Psychiatrists living with a mental illness. In: 165th Annual Meeting of the American Psychiatric Association [Internet]; 5-9 maio 2012; Philadelphia. Arlington: APA; 2012. Workshop “Treating Medical Students and Physicians”..

O processo de formação médica no país, durante muito tempo, não incluiu a preparação dos discentes para o enfrentamento da morte ou a abordagem de temas relacionados à perda de seus pacientes. Além disso, quando esse tema era abordado, as instituições, de certa forma, estimulavam uma busca pela impessoalidade na relação médico-paciente e esses profissionais, por sua vez, não desenvolviam, com êxito, mecanismos para lidar e superar essas perdas 66. Silva GSN, Ayres JRCM. O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2010 [acesso 24 set 2017];34(4):487-96. DOI: 10.1590/S0100-55022010000400003

7. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de medicina. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2011 [acesso 24 out 2017];35(1):37-43. Disponível: https://bit.ly/26lalIQ
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-88. Santos MA, Aoki FCOS, Oliveira-Cardoso ÉA. Significado da morte para médicos frente à situação de terminalidade de pacientes submetidos ao transplante de medula óssea. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [acesso 20 out 2017];18(9):2625-34. Disponível: https://bit.ly/2Ww9PHi
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.

Com a publicação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de medicina em 2014, há perspectiva de mudanças. O documento preconiza aos discentes extenso contato com ambientes de prática desde as séries iniciais e ao longo do curso de graduação de medicina, a partir do conceito ampliado de saúde, considerando que todos os cenários que produzem saúde são ambientes relevantes de aprendizagem 99. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 23 jun 2014 [acesso 22 set 2017]. p. 12. Disponível: https://bit.ly/2Kf1rds
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.

Alguns fatores, como as raízes sociais da cultura ocidental, são considerados estímulos à reação primária de negar a morte. Crenças e experiências pessoais de cada médico também podem influenciar essa postura no cotidiano 1010. Nascimento CAD, Silva AB, Silva MC, Pereira MHM. A significação do óbito hospitalar para enfermeiros e médicos. Rev Rene [Internet]. 2006 [acesso 20 out 2017];7(1):52-60. Disponível: https://bit.ly/2WF3Zna
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. Muito se discute sobre distanciamento dos profissionais de saúde em relação à perda de pacientes, sendo difícil distinguir naturalização e “frieza”, mas fica claro que o envolvimento afetivo imoderado com pacientes aumenta a carga emocional e a pressão psicológica intrínseca à profissão, resultando em danos biopsicossociais graves 1111. Cano SD. O profissional que está no fio: entre a vida e a morte: vivências, concepções e estratégias de enfrentamento psicológico de médicos oncologistas [dissertação] [Internet]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008 [acesso 20 out 2017]. Disponível: https://bit.ly/2WCpxpc
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12. Carpena LAB. Morte versus sentimentos: uma realidade no mundo dos acadêmicos de medicina. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2000 [acesso 24 set 2017];21(1):100-22. Disponível: https://bit.ly/2F7PaTZ
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-1313. Meleiro AMAS. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. Rev Ass Med Brasil [Internet]. 1998 [acesso 20 out 2017];44(2):135-40. Disponível: https://bit.ly/2ZmhLfU
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.

Entender como estudantes e profissionais enfrentam e enxergam o fim da vida é importante para evitar esses danos psicológicos 1414. Frizzo K, Bertolini G, Caron R, Steffani JA, Bonamigo EL. Percepção dos acadêmicos de medicina sobre cuidados paliativos de pacientes oncológicos terminais. Bioethikos [Internet]. 2013 [acesso 20 out 2017];7(4):367-75. Disponível: https://bit.ly/2IBmW5a
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,1515. Sadala MLA, Silva MP. Cuidar de pacientes em fase terminal: a experiência de alunos de medicina. Interface Comun Saúde Educ [Internet]. 2008 [acesso 20 out 2017];12(24):7-21. Disponível: https://bit.ly/2KM4Ks0
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, e traçar o perfil dos futuros médicos e correlacioná-lo com médicos no mercado atual pode fornecer razoáveis subsídios para contrastar a formação médica oferecida no país após as DCN de 2014 1616. Conselho Nacional de Educação. Op. cit. com o ensino tradicional.

Diante do exposto, este estudo objetiva analisar a atitude de médicos e a percepção de alunos de medicina em relação à morte. Acredita-se que essa investigação permitirá delinear provável evolução do comportamento desses sujeitos perante o fim da vida ao longo da formação acadêmica e da prática médica.

Método

A pesquisa pode ser definida como transversal, descritiva e de abordagem quantitativa. A avaliação foi feita por meio de formulário semiestruturado com 21 questões fechadas e uma aberta, aplicado entre outubro e dezembro de 2017. O questionário foi elaborado com base no estudo de Albertoni e colaboradores 1717. Albertoni LI, Santos R Jr, Cury PM, Pereira PSF, Miyazaki MCOS. Análise qualitativa do impacto da morte sobre os estudantes de medicina da faculdade de medicina de São José do Rio Preto. Arq Ciênc Saúde [Internet]. 2013 [acesso 20 out 2017];20(2):49-52. Disponível: https://bit.ly/2XGwqSN
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, que aborda relações pessoais e acadêmicas diante da morte, estratégias de enfrentamento e o preparo para lidar com essa situação.

A amostra foi estabelecida por conveniência, aplicando-se o formulário a estudantes de medicina com idade igual ou superior a 18 anos, matriculados no segundo, terceiro e quarto períodos do curso, médicos vinculados à Estratégia Saúde da Família (ESF) e a ambulatórios do Sistema Único de Saúde (SUS) e médicos de um hospital particular.

Entre as especialidades dos participantes estão clínica médica, cardiologia, pediatria, pneumologia, urologia, cirurgia geral, patologia, nefrologia e psiquiatria. No total participaram 51 alunos e 42 profissionais, e um destes últimos optou por não responder o formulário. O estudo considerou apenas aqueles que entenderam o objetivo do trabalho e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

As questões do formulário foram organizadas em duas categorias de resposta: percepção dos entrevistados em relação à morte e influência da experiência médica para enfrentar o óbito do paciente. Os dados foram analisados por estatística descritiva, utilizando o software Excel, e o teste qui-quadrado serviu para comparar frequências de resposta entre grupos, por meio do Epi Info versão 7.2.2.1. Para todos os testes estatísticos considerou-se nível de significância de 0,05. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Faculdade Dinâmica Vale do Piranga.

Resultados

Na primeira categoria, percepção dos entrevistados acerca da morte, a avaliação da natureza das questões permitiu encontrar quatro temas: 1) contato com a morte; 2) preparo para lidar com ela; 3) comportamento em relação a familiares de enfermos em fase terminal; e 4) influência das experiências pessoais na vida profissional.

A primeira questão indica a frequência de experiências pessoais ou profissionais com a morte. Os médicos foram questionados se já haviam cuidado de pacientes que faleceram ou que estavam em fase terminal; 40 deles (98%) confirmaram ter passado por alguma das situações descritas (χ22. Amaral MXG, Achette D, Barbosa LNF, Bruscatto WL, Kavabata NK. Reações emocionais do médico residente frente ao paciente em cuidados paliativos. Rev SBPH [Internet]. 2008 [acesso 22 set 2017];11(1):61-87. Disponível: https://bit.ly/2MGLEWN
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=11,05, p<0,05). Quando questionados sobre o contato com o fim da vida, seja em experiências pessoais ou ambientes de prática oferecidos durante a graduação, 35 estudantes (69%) confirmaram e 16 (31%) disseram não ter passado por esse tipo de vivência (χ22. Amaral MXG, Achette D, Barbosa LNF, Bruscatto WL, Kavabata NK. Reações emocionais do médico residente frente ao paciente em cuidados paliativos. Rev SBPH [Internet]. 2008 [acesso 22 set 2017];11(1):61-87. Disponível: https://bit.ly/2MGLEWN
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=11,05, p<0,05).

A experiência profissional é refletida no resultado sobre o preparo para lidar com o óbito de enfermos. A maior parte dos médicos (75%) sente-se preparada para lidar com essa situação (χ22. Amaral MXG, Achette D, Barbosa LNF, Bruscatto WL, Kavabata NK. Reações emocionais do médico residente frente ao paciente em cuidados paliativos. Rev SBPH [Internet]. 2008 [acesso 22 set 2017];11(1):61-87. Disponível: https://bit.ly/2MGLEWN
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=33,09 p<0,05), enquanto apenas 15% dos discentes consideram-se prontos para atuar nesse contexto. Cenário diferente foi observado na avaliação do comportamento perante a família do paciente que faleceu ou que está em fase terminal (Figura 1). Basicamente metade dos profissionais e estudantes sente-se despreparada para enfrentar a esfera familiar da morte dos doentes.

Figura 1
Comparação das respostas dos médicos e dos estudantes de medicina sobre o comportamento perante familiares dos pacientes em fase terminal

As experiências pessoais foram importantes para os estudantes superarem a morte de enfermos – 92% consideraram que esse fator pode influenciar total ou parcialmente a vida profissional. Já os médicos responderam de forma variada, não demonstrando nenhum padrão (Figura 2).

Figura 2
Comparação das respostas dos médicos e dos estudantes de medicina sobre a influência de experiências pessoais na vida profissional

As respostas sobre a influência da experiência médica no modo de compreender melhor a morte do enfermo estão dispostas no Quadro 1. A maior parte dos profissionais (76%) relatou ter vivenciado perdas tanto de pacientes jovens quanto de idosos (Quadro 1). Aproximadamente 80% deles consideraram o óbito dos jovens mais marcante, conforme pergunta aberta do questionário (dado não representado no Quadro 1), e 62% assumiram contato apenas profissional com enfermos que acabaram falecendo.

Quadro 1
Respostas sobre experiência dos profissionais com pacientes em estado terminal*

Sobre como se sentiram com a morte dessas pessoas, a maioria relatou tristeza (48%) e naturalidade (31%). Essa segunda postura não teve relação alguma com o tempo de formação acadêmica, ou seja, tanto médicos formados há 39 anos como os recém-formados viam a morte como algo natural.

O mesmo padrão foi observado para as especialidades. Entre os que afirmaram se comportar com naturalidade diante da morte de pacientes estão especialistas em pediatria, psiquiatria, clínica médica, pneumologia e cirurgia geral. Alguns profissionais ainda relataram medo (2%) e culpa (5%), deixando evidente que não são sentimentos predominantes nesses casos.

Para metade dos médicos entrevistados, lidar com a morte dos enfermos ficou mais fácil ao longo dos anos, e para 26% a situação se tornou natural. Os resultados ainda mostram a necessidade de compartilhar os sentimentos causados pela morte de pacientes: 81% dos médicos assumiram conversar com alguém sobre o assunto, seja com colegas de trabalho ou familiares (Quadro 1).

Em geral, os profissionais têm perspectivas individuais sobre como lidar com a perda de pessoas hospitalizadas, meditando a respeito ou tentando tratar a situação com naturalidade, como mostram os depoimentos: “Sinto tristeza com a perda do paciente, entretanto tento encarar com naturalidade. Não fico indiferente, entretanto não me deprimo” (M27, 25 anos, sexo feminino); “Creio que a morte é algo natural, fazemos de tudo para ela não chegar, porém é inevitável em alguns casos” (M42, idade não informada, sexo feminino).

Alguns profissionais destacam ainda a ética no processo de morte do paciente e a importância de dar apoio aos familiares: “Ter a certeza que o que precisava ser feito foi realizado. O paciente pode ir a óbito, mas sempre com dignidade” (M41, 35 anos, sexo masculino); “Sempre com naturalidade e me colocando à disposição para familiares” (M12, 32 anos, sexo masculino); “Analisando e explicando para os familiares as circunstâncias do óbito” (M20, 63 anos, sexo masculino).

Na opinião de 76% dos médicos entrevistados, o tema do enfrentamento da morte de pacientes deve ser abordado ao longo do curso; para 12%, no final do curso; e 7% consideram o início da graduação o melhor momento para tratar do assunto. Outros 2% relataram não ver necessidade de disciplinas que abordem o tópico no curso (Quadro 1).

Discussão

As representações sociais de saúde e doença manifestam vigorosamente as concepções da sociedade. O profissional médico situa-se na confluência de três lógicas contraditórias: a humanitária, a racional (de interesse científico) e a da rentabilidade financeira 1818. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014. p. 407.. Soma-se a esses conflitos o estado emocional do médico quando a morte do enfermo é a cena principal de atuação.

A discussão desta pesquisa foi norteada pelo modo como médicos e alunos do curso de medicina compreendem a morte. Esperava-se encontrar entre profissionais e estudantes avaliações diferentes sobre o fim da vida. De fato, as percepções de cada grupo são diversificadas, o que permite delinear possível evolução no enfrentamento da morte à medida que se adquire experiência profissional. Essa constatação ressalta a lacuna sobre o tema nos currículos médicos, que pode contribuir para desdobramentos psicoemocionais, especialmente no início da prática médica.

A morte se destaca no contexto ético em diversos aspectos. São vedadas ao médico diversas condutas e decisões diante da morte dos enfermos, ao mesmo tempo que têm que se posicionar e tomar medidas necessárias caso a vida do paciente esteja em risco. O Código de Ética Médica (CEM) define que, na ausência de motivos justificáveis para abandonar o caso, o médico deve permanecer ao lado de seu paciente mesmo em cenários de doenças incuráveis ou de necessidade de cuidados paliativos 1919. Conselho Federal de Medicina. Código de ética médica: Resolução CFM nº 1.931/09 [Internet]. Brasília: CFM; 2010 [acesso 23 mar 2018]. Disponível: https://bit.ly/2gyRqtD
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.

O paradoxo entre eticamente correto e conduta indiferente é o principal embate do médico, que muitas vezes se encontra despreparado emocionalmente. Para atender aos preceitos éticos, muitos profissionais adotam certo distanciamento psicológico como forma de proteção diante da perda dos pacientes 2020. Rosa DS, Couto SA. O enfrentamento emocional do profissional de enfermagem na assistência ao paciente no processo da terminalidade da vida. REC [Internet]. 2015 [acesso 27 set 2017];4(1):92-104. Disponível: https://bit.ly/2X97SoC
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. O envolvimento estritamente profissional é reflexo dessa postura, conforme encontrado neste estudo e discutido em outros trabalhos 2121. Mello AAM, Silva LC. A estranheza do médico frente à morte: lidando com a angústia da condição humana. Rev Abordagem Gestált [Internet]. 2012 [acesso 17 fev 2019];18(1):52-60. Disponível: https://bit.ly/2ZjDR2L
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.

Muitas vezes o recém-formado em medicina chega ao ambiente de trabalho sem nunca ter se deparado com situações (teóricas ou práticas) que demandam habilidades pessoais e psicológicas para lidar com essas perdas 2222. Sartori AV, Battistel ALHT. A abordagem da morte na formação de profissionais e acadêmicos da enfermagem, medicina e terapia ocupacional. Cad Bras Ter Ocup [Internet]. 2017 [acesso 24 set 2017];25(3):497-508. Disponível: https://bit.ly/2IBC6Y7
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. Isso pôde ser comprovado durante entrevista com uma aluna que, no primeiro ano de residência, ainda não havia lidado diretamente com a morte de paciente, e por isso sentia-se insegura e despreparada.

Em longo prazo, a falta de diálogo sobre o tema durante a graduação cria vulnerabilidade nos estudantes, a ponto de não encontrarem, depois de formados, maneiras favoráveis e racionais de superar o fracasso ou a tristeza. Segundo vários estudos 33. Santa ND, Cantilino A. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina: revisão de literatura. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2016 [acesso 20 out 2017];40(4):772-80. DOI: 10.1590/1981-52712015v40n4e00262015,55. Myers MF, Dickstein LJ. Psychiatrists living with a mental illness. In: 165th Annual Meeting of the American Psychiatric Association [Internet]; 5-9 maio 2012; Philadelphia. Arlington: APA; 2012. Workshop “Treating Medical Students and Physicians”.,1111. Cano SD. O profissional que está no fio: entre a vida e a morte: vivências, concepções e estratégias de enfrentamento psicológico de médicos oncologistas [dissertação] [Internet]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2008 [acesso 20 out 2017]. Disponível: https://bit.ly/2WCpxpc
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,1313. Meleiro AMAS. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. Rev Ass Med Brasil [Internet]. 1998 [acesso 20 out 2017];44(2):135-40. Disponível: https://bit.ly/2ZmhLfU
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, parte dos profissionais busca refúgio em substâncias entorpecentes, como álcool, ou guarda para si a ansiedade vivida nesses momentos, o que acaba causando adoecimento mental e refletindo diretamente em suas habilidades clínicas.

Apesar do despreparo dos estudantes, algumas pesquisas defendem que não se trata apenas de incluir o tema como disciplina no currículo, mas de mudar a representação da morte e reconhecer a existência do sofrimento na realidade médica, desvinculando o óbito do paciente da ideia de fracasso médico 2323. Monteiro DT, Reis CGC, Quintana AM, Mendes JMR. Morte: o difícil desfecho a ser comunicado pelos médicos. Estud Pesqui Psicol [Internet]. 2015 [acesso 17 fev 2019];15(2):547-67. Disponível: https://bit.ly/2MJZ6tj
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.

A comparação das percepções de médicos e estudantes evidencia que a experiência profissional influencia diretamente a forma como o indivíduo dá significado ao fim da vida. Apesar de a maioria confirmar que passou por essa situação, os profissionais relataram encará-la com maior naturalidade, definindo o tempo como principal atenuador do incômodo nesses casos. Já os estudantes responderam com estranheza à possibilidade de perder pacientes. Quando se trata da esfera familiar, tanto acadêmicos quanto profissionais sentem a mesma dificuldade, pois comunicar notícias ruins também é questão bastante delicada nesse processo 2424. Tamada JKT, Dalaneze AS, Bonini LMM, Melo TRC. Relatos de médicos sobre a experiência do processo de morrer e a morte de seus pacientes. Rev Med [Internet]. 2017 [acesso 17 fev 2019];96(2):81-7. Disponível: https://bit.ly/2XGAAtT
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Para os graduandos, seu aprendizado e suas experiências pessoais vão influenciar a rotina profissional. Na realidade, o que se observa, segundo os médicos, é o distanciamento entre vida pessoal e postura no ambiente de trabalho. Embora fosse unânime entre os alunos a certeza de que a faculdade deveria incluir disciplinas sobre essas questões, a experiência dos profissionais trouxe a concepção de que o preparo para lidar com a morte deve ser trabalhado durante toda a graduação, e não fragmentado ou dissociado da prática, como ocorre em muitas escolas médicas no Brasil.

As novas DCN do curso de medicina 1616. Conselho Nacional de Educação. Op. cit. pretendem mudar o ensino médico oferecido no país, incluindo no currículo disciplinas de cunho humanístico e inserindo alunos em ambientes de prática desde o primeiro período. Apesar de não sugerir disciplina específica sobre o tema, essas diretrizes recomendam a participação dos estudantes em diversos cenários práticos, visando propiciar experiências que tangenciem situações de insucesso, a fim de preparar os discentes para a rotina da profissão. Existe significativa diferença entre o atual ensino preconizado no país e os métodos tradicionais de formação. Acredita-se que, com o passar dos anos e a implementação das DCN, o perfil dos profissionais tenderá a assumir nova postura, com características da formação integral e humanista.

Considerações finais

Conclui-se que o preparo para entender melhor a morte ainda é lacuna na educação médica. Assim, profissionais de saúde aprendem a lidar com pacientes terminais na prática, o que muitas vezes gera consequências psicoemocionais graves, interferindo na prática médica e na relação entre médico, enfermo e família. Portanto, este estudo mostrou a necessidade de encurtar a distância entre teoria e prática, bem como a urgência de inserir no currículo disciplinas como tanatologia, desde o início do curso.

Referências

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  • 13
    Meleiro AMAS. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. Rev Ass Med Brasil [Internet]. 1998 [acesso 20 out 2017];44(2):135-40. Disponível: https://bit.ly/2ZmhLfU
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  • 14
    Frizzo K, Bertolini G, Caron R, Steffani JA, Bonamigo EL. Percepção dos acadêmicos de medicina sobre cuidados paliativos de pacientes oncológicos terminais. Bioethikos [Internet]. 2013 [acesso 20 out 2017];7(4):367-75. Disponível: https://bit.ly/2IBmW5a
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    Conselho Nacional de Educação. Op. cit.
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    Albertoni LI, Santos R Jr, Cury PM, Pereira PSF, Miyazaki MCOS. Análise qualitativa do impacto da morte sobre os estudantes de medicina da faculdade de medicina de São José do Rio Preto. Arq Ciênc Saúde [Internet]. 2013 [acesso 20 out 2017];20(2):49-52. Disponível: https://bit.ly/2XGwqSN
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    Mello AAM, Silva LC. A estranheza do médico frente à morte: lidando com a angústia da condição humana. Rev Abordagem Gestált [Internet]. 2012 [acesso 17 fev 2019];18(1):52-60. Disponível: https://bit.ly/2ZjDR2L
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    Sartori AV, Battistel ALHT. A abordagem da morte na formação de profissionais e acadêmicos da enfermagem, medicina e terapia ocupacional. Cad Bras Ter Ocup [Internet]. 2017 [acesso 24 set 2017];25(3):497-508. Disponível: https://bit.ly/2IBC6Y7
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    Tamada JKT, Dalaneze AS, Bonini LMM, Melo TRC. Relatos de médicos sobre a experiência do processo de morrer e a morte de seus pacientes. Rev Med [Internet]. 2017 [acesso 17 fev 2019];96(2):81-7. Disponível: https://bit.ly/2XGAAtT
    » https://bit.ly/2XGAAtT

Anexo

Questionário da pesquisa

I - Dados de identificação

Idade: ______________________

Sexo: ( ) Masculino ( ) Feminino

Situação acadêmica:

Estudante de medicina* ( ) Período: ________

Médico ( ) Ano de formação: ____________

Se possui alguma especialização, informe qual: ____________________

* Se você marcou a opção “Estudante de medicina”, responda da questão 16 em diante.

Médico em exercício da profissão

II - Questões sobre a percepção da morte

1. Você já teve contato com pacientes muito doentes ou em fase terminal?

( ) Sim

( ) Não

( ) Superficialmente

1.1 Estes pacientes eram:

( ) Jovens

( ) Idosos

( ) Ambos*

* Se você marcou a opção “Ambos”, qual paciente teve mais impacto para você?

_______________________________________

2. Na sua opinião, qual seu nível de envolvimento com esses pacientes?

( ) Próximo

( ) Profissional

( ) Nenhum

3. Você era o médico/plantonista responsável por esses pacientes?

( ) Sim

( ) Não

4. Você tratava o paciente pelo nome?

( ) Sim

( ) Não

( ) Às vezes

5. Como você se sentiu emocionalmente sobre a prestação de cuidados para este paciente terminal?

( ) Preparado

( ) Despreparado

( ) Não sei responder

6. Como você reagiu/lidou quando este paciente morreu?

( ) Normalmente

( ) Tristeza

( ) Medo

( ) Culpa

( ) Não sei responder

( ) Outro(s) _________________________

7. Na sua opinião, com o passar dos anos, lidar com a morte ficou mais fácil para você?

( ) Sim, ficou mais fácil

( ) Sim, se tornou natural

( ) Não, ficou mais difícil

( ) Não, não houve mudanças

8. Você fala/falou com alguém sobre a morte dos seus pacientes?

( ) Sim

( ) Não

*Se você marcou a opção “sim”, responda à questão 8.1.

*Se você marcou a opção “não”, responda à questão 8.2.

8.1. Com quem você fala/falou sobre a morte dos seus pacientes?

( ) Colegas de profissão

( ) Cônjuge ou outros familiares

( ) Amigos

( ) Outros

8.2. Se você não falou com ninguém sobre sua experiência, qual foi a motivação?

( ) Insegurança

( ) Medo

( ) Indiferença

( ) Não sei responder

( ) Outro(s) _________

9. Você acha que seria útil falar sobre essas experiências?

( ) Sim

( ) Não

10. Que formas você utiliza para lidar com a morte dos seus pacientes? (Se você não utiliza nenhuma estratégia, assinale um x no espaço reservado para a resposta)

___________________________________________________________________________________________________

11. Como os membros da sua equipe respondem à morte de pacientes?

( ) Com naturalidade

( ) Com tristeza

( ) Com medo

( ) Com culpa

( ) Com indiferença

( ) Não sei responder

12. Você se sente confortável para dar uma notícia de morte à família de um paciente?

( ) Sim, parcialmente

( ) Sim, totalmente

( ) Não

( ) Não sei responder

13. Alguma experiência de vida pessoal com a morte influenciou na experiência com os pacientes?

( ) Sim, parcialmente

( ) Sim, totalmente

( ) Não influenciou

14. Durante seu curso, você teve/tem algum preparo teórico, individual ou prático que abordasse o enfrentamento da morte?

Individual: ( ) Sim ( ) Não ( ) Superficialmente

Teórico: ( ) Sim ( ) Não ( ) Superficialmente

Prático: ( ) Sim ( ) Não ( ) Superficialmente

15. Na sua opinião, em que momento do curso deve ser ministrada uma disciplina abordando o modo de lidar/enfrentar problemas relacionados à morte?

( ) Início do curso

( ) Ao longo do curso

( ) Final do curso

( ) Não vejo necessidade de disciplinas assim

Médico em processo de formação

II - Questões sobre a percepção da morte

16. Você já teve alguma experiência com a morte?

( ) Sim

( ) Não

17. Como você se sente, emocionalmente, sobre a possibilidade de prestar cuidados para pacientes em fase terminal?

( ) Preparado

( ) Despreparado

( ) Não sei responder

18. Você acha que se sentiria confortável em dar uma notícia de morte à família de um paciente?

( ) Sim, parcialmente

( ) Sim, totalmente

( ) Não

( ) Não sei responder

19. Você acha que a experiência pessoal vai te influenciar na forma como você irá lidar com seus pacientes em fase terminal? ( ) Sim, parcialmente

( ) Sim, totalmente

( ) Não

( ) Não sei responder

20. Para sua formação como médico, comparada às outras disciplinas, como você avalia a importância da abordagem sobre como lidar com a morte de pacientes?

( ) Grande relevância

( ) Média relevância

( ) Pouca relevância

( ) Nenhuma relevância

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    5 Ago 2018
  • Revisado
    21 Fev 2019
  • Aceito
    25 Mar 2019
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