Resumo
A adequação terapêutica é definida como uma decisão médica compartilhada, com pacientes e familiares, que busca ajustar recursos terapêuticos e diagnósticos adequados a cada plano de cuidados. Este artigo objetiva apresentar um protocolo sobre adequação terapêutica implementado em um hospital universitário. Tal protocolo visa nortear práticas de profissionais da saúde sob a luz dos princípios bioéticos, legais e clínicos pertinentes a cada caso. Conclui-se que o protocolo pode auxiliar nas decisões de abstenção ou suspensão de determinado tratamento de pacientes com doença grave, progressiva e irreversível.
Cuidados paliativos; Tomada de decisão compartilhada; Protocolos; Bioética
Abstract
Therapeutic adequacy is defined as a medical decision shared with patients and family members and that seeks to adjust therapeutic and diagnostic resources appropriate to each care plan. This article aims to present a protocol on therapeutic adequacy implemented in a university hospital. This protocol aims to guide practices of health professionals in the light of the bioethical, legal and clinical principles relevant to each case. It is concluded that the protocol can assist in the decisions to abstain or suspend certain treatment procedures of patients with severe, progressive and irreversible diseases.
Palliative care; Decision making, shared; Protocols; Bioethics
Resumen
La adecuación terapéutica se define como una decisión médica, compartida con pacientes y familiares, que busca ajustar los recursos terapéuticos y diagnósticos a cada plan de cuidado. Este artículo tiene como objetivo presentar un protocolo de adecuación terapéutica desarrollado en un hospital universitario. El protocolo buscó orientar las prácticas de los profesionales de la salud a la luz de los principios bioéticos, legales y clínicos pertinentes a cada caso. Se concluye que el protocolo puede auxiliar en las decisiones de abstención o suspensión de un tratamiento en pacientes con enfermedad grave, progresiva e irreversible.
Cuidados paliativos; Toma de decisiones conjunta; Protocolos; Bioética
O termo “cuidados paliativos” designa a abordagem que promove qualidade de vida a pacientes que convivem com doenças que ameaçam a continuidade da vida, por meio da prevenção e controle do sofrimento 1 . São imprescindíveis o reconhecimento precoce, avaliação e cuidado da dor e demais situações que promovam o sofrimento físico, espiritual e/ou psicossocial, pois nessa situação o principal ponto norteador não é a cura da doença, mas a atenção individualizada e integral ao paciente e sua família. O trabalho multiprofissional é fundamental para atingir excelência no tratamento 2 .
Com a progressão da doença, o tratamento curativo diminui seu impacto, elevando o potencial paliativo 3 . Desse modo, medidas sustentadoras de vida – reanimação cardiopulmonar, terapia substitutiva renal, drogas vasoativas, ventilação mecânica e alimentação artificial – podem equivaler à distanásia, gerando sofrimento mediante ações inadequadas de prolongamento artificial da vida. Sendo assim, considerações éticas são essenciais, vislumbrando os conceitos centrais do principialismo – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça –, que devem nortear práticas de profissionais da saúde, denotando a necessidade de aperfeiçoar conceitos como a adequação terapêutica (AT) 4 , 5 .
Entende-se por AT a decisão de abstenção (não implementação) ou suspensão (retirada) de determinado tratamento considerado desproporcional porque, perante um quadro clínico de final de vida ou irreversível, tem maior probabilidade de causar dano do que trazer benefício ao doente 6 - 8 . Nesses casos mantêm-se as medidas que garantam bem-estar físico e psicológico, o que equivale à ortotanásia 9 , 10 . Ortotanásia é um termo de origem grega que significa “morte correta”, ou seja, a morte que não é postergada ou antecipada, em que foram realizados os cuidados e tratamentos adequados sem futilidade terapêutica 11 .
Assim, a AT pode ser considerada uma conduta médica restritiva, visto que limita o uso de certos recursos terapêuticos, otimizando a prestação de cuidado com ênfase no alívio de sofrimento do paciente e seus familiares no processo de morrer. Assim distingue-se da distanásia e da eutanásia, nas quais há intenção de meramente prolongar ou acelerar o processo de morte, respectivamente 9 , 12 .
Cabe salientar que, juridicamente, o médico que insistir em manter tratamento ou qualquer procedimento inócuo, enganador, dispensável e degradante para paciente acometido de doença incurável, expondo-o à dor e ao sofrimento e contrariando o desejo do indivíduo ou de seu responsável legal, estará praticando a distanásia. No âmbito da responsabilidade civil e criminal, sujeitar-se-á a responder por lesão corporal, constrangimento ilegal, tortura e tratamento cruel imposto ao paciente e a sua família.
O processo de decisão da AT deve ser individualizado, pois a autonomia e as preferências do paciente e de sua família são consideradas as principais norteadoras, tanto da perspectiva ética quanto legal 9 . Nesse contexto, destacam-se a Resolução CFM 1.805/2006 13 e o parágrafo único do artigo 41 do Código de Ética Médica (CEM) 14 , que regulamentam a prática da ortotanásia e reprovam a distanásia 15 ; e a Resolução CFM 1.995/2012 16 , que dispõe sobre diretivas antecipadas de vontade (DAV).
A Resolução CFM 1.805/2006 descreve no artigo 1º que é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, em fase terminal de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal 13 . Já o artigo 2º adverte:
O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social, espiritual, inclusive assegurando a ele o direito da alta hospitalar 13 .
O CEM afirma que, em se tratando de doente incapaz, ausente o representante legal, incumbirá ao médico decidir sobre as medidas mencionadas no caput deste artigo 14 . Assim, reitera-se que é fundamental contemplar o princípio da autonomia no processo decisório de AT: primeiro a pessoa, depois o representante legal e, por fim, o médico.
Ademais, o CEM 14 , no item XXII do capítulo I “Princípios fundamentais”, dispõe que nas condições clínicas sem possibilidade de cura ou intratáveis, o profissional evitará condutas diagnósticas e terapêuticas dispensáveis e propiciará ao indivíduo sob sua responsabilidade todos os cuidados paliativos apropriados. No artigo 41, o código afirma ser proibido ao médico reduzir a vida do paciente, ainda que seja solicitado por este ou por seu representante legal.
O artigo 41 também prescreve que, em casos de doença incurável e terminal, o médico deve prestar todos os cuidados paliativos disponíveis sem efetuar ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, considerando sempre a vontade única do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu responsável legal.
A Resolução CFM 1.995/2012 16 dispõe sobre as DAV, definindo-as no artigo 1º como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestos pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber quando estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. O artigo 2º refere-se às decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se ou expressar de maneira livre e independente suas vontades e indica que o médico deverá levar em consideração suas DAV, ressaltando que:
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Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico;
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O médico deixará de levar em consideração as DAV do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica;
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As DAV do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares;
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O médico registrará, no prontuário, as DAV que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente;
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Não sendo conhecidas as DAV do paciente , nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para embasar sua decisão sobre divergências éticas, quando entender esta medida necessária e conveniente 16 .
A Resolução CFM 1.995/2012 assegura ainda a autonomia da pessoa sobre cuidados e tratamentos que poderá receber desde que estejam em consonância com as orientações referidas. Ela respalda também a tomada de decisão médica em situações de AT em pessoas comatosas, não responsivas pós-coma ou incapazes mentalmente, sem familiares ou representante legal. Dessa forma, estão observados os aspectos éticos e normativos relacionados à AT que proporcionam respaldo à suspensão ou não da indicação de tratamento considerado desproporcional.
A necessidade de AT surge quando a possibilidade de o procedimento médico causar dano supera o benefício potencial esperado, o que comumente ocorre em pacientes criticamente doentes e com prognóstico de vida limitado. Nesse contexto, precisa ser definido como e por quanto tempo se deve tratar curativamente pacientes graves que apresentam prognóstico reservado 1 , 2 , 9 , 17 .
É importante salientar que a assistência à saúde prestada em ambiente hospitalar deve ser baseada em um plano de cuidado cuja elaboração considere que as medidas curativas não precedem linearmente as paliativas. Assim, as abordagens paliativas devem ser concomitantes às curativas, garantindo alívio de sintomas que causem desconforto desde o diagnóstico de qualquer doença grave que determine prognóstico de vida limitado. Desse modo, a AT pode ser entendida como processo da sobreposição de medidas curativas e paliativas, permitindo cuidado individualizado e humanizado com a implementação das terapêuticas adequadas 8 , 17 .
Cabe destacar que a AT é considerada processo multifatorial, subjetivo e complexo cuja definição deve ser organizada de forma compartilhada, considerando a equipe de profissionais de saúde envolvida nos cuidados, o paciente (ou representante legal) e os familiares 6 , 18 , 19 .
O objetivo deste artigo é descrever o processo de elaboração e implementação de um protocolo de AT em um hospital universitário do Rio Grande do Sul.
Metodologia
Trata-se de relato de experiência descrevendo o processo de elaboração e implantação de um protocolo de AT no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). A instituição, que é de porte grande e tem 403 leitos instalados, é referência para atendimentos de média e alta complexidade na região central do Rio Grande do Sul – área com quase 2 milhões de habitantes 20 .
A realização das etapas iniciais até finalização do protocolo ocorreu entre março e maio de 2018. A Gerência de Atenção à Saúde (GAS) estabeleceu um protocolo de AT devido ao perfil de pacientes atendidos no HUSM: complexos, com múltiplas comorbidades e oncológicos. Em razão dessa necessidade, a GAS convidou profissionais de Setores, Unidades e Serviços do HUSM notoriamente envolvidos no atendimento desse perfil de pacientes, incluindo o Comitê de Bioética (CoBi) do hospital, para elaborar o protocolo.
Conforme orientação do Setor de Vigilância em Saúde e Segurança do Paciente – Qualidade (SVSSQ), responsável pela gestão documental do HUSM, a elaboração do protocolo seguiu as seguintes etapas:
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Setores, Unidades e Serviços definiram um profissional como responsável pela elaboração – revisão bibliográfica, busca ativa de protocolos do Ministério da Saúde, diretrizes e consensos relacionados;
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O profissional encarregado, após a elaboração do protocolo, acionou os responsáveis pelos Setores, Unidades e Serviços para a discussão do protocolo e finalizou a primeira versão;
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A primeira versão do protocolo foi encaminhada ao SVSSQ para ajustes – avaliação do atendimento dos itens conforme os padrões do HUSM, formatação e divulgação;
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O profissional realizou os ajustes e devolveu o protocolo para o SVSSQ para finalização de fluxos e formatação do protocolo;
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SVSSQ encaminhou o protocolo ao Setor de Informática (SI), que o disponibilizou na intranet do hospital como “em validação”. Essa etapa possibilitou que todos os profissionais da área da saúde com atuação no HUSM visualizassem o protocolo antes de sua validação;
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O profissional responsável definiu data e local para a apresentação e validação do protocolo e solicitou divulgação para o SVSSQ;
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O profissional responsável pelo protocolo realizou a apresentação para validação e encaminhou ao SVSSQ os ajustes solicitados e uma lista com os nomes das pessoas presentes à apresentação;
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SVSSQ enviou o arquivo finalizado ao SI para disponibilização como protocolo “Implantado” no HUSM.
Este estudo não envolveu pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução CNS 196/1996, item II.2. Trata-se de relato de um processo para elaboração e implementação de protocolo de AT, de acordo com fluxo institucional estabelecido para validação e implementação de protocolos.
Resultados
Etapas para elaboração do protocolo de adequação terapêutica
Indicação do protocolo de adequação terapêutica
O protocolo pode ser aplicado a pacientes internados, conforme avaliação da equipe médica assistente ou de médico por ela designado, em caso de doença grave avançada ou quadro de terminalidade, não recuperação e/ou risco de morte.
A AT é indicada quando se reconhece que o paciente está em fase final de vida, ou seja, com expectativa de vida avaliada em até 12 meses, incluindo o período de morte iminente (horas ou dias). Além disso, há indicação de AT nos seguintes casos: condições avançadas, progressivas e incuráveis; fragilidade generalizada e coexistência de condições associadas à expectativa de vida de até 12 meses; condições com risco de morte se houver crise aguda repentina; condições agudas ameaçadoras de vida associadas a evento catastrófico 21 - 23 .
Critérios de inclusão
Os critérios de elegibilidade de um paciente à AT são:
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Ter diagnóstico preciso de doenças ou condições de saúde graves;
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No momento da avaliação, não ser candidato a tratamento de eficácia comprovada que possa modificar o prognóstico de morte próxima ou quando as terapias em uso deixaram de ser efetivas;
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As condições diagnosticadas devem ser progressivas, irreversíveis e ter prognóstico definido 21 .
A definição do prognóstico pode basear-se em indicadores gerais de declínio clínico e funcional e/ou indicadores clínicos específicos 21 - 23 ou pela utilização de pergunta surpresa: Você se surpreenderia se esta pessoa morresse nos próximos meses, semanas ou dias? 21 . A resposta a esta questão deve ser intuitiva, envolvendo uma série de indicadores clínicos, presença de comorbidades, aspectos sociais e outros fatores que possibilitem a análise completa de um quadro clínico de declínio. Uma resposta positiva a essa pergunta, ainda que subjetiva, representa prognóstico de vida limitado, com indicação de AT 21 .
Presença de indicadores gerais de declínio clínico e funcional 24-26
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Diminuição das atividades – status de desempenho funcional em declínio (por exemplo, escore de Barthel), autocuidado limitado, permanência na cama ou cadeira 50% do dia – e aumento da dependência na maioria das atividades da vida diária;
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Presença de comorbidade – é considerada o maior indicador preditivo de mortalidade e morbidade;
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Declínio físico geral e crescente necessidade de apoio;
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Doença avançada: quadro instável, deterioração e sintomas com necessidade de abordagem complexa;
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Resposta decrescente aos tratamentos, com redução da reversibilidade;
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Escolha por nenhum tratamento ativo adicional;
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Perda progressiva de peso (>10%) nos últimos seis meses;
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Repetidas admissões não planejadas ou descompensações das doenças de base;
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Evento sentinela: queda séria, luto, transferência para instituição de longa permanência;
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Albumina sérica <2,5mg/dl;
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Necessidade de assistência considerável e cuidados médicos frequentes (Karnofsky 50%);
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Sintomas, dificuldade com autocuidado, permanência de mais de 50% do tempo do dia na cama (Performance Status Ecog 2).
O declínio deve ser estabelecido e documentado, a partir de informações objetivas, no prontuário médico 21 . É preciso observar indicadores clínicos específicos – critérios flexíveis com algumas sobreposições, especialmente em pessoas com fragilidade e outras comorbidades 23 .
Trajetórias com declínio rápido ou previsível
Câncer metastático
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Os preditores para pacientes com câncer, com o uso de Karnofsky e Performance Status ECOG, podem ajudar, mas não devem ser aplicados de forma isolada 25 , 26 ;
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O fator de predição mais importante no câncer é o status de desempenho e a capacidade funcional;
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Se o paciente permanece mais de 50% do tempo na cama, de forma geral, o prognóstico é estimado em cerca de três meses ou menos.
Trajetórias com declínio errático
As trajetórias características de doenças crônicas, como insuficiências orgânicas e patologias neurológicas, apresentam declínio errático. O Quadro 1 mostra de forma resumida alguns indicadores de doença avançada em morbidades específicas.
É imprescindível que a abordagem sobre a evolução da doença em paciente com demência seja iniciada precocemente, enquanto o déficit cognitivo ainda lhe possibilita discutir como gostaria de ser tratado nas etapas posteriores 23 . Ao considerar as trajetórias dos indicadores clínicos específicos apresentados pelo paciente, é fundamental identificar episódios que indicam mudanças agudas, com baixa possibilidade de reversão. Estes sinalizam maior necessidade de implementar cuidados paliativos ao plano de cuidado instituído 21 .
Etapas para implementação do protocolo de AT
Comunicação com a equipe
Após a verificação dos critérios para AT, deve-se informar a equipe envolvida nos cuidados de saúde e discutir sobre a indicação de AT 4 , 5. Objetiva-se, dessa forma, estabelecer consenso na equipe, com registro posterior no prontuário médico (Fluxograma 1, no Apêndice).
Comunicação com paciente, representante legal e família
Com o consenso da equipe envolvida nos cuidados de saúde, informa-se o paciente – ou seu representante legal – e a família sobre a evolução e prognóstico do quadro apresentado e toma-se conhecimento da vontade do paciente e da família 5 , 9. Nessa abordagem, deve-se avaliar a autonomia e a capacidade de tomada de decisão do paciente, além de verificar a existência de DAV (Fluxograma 2, no Apêndice).
Consenso entre equipe e família
Durante todo o processo de definição da AT, deve-se fornecer apoio à equipe envolvida, ao paciente (ou representante legal) e aos familiares, considerando crenças e valores pessoais implicados em cada caso. Não havendo consenso, pode-se buscar auxílio no comitê de bioética da instituição, se se julgar apropriado (Fluxograma 1, em anexo).
Tipos de adequação terapêutica
Existem duas maneiras de executar uma AT: não começar uma medida (abstenção) ou retirar uma medida preexistente (suspensão) 4 . Numa perspectiva ética, ambos são considerados moralmente equivalentes, no entanto há diferenças do ponto de vista psicológico, filosófico, social e clínico, entre outros. Por essa razão, considera-se mais difícil retirar do que não iniciar uma medida, o que deve ser levado em conta na comunicação com a as partes envolvidas 4 , 28 .
Abstenção de tratamentos
Não iniciar um tratamento médico, mesmo que resulte em morte, pode ser aceitável nas circunstâncias apropriadas para AT. Ainda, um tratamento não deverá ser implementado se isso estiver de acordo com o pedido previamente apresentado pelo paciente em suas DAV 4 .
Não realização de reanimação cardiopulmonar
A reanimação cardiopulmonar (RCP) é uma tentativa de restaurar a função cardiopulmonar e inclui intubação endotraqueal e ventilação assistida, compressão cardíaca externa e desfibrilação elétrica cardíaca. A decisão de não instituir a RCP deve ser registrada no prontuário médico como ordem de não reanimação (ONR) 28 .
Na ausência de ONR, o paciente receberá a RCP, de modo que o médico deve discutir essa questão com os pacientes sempre que apropriado. Uma ONR, escrita ou verbal, pode ser seguida somente após o consentimento informado do paciente – ou representante legal – ser obtido e documentado adequadamente no prontuário médico. A decisão por ONR, desde que realizada de forma apropriada pelo médico responsável, deve ser cumprida 5 , 28 .
O médico deve informar o paciente, ou o representante legal, da natureza invasiva da RCP e, quando relevante, de sua probabilidade extremamente baixa de sucesso em certas condições. As ONR podem ser dadas pelo médico que presta assistência hospitalar diretamente ao paciente ou por outro médico por ele designado e precisam ser registradas e assinadas pelo profissional no prazo de 24 horas a partir de sua instituição. A ordem do ONR é válida apenas por esse período e expira se não for registrada adequadamente 28 .
Ao fazer o registro, o médico deve indicar a ONR no cabeçalho da evolução médica e na prescrição médica na seção de cuidados. Também é necessário registrar no cabeçalho: condição médica do paciente, capacidade ou base para incapacidade de tomar decisões, identificação de representante legal e termos da discussão com o paciente ou com representante legal 28 .
A equipe de saúde deve implementar cuidados paliativos adequados – visando controlar sintomas e abordando aspectos psicológicos, sociais e espirituais – e, caso julgue necessário, solicitar apoio da equipe de cuidados paliativos. O paciente com ONR continuará a receber cuidados médicos de alta qualidade, com a definição dos procedimentos que serão mantidos, tais como tratamento de infecções, transfusão, nutrição, hidratação e exames diagnósticos, em consonância com a implementação de cuidados paliativos 19 . Essa definição deve ser registrada no prontuário, com indicação no cabeçalho da evolução médica e na prescrição médica na seção de cuidados.
A ONR deve ser revogada se a condição médica ou os desejos do paciente mudarem, após discussão com este ou seu representante legal. Além disso, a indicação de ONR será discutida a cada internação hospitalar, a menos que seja claro que o motivo pelo qual a ONR foi autorizada permanece inalterado. A ONR, no entanto, deve ser reescrita e documentada no prontuário a cada admissão 28 .
Em alguns casos, paciente com ONR pode aceitar intubação eletiva para condição potencialmente reversível, como pneumonia. Caso isso ocorra, a ONR pode ser cancelada se o representante legal concordar. Se a ONR for suspensa pelo representante legal, este deve ser orientado a considerar os desejos do paciente 5 , 28 .
Pacientes com ONR podem passar por procedimentos paliativos ou de outro tipo, mas, caso o profissional responsável acredite que há risco significativo de que uma RCP seja necessária, será perguntado ao paciente se a ONR pode ser suspensa durante o procedimento e a recuperação. A duração do período de recuperação considerado para a suspensão, que é definida pela equipe médica, será anotada no prontuário médico e, se o paciente não quiser suspender a ONR nessa situação, o médico assistente deve ser notificado. Este definirá com o profissional responsável se o procedimento será realizado com a ONR mantida 28 .
Exceto em emergências, nenhum profissional de saúde será obrigado a realizar intervenções em paciente com ONR mantida se acreditar que isso violaria suas crenças éticas ou religiosas ou sua integridade profissional. Se não houver profissionais dispostos a realizar procedimento com a ONR mantida e o paciente se recusar a suspendê-la, o médico assistente discutirá com o paciente o motivo da intervenção e da suspensão da ONR. Se esta for suspensa durante o procedimento ou no período de recuperação, o profissional responsável pelo procedimento, ou alguém designado por ele, documentará essa mudança de status no prontuário médico 28 .
É responsabilidade do médico assistente montar uma equipe disposta a cuidar do paciente, e o comitê de bioética da instituição pode ser contatado para prestar assistência na resolução de conflitos. Em caso de alta hospitalar, deve-se registrar a indicação de ONR e tratamentos a serem mantidos na seção de recomendações e cuidados na nota de alta 28 .
Não realização de outras medidas sustentadoras de vida
Médicos devem discutir com o paciente ou seu representante legal sobre desejos em relação à abstenção de tratamentos que possam ser considerados medidas sustentadoras de vida. Dentre esses procedimentos, encontram-se: ventilação mecânica, alta fração inspirada de oxigênio (FiO2), uso de drogas vasoativas, diálise extra-renal, nutrição, hidratação e transferência para unidade de terapia intensiva (UTI). Essas medidas só podem deixar de ser realizadas após o consentimento informado do paciente ou de seu representante legal ser obtido e documentado adequadamente no prontuário médico, conforme explicitado nos fluxogramas 1 e 2 (Apêndice) 5 , 21 , 28 .
Quando for apropriado, o médico assistente deve indicar claramente no prontuário o objetivo do tratamento implementado e essa informação precisa ser comunicada à toda a equipe envolvida nos cuidados de saúde. Quando não existe indicação de ONR, mas há definição de abstenção para algum componente da RCP, é preciso escrever uma ordem específica indicando não intubação endotraqueal e ventilação assistida, não realização de compressão cardíaca externa ou não realização de desfibrilação cardíaca elétrica 28 .
Esta definição deve ser registrada no prontuário e indicada no cabeçalho da evolução médica e na prescrição médica na seção de cuidados. Caso o paciente receba alta hospitalar, é necessário registrar a definição de abstenção para algum componente da RCP e quais tratamentos devem ser mantidos na seção de recomendações e cuidados na nota de alta 28 .
Suspensão de terapias
Em circunstâncias apropriadas, a suspenção de tratamento médico pode ser aceitável, mesmo que resulte em morte. Desse modo, pode haver descontinuação de acordo com a vontade do paciente ou do seu representante legal, mediante consentimento informado ou pedido previamente apresentado pelo paciente (DAV) 4 , 5 .
O médico registrará a definição de manutenção do tratamento sempre que os pedidos de suspenção forem inadequados, ou seja, se estiverem em desacordo com os preceitos bioéticos e puderem trazer prejuízo ao paciente. Quando uma terapia considerada medida sustentadora de vida for suspensa, deve-se considerar o conforto do paciente e aspectos psicológicos deste, da família e de toda a equipe envolvida nos cuidados de saúde 28 .
Essa definição deve ser registrada no prontuário e indicada no cabeçalho da evolução médica e na prescrição médica na seção de cuidados. Nenhum profissional da área da saúde será obrigado a participar dos cuidados de um paciente com suspensão de terapias se isso violar suas convicções éticas, religiosas ou sua integridade profissional.
Da mesma forma, é responsabilidade do médico assistente montar uma equipe disposta a cuidar do paciente e, havendo conflitos, o comitê de bioética do hospital pode ser contatado. Caso ocorra evolução para alta hospitalar, é necessário registrar a indicação de suspensão de tratamentos e quais tratamentos devem ser mantidos na seção de recomendações e de cuidados na nota de alta 5 , 28 .
Considerações finais
A aplicação de cuidados paliativos vem se disseminando de forma rápida, porém ainda existem lacunas metodológicas a serem preenchidas. Adequar e modificar as práticas terapêuticas de uma equipe médica dentro de um hospital exige a construção e implementação de tecnologias formais embasadas legalmente. Além disso, executar um protocolo de AT em um serviço assistencial e designar profissionais para acompanhar sua aplicação são fatores essenciais na concretização de práticas humanísticas e éticas.
Instrumentalizar profissionais com conhecimentos da área de cuidados paliativos é basal para construir uma discussão coletiva e horizontal no processo interno de trabalho e tomada de decisão por parte do médico e da equipe assistencial multiprofissional. Além disso, pacientes empoderados sobre seu diagnóstico e cientes dos mecanismos que estão à sua disposição, como as DAV, garantem a profissionais e familiares a certeza de que suas vontades serão realizadas, conservando a dignidade humana inerente a todos.
Dessa forma, o protocolo de AT é um recurso desenvolvido a partir de diretrizes do Conselho Federal de Medicina (CFM) e orientado por princípios bioéticos, legais e clínicos coletados em literatura pertinente. Assim, caracteriza-se como base para a mudança de paradigmas envolvendo novas tecnologias e possibilidades terapêuticas.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
18 Maio 2020 -
Revisado
8 Fev 2022 -
Aceito
18 Fev 2022