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Bioética em odontologia: autonomia dos pacientes em clínicas de ensino

Resumo

Este artigo foi desenvolvido com o objetivo de analisar o respeito ao princípio da autonomia na assistência aos pacientes atendidos em clínicas odontológicas de ensino, do ponto de vista de professores e alunos. Com esse propósito, foram estudadas duas faculdades públicas do estado do Rio de Janeiro. Os dados das pesquisas foram obtidos por meio da realização de entrevistas individuais e grupos focais com alunos do último ano da graduação, entrevistas com professores e observação participante. Os resultados revelaram que os atendimentos nas instituições de ensino analisadas por vezes não contemplam o respeito ao princípio da autonomia dos pacientes. A formação profissional observada reproduz o modelo hegemônico de educação tecnicista e é regida pelo estabelecimento de uma relação paternalista entre profissionais e pacientes, o que contribui para uma constante, e indesejável, violação dos direitos dos pacientes.

Bioética; Autonomia pessoal; Capacitação de recursos humanos em saúde; Odontologia; Consentimento livre e esclarecido; Princípios morais

Abstract

This article analyzes the respect for patient autonomy in dental teaching clinics as perceived by professors and students. Data were obtained by means of individual interviews and focus groups with senior students, teachers interviews and participant observation in two public state universities. Results showed that care provision at the analyzed educational institutions oftentimes does not include respect for patient autonomy. The observed professional training reproduces the hegemonic technicist education and is informed by a paternalistic physician-patient relation that contributes to a constant and undesirable violation of patient rights.

Bioethics; Personal autonomy; Health human resource training; Dentistry; Informed consent; Morals

Resumen

Este artículo tiene el objetivo de analizar el respeto al principio de autonomía en la atención a los pacientes de los centros odontológicos docentes desde el punto de vista de profesores y estudiantes. Para ello, se analizaron dos universidades públicas del estado de Río de Janeiro. Los datos de la investigación se obtuvieron de entrevistas individuales y grupos focales realizadas a estudiantes en el último año de graduación, de entrevistas a docentes y observación participante. Los resultados revelaron que la atención en los centros educativos analizados, en ocasiones, no incluyen el respeto al principio de autonomía de los pacientes. La formación de los profesionales reproduce el modelo hegemónico tecnicista y se rige por el establecimiento de una relación paternalista entre los profesionales y los pacientes, lo que contribuye a una constante e indeseable violación de los derechos de los pacientes.

Bioética; Autonomía personal; Capacitación de recursos humanos en salud; Odontología; Consentimiento informado; Principios morales

O século XX foi permeado pela ocorrência de maior reivindicação por direitos individuais. Como marcos importantes dessa época, pode-se destacar a elaboração do Código de Nuremberg e a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos , que visam garantir a defesa da liberdade e da dignidade humana. A partir dos anos 1960, houve um direcionamento da atenção das pessoas para as consequências que o avanço tecnológico poderia ocasionar em suas vidas, inclusive porque as pesquisas eram realizadas em integrantes de grupos vulneráveis. Nesse contexto, os princípios do respeito à autonomia dos indivíduos e da justiça tornam-se pilares morais da cidadania moderna 11. Durand G. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. São Paulo: Edições Loyola; 2007. , 22. Schramm FR. A autonomia difícil. Rev. bioét. 1998;6(1):27-37. .

Um movimento importante foi o de defesa dos direitos dos consumidores, que abrangeu também a área de cuidados em saúde. Dessa forma, os pacientes passaram a requerer participação nas discussões sobre possibilidades terapêuticas e nas tomadas de decisão relativas à sua saúde, em oposição ao paternalismo médico; à ideia de que o médico é o grande detentor do saber, a quem o paciente deve sempre obedecer. O respeito ao princípio da autonomia da pessoa passa, então, a ser reconhecido em leis nos Estados Unidos da América, no Canadá e na Europa 11. Durand G. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. São Paulo: Edições Loyola; 2007. .

No fim da década de 1970, Beauchamp e Childress 33. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios da ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola; 2002. formularam sua proposta teórica baseada em princípios, que foi publicada no livro Princípios de ética biomédica . Nela, defendem que as decisões éticas relacionadas à prática clínica sejam discutidas a partir de quatro princípios não hierarquizados: autonomia (respeito pela capacidade de tomada de decisões por pessoas autônomas), beneficência (benefícios devem ser proporcionados e ponderados contra riscos e custos), não maleficência (danos devem ser prevenidos) e justiça (justa distribuição de benefícios, riscos e custos).

O objetivo deste trabalho é discutir a autonomia dos usuários de clínicas de ensino em odontologia de acordo com a perspectiva principialista, na qual seu conceito é utilizado para examinar a tomada de decisão no cuidado da saúde e para identificar aquilo que é protegido pelas regras do consentimento informado, recusa informada, veracidade e confidencialidade 44. Beauchamp TL, Childress JF. Op. cit. p. 137. .

Autonomia pessoal

A palavra autonomia deriva do grego autus (o próprio, o mesmo, por si mesmo) e nomos (norma, instituição, governo, convenção, lei). Inicialmente, foi utilizada com referência à autogestão ou ao autogoverno das cidades-estados independentes gregas. Kant fundamenta o conceito de dignidade da pessoa humana na capacidade dos humanos de atribuírem leis a si próprios, em uma perspectiva universalista.

Uma pessoa autônoma age de acordo com um plano definido por ela mesma, ao passo que alguém que tem sua autonomia reduzida é, ao menos em algum aspecto, controlado por outras pessoas, ou incapaz de fazer deliberações e agir com base em seus desejos e planos de forma plena. Essa limitação da autonomia pode se dar por alguns fatores, tais como incapacidade cognitiva para um entendimento absoluto ou privação de liberdade. Além disso, sujeitos autônomos podem sofrer restrições temporárias em seu autogoverno, por adoecimento, ignorância, constrangimentos sociais, coerções e manipulações. Na assistência em saúde, a principal via de manipulação é a informação, por meio da qual o entendimento que uma pessoa tem sobre seu quadro é alterado, de forma que faça uma adesão plena a tudo o que for proposto pelo agente manipulador 33. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios da ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola; 2002. .

O respeito pela autonomia dos pacientes faz que os profissionais de saúde tenham o dever de esclarecer informações, verificar e assegurar o entendimento e a voluntariedade do indivíduo e encorajá-lo a realizar adequadas tomadas de decisão. A pessoa é capaz de tomar uma decisão autônoma quando consegue compreender a informação que é passada a ela, fazer um julgamento sobre essa informação a partir dos seus próprios valores e manifestar sua vontade livremente aos profissionais que lhe assistem 33. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios da ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola; 2002. . Mas esse é um processo muito difícil, pois é possível que haja uma espécie de filtro realizado pelo profissional na hora de passar as informações (consciente ou não) que o leve a apresentar apenas o que julgue ser pertinente. Ou seja, limitar-se-ia a capacidade de o outro decidir autonomamente, uma vez que ele não teria acesso a todas as informações, mas tão somente àquelas que o informante considera convenientes, relevantes ou aceitáveis.

Defender a autonomia é reconhecer que na relação entre profissional de saúde e paciente ambos devem ter espaço de voz ativa, respeitando-se as diferenças de valores, as expectativas, as demandas e os objetivos das partes e reconhecendo-se que o sujeito do processo terapêutico é o paciente 55. Soares JCRS, Camargo KR Jr. A autonomia do paciente no processo terapêutico como valor para a saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];11(21):65-78. DOI: 10.1590/S1414-32832007000100007 . A autonomia pode ser observada como categoria norteadora e conteúdo central da promoção da saúde. Toda intervenção que amplie a capacidade das pessoas de agirem sobre os determinantes de sua saúde é considerada como ação geradora de autonomia 66. Fleury-Teixeira P, Vaz FAC, Campos FCC, Álvares J, Aguiar RAT, Oliveira VA. Autonomia como categoria central no conceito de promoção de saúde. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2008 [acesso 21 abr 2021];13(supl 2):2115-22. DOI: 10.1590/S1413-81232008000900016 .

O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) é um instrumento que teve sua origem na pesquisa, com o objetivo de reduzir riscos aos participantes e prevenir a ocorrência de injustiças e exploração de vulnerabilidades. A demanda social pela proteção dos direitos dos pacientes o incorporou à assistência em saúde. Em ambos os casos, o que se deseja é garantir o respeito à autonomia; é assegurar que um indivíduo com um entendimento substancial e numa substancial ausência de controle por parte de outros intencionalmente autorize um profissional a fazer algo 77. Beauchamp TL, Childress JF. Op. cit. p. 164. .

O documento deve elucidar toda a intervenção proposta e ser específico para cada um dos procedimentos que se pretende executar. A reunião de múltiplas autorizações em um único documento (algo comum em instituições de ensino) pode fazer com que o paciente, leigo e vulnerável, julgue ser imprescindível consentir com tudo o que ali está contido antes de dar início ao seu tratamento. Isso pode não corresponder à realidade, uma vez que é facultado ao paciente o direito de não consentir com o que não deseje realizar – como a liberação de sua imagem para uso em trabalhos acadêmicos. O processo de consentimento deve expressar a vontade livre após o apropriado esclarecimento e a compreensão das diversas dimensões do cuidado ou da pesquisa. O documento deve ser passível de renovação e revogação 33. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios da ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola; 2002. , 55. Soares JCRS, Camargo KR Jr. A autonomia do paciente no processo terapêutico como valor para a saúde. Interface (Botucatu) [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];11(21):65-78. DOI: 10.1590/S1414-32832007000100007 , 88. Biondo-Simões MLP, Martynetz J, Ueda FMK, Olandoski M. Compreensão do termo de consentimento informado. Rev. Col Bras Cir [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];34(3):183-8. DOI: 10.1590/S0100-69912007000300009
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9. Cechetto S. A doutrina do consentimento informado: a incorporação do sujeito moral na biomedicina. Rev. bioét. 2007;3(4):489-507.

10. Maluf F, Carvalho GP, Diniz JC Jr, Bugarin Junior JG, Garrafa V. Consentimento livre e esclarecido em odontologia nos hospitais públicos do Distrito Federal. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];12(6):1737-46. DOI: 10.1590/S1413-81232007000600034
- 1111. Muñoz DR, Fortes PAC. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: Costa SIF, Garrafa V, Oselka G, organizadores. Introdução à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 53-70. .

A redação da Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 1212. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996 [Internet]. 1996 [acesso 24 jan 2024]. Disponível: https://bitly.ws/3aGI4
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foi cuidadosa em não manter a tradução direta da expressão informed consent como consentimento informado, ao estabelecer diretrizes e normas regulamentadoras para pesquisas com seres humanos no Brasil. O que se almeja é mais do que simplesmente informar alguém sobre algo; é preciso que esse indivíduo compreenda o que está sendo transmitido a ele. Nesse processo, é importante, ainda, zelar pela preservação da confidencialidade da assistência 1313. Castilho EA, Kalil J. Ética e pesquisa médica: princípios, diretrizes e regulamentações. Rev Soc Bras Med Trop [Internet]. 2005 [acesso 21 abr 2021];38(4):344-7. DOI: 10.1590/S0037-86822005000400013
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Ao longo da formação, deve ser estimulado o desenvolvimento de habilidades humanísticas dos futuros profissionais, além das competências técnicas, de modo que possam ser expressas no agir responsável. Os profissionais devem estar pautados em reflexões críticas e comprometidos com o respeito aos indivíduos e à sociedade 1414. Amorim AG, Souza ECF. Problemas éticos vivenciados por dentistas: dialogando com a bioética para ampliar o olhar sobre o cotidiano da prática profissional. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2010 [acesso 21 abr 2021];15(3):869-78. DOI: 10.1590/S1413-81232010000300030

15. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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- 1616. Prado MM, Garrafa V. A bioética na formação em odontologia: importância para uma prática consciente e crítica. Comum Ciênc Saúde [Internet]. 2006 [acesso 24 jan 2024];17(4):263-74. Disponível: https://bitly.ws/3aGFC
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. Contudo, o que tem sido observado é o estabelecimento de uma relação paternalista entre odontólogos e pacientes, na qual toda e qualquer tomada de decisão se concentra nos profissionais. Aos assistidos, é conferido o constrangimento de se submeter ao tratamento determinado, o que contraria o princípio do respeito à autonomia dos usuários dos serviços de saúde. Essa relação de poder é uma das grandes preocupações da bioética atualmente 1717. Gonçalves ER, Verdi MIM. Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];12(3):755-64. DOI: 10.1590/S1413-81232007000300026 .

Docentes revelaram a Gonçalves e Verdi 1717. Gonçalves ER, Verdi MIM. Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];12(3):755-64. DOI: 10.1590/S1413-81232007000300026 a concepção de que a universidade e o serviço que ela presta à população estão acima de qualquer direito do paciente, justificando-se, assim, toda e qualquer atitude tomada nas clínicas de atendimento em nome do ensino. Nessa perspectiva, o paciente é visto como um meio através do qual se alcança o fim proposto pela instituição: o treinamento técnico dos alunos. O foco da assistência passa a ser o que é de interesse acadêmico, em detrimento das demandas de saúde dos pacientes, o que caracteriza uma “coisificação” das pessoas 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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Urge a necessidade de definitiva ruptura com esse modelo de relação hierárquica entre profissionais e pacientes, assim como com essa lógica de formação objetificadora nas instituições de ensino em odontologia, em reconhecimento aos direitos dos pacientes e aos seus desejos, expectativas e necessidades.

Método

Este artigo foi produzido a partir de pesquisas qualitativas executadas em duas faculdades públicas de odontologia do estado do Rio de Janeiro, que serão identificadas como Alfa 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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e Beta 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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para diferenciação. Inicialmente, foi realizada uma revisão de literatura. Optou-se por mesclar a utilização de descritores e palavras-chave para abranger o maior número possível de documentos relativos ao tema proposto nas bases Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), periódicos Capes e SciELO e em publicações específicas de bioética (livros e revistas). Os termos buscados, em português, espanhol e inglês, foram: principialismo, autonomia, consentimento, formação em odontologia, capacitação de recursos humanos em saúde, formação em saúde, ética, bioética e odontologia.

Em seguida, foram feitas entrevistas individuais, com roteiro semiestruturado, com nove professores da graduação e 20 alunos do último ano de formação. A coleta de dados contemplou, ainda, a realização de grupos focais com alunos de ambas as instituições e a observação participante em Beta – com o intuito de verificar situações cotidianas, como contradições entre as normas e as práticas vividas pelo grupo ou pela instituição estudada.

Cada um dos grupos focais teve a participação de sete alunos na instituição Alfa e sete alunos na instituição Beta, todos do último ano da graduação. Esse método foi adotado porque se acredita que as pessoas tendem a falar de forma mais desinibida e sincera quando estimuladas a fazê-lo em grupo, principalmente quando esse grupo é constituído por pessoas conhecidas.

A obtenção dos dados foi orientada pelos preceitos das Resoluções CNS 196/1996 1212. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996 [Internet]. 1996 [acesso 24 jan 2024]. Disponível: https://bitly.ws/3aGI4
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(vigente na fase de trabalho em Alfa) e 466/2012 1919. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 12, p. 59, 13 jun 2013 [acesso 21 abr 2021]. Seção 1. Disponível: https://bitly.ws/3aGFY
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, aprovadas por comitês de ética em pesquisa.

Para avaliação do material coletado nas entrevistas, nos grupos focais e no diário de campo produzido a partir das observações efetuadas, foi empregada a análise temática, que, de acordo com Pope, Ziebland e Mays 2020. Pope C, Ziebland S, Mays N. Analisando dados qualitativos. In: Pope C, Mays N, organizadores. Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed; 2009. p. 76-94. , é a mais empregada nas pesquisas de atenção em saúde, nas quais os dados são agrupados por tema e posteriormente examinados.

Após a transcrição das entrevistas, foram realizados os seguintes passos: leitura e análise criteriosas dos conteúdos obtidos; sistematização das informações; avaliação e compilação dos dados; e estruturação de diálogos entre os dados e as referências teóricas utilizadas.

Para que os participantes da pesquisa tivessem suas identidades preservadas, foram utilizados os seguintes códigos de identificação:

  • Alunos: letra A seguida da numeração de 1 a 20;

  • Professores: letra P seguida pelos números 1 a 9;

  • Grupos focais: GF.

Discussão

O ensino formal de odontologia no Brasil, estruturado em instituições de ensino superior desvinculadas da formação em medicina, teve início em 1884. Ao longo desse período, foram feitas algumas mudanças nas grades curriculares, que, na grande maioria das vezes, privilegiaram a formação técnica dos cirurgiões-dentistas, incluindo a incorporação de novas tecnologias. Porém, conforme observaram Finkler, Caetano e Ramos 2121. Finkler M, Caetano JC, Ramos FRS. A dimensão ética da formação profissional em saúde: estudo de caso com cursos de graduação em odontologia. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2011 [acesso 21 abr 2021];16(11):4481-92. DOI: 10.1590/S1413-81232011001200021
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, as escolas de formação continuam trabalhando aquém do necessário para o desenvolvimento da dimensão ética e humanística nas ações de cuidados com a saúde.

A coleta de dados iniciou com a realização do grupo focal na instituição Alfa. Nessa ocasião, ouviram-se relatos de que o tema da pesquisa havia gerado uma reflexão individual nos participantes sobre o significado do conceito abordado (autonomia). Alguns entrevistados apresentaram dificuldade em definir seu significado, e houve a afirmação de que não há discussão dos conceitos de bioética durante a formação. Pôde-se verificar que as discussões propostas serviram como um meio de aprendizado para os estudantes em ambas as instituições de ensino analisadas.

Análise do respeito à autonomia do paciente

Para analisar o respeito à autonomia, foi observada a participação dos pacientes na discussão terapêutica; no poder de decisão sobre o tratamento proposto; no consentimento para realização de exames; e no esclarecimento sobre as particularidades do seu caso clínico, o que dá a eles o empoderamento para fazer as próprias escolhas.

Os alunos da instituição Alfa descreveram no grupo focal (G) o perfil do paciente que eles atendem: “ socialmente desfavorecido ” e que chega à clínica com uma “ necessidade extrema de fazer o tratamento ”. De acordo com os discentes, esse fato já faz com que o paciente se coloque numa posição de inferioridade diante da equipe que vai atendê-lo e, com isso, ele fica “ suscetível realmente ao que a clínica possa gerar pra ele1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Quando foram questionados quanto à preservação da autonomia nos atendimentos realizados na clínica de ensino, responderam que o princípio é respeitado num primeiro ins- tante. Contudo, ao discorrerem sobre o assunto, evidenciaram outro cenário:

“A gente até mostra, mas eu acho que, assim, já fica meio que predeterminado qual vai ser o caminho dele, sabe? Pela, pela condição dele. Mas isso já é errado, já começa errado, né? Porque de repente ele pode de alguma forma e a gente não sabe, né? Não é porque ele veio pra XX [nome da instituição], assim, eu já ouvi um professor falando: ‘ele veio pra XX [nome da instituição] é sinal, porque ele não pode fazer em outro lugar’, entendeu? Então já, assim, mesmo que inconscientemente, já tem isso, sabe? De que: ‘ah, ele é pobre, então tem que fazer o que der pra ele fazer’, entendeu? Minha opinião é essa, apesar de achar que, assim, a gente até tenta mostrar que tem outras opções, mas acho que já, o caminho dele é mais ou menos traçado, entendeu? É tendencioso” (A3) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Na discussão em grupo, ficou evidente a existência de uma hierarquização na relação entre profissional e paciente:

“A gente até dá as opções de escolha pro paciente, mas meio que a decisão fica na nossa mão e na do professor. O professor tá num grau acima, você acata o professor, e o paciente acata você. É meio tendencioso isso daí” (G) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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“De certa forma, você acaba induzindo, sabe? Acaba sendo tendencioso. Porque eu acho que, sei lá, na minha opinião, tem muito assim: ‘ah, você não quer isso, não?’. Aí coloca todos os negativos possíveis e impossíveis pra pessoa mudar de ideia, sabe?” (A3) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Nesse contexto, o paciente pode ser levado a pensar que participou ativamente de uma tomada de decisão, quando, na verdade, foi direcionado a aderir ao que foi decidido por professores e alunos, tendo sua autonomia violada por um processo de manipulação, conforme caracterizaram Beauchamp e Childress 33. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios da ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola; 2002. .

De acordo com A5, nem sempre as opções oferecidas aos pacientes são viáveis: “ A gente também cita outras possibilidades, que, às vezes, de repente, não são viáveis, mas a gente fala, né? [risos] . Geralmente, o paciente aceita o que a gente propõe, acho que até mesmo por falta de informação. Como a gente é o profissional, né? ‘Ah, ele sabe o que ele tá fazendo’, entendeu? É dessa forma1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Essa fala corrobora a afirmação de Amorim e Souza 1414. Amorim AG, Souza ECF. Problemas éticos vivenciados por dentistas: dialogando com a bioética para ampliar o olhar sobre o cotidiano da prática profissional. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2010 [acesso 21 abr 2021];15(3):869-78. DOI: 10.1590/S1413-81232010000300030 , para as quais o sistema de saúde e o acesso aos serviços são potenciais determinantes de restrição da liberdade dos indivíduos, uma vez que a deficiência na oferta de serviços faz com que não haja opções de escolha terapêutica.

Entende-se que não há razões para que o paciente não possa ter acesso a alternativas de tratamento por falta de informação, uma vez que o meio acadêmico é o melhor lugar para que ele receba esclarecimentos técnicos, pois o trabalho na clínica de ensino é coordenado por uma equipe multidisciplinar. Se a faculdade não dispõe de recursos, a equipe deve fornecer orientações que auxiliem o acesso do paciente ao que está sendo proposto fora da instituição, caso assim deseje.

Outro fato revelado foi o norteamento da escolha do paciente para a realização de procedimentos que sejam necessários para a aprovação dos alunos em determinadas disciplinas clínicas: “ As opções são dadas, mas sempre meio que tendenciosas: já que ele já está ali, vai fazer o que naquela disciplina vai ser feito ” (A7) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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. Essa informação deixa claro um interesse institucional prioritário em oportunizar o aprimoramento técnico dos alunos e remete ao que observaram Gonçalves e Verdi 1717. Gonçalves ER, Verdi MIM. Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];12(3):755-64. DOI: 10.1590/S1413-81232007000300026 .

A afirmação supracitada “ já está ali, vai fazer o que naquela disciplina vai ser feito ” (A7) permite pensar nas situações em que o tratamento executado pode ser considerado um dano pelo fato de haver outra possibilidade terapêutica com melhor prognóstico para o paciente. É o caso, por exemplo, de um dente com grande destruição coronária e necessidade de tratamento endodôntico, que pode vir a ser devidamente tratado na disciplina de endodontia (e, posteriormente, restaurado) ou ser condenado a uma exodontia na disciplina de cirurgia.

A conversa com docentes apresentou informações contrárias às que foram fornecidas pelos estudantes. De acordo com P1, o paciente sempre participa das tomadas de decisão e tem sua autonomia respeitada. P2 reitera essa informação e baseia sua argumentação no fator econômico que envolve a realização de alguns procedimentos:

“Sempre. Até porque eles têm um problema que nós não temos laboratório de prótese. Então, a gente sempre espera fazer o que não tem custos laboratoriais para que o paciente possa fazer diretamente na clínica. Muitas vezes viabiliza algum tipo de tratamento. Devido a esse custo” (P2) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Docentes e discentes evidenciam a existência da discussão de casos entre alunos, professores e pacientes para definição das condutas terapêuticas que serão realizadas, mas o que ocorre, a partir daí, é uma tomada de decisão que atende aos anseios da equipe profissional. Acredita-se que a adoção de um modelo paternalista de relação entre profissional e paciente ao longo do período de formação, no qual fica explícita a concepção de que o profissional é o detentor do saber e quem toma decisões, possa levar os estudantes a reproduzi-lo quando ingressarem no mercado de trabalho. Nesse período de estruturação do profissional que se deseja ser, é fundamental que os direitos dos pacientes sejam contemplados e discutidos, com o objetivo de que sejam respeitados no cotidiano das práticas profissionais.

A substituição do modelo paternalista de relação é um reconhecimento dos direitos do paciente e caracteriza o respeito à sua autonomia, que é violada quando se acredita que a interferência profissional é justificada pelo fato de se estar pensando no bem-estar do paciente, ou na alegria que poderá ser proporcionada por meio da realização de determinado procedimento que os profissionais acreditam ser o melhor para ele 1111. Muñoz DR, Fortes PAC. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: Costa SIF, Garrafa V, Oselka G, organizadores. Introdução à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 53-70. , 2222. Palomer RL. Consentimiento informado em odontologia. Un análisis teórico-prático. Acta Bioeth [Internet]. 2009 [acesso 21 abr 2021];15(1):100-5. DOI: 10.4067/S1726-569X2009000100013 , 2323. Rego S, Palácios M, Siqueira-Batista R. Bioética para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. . Como afirmam Rego, Palácios e Siqueira-Batista 2323. Rego S, Palácios M, Siqueira-Batista R. Bioética para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. , o saber técnico profissional não é capaz de estabelecer o que o paciente considera melhor para si.

Outro fato relevante (considerado grave) foi revelado por A5, o desligamento do paciente da clínica de ensino se ele recusar uma etapa opcional do tratamento odontológico:

“Se ele se recusar, né? A gente para o atendimento. A gente já teve paciente que falou, por exemplo, que queria fazer uma, uma restauração, só que não queria ser anestesiada. Então, a gente conversou que aqui é uma escola, que nós temos procedimentos que nós temos que seguir, são etapas clínicas. A gente falou: ‘se a senhora não quiser ser anestesiada, a gente não pode prosseguir com o tratamento’. Foi, no caso é, um protocolo que tem que seguir pra todos, a gente não pode é pular fase, entendeu? Porque o paciente não quer. Como é uma escola, a gente tem que seguir, né?” 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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A ideia de aceitação plena ao que for proposto é tão predominante entre os estudantes que há quem desconheça a possibilidade de recusa: “ Bom, a gente nunca se deparou, até porque a gente não tem nem consciência, a gente não tem nem conhecimento de que eles possam de repente se negar realmente. De repente, é um direito do paciente se negar, né? ” (A9) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Diante dessas observações, pode-se questionar se os pacientes estão recebendo os devidos esclarecimentos quanto aos seus direitos, ou seja, se o sistema de funcionamento não faz, implícita ou explicitamente, que eles se sintam coagidos a aceitar tudo o que é proposto por terem a necessidade de receber o tratamento. Ficou evidente que o ensino da técnica é soberano até mesmo ao bem-estar da paciente, que preferia assumir o risco de sentir dor durante a realização do procedimento do que receber uma anestesia dentária. Para fazer valer um “protocolo” de atendimento, o paciente deixa de ser uma pessoa que sente, pensa e é capaz de administrar a própria vida e passa a ser um objeto usado para o aprimoramento de habilidades de estudantes de graduação.

Na instituição Beta 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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, as respostas de docentes sobre a elaboração dos planos de tratamento variaram um pouco, porque têm formas distintas de condução dos casos nos espaços de ensino e aprendizagem que eles coordenam. Com isso, alguns discentes têm mais autonomia na avaliação dos seus pacientes e apresentam propostas terapêuticas para análise junto com o professor. Outros são direcionados para a execução de tratamentos estabelecidos pelos docentes: “ Tem alguns professores que mandam você fazer exame clínico e você faz. A partir do exame, ele faz o plano de tratamento com você . (…) Mas tem casos, assim, que a gente fica solto ” (A12) 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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Quanto à participação do paciente no processo, A12 diz: “ É muito raro. Acho que primeiro a gente discute entre a gente, e o paciente aceita ou, então, aí, depois de a gente ter falado o que seria, o paciente fala1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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. Posteriormente, esclarece qual é o cunho da participação do paciente na discussão: “ Eu acho que aqui, principalmente, a questão do dinheiro. Tipo: ‘ah, não , doutora, eu não vou ter condições de fazer isso aqui, eu prefiro fazer um tratamento mais barato. Aí a professora fala assim: ‘ah, não, então vamos fazer um tratamento mais barato’1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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. Esse fato é confirmado por A14, A17, A18 e A19 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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Percebe-se, então, que a inclusão do paci- ente nas tomadas de decisão é feita principalmente pela implicação financeira existente no processo, uma vez que não há atendimento gratuito em Beta. Ainda assim, professores e estudantes afirmam que os pacientes têm direito de discordar das propostas que forem apresentadas, tendo liberdade para escolher entre as opções terapêuticas existentes.

Contudo, foi reveladora a fala de A16:

“Geralmente eu falo: ‘olha, você tá com tais problemas e o que a gente precisa fazer’, aí eu falo na sequência: ‘é isso, isso e isso, por causa disso’ e explico o porquê, né? Mas, assim, realmente essa parte de dar alguma autonomia pra ele e perguntar se ele concorda ou não (…). Eu pergunto: ‘ah, tá tudo bem?’. Eles sempre falam que sim, né? [risos], mas, assim, de ele interferir em alguma coisa, realmente não” 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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Essa forma de conduzir o diálogo faz pensar no nível de abertura que é dado para que o usuário da clínica de ensino possa se posicionar e fazer escolhas. É perceptível o comprometimento da autonomia do paciente no processo e um modelo de relação paternalista entre as partes, presente na escolha da informação que é dada para que o paciente concorde com o profissional, conforme descreve Durand 11. Durand G. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. São Paulo: Edições Loyola; 2007. . O discurso de A15 corrobora esse entendimento:

“A gente tenta convencer o paciente, às vezes a gente tem que chamar o professor e tem que ser um professor mais rígido pra falar: ‘olha só, a gente sabe que você tem a sua carga antes de chegar aqui, mas quando a gente chega aqui, o aluno está orientando. Então, se o aluno tá falando pra você que isso é o melhor, isso é realmente o melhor.’ E normalmente, quando o professor intervém, os pacientes aceitam” 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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De acordo com P4, o paciente participa da discussão com aluno e professor quando há necessidade de fazer uma escolha protética, para que tome ciência quanto à complexidade da atenção que requer. Na sua concepção, docentes e alunos não determinam o que será feito:

“Quando casos assim, bem específicos, quando o dente tá todo estourado e não tem mais jeito, a gente explica e tudo bem. Mas quando é um dente que ainda você vê que tem um certo aproveitamento, mas que não vai adiantar muito pro paciente no longo prazo, ainda mais sendo paciente da faculdade, que você [interrompido] o aluno que tá acompanhando o caso se forma e aí o paciente fica, coitado, sem ter uma pessoa certa pra voltar, a gente tenta conversar, explicar melhor a situação” 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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O fato de o indivíduo estar na condição de “paciente da faculdade” não deveria definir o prognóstico de um elemento dentário. Se a escola de formação estiver comprometida com o fornecimento de uma assistência integral ao usuário da clínica de ensino, a continuidade da assistência em saúde, assim como a resolutividade dos casos que estiverem em andamento, será possibilitada independentemente das formaturas que aconteçam.

Cessão de imagens

Os participantes da pesquisa foram questionados quanto a algo bastante frequente em odontologia: a utilização de exames e fotografias em material didático – vivência que apenas um aluno disse não ter. Enquanto A8 e A9 ressaltam saber que a autorização do paciente é necessária para que os registros possam ser efetuados, A1 acredita que o fato de o paciente estar sendo atendido numa instituição de ensino torna implícito para ele que seu caso pode ser utilizado para ilustração das aulas: “ Eu acho que é meio que natural a pessoa estar aqui no ambiente acadêmico e fazer parte do próprio conjunto das aulas, eu acho que fica implícito e tudo, né?1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Essa afirmação reforça o entendimento de que o paciente pode deixar de ser uma pessoa (com vontade própria) e se tornar um objeto/uma ferramenta de aprendizado em clínicas de ensino, como já observamos em outras falas e estudos 1414. Amorim AG, Souza ECF. Problemas éticos vivenciados por dentistas: dialogando com a bioética para ampliar o olhar sobre o cotidiano da prática profissional. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2010 [acesso 21 abr 2021];15(3):869-78. DOI: 10.1590/S1413-81232010000300030 , 1717. Gonçalves ER, Verdi MIM. Os problemas éticos no atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2007 [acesso 21 abr 2021];12(3):755-64. DOI: 10.1590/S1413-81232007000300026 . Com muita comoção, A2 contou que uma docente filmou e fotografou um caso que acompanhava, contra a vontade de A2:

“Mas a conduta que a minha professora, que a professora que me orientou na minha biópsia, teve foi péssima! Eu achei que ela estava interessada não em livrar a paciente de um diagnóstico ruim, e sim em pesquisa, sabe? Ela fotografou, ela filmou, ela queria expor num painel e eu não aceitei!” 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Embora P1 e P2 tenham dito que registros fotográficos são raros, A3 informou que é comum empresas fornecerem materiais estéticos para utilização nas clínicas, o que leva docentes a fotografarem pacientes para registrar os casos clínicos antes e após procedimentos restauradores. A3 observou um caso desses na semana em que a entrevista foi feita e revelou: “ ninguém perguntou nada pro paciente ” (A3). Isso foi dito em voz baixa, com muito constrangimento, e tentou amenizar: “ não apareceu o rosto, sabe? Mas, assim, eu acho que tinha, foi um erro mesmo. Agora, olha só, não era um paciente meu, não, mas agora que tô pensando, tinha que ter perguntado, né? ‘Você se importa?’, né? Mas não perguntou ” (A3) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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A9 relatou também sua experiência com os registros de imagem na clínica da faculdade:

“Bom, normalmente, já chega assim num tom de ‘aham, vamos fotografar seu caso, tá?’. Tipo assim, o paciente não tem nem o direito de falar assim: ‘não quero’. Poxa, acabou de fazer o procedimento nele, vamos supor: remoção de uma hiperplasia. Você tem o antes e o depois. Quando você termina, o paciente vai chegar pra você e vai falar, você acabou de tirar a hiperplasia dele, você acha que o paciente vai se sentir tranquilo em dizer: ‘não, não quero’? Normalmente, os pacientes deixam, entendeu? Então assim é (…). Não, não, não tem muito esse (…). É meio que assim: ‘já vou tirar, tá?’, entendeu? Meio que o paciente não tem nem consciência de que aquilo vai ser exposto por alguém, entendeu? Não tem” 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Pode-se imaginar que dificilmente o paciente interromperia um registro fotográfico (feito em ato contínuo aos procedimentos clínicos) para questionar algo ou se opor, pois não é dada a ele nenhuma opção. Essa forma de conduzir a situação faz que o paciente nem perceba que o respeito à sua autonomia está sendo violado, pois isso ocorre em meio a uma circunstância que o beneficia diretamente – durante o tratamento odontológico que a instituição possibilita que tenha acesso.

Consentimento livre e esclarecido

Alunos e professores classificam o TCLE utilizado na instituição Alfa como um documento simples. Alguns estudantes nem consideram que trabalhem com um TCLE, dizem que há uma ficha clínica para registro do plano de tratamento e outra com a anamnese, em que o paciente registra sua assinatura e atesta a veracidade das informações fornecidas. Foi pontuada uma fragilidade do documento – a possibilidade de fraude:

“Só fala isso, ‘autorizo o que tá escrito em cima’, entendeu? Aquela coisa assim? Só que é muito relativo também, entendeu? Você tá fazendo o plano de tratamento, tem um monte de linha ali, se você quiser pode escrever depois que já tá assinado, entendeu? Então não é uma coisa muito segura assim, porque né, na verdade tem aquele espaço que de repente (…) não sei, a gente não vai fazer isso, mas de repente (…)” (A3) 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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De acordo com os professores, os alunos fazem uma leitura explicativa do TCLE para os pacientes, que, para P1, promove um alto nível de esclarecimento. Contudo, A3 relata que não existe nenhuma orientação dos docentes sobre a execução desse processo: “ Eles não falam pra gente fazer isso, entendeu? A pessoa pode ‘ah, assina aqui’ e ele assinar, mas nem sabe o que tava escrito, entendeu?1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Diante da falta de orientação, cada discente age de uma forma. A1 diz:

“Na maioria das vezes, eu pelo menos peço pra ele dar uma lidinha, conferir na anamnese se tá toda da forma como ele tinha respondido, se ele queria acrescentar alguma coisa e (…) enfim, muitos passam direto, nem leem e assinam logo. A gente sempre pede pra dar uma lida. A gente, na verdade, a gente não lê nenhum texto elaborado sobre o assunto, não” 1818. Silva LN. Autonomia e confidencialidade na assistência aos usuários em uma escola de graduação em odontologia [dissertação] [Internet]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2011 [acesso 21 abr 2021]. p. 80. Disponível: https://bitly.ws/3aGIp
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Num cenário em que o paciente faz sozinho a leitura da ficha clínica, é grande a possibilidade de que haja dificuldade de entendimento dos termos técnicos existentes nesse tipo de documento, o que justifica a fala de A1 de que muitos o assinam sem ler. Soma-se a isso a probabilidade de que alguns, inclusive, nem saibam ler. Disso provavelmente resultam situações de adesão absoluta às decisões tomadas pelos profissionais, inclusive a realização de exames e o registro fotográfico para ilustração de casos clínicos. Ratifica-se o que dizem Muñoz e Fortes 1111. Muñoz DR, Fortes PAC. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: Costa SIF, Garrafa V, Oselka G, organizadores. Introdução à bioética. Brasília: CFM; 1998. p. 53-70.: a compreensão do conteúdo do termo de consentimento livre e esclarecido é indispensável. Para atingir esse objetivo, é necessário substituir o linguajar técnico- -científico por termos que sejam adequados ao entendimento dos pacientes.

Na instituição Beta, observou-se que o TCLE utilizado nas clínicas do último ano de formação inclui o paciente na discussão sobre o plano de tratamento a ser realizado e contempla a concessão de “ plenos direitos de retenção e uso para quaisquer fins de ensino e aprimoramento científico ” (transcrição do documento), de radiografias, fotografias, histórico de saúde familiar, exames e informações referentes a diagnóstico, planejamento e tratamento. Informa, ainda, sobre a existência dos custos da assistência (todos os procedimentos são realizados mediante pagamento prévio) e a cobrança de despesas preestabe- lecidas, caso o paciente interrompa o tratamento. Adverte, também, quanto à possibilidade de serem “‘ eliminados do tratamento’, caso faltem por duas vezes às consultas marcadas ” (transcrição do documento) 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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Porém os alunos entrevistados desconheciam a existência do TCLE entre as múltiplas folhas de prontuário que utilizavam nos atendimentos. Na avaliação de A16, as fichas são confusas e sem padronização entre as clínicas. Ela imagina que os pacientes preencham e assinem as folhas antes de chegarem à consulta: “ Pra ser sincera, eu nunca vi esse termo de consentimento, não1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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. Esse tipo de relato foi recorrente: “ Não, isso aí a gente não conversa com ele, não. Na verdade, eu nem sabia que tinha isso na ficha ” (A15); “ Pra falar a verdade, eu nunca li esse termo de consentimento. Tô sendo sincera com você [risos] , eu nunca li esse termo de consentimento pro paciente” (A19) 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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. Durante a observação participante, pacientes foram vistos assinando fichas sem efetuarem leitura prévia e sem receberem os devidos esclarecimentos sobre o termo 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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De acordo com A14, os estudantes recebem esclarecimentos relativos ao TCLE em uma única disciplina, o que não tem feito com que compreendam bem sua importância, nem que o apliquem de forma adequada nos atendimentos 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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. Conforme diz A18: “ Os termos de consentimento, aquela primeira parte da ficha, eles, eles preenchem lá fora e é onde tem, né? O termo de consentimento, de que ele tá reconhecendo de que ele tá numa universidade, nã, nã, nã, e ele já entra com aquilo assinado. Assim, e a gente não repassa isso com eles, não1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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Sobre esse aspecto, cabe observar que a instituição de ensino superior não está construindo uma relação com o paciente que contemple, de fato, o respeito à sua autonomia. O devido esclarecimento aos usuários da clínica de ensino não tem sido realizado na prática, muito embora sejam transmitidas aos alunos informações sobre a necessidade de que isso seja feito em disciplina teórica. É necessário ter coerência e atentar para a grande influência que o currículo oculto – constituído por valores, normas não declaradas, atitudes e crenças arraigadas aos ambientes de ensino e aprendizagem – tem sobre a forma de agir, que é incorporada pelos estudantes a partir do período de formação 1515. Campany LNS. O profissionalismo na formação superior em saúde: uma análise sobre a graduação em odontologia [tese] [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2016 [acesso 21 abr 2021]. Disponível: https://bitly.ws/3aGIf
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, 2424. Giroux HA. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.

25. Kentli FD. Comparison of hidden curriculum theories. European Journal of Educational Studies [Internet]. 2009 [acesso 24 jan 2024];1(2):83-8. Disponível: https://bitly.ws/3aGIN
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26. Galli A. Argentina: transformación curricular. Educ Med Salud [Internet]. 1989 [acesso 24 jan 2024];23(4):344-53. Disponível: https://bitly.ws/3aGJ6
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27. Rego S. A formação ética dos médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003.
- 2828. Rego S. Currículo paralelo em medicina, experiência clínica e PBL: uma luz no fim do túnel? Interface (Botucatu) [Internet]. 1998 [acesso 21 abr 2021];2(3):35-48. DOI: 10.1590/S1414-32831998000200004 .

Considerações finais

Os dados obtidos mostraram que o respeito à autonomia dos pacientes atendidos nas instituições de ensino superior analisadas não está sendo contemplado em algumas situações: quando há cerceamento do direito de livre escolha quanto às opções terapêuticas aplicáveis ao seu caso ou manipulação para aceitação de algum procedimento; quando não é fornecido ao indivíduo um esclarecimento que seja suficiente para que ele tenha condições de fazer escolhas conscientes, relativas ao tratamento ao qual será submetido; e em situações nas quais são feitas imagens suas para utilização em material didático sem seu consentimento.

A formação profissional do cirurgião-dentista ainda apresenta um foco tecnicista, em que o paciente é visto como um instrumento de aprendizado que capacita o estudante de odontologia para o campo de trabalho. A ideia, que alguns têm, de que a oportunidade de receber atendimento na clínica de ensino deve levar o paciente a permitir o irrestrito acesso ao seu corpo, além de equivocada, contribui para a violação do princípio da autonomia nos cenários de aprendizagem.

O modelo paternalista de atenção prevalece e sustenta a falaciosa percepção de que são os profissionais que sabem o que é melhor para o paciente e, dessa forma, têm todo o poder de decisão sobre o processo terapêutico. Em meio a essa questão, emergiu uma estigmatização do usuário das clínicas de ensino como uma pessoa pobre e incapaz de fazer suas próprias escolhas.

Esses resultados remetem à necessidade de que amplo debate seja feito, no meio acadêmico, sobre a importância de que o modelo hegemônico de educação em saúde, que privilegia o desenvolvimento da técnica e é regido pelo modelo paternalista de relação profissional-paciente, seja desconstruído. Além disso, é preciso que os cursos de graduação incluam em seus projetos pedagógicos a dimensão ética da atenção em saúde, não apenas de forma restrita a uma única disciplina (como é comum acontecer com a bioética) ou sob a perspectiva da ética deonto- lógica, mas de forma transversal à formação teórica e prática que os alunos recebem.

Assim, torna-se necessária a ética aplicada a uma práxis reflexiva sobre o cotidiano da assistência, incluindo a discussão de casos dilemáticos com os quais os alunos depararem, de forma que sejam estimulados ao desenvolvimento do senso crítico e à realização rotineira de autoavaliação. O objetivo é que os estudantes se capacitem para o remodelamento do próprio processo de trabalho, em prol da melhoria contínua da oferta de serviços e do estabelecimento de relações dignas e respeitosas com pacientes, pares e sociedade.

Referências

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  • Aprovação pesquisa Alfa CEP: CAAE 0090.0.258.000-10 / Aprovação pesquisa Beta CEP: CAAE 26087013.7.0000.5240

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2023
  • Revisado
    3 Out 2023
  • Aceito
    16 Nov 2023
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