Acessibilidade / Reportar erro

Tumores do tronco encefálico: reflexão moral sobre conduta cirúrgica

Resumo

Os tumores de tronco encefálico representam cerca de 10% a 20% dos tumores do sistema nervoso central em crianças. O glioma intrínseco difuso é o mais frequente (80% dos casos) desse grupo de tumores, caracterizados pela má evolução e por uma curta sobrevida. O diagnóstico pode ser feito por ressonância magnética (com espectroscopia) ou por biópsia estereotáxica, um método controverso, que permite o estudo imunohistoquímico e molecular do tumor. A reflexão moral se concentra na indicação de biópsia para pacientes vulneráveis e com mau prognóstico. A cirurgia é analisada do ponto de vista ético com base no melhor interesse da criança e na atitude altruísta do paciente e da família.

Neoplasias; Neurocirurgia; Biópsia; Bioética; Criança

Resumen

Los tumores de tronco encefálico representan alrededor del 10% al 20% de los tumores del sistema nervioso central en niños. El glioma intrínseco difuso es el más frecuente (80% de los casos) de este grupo de tumores, que se caracterizan por la mala evolución y una sobrevida corta. El diagnóstico se puede hacer por resonancia magnética (con espectroscopía) o por biopsia estereotáxica, un método controvertido, que permite el estudio inmunohistoquímico y molecular del tumor. La reflexión moral se focaliza en la indicación de biopsia para pacientes vulnerables y con mal pronóstico. Se analiza la cirugía desde el punto de vista ético, con base en el mejor interés del niño y en la actitud altruista del paciente y su familia.

Neoplasias; Neurocirugía; Biopsia; Bioética; Niño

Abstract

Brainstem tumors represent about 10% to 20% of central nervous system tumors in children. Diffuse intrinsic glioma is the most frequent (80% of cases) in this group of tumors, characterized by poor prognosis and short survival. Diagnosis can be made by magnetic resonance (with spectroscopy) or by stereotactic biopsy, a controversial method that allows immunohistochemical and molecular study of the tumor. Moral reflection focuses on the indication of biopsy for vulnerable patients with a poor prognosis. Surgery is analyzed from an ethical point of view based on the best interests of the child and altruistic attitude of patient and family.

Neoplasms; Neurosurgery; Biopsy; Bioethics; Child

Dilema bioético

Os tumores de tronco encefálico representam cerca de 10% a 20% dos tumores do sistema nervoso central em crianças, com 40 novos casos por ano na Grã-Bretanha e entre 300 e 400 nos Estados Unidos. Na Argentina, em um hospital de alta complexidade da cidade de Buenos Aires, foram diagnosticados 55 casos de 2016 a 2019 (comunicação pessoal).

Esses tumores se manifestam com maior frequência em pacientes com idade entre 6 e 9 anos, mas foram relatados casos em crianças menores de 1 ano11. Laigle-Donadey F, Doz F, Delattre JY. Brainstem tumors. In: Grisold W, Soffietti R, editores. Handbook of clinical neurology [Internet]. Amsterdam: Elsevier; 2012 [acesso 10 fev 2021]. p. 585-605. DOI: 10.1016/B978-0-444-53502-3.00010-0 , 22. Hassan H, Pinches A, Picton SV, Phillips R. Survival rates and prognostic predictors of high grade brain stem gliomas in childhood: a systematic review and meta-analysis. J Neurooncol [Internet]. 2017 [acesso 10 fev 2021];135:13-20. DOI: 10.1007/s11060-017-2546-1 . São classificados de acordo com a histologia, a localização, a infiltração e o padrão de progressão. Os tipos mais frequentes são o glioma difuso, o glioma exofítico dorsal, o glioma focal tectal e o glioma de junção cervicomedular33. Guillamo JS, Doz F, Delattre JY. Brain stem gliomas. Curr Opin Neurol [Internet]. 2001 [acesso 10 fev 2021];14(6):711-5. DOI: 10.1097/00019052-200112000-00006 .

O glioma difuso, ou glioma pontino intrínseco difuso (DIPG, na sigla em inglês), na anatomia patológica, corresponde ao astrocitoma anaplásico de alto grau (grau III na classificação da Organização Mundial da Saúde) ou ao glioblastoma multiforme (grau IV)44. Lin TF, Prados M. Brainstem gliomas. In: Gupta N, Banerjee A, Haas-Kogan DA, editores. Pediatric CNS tumors. 3ª ed. Berlin: Springer; 2017. p. 49-65. , 55. Saratsis AM, Nazarian J, Magge SN. Brainstem gliomas. In: Keating R, Goodrich JT, Packer R, editores. Tumors of the pediatric central nervous system. 2ª ed. New York: Thieme; 2013. p. 347-53. . O diagnóstico pode ser feito com ressonância magnética (RM), especialmente RM com espectroscopia, e, nesse caso, aceita-se que as informações fornecidas não diferem do diagnóstico anatomopatológico66. Quick-Weller J, Tritt S, Behmanesh B, Mittelbronn M, Spyrantis A, Dinc C et al. Biopsies of pediatric brainstem lesions display low morbidity but strong impact on further treatment decisions. J Clin Neurosci [Internet]. 2017 [acesso 10 fev 2021];44:254-9. DOI: 10.1016/j.jocn.2017.06.028
https://doi.org/10.1016/j.jocn.2017.06.0...
. Outra opção é a biópsia estereotáxica, método controverso no campo da neurocirurgia e da neuro-oncologia77. Leach PA, Listlin EJ, Coope DJ, Thorne JA, Kamaly-Asl ID, The Royal Manchester Children’s Hospital Clinical Neuroscience Group. Diffuse brainstem gliomas in children: should we or shouldn’t we biopsy? Br J Neurosurg [Internet]. 2008 [acesso 10 fev 2020];22(5):619-24. DOI: 10.1080/02688690802366198 .

O glioma difuso é o mais frequente dos tumores de tronco encefálico (80% dos casos) e sua rápida evolução é caraterizada pela enorme deterioração do paciente, sobrevida limitada e alta mortalidade, independentemente do tratamento11. Laigle-Donadey F, Doz F, Delattre JY. Brainstem tumors. In: Grisold W, Soffietti R, editores. Handbook of clinical neurology [Internet]. Amsterdam: Elsevier; 2012 [acesso 10 fev 2021]. p. 585-605. DOI: 10.1016/B978-0-444-53502-3.00010-0 , 88. Souza P, Hinojosa J, Muñoz MJ, Esparza J, Muñoz A. Gliomas del tronco encefálico. Neurocirugía [Internet]. 2004 [acesso 10 fev 2020];15(1):56-66. DOI: 10.1016/S1130-1473(04)70502-3 . A sobrevida média é de 10 meses, e o tratamento com radioterapia pode melhorar transitoriamente os sintomas neurológicos e estender a sobrevida em seis a nove meses, não mais que isso99. Maxwell R, Luksik AS, Garzon-Muvdi T, Yang W, Huang J, Bettegowda C et al. Population-based study determining predictors of cancer-specific mortality and survival in pediatric high-grade brainstem glioma. World Neurosurg [Internet]. 2018 [acesso 10 fev 2020];119:1006-15. DOI: 10.1016/j.wneu.2018.08.044
https://doi.org/10.1016/j.wneu.2018.08.0...
.

Os National Institutes of Health (NIH) indicam o valor da ressonância magnética para definir a condição do tumor (difuso ou focal) e explicam que dispor de uma amostra de biópsia permite o diagnóstico histológico e, ainda, a realização de exames imuno-histoquímicos, citogenéticos e de genética molecular, o que favorece um diagnóstico mais preciso e a classificação das neoplasias1010. National Cancer Institute. Childhood brain stem glioma treatment (PDQ®): health professional version [Internet]. 2020 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37Hr9B1
https://bit.ly/37Hr9B1...
. Os NIH indicam a resseção parcial e a biópsia para o diagnóstico de tumores focais; para os tumores difusos, que geralmente não eram submetidos a cirurgia para biópsia, a agência agora recomenda técnicas de biópsia estereotáxica (mais seguras e inócuas), com o objetivo de dispor de tecido para caraterização molecular do tumor, sempre dentro do marco dos ensaios clínicos1010. National Cancer Institute. Childhood brain stem glioma treatment (PDQ®): health professional version [Internet]. 2020 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37Hr9B1
https://bit.ly/37Hr9B1...
.

Na Argentina, o Ministério da Saúde publicou um documento de consenso de especialistas sobre tumores do sistema nervoso central em crianças. No que diz respeito aos tumores de tronco, 40% dos especialistas consultados sugerem biópsia estereotáxica em tumores focais, e 60% recomendam fazê-la “sempre que for possível”1111. Fischman M, Ismael J, Pesce P, Rufach D. Tumores pediátricos del sistema nervioso central [Internet]. Buenos Aires: Ministerio de Salud; 2015 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/3iLTQ69
https://bit.ly/3iLTQ69...
. O documento aponta que a biópsia no tumor difuso não é necessária porque não altera o tratamento, tendo caráter de pesquisa para fins acadêmicos. No futuro, quando a imuno-histoquímica identificar alguma terapia-alvo específica, como é o caso das mutações de histona, a biópsia será útil1111. Fischman M, Ismael J, Pesce P, Rufach D. Tumores pediátricos del sistema nervioso central [Internet]. Buenos Aires: Ministerio de Salud; 2015 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/3iLTQ69
https://bit.ly/3iLTQ69...
.

Quick-Weller e colaboradores66. Quick-Weller J, Tritt S, Behmanesh B, Mittelbronn M, Spyrantis A, Dinc C et al. Biopsies of pediatric brainstem lesions display low morbidity but strong impact on further treatment decisions. J Clin Neurosci [Internet]. 2017 [acesso 10 fev 2021];44:254-9. DOI: 10.1016/j.jocn.2017.06.028
https://doi.org/10.1016/j.jocn.2017.06.0...
apontam o valor da biópsia para dispor de uma amostra de tecido que permita realizar, além do estudo anatomopatológico e imuno-histoquímico clássico, a avaliação molecular e análise do genoma, o que permite categorizar melhor esses tumores e oferecer uma terapia individualizada para cada paciente. Nesse sentido, a European Society for Medical Oncology e a American Society of Clinical Oncolgy também enfatizam o valor da caraterização molecular e associam a histona H3.1K27M com maior sobrevida do que a histona H3.3K27M1212. Hoffman L, Veldhuijzen van Zanten SEM, Colditz N, Baugh J, Chaney B, Hoffmann M et al. Clinical, radiologic, pathologic, and molecular characteristics of long-term survivors of diffuse intrinsic pontine glioma (DIPG): a collaborative report from the International and European Society for Pediatric Oncology DIPG registries. J Clin Oncol [Internet]. 2018 [acesso 10 fev 2020];36(19):1963-72. DOI: 10.1200/JCO.2017.75.9308
https://doi.org/10.1200/JCO.2017.75.9308...
.

Diante desse cenário, é preciso analisar, em uma profunda e honesta reflexão, a indicação de cirurgia para esses tumores, especialmente para o tumor difuso, seja com indicação de biópsia diagnóstica, seja com critério de resseção tumoral. Essa reflexão requer, além de conhecimentos técnico-cirúrgicos, profunda análise bioética com o objetivo de responder se é moral ou não submeter pacientes a um procedimento cirúrgico, levando em conta o mau prognóstico que apresentam.

Reflexão sobre a indicação cirúrgica

Em princípio, quando se propõe um tratamento a um paciente, o objetivo é produzir um benefício ou, pelo menos, não provocar mais dano do que o causado pela própria doença. Nesse caso, as decisões sobre procedimentos cirúrgicos requerem avaliação criteriosa dos riscos e benefícios de uma cirurgia1313. Luna F. Planteos clásicos y teoría de los principios. In: Luna F, Salles A. Bioética: nuevas reflexiones sobre debates clásicos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica; 2008. p. 23-78 .

Ao analisar esses riscos e benefícios, é preciso levar em conta aspectos técnicos relacionados à possibilidade de complicações inerentes à cirurgia, como hemorragias, infeções, risco anestésico e alterações na função respiratória e cardíaca. Em relação à biópsia estereotáxica de tumores de tronco encefálico, alguns autores citam 1% de pacientes com déficit neurológico transitório pós-cirúrgico e 0,3% de mortalidade em crianças e adultos77. Leach PA, Listlin EJ, Coope DJ, Thorne JA, Kamaly-Asl ID, The Royal Manchester Children’s Hospital Clinical Neuroscience Group. Diffuse brainstem gliomas in children: should we or shouldn’t we biopsy? Br J Neurosurg [Internet]. 2008 [acesso 10 fev 2020];22(5):619-24. DOI: 10.1080/02688690802366198 , enquanto outros relatam até 9% de complicações em crianças11. Laigle-Donadey F, Doz F, Delattre JY. Brainstem tumors. In: Grisold W, Soffietti R, editores. Handbook of clinical neurology [Internet]. Amsterdam: Elsevier; 2012 [acesso 10 fev 2021]. p. 585-605. DOI: 10.1016/B978-0-444-53502-3.00010-0 .

No caso particular desses tumores, a coleta de amostra do tecido tumoral serve para confirmar um diagnóstico anatomopatológico. Entretanto, desde o advento da ressonância magnética, é possível definir com precisão a localização e as caraterísticas do tumor (focal ou difuso) para tomar decisões sobre a cirurgia com maior segurança e inclusive decidir sobre o tratamento com radioterapia. Além disso, atualmente, acrescenta-se a possibilidade de realizar estudos de imuno- histoquímica e análise molecular com a amostra de tecido obtida, que permitem definir melhor o diagnóstico tumoral e abrem possibilidades de prognóstico e tratamento no futuro.

Hoje, a única opção de tratamento, independentemente do resultado da anatomia patológica, é a radioterapia, e sempre se deve levar em conta que o prognóstico é ruim e a sobrevida é curta (especialmente para tumores difusos). Em extensa metanálise, Hassan e colaboradores22. Hassan H, Pinches A, Picton SV, Phillips R. Survival rates and prognostic predictors of high grade brain stem gliomas in childhood: a systematic review and meta-analysis. J Neurooncol [Internet]. 2017 [acesso 10 fev 2021];135:13-20. DOI: 10.1007/s11060-017-2546-1 pesquisaram fatores prognósticos e de sobrevida em crianças com tumores de tronco encefálico e observaram que não há diferença na sobrevida em relação à classificação tumoral, aos diversos regimes de radioterapia e ao uso de temozolomida (ainda que haja um amplo intervalo de confiança nesses dados).

Além disso, os autores mencionam que ainda não há dados suficientes para tirar conclusões quanto à idade dos pacientes e à duração dos sintomas antes do diagnóstico e no momento do achado de mutação de histona K27M e mutação PCVR122. Hassan H, Pinches A, Picton SV, Phillips R. Survival rates and prognostic predictors of high grade brain stem gliomas in childhood: a systematic review and meta-analysis. J Neurooncol [Internet]. 2017 [acesso 10 fev 2021];135:13-20. DOI: 10.1007/s11060-017-2546-1 . Assim, cabe fazer as seguintes perguntas: tendo em conta os riscos e o escasso benefício do procedimento, justifica-se a biópsia estereotáxica em crianças? É justo submeter uma criança a uma cirurgia que não lhe trará benefícios significativos nem melhorará sua qualidade de vida?

Na bioética, há um conceito muito arraigado, denominado “interesse superior da criança”, que pode e deve ser aplicado na tomada de decisões pela equipe clínico-cirúrgica. Garantir esse interesse é considerar a criança doente – e, portanto, vulnerável – como objeto central das decisões. Acima de tudo, importa o bem- estar do paciente e não acrescentar mais danos. Esse conceito de maior interesse está descrito na Convenção sobre os Direitos da Criança , que a Argentina assinou e incorporou à Lei 26.061/2005, Lei sobre a Proteção Integral dos Direitos da Criança e do Adolescente1414. Argentina. Ley nº 26.061. Protección integral de los derechos de niñas, niños y adolescentes [Internet]. Buenos Aires: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación; 2014 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/3iNKLtQ
https://bit.ly/3iNKLtQ...
.

Sem deixar de considerar essa premissa e apelando à responsabilidade da equipe médico- cirúrgica, surge a preocupação e o interesse dos profissionais de oferecer alternativas para as crianças com tumores de tronco encefálico. Por isso, o estudo de marcadores moleculares e imuno- histoquímicos tumorais abre caminhos para definir condutas terapêuticas e tentar melhorar o prognóstico e a qualidade de vida desses pacientes.

No entanto, é preciso ter em mente que, se um paciente for submetido a uma biópsia tumoral para detectar marcadores de células nesse tecido, considerando o conhecimento atual sobre o tema, é muito provável que tais informações não signifiquem um benefício para essa criança em particular. Por essa razão, é muito importante o diálogo honesto com a família da criança (e, se possível, com o paciente), para conciliar a conduta cirúrgica e não gerar falsas expectativas sobre o resultado do procedimento, que poderá ajudar outras crianças no futuro, mas muito provavelmente não ajudará o paciente. É evidente que a aceitação para realizar esse procedimento se daria por razões altruístas e mostraria uma atitude solidária para com outras crianças que padecerão da mesma doença, o que pode ser emocionalmente positivo para a criança e para a família.

Em relação a essa atitude altruísta, surge um dilema que gera diversas opiniões. Há quem considere que participar de uma pesquisa clínica é um dever moral, porque boas pesquisas trazem benefício à sociedade como um todo. Com base nesse conceito, crianças e seus pais teriam razões morais para realizar uma biópsia tumoral para fins científicos. Por outro lado, outros consideram que, dada sua condição de gravidade e vulnerabilidade, essas crianças devem ser protegidas de qualquer procedimento invasivo.

Como há opiniões fortes e contraditórias a favor da biópsia e contra ela, é difícil responder se esse procedimento respeita o melhor interesse da criança1515. Wilkinson R, Harris J. Razões morais e legais para o altruísmo no caso de biópsia do tronco cerebral em glioma difuso. Br J Neurosurg [Internet]. 2008 [acesso 10 fev 2020];22(5):617-18. DOI: 10.1080/02688690802482896
https://doi.org/10.1080/0268869080248289...
. Nesse caso, é crucial a atitude do médico neurocirurgião, do oncopediatra e do pediatra clínico que intervém nas decisões. Esses profissionais devem ser sinceros com a família da criança e dispor de tempo para dialogar honestamente e oferecer informações precisas sobre a doença, suas caraterísticas, prognóstico e tratamento, especialmente em relação à indicação da cirurgia, que muitas vezes é vista pelos pais angustiados como uma solução.

Nessas circunstâncias, a equipe médica deve evitar uma atitude paternalista. Todas as informações transmitidas ao paciente e à família devem ser registradas por escrito em documento de consentimento esclarecido, onde se indicarão os riscos e benefícios da cirurgia, se o procedimento faz ou não parte de um ensaio clínico e se o material de biopsia será conservado no hospital para estudos futuros.

Sem dúvida, caberá à equipe médica decidir quando intervir, com base em critérios profissionais e na análise de cada caso. O procedimento talvez se justifique em crianças com condições clínicas neurológicas razoáveis, sempre com a concordância dos pais ou responsáveis pelo paciente, que representam o menor e devem exercer plenamente a autonomia1616. Beauchamp T, Childress J. Principios de ética biomédica. 4ª ed. Barcelona: Masson; 1999. na tomada de decisões baseadas na compreensão das informações recebidas. Cabe destacar que, no caso das crianças, a autonomia é progressiva de acordo com seu amadurecimento e desenvolvimento e que esses pacientes devem receber informações sobre o procedimento a que serão submetidos na medida de sua capacidade de compreensão1717. Ciruzzi MS. La competencia bioética en el menor de edad. In: Ciruzzi MS. La autonomia del paciente pediátrico: ¿mito, utopía o realidad? Buenos Aires: Cathedra Jurídica; 2011. p. 37-77. .

Nessa situação, como em tantas outras, o avanço da ciência e da tecnologia traz desafios, e para responder a eles é necessário não apenas tomar decisões científicas, mas também analisar os valores morais em jogo. A ética é uma ferramenta que pode ajudar a refletir sobre esses valores e, certamente, a ciência deve procurar novas opções de diagnóstico e tratamento para o bem dos seres humanos, mas sempre de forma responsável. Nesse sentido, é importante destacar o comitê de ética clínica como a área mais apropriada para uma análise reflexiva interdisciplinar.

Decisões relativas a crianças com tumores de tronco encefálico devem ser cuidadosamente avaliadas por uma equipe médico-cirúrgica, não individualmente, e, por sua vez, a incorporação dessas crianças em ensaios clínicos deve ser avaliada por comitês de ética em pesquisa. Essa é uma forma de incorporar diferentes olhares e opiniões, sempre com o objetivo de oferecer o melhor ao paciente, pensando em seu interesse e bem-estar. É precisamente o comitê de ética em pesquisa que deve proteger as crianças, que, além de pacientes, são sujeitos de pesquisa.

Considerações finais

As pesquisas científicas trazem benefícios para a sociedade e para as futuras gerações, e tais benefícios são levados em conta quando se incluem crianças em pesquisas que não as beneficiarão diretamente, uma vez que elas são as únicas que poderão ajudar outras crianças em condições semelhantes1818. Jonas H. Técnica, medicina y ética: la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós; 1997. . No entanto, embora seja necessário reconhecer o enorme valor das pesquisas, sempre se devem considerar as obrigações de todas as pessoas ou entidades que intervêm em um protocolo de ensaio clínico (no caso aqui analisado, neurocirurgiões, médicos anatomopatologistas, neuro-oncologistas, pediatras clínicos, autoridades do hospital e comitês de ética em pesquisa).

De acordo com Jonas1818. Jonas H. Técnica, medicina y ética: la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós; 1997. , a tecnologia não é neutra, podendo empregar-se tanto para o bem quanto para o mal, e, como gera poder, ela exige responsabilidade da pessoa que a utiliza. É sempre o bem humano que deve ser promovido, respeitando os interesses e os direitos das pessoas, reparando injustiças e aliviando o sofrimento. O objeto da obrigação humana são os homens1818. Jonas H. Técnica, medicina y ética: la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós; 1997. .

Os tumores de tronco constituem um exemplo claro no qual a equipe médico-cirúrgica deve garantir o respeito pela autonomia do paciente e da família, conciliando a prática assistencial, que tem um objetivo definido de beneficência, com a pesquisa clínica, que nem sempre proporciona um benefício concreto para o paciente.

Referencias

  • 1
    Laigle-Donadey F, Doz F, Delattre JY. Brainstem tumors. In: Grisold W, Soffietti R, editores. Handbook of clinical neurology [Internet]. Amsterdam: Elsevier; 2012 [acesso 10 fev 2021]. p. 585-605. DOI: 10.1016/B978-0-444-53502-3.00010-0
  • 2
    Hassan H, Pinches A, Picton SV, Phillips R. Survival rates and prognostic predictors of high grade brain stem gliomas in childhood: a systematic review and meta-analysis. J Neurooncol [Internet]. 2017 [acesso 10 fev 2021];135:13-20. DOI: 10.1007/s11060-017-2546-1
  • 3
    Guillamo JS, Doz F, Delattre JY. Brain stem gliomas. Curr Opin Neurol [Internet]. 2001 [acesso 10 fev 2021];14(6):711-5. DOI: 10.1097/00019052-200112000-00006
  • 4
    Lin TF, Prados M. Brainstem gliomas. In: Gupta N, Banerjee A, Haas-Kogan DA, editores. Pediatric CNS tumors. 3ª ed. Berlin: Springer; 2017. p. 49-65.
  • 5
    Saratsis AM, Nazarian J, Magge SN. Brainstem gliomas. In: Keating R, Goodrich JT, Packer R, editores. Tumors of the pediatric central nervous system. 2ª ed. New York: Thieme; 2013. p. 347-53.
  • 6
    Quick-Weller J, Tritt S, Behmanesh B, Mittelbronn M, Spyrantis A, Dinc C et al. Biopsies of pediatric brainstem lesions display low morbidity but strong impact on further treatment decisions. J Clin Neurosci [Internet]. 2017 [acesso 10 fev 2021];44:254-9. DOI: 10.1016/j.jocn.2017.06.028
    » https://doi.org/10.1016/j.jocn.2017.06.028
  • 7
    Leach PA, Listlin EJ, Coope DJ, Thorne JA, Kamaly-Asl ID, The Royal Manchester Children’s Hospital Clinical Neuroscience Group. Diffuse brainstem gliomas in children: should we or shouldn’t we biopsy? Br J Neurosurg [Internet]. 2008 [acesso 10 fev 2020];22(5):619-24. DOI: 10.1080/02688690802366198
  • 8
    Souza P, Hinojosa J, Muñoz MJ, Esparza J, Muñoz A. Gliomas del tronco encefálico. Neurocirugía [Internet]. 2004 [acesso 10 fev 2020];15(1):56-66. DOI: 10.1016/S1130-1473(04)70502-3
  • 9
    Maxwell R, Luksik AS, Garzon-Muvdi T, Yang W, Huang J, Bettegowda C et al. Population-based study determining predictors of cancer-specific mortality and survival in pediatric high-grade brainstem glioma. World Neurosurg [Internet]. 2018 [acesso 10 fev 2020];119:1006-15. DOI: 10.1016/j.wneu.2018.08.044
    » https://doi.org/10.1016/j.wneu.2018.08.044
  • 10
    National Cancer Institute. Childhood brain stem glioma treatment (PDQ®): health professional version [Internet]. 2020 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/37Hr9B1
    » https://bit.ly/37Hr9B1
  • 11
    Fischman M, Ismael J, Pesce P, Rufach D. Tumores pediátricos del sistema nervioso central [Internet]. Buenos Aires: Ministerio de Salud; 2015 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/3iLTQ69
    » https://bit.ly/3iLTQ69
  • 12
    Hoffman L, Veldhuijzen van Zanten SEM, Colditz N, Baugh J, Chaney B, Hoffmann M et al. Clinical, radiologic, pathologic, and molecular characteristics of long-term survivors of diffuse intrinsic pontine glioma (DIPG): a collaborative report from the International and European Society for Pediatric Oncology DIPG registries. J Clin Oncol [Internet]. 2018 [acesso 10 fev 2020];36(19):1963-72. DOI: 10.1200/JCO.2017.75.9308
    » https://doi.org/10.1200/JCO.2017.75.9308
  • 13
    Luna F. Planteos clásicos y teoría de los principios. In: Luna F, Salles A. Bioética: nuevas reflexiones sobre debates clásicos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica; 2008. p. 23-78
  • 14
    Argentina. Ley nº 26.061. Protección integral de los derechos de niñas, niños y adolescentes [Internet]. Buenos Aires: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación; 2014 [acesso 10 fev 2020]. Disponível: https://bit.ly/3iNKLtQ
    » https://bit.ly/3iNKLtQ
  • 15
    Wilkinson R, Harris J. Razões morais e legais para o altruísmo no caso de biópsia do tronco cerebral em glioma difuso. Br J Neurosurg [Internet]. 2008 [acesso 10 fev 2020];22(5):617-18. DOI: 10.1080/02688690802482896
    » https://doi.org/10.1080/02688690802482896
  • 16
    Beauchamp T, Childress J. Principios de ética biomédica. 4ª ed. Barcelona: Masson; 1999.
  • 17
    Ciruzzi MS. La competencia bioética en el menor de edad. In: Ciruzzi MS. La autonomia del paciente pediátrico: ¿mito, utopía o realidad? Buenos Aires: Cathedra Jurídica; 2011. p. 37-77.
  • 18
    Jonas H. Técnica, medicina y ética: la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós; 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2020
  • Revisado
    3 Ago 2021
  • Aceito
    5 Ago 2021
Conselho Federal de Medicina SGAS 915, lote 72, CEP 70390-150, Tel.: (55 61) 3445-5932, Fax: (55 61) 3346-7384 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: bioetica@portalmedico.org.br