Resumo
O propósito deste artigo é apresentar a Bioética, especialmente em seu recorte educacional, como meio para a promoção das competências moral e democrática, estimulando a capacidade para enfrentar não apenas os temas bioéticos, mas também problemas éticos, morais e políticos em geral. Acreditamos que esforços educativos devam ser dirigidos aos aspectos afetivo e cognitivo do comportamento moral se quisermos promover a capacidade de fazer juízos morais e agir de acordo com tais juízos. Em sociedades pluralistas democráticas, é necessário também promover habilidades de expressão e de escuta como um meio para lidar com problemas morais. Qualquer Bioética que não seja também um ato educacional está fadada a perder muito do seu significado. Propomos uma virada educacional da Bioética, com foco na construção de uma caixa de ferramentas educacionais composta por instrumentos de intervenção e avaliação.
Bioética; Educação; Desenvolvimento moral; Democracia
Abstract
The purpose of this paper is to present Bioethics, particularly its educational aspect, as a way to promote moral and democratic competencies, thus improving a personal capacity to face not only bioethical issues but also broader ethical, moral and even political problems. We believe that we should invest educative efforts on the affective and cognitive aspects of moral behavior if we want to promote the capacity to make moral judgments and act according to them. In pluralistic democratic societies, it is necessary to also promote the capacity to speak up and listen to arguments as a means to deal with moral problems. Any Bioethics which does not also include an educational action is prone to lose most of its significance. We propose that Bioethics should be led to an educational turn, focusing on the construction of an educative toolbox composed of interventional and evaluative instruments.
Bioethics; Education; Moral development; Democracy
Resumen
El propósito del artículo es presentar la Bioética, especialmente en su recorte educacional, como un medio de promover la competencia moral y democrática, desarrollando la capacidad para enfrentar no solamente los temas bioéticos sino también problemas éticos, morales y políticos en general. Creemos que diversos esfuerzos educativos deben ser dirigidos a los aspectos afectivos y cognitivos del comportamiento moral si queremos desarrollar la capacidad de hacer juicios morales y de actuar de acuerdo con tales juicios. En sociedades pluralistas democráticas es necesario también promover habilidades de expresión y escucha como medio para lidiar con problemas morales. Cualquier Bioética que no sea también un acto educacional está destinada a perder mucho de su significado. Proponemos un giro educativo de la Bioética, enfocado en la construcción de una caja de herramientas educacionales compuesta por instrumentos de intervención y evaluación.
Bioética; Educación; Desarrollo moral; Democracia
Estima-se que, em uma única noite, em 20 de junho de 2013, mais de um milhão de pessoas foram às ruas de várias cidades brasileiras. Essas enormes manifestações foram precedidas e seguidas por outras menores e havia pelo menos três características comuns a todas elas: 1) Foram organizadas através das redes sociais e não contavam com lideranças tradicionais unificadas; 2) Apesar de suas múltiplas reivindicações, um alvo primário foi selecionado: a qualidade dos serviços públicos (especialmente transporte, saúde, educação e previdência); e 3) Havia frustração com relação à forma com que a representação democrática era conduzida no país. No nosso entendimento, esta última característica sugere algumas demandas que podem ser abordadas pela Bioética.
Como vimos no passado recente com relação a outros movimentos populares algo semelhantes (“Occupy Wall Street”, manifestações na Espanha e a primavera Árabe, por exemplo), tanto os analistas como os governantes pareciam estar completamente perdidos quanto ao significado, às respostas apropriadas e às consequências previsíveis em relação à voz do povo. Em um exemplo típico daquilo que Bauman chama “Modernidade Líquida”, a incerteza estava por toda parte 11. Bauman Z. Liquid modernity. Malden: Polity Press; 2000..
De acordo com esta concepção, as sociedades ocidentais contemporâneas ainda são modernas. O termo Pós-modernidade não é bem fundamentado, já que sugere a ideia de que ultrapassamos a Modernidade enquanto, de fato, continuamos vivendo em seus elementos constitutivos principais: Sua dinâmica de questionamento racional permanente e seu arcabouço, no qual o status social é conquistado através do mérito, ao invés de ser um direito de nascença 22. Heller A. A Theory of modernity. Oxford: Wiley; 1999..
Mas a modernidade atual é bastante diferente daquela imaginada pelos filósofos iluministas. No Século XX, com a emergência de regimes totalitários em ambos os lados do espectro político e após duas guerras mundiais (quando mais pessoas foram mortas ou abandonadas para morrer como resultado de decisões humanas do que em qualquer outro período da história) 33. Hobsbawn E. The age of extremes. New York: Pantheon Books; 1995., a crença de que a investigação racional nos levaria a um mundo de paz e prosperidade para todos não mais se sustentava. Utopias ideológicas (fascismo, comunismo, positivismo) foram gravemente abaladas. As sociedades ocidentais contemporâneas perderam gradualmente sua fé na militância e nas paixões políticas até acabarem consagrando um individualismo hedonista 44. Lipovetsky G. Hypermodern times. Malden: Polity Press; 2005..
Além disso, nossa época é “líquida”, no sentido de que as coisas estão sempre fluindo, tomando formas diferentes e não são facilmente contidas 11. Bauman Z. Liquid modernity. Malden: Polity Press; 2000.. Com a chegada da revolução digital e da globalização econômica, este movimento contínuo foi acelerado de modo impressionante e, tanto o mundo físico quanto as relações humanas parecem ocorrer em ciclos mais rápidos. Como esperado, isso acelerou a mudança em andamento e também afetou a ética e a moralidade.
John Rawls levantou uma questão que enuncia claramente o desafio, tão ético quanto político, que temos que enfrentar: Como é possível que possa existir, ao longo do tempo, uma sociedade que cidadãos livres e iguais divididos profundamente por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis mas incompatíveis? 55. Rawls J. Political liberalism. New York: Columbia University Press; 2005. A complexidade atinge o ápice em países em desenvolvimento, onde a tarefa de estabilizar uma sociedade justa tem que ser precedida da necessidade de promover a liberdade e igualdade entre seus cidadãos.
Sob todas essas circunstâncias, uma coisa é fundamental: a necessidade de capacitar as pessoas para se envolverem em discussões de propostas que visam resolver os problemas sociais contemporâneos. O propósito deste artigo é apresentar a Bioética, particularmente seu aspecto educacional, como modo de promover as competências relacionadas ao raciocínio prático e à ação moral, assim aperfeiçoando habilidades práticas que são necessárias para entender e participar nas abordagens futuras da democracia deliberativa.
Problemas práticos
Uma coisa que as filosofias política e moral têm em comum é que elas lidam com problemas práticos. Esses são problemas que precisam ser resolvidos, ou a vida comum será perturbada com consequências, no mínimo, desagradáveis. As coisas humanas, especialmente as relações humanas, dão origem a problemas práticos. Essas coisas e relações são marcadas pela contingência: Não seguem nenhuma lei de necessidade e, portanto, poderiam ser diferentes do que aconteceu que fossem. Por causa disso, sempre que se enfrentam problemas práticos, é necessária uma forma de conhecimento que não leva à certeza; mas que, contudo, apresentará recomendações, orientação ou obrigações 66. Canto-Sperber M, Ogien R. Pratique. In: Canto-Sperber M, editor. Dictionnaire d’éthique et de philosophie moral. Paris: Presses Universitaires de France; 2004. p. 1524-34..
Há três tipos de problemas práticos: pragmáticos, éticos e morais 77. Habermas J. On the pragmatic, the ethical and the moral employments of practical reason. Justification and application: remarks on discourse ethics. Cambridge: The MIT Press; 1993. p. 1-18.. Problemas pragmáticos lidam com situações nas quais o objetivo final já está estabelecido. O agente tem que descobrir, com base no raciocínio instrumental e na observação empírica, formas eficientes de atingir esse objetivo 77. Habermas J. On the pragmatic, the ethical and the moral employments of practical reason. Justification and application: remarks on discourse ethics. Cambridge: The MIT Press; 1993. p. 1-18..
Problemas práticos éticos estão relacionados à escolha dos objetivos 77. Habermas J. On the pragmatic, the ethical and the moral employments of practical reason. Justification and application: remarks on discourse ethics. Cambridge: The MIT Press; 1993. p. 1-18.. Exploram a categoria de valores ou bens, coisas consideradas valiosas pelo agente. Seu ponto central é descobrir ou construir uma concepção autêntica de uma vida boa, uma vida que vale a pena viver, que é o mais legítimo de todos os empreendimentos individuais: a busca da felicidade ou, como diriam os gregos antigos, eudaimonia. A fim de buscar isso é necessário ter iluminação e autoconhecimento, que podem ser promovidos através de processos reflexivos individuais 77. Habermas J. On the pragmatic, the ethical and the moral employments of practical reason. Justification and application: remarks on discourse ethics. Cambridge: The MIT Press; 1993. p. 1-18..
Problemas práticos morais surgem de conflitos entre visões diferentes do que constitui uma vida boa. Seu ponto central é a justificação e aplicação de regras que estabelecem deveres recíprocos. Basicamente, problemas morais estão relacionados à Justiça em relações interpessoais e isso implica que os agentes devem ser capazes de se colocarem no lugar de outras pessoas e de entenderem diferentes visões de mundo. Para conseguir isso, o pensamento reflexivo individual não é suficiente: Apenas através de discussões abertas e livres, nas quais o raciocínio comunicativo (raciocínio que busca a compreensão ao invés de manipulação e controle) é empregado, podem ser alcançada soluções justas 77. Habermas J. On the pragmatic, the ethical and the moral employments of practical reason. Justification and application: remarks on discourse ethics. Cambridge: The MIT Press; 1993. p. 1-18..
Sempre que estes conflitos de necessidades e interesses envolvem grupos grandes (como os moradores de uma cidade, uma nação ou mesmo o mundo todo), eles podem ser descritos como problemas políticos. No nosso ponto de vista, como a Bioética lida com problemas éticos, morais e políticos nos campos das ciências biológicas e da saúde, ela pode ser uma ferramenta poderosa na tarefa de capacitar as pessoas a enfrentarem os problemas práticos das sociedades pluralistas contemporâneas.
A promoção da competência moral
No campo da psicologia moral há um acordo sobre o fato de que o comportamento moral tem dois aspectos diferentes, embora inseparáveis: o afeto e a cognição. Até certo ponto, o contexto em que a decisões morais são tomadas e as ações morais acontecem influencia esses dois aspectos do comportamento moral. Enquanto alguns autores enfatizam a importância dos sentimentos e emoções, outros enfatizam a racionalidade e outro grupo, ainda, enfoca o contexto socioeconômico.
Um exemplo do último grupo é a corrente do aprendizado social, que associa a educação moral à observação e imitação de exemplos oferecidos por atores sociais relevantes 88. Bandura A. Social learning theory. New York: General Learning Press; 1971.. Embora esta abordagem tradicional seja considerada por muitos o meio mais eficaz de ensinar e aprender comportamento moral, ele tem algumas armadilhas. A mais óbvia é que modelos podem ser bons ou maus e, assim, a mera imitação de exemplos relevantes pode desviar as pessoas. Ainda assim, esta é, de fato, uma forma poderosa de se influenciar o comportamento moral e, assim, investir algum esforço na preparação e consciência de atores sócias relevantes será sempre uma parte importante de qualquer abordagem educativa ao desenvolvimento moral.
A corrente intuitivista social está neste primeiro grupo. Ela crê que quando se enfrenta um problema moral, simplesmente sente-se – baseado em emoções, intuição e na cultura – a melhor linha de ação. O raciocínio viria em seguida, a fim de justificar a decisão intuitiva e/ou de influenciar o julgamento alheio. De acordo com essa visão, as pessoas argumentariam como um advogado tentando defender suas posições intuitivas ao invés de como um juiz tentando descobrir a decisão correta 99. Haidt J. The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment. Psychol Rev. 2001;108(4):814-34.. Embora o intuitivismo social tenha desenvolvido um instrumento avaliativo baseado em sua compreensão teórica da moralidade 1010. Graham J, Nosek BA, Haidt J, Iyer R, Koleva S, Ditto PH. Mapping the moral domain. Journal of Personality and Social Psychology. 2011;101(2):366-85., ainda lhe falta um corpo consistente de evidências empíricas para corroborar sua visão.
Entre os racionalistas, a corrente cognitiva estrutural – de longe a tendência empiricamente mais mais corroborada na psicologia moral – defende a ideia de que o afeto é a fonte de energia da ação moral. O afeto forneceria a matéria dos ideais morais e da orientação moral, motivando assim o comportamento moral 1111. Piaget J. Six psychological studies. New York: Vintage Books; 1968.. A cognição, por outro lado, levaria essa motivação em direção à ação decisiva; e teria a função de aplicar ideais morais a situações específicas de modo organizado e coerente 1212. Lind G. La moral puede enseñarse: manual teórico-practico de la formación moral y democrática. Ciudad de Mexico: Trillas; 2007..
Lawrence Kohlberg, o principal autor da corrente cognitiva estrutural, definiu uma vez o aspecto cognitivo como uma competência, ou seja, uma capacidade ou habilidade de fazer algo de modo eficiente. De acordo com ele, a competência de julgamento moral é a capacidade de tomar decisões e fazer julgamentos que são morais (isto é, baseados em princípios internos) e de agir de acordo com tais julgamentos 1313. Kohlberg L. Development of moral character and moral ideology. In: Hoffman ML, Hoffman LW, editors. Review of Child Development Research. New York: Russell Sage Foundation; 1964. p. 381-431..
Independente da corrente que se escolhe como referência teórica, é inequívoco que vivemos em uma época de déficit motivacional no que se refere à realização de ações morais. Quando a Modernidade reafirma a autonomia individual, ela desacopla o comportamento moral tanto da salvação divina quanto das concepções seculares de uma vida boa, levando, assim, a um déficit motivacional. Afinal, por que se deveria agir com justiça se isso não vai nem ajudar nos próprios planos de vida da pessoa (às vezes podendo até ameaçar estes planos), nem levar ao paraíso?
A motivação moral se define como a capacidade de dar prioridade aos valores morais sobre os outros tipos de valores (econômicos, sociais, estéticos, etc.) sempre que o agente enfrenta um problema prático 1414. Rest JR. Background: theory and research. In: Rest JR, Narváez D, editors. Moral development in the professions: psychology and applied ethics. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1994. p. 1-26.. Isso significa que os valores morais (como liberdade, honestidade e justiça) ocupam a posição mais alta em uma hierarquia pessoa de valores. E como os valores são um investimento afetivo, a razão, por si mesma, não parece capaz de motivar as pessoas a agirem moralmente.
Na figura 1, apresentamos um diagrama, baseado na “Teoria de Duplo Aspecto do Comportamento e Desenvolvimento Moral” (“Dual Aspect Theory of Moral Behavior and Development”) 1212. Lind G. La moral puede enseñarse: manual teórico-practico de la formación moral y democrática. Ciudad de Mexico: Trillas; 2007. e no conceito de competência de julgamento moral 1313. Kohlberg L. Development of moral character and moral ideology. In: Hoffman ML, Hoffman LW, editors. Review of Child Development Research. New York: Russell Sage Foundation; 1964. p. 381-431., que expressa nossa compreensão com relação ao que acontece na mente humana sempre que nos deparamos com um problema prático moral ou ético. De acordo com essa teoria, a competência para o julgamento moral conduz valores de ideias através da tomada de decisão moral e do comportamento moral. Contudo, se prestarmos atenção à própria definição de competência para julgamento moral, aprendemos que ela ela se baseia em “princípios internos” que, ao mesmo tempo, podem ser compreendidos como abstrações reflexivas do aspecto afetivo. Sugere que o afeto e a cognição influenciam reciprocamente um ao outro ao longo do processo que resulta em um comportamento moral.
Competência moral. Elaboração sobre a “Teoria de Duplo Aspecto do Comportamento e Desenvolvimento Moral” usando a definição de “competência para julgamento moral”
A neurociência já encontrou evidências que corroboram um modelo de acordo com o qual a cognição e o afeto, garças à sua interação constante, tem que ser equilibrados a fim de promover o comportamento moral. Damasio observou que pacientes com dano cerebral em áreas responsáveis principalmente por estados emocionais, além de mostrarem respostas emocionais rasas e comportamento indiferente, também tinham dificuldades em escolher a melhor linha de ação quando defrontadas com um problema prático, apesar de terem intactas as outras capacidades cognitivas 1515. Damasio A. Descartes’ error. New York: Penguin Books; 2005.. Ele conclui que raciocínio sem emoção pode evitar que os indivíduos, doentes ou saudáveis, atribuam valores diferentes para opções diferentes, expondo uma paisagem de decisão plana. A ideia é que sentimentos e emoções, ao invés de apenas perturbarem a razão, também podem apoiá-la: o comprometimento emocional é uma fonte importante de comportamento irracional 1515. Damasio A. Descartes’ error. New York: Penguin Books; 2005..
Do ponto de vista educacional, já que, por um lado, o rearranjo de valores e a consequente multiplicidade de visões de uma vida boa são considerados legítimos, e, por outro lado, há evidências crescentes de uma interação positiva entre afeto e cognição no gerenciamento de problemas práticos, Parece importante investir esforços educacionais em ambos os aspectos do comportamento moral (bem como na melhora das condições contextuais que podem complicar ou facilitar o desempenho moral). Nesse sentido, a intervenção educativa seve buscar a promoção da precedência de valores morais sobre outros tipos de valores e a capacitação dos indivíduos para elaborar, expor e defender planos razoáveis para uma vida boa.
Contudo, em sociedades pluralistas contemporâneas, promover a competência moral (em seus aspectos afetivo e moral) não é suficiente. Em um mundo onde as visões de uma vida boa são tão diversos, a consciência e boa vontade individuais não são suficientes para justificar ações e regras morais. A perspectiva monológica Kantiana da consciência individual é forçada a se expandir para uma intersubjetividade dialógica. Neste sentido, a ideia de democracia, traduzida do domínio político ao ético, inspira a apresentação de outra competência que é fundamental para lidar com os problemas morais e políticos de nossa era.
A ideia de democracia: da política à ética
A ideia de democracia, como a maioria das ideias que constituem a tradição ocidental, foi concebida na Grécia antiga. Basicamente, o “poder do povo” ser caracterizava por um regime de governo no qual as decisões que diziam respeito à polis (decisões políticas) eram tomadas por todos os cidadãos e não por um soberano ou qualquer grupo privilegiado. Essas decisões resultavam de um professo de discussão e deliberação, conduzido na praça pública (a ágora) e aberta a todos os cidadãos – o que excluía mulheres e escravos.
Este foi o procedimento imaginado por atenienses antigos para dar legitimidade às decisões políticas, uma vez que a liberdade de expressão, a igualdade de oportunidades de expressão e um mecanismo de votação em que o voto de cada cidadão tinha o mesmo peso, pode transmutar a derrota em algo mais aceitável 1616. Ribeiro RJ. Democracia. São Paulo: Publifolha; 2001..
Mas essa forma de democracia indireta seria descontinuada com o declínio da civilização Grega. Procedimentos não-democráticos de tomada de decisão prevaleceram por toda a Idade Média e apenas com a Modernidade os procedimentos democráticos – já diferentes daqueles inventados pelos gregos antigos (a representação e a inclusão de todos os interessados foram mudanças históricas importantes) – foram retomados e finalmente triunfaram nas sociedades desenvolvidas ocidentais.
Uma sociedade democrática vai além dessas características procedurais de um regime: Institui direitos que, entre outras coisas, protegem as visões de mundo minoritárias contra a vontade da maioria. Sempre que a soberania popular é exercida em um contexto de respeito a todos e leva em conta os direitos das minorias, a democracia se revela como um conceito moral 1717. Larmore C. The moral basis of political liberalism. Journal of Philosophy. 1999;96(12):599-625..
Um regime de governo ou a relação procedural de de uma sociedade entre democracia e política implica uma necessidade fundamental: o empoderamento das pessoas para participarem nas decisões políticas. A promoção desta competência democrática individual é, ao mesmo tempo, uma necessidade e uma consequência da participação democrática. Graças à sua natureza discursiva, a participação democrática pode desenvolver raciocínio prático, tolerância e respeito mútuo, ao mesmo tempo em que ganha autoconhecimento e autorrealização 1818. Warren ME. The self in discursive democracy. In: White KS, editor. The Cambridge companion to Habermas. Cambridge: Cambridge University Press; 1995. p. 167-200..
Podemos definir competência democrática como a capacidade de enunciar discursos éticos e engajar-se em discussões morais usando o raciocínio a fim de produzir e aceitar argumentos como meios de resolver conflitos éticos 1919. Lind G. Teaching students to speak up and listen to others: fostering moral-democratic competencies. In: Lund DE, Carr PR, editors. Doing democracy: striving for political literacy and social justice. New York: Peter Lang; 2008. p. 319-36.. Segundo Dewey 2020. Dewey J. Problems of men. New York: Philosophical Library; 1946. p. 57., a fim de entrar nos campos da ética e da moral, a democracia não pode ser compreendida apenas como algo externo e institucional, mas também como um ideal moral, um valor em nome do qual as pessoas vão agir. O autor introduziu a ideia de democracia como valor moral quando declarou que democracia (…) é um modo de vida, social e individual 2020. Dewey J. Problems of men. New York: Philosophical Library; 1946. p. 57..
Do ponto de vista individua, um modo de vida democrático representa a liberdade de se planejar a própria vida e a capacidade de executar este plano utilizando contribuições culturais para enriquecê-lo enquanto leva em conta as consequências para si mesmo e para os outros 2121. Aikin WM. The story of the eight-year study. London: Harper; 1942. v. 1. (Adventures in American education). Do ponto de visa social, um modo de vida democrático pode ser descrito como um conjunto de atitudes que inclui renúncia ao farisaísmo, conversa honesta e boas maneiras 1616. Ribeiro RJ. Democracia. São Paulo: Publifolha; 2001..
O pacifista indiano Mahatma Gandhi colocou de modo perfeito o desafio que temos que enfrentar: Na democracia verdadeira, cada homem e mulher é ensinado(a) a pensar por si próprio(a). Como essa revolução real pode ser realizada, eu não sei (…) 2222. Gandhi M. Essence of democracy. In: Prabhu RK, Rao UR, editors. The mind of Mahatma Gandhi. [Internet]. 1960 [acesso 14 maio 2013]. Disponível: http://bit.ly/299ehpm
http://bit.ly/299ehpm...
. Concordamos plenamente com o objetivo de Gandhi também compartilhamos de sua dúvida: Como podemos promover a revolução fundamental de fazer com que cada ser humano pense por si mesmo? A educação para a Bioética e pela Bioética pode ser um caminho.
Educando para a Bioética e pela Bioética
Entendemos bioética não apenas como um campo acadêmico interdisciplinar em que são discutidos os conflitos éticos nas ciências biológicas e nos cuidados com a saúde humana, mas principalmente como um movimento transcultural que surgiu da efervescência cultural da década de 1960 e da necessidade de uma ética aplicada relacionada às incertezas contemporâneas na biologia e nos cuidados com a saúde. Seja como movimento social ou campo acadêmico, acreditamos que a tarefa principal da Bioética é compartilhar o esclarecimento ético (fornecendo informação, propiciando a discussão e a reflexão, melhorando as opções para deliberação) e orientação moral (através de regulamentos normativos revisáveis) para o gerenciamento de problemas éticos e morais nas ciências da vida e na saúde.
Como os campos de ciências biológicas e da saúde humana são exemplos típicos da complexidade do mundo contemporâneo e porque suas questões são de interesse geral (afinal, a dignidade humana está diretamente relacionada à liberdade e sem condições adequadas de saúde não podemos falar em seres humanos livres), acreditamos que a Bioética pode instigar, nos diferentes níveis de educação formal, as competências que auxiliariam as pessoas a enfrentar não apenas problemas bioéticos, mas também problemas morais, éticos e até políticos.
Nesse sentido, previmos a contribuição da bioética sob dois aspectos: 1) Oferecendo-se como um locus de discussão tolerante e respeitoso onde diferentes visões de mundo podem interagir pacificamente a fim de melhorar a vida social; e 2) Promovendo, através de intervenções educativas, competências morais e democráticas.
A educação para Bioética é uma necessidade social. A saúde é um valor contemporâneo central e a capacidade de inseri-la em qualquer formulação de uma vida boa é indispensável. Assim, é preciso ser competente para justificar as necessidades para o emprego de novas intervenções tecnológicas nos cuidados com a saúde que terão que ser abordados mais cedo ou mais tarde. Por isso, é importante promover uma capacidade cognitiva que possa guiar os valores e ideais morais através da tomada de decisões e da ação. Mas, a fim de poder fazer isso, o agente deve elaborar um sistema ordenado de valores no qual os valores morais tenham precedência sobre outros tipos de valores – o que implica a exploração pedagógica do afeto, o aspecto motivacional do comportamento moral.
Mas hoje em dia, particularmente devido ao impacto das nossas escolhas, isso é insuficiente. A fim de serem consideradas legítimas em uma sociedade democrática, essas escolhas não podem violar os direitos de outras pessoas. Assim, todas as escolhas que têm algum impacto social apenas ganharão legitimidade após seu escrutínio e discussão. Como consequência, é da maior importância ser capaz não apenas de construir, expor e defender ideais pessoas de uma vida boa, mas também ouvir, tolerar e – sempre que possível – respeitar os ideais alheios. Todas essas capacidades estão explícitas nos conceitos das competências moral e democrática.
A ideia da educação pela Bioética é inspirada no entendimento de Dewey sobre educação pela democracia 2020. Dewey J. Problems of men. New York: Philosophical Library; 1946. p. 57.. O desenvolvimento de competências morais e democráticas é, ao mesmo tempo, uma necessidade para o enfrentamento de problemas bioéticos e uma consequência desta iniciativa. Além de serem intelectualmente fascinantes, as questões bioéticas são individualmente e socialmente importantes. Uma exploração criativa do conjunto de temas da Bioética pode capturar e manter a atenção das pessoas, especialmente da adolescência em diante, em uma época em que a Modernidade Líquida espalha muita informação e os indivíduos estão cercados de um conjunto grande de atrações.
Rumo a uma virada educacional da Bioética
A Bioética é ambiente criado e habitado por especialistas. Mesmo assumindo estes estão preparados e são bem informados, esses especialistas podem falar pelas outras pessoas com legitimidade e confiabilidade? Este é um problema realmente difícil, particularmente em regiões onde as disparidades sociais são enormes, como são no Brasil: mesmo que conseguíssemos incluir todos os interessados nas discussões com oportunidades iguais de participarem, ainda haveria um forte desequilíbrio na capacidade comunicativa. Grandes grupos, (os socialmente mais vulneráveis) tem dificuldades e expressar seus pontos de vista. A alternativa de encontrar representantes para falar por eles é altamente questionável.
Por tudo que foi apresentado neste trabalho, sugerimos que a Bioética deve ser levada a uma virada educacional – o termo “virada educacional” é inspirado no termo “virada linguística”, consagrado no léxico filosófico do século XX, significando que a filosofia deveria enfocar primariamente a sua própria relação com a linguagem. Qualquer bioética que não seja também um ato educacional, está propensa a perder a maior parte do sua significação. É incômodo ver bioeticistas engajados em discussões complicadas, divergindo em pontos cuja relevância às vezes é bastante questionável e sem perceberem que, no final, quando já tiverem resolvido todos estes pontos, nada estaria de fato resolvido: homens e mulheres, que precisariam ser instruídos, permaneceriam desinformados e impotentes.
É claro que discussões sobre temas bioéticos são úteis na busca de consenso ou concordância, mas, se temos intenção de incluir todos os interessados, é fundamental promover as competências morais de democráticas em grande escala. Além disso, é através da ampla participação que quaisquer regulamento normativo sobre questões bioéticas ganhará legitimidade. Nossa compreensão é que os bioeticistas de todas as linhas de pensamento devem expor suas ideias não apenas buscando a resolução de conflitos, mas também - e principalmente - com uma preocupação pedagógica relativa ao esclarecimento dos problemas e de uma forma que poderia ajudar todos os interessados com suas escolhas.
Esta ênfase que propomos educação para e pela Bioética vai lado a lado com a noção de desenvolvimento como liberdade apresentada por Amartya Sen 2323. Sen A. Development as freedom. New York: Oxford University Press; 1999.. De acordo com ele, o desenvolvimento consiste na eliminação das privações que limitam as escolhas e oportunidades individuais 2323. Sen A. Development as freedom. New York: Oxford University Press; 1999.. Assim, além de buscar o aperfeiçoamento institucional e a justiça na distribuição dos fardos e benefícios sociais, as sociedades - especialmente no mundo em desenvolvimento - devem entender o desenvolvimento como um processo de expansão da liberdade 2424. Sen A. The idea of justice. Cambridge: Harvard University Press; 2009.. Este é o senso profundo da promoção de competências morais e democráticas: capacitar as pessoas para dar viabilidade às coisas que elas consideram válidas. Essa capacidade é uma forma de liberdade: a liberdade de adotar estilos de vida diferentes 2323. Sen A. Development as freedom. New York: Oxford University Press; 1999..
Considerações finais
Como mencionamos no início deste artigo, a representação democrática foi um dos alvos principais das manifestações no Brasil que ocorreram em junho de 2013. Em um momento em que os partidos políticos são desprezados e os políticos são abominados, é provável que alguma forma de participação democrática ganhe importância. Se for este o caso, a promoção das competências moral e democrática serão mais fundamentais do que nunca.
Tendo em mente suas origens como uma necessidade social por esclarecimento ético e orientação moral, o campo acadêmico da Bioética foi capaz de apoiar a elaboração de um conjunto interessante de ferramentas educativas para fomentar essas competências. Essas ferramentas podem incluir instrumentos de intervenção e avaliação recolhidos de experiências multicêntricas que não precisam estar afiliadas a uma única escola filosófica ou corrente psicológica.
Nesse sentido, é digno de nota que a Rede Brasileira de Professores de Bioética esteja sendo organizada e uma reunião esteja marcada para julho de 2016. Este é um exemplo de como os bioeticistas podem se colocar em contato a fim de trocar experiências de ensino. Há muitas ferramentas de ensino que podem ser apresentadas em reuniões e workshops (métodos para discussão de casos, emprego de artes e literatura para desencadear a avaliação de valores morais, trechos de filmes, etc.). No que tange à questão de avaliação, o calcanhar de Aquiles da educação ética, é fundamental ressaltar que os instrumentos disponíveis (como o Teste de Competência Moral, o Teste de Definição de Problema, a Entrevista de Julgamento Moral, o Questionário de Fundamentos Morais, etc.) são úteis somente para verificar o impacto de algumas intervenções educacionais sobre o desenvolvimento moral de um grupo de participantes; esses testes não devem ser usados a fim de dar notas ou selecionar indivíduos específicos.
É nossa opinião que a Bioética deve significar o compartilhamento da condição humana e a melhora da vida social. Ela pode ajudar as pessoas a preencherem as condições não apenas para sobreviverem, mas também para a realização de projetos que sejam razoáveis e compatíveis com projetos semelhantes de outras pessoas 2525. Schramm FR. Bioética sem universalidade? Justificação de uma bioética latinoamericana e caribenha de proteção. In: Garrafa V, Kottow M, Saada A, editors. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. São Paulo: Gaia; 2006. p. 143-57..
Finalmente, o que propormos como virada educacional é que a Bioética sirva não apenas como ponte para o futuro e entre a ciência e as humanidades (como Potter imaginou quando criou o neologismo), mas também como uma ponte sobre o vão enorme que separa o indivíduo de jure do indivíduo de facto 11. Bauman Z. Liquid modernity. Malden: Polity Press; 2000., um indivíduo que é capaz de imaginar, construir e defender democraticamente suas ideias de uma vida boa.
Referências
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1Bauman Z. Liquid modernity. Malden: Polity Press; 2000.
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2Heller A. A Theory of modernity. Oxford: Wiley; 1999.
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3Hobsbawn E. The age of extremes. New York: Pantheon Books; 1995.
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4Lipovetsky G. Hypermodern times. Malden: Polity Press; 2005.
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5Rawls J. Political liberalism. New York: Columbia University Press; 2005.
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6Canto-Sperber M, Ogien R. Pratique. In: Canto-Sperber M, editor. Dictionnaire d’éthique et de philosophie moral. Paris: Presses Universitaires de France; 2004. p. 1524-34.
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7Habermas J. On the pragmatic, the ethical and the moral employments of practical reason. Justification and application: remarks on discourse ethics. Cambridge: The MIT Press; 1993. p. 1-18.
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8Bandura A. Social learning theory. New York: General Learning Press; 1971.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2016
Histórico
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Recebido
20 Abr 2016 -
Revisado
7 Jun 2016 -
Aceito
16 Jun 2016