Resumo
Trata-se de investigação empírica, descritiva e qualitativa que analisa a abordagem de valores e aspectos humanísticos na graduação de fisioterapia e investiga a percepção de docentes e discentes sobre questões éticas relacionadas ao exercício profissional. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e individuais com o coordenador do curso de fisioterapia de uma universidade pública brasileira, 12 docentes e 24 discentes do último ano do curso. Embora o tema não seja explorado em profundidade na graduação, os entrevistados falaram sobre conflitos éticos referentes à relação com outros profissionais, com pacientes e com o serviço de saúde e à alocação de recursos. Os discentes consideraram que as discussões sobre ética são tratadas apenas de modo implícito, e entre os docentes houve consenso de que é preciso abordar os conteúdos de ética de maneira mais aplicada à realidade da fisioterapia.
Especialidade de fisioterapia; Bioética; Ensino; Tomada de decisões
Abstract
This is an empirical, descriptive and qualitative investigation on the approach to values and humanistic aspects in an undergraduate course in physical therapy. The perception of faculty members and students about ethical issues related to professional practice is investigated. Semi-structured individual interviews were conducted with the course coordinator, 12 faculty members and 24 students on their final year of the physical therapy course at a public Brazilian university. Although the theme is not explored in depth during the undergraduate course, the interviewees mentioned ethical conflicts concerning the relationship with other professionals, patients and the health service, as well as the allocation of resources. The students considered that discussions about ethics are treated only implicitly, and among the faculty members there was a consensus that it is necessary to approach the contents of ethics in a more applied manner to the reality of physical therapy
Physical therapy specialty; Bioethics; Teaching; Decision making
Resumen
Esta es una investigación empírica, descriptiva y cualitativa, cuyo objetivo es analizar la formación en valores y aspectos humanísticos en la graduación de fisioterapia e investigar la percepción de profesores y estudiantes sobre los problemas éticos relacionados con la práctica profesional. Se realizaron entrevistas semiestructuradas e individuales con el coordinador del curso de fisioterapia de una universidad pública brasileña, 12 profesores y 24 estudiantes del último año del curso. Aunque no se exploraron en profundidad a nivel de pregrado, los conflictos éticos en la atención de pacientes de fisioterapia se ejemplificaron por la relación interprofesional, con el paciente y con respecto a los servicios de salud y la asignación de recursos. Los estudiantes consideraron que las discusiones sobre ética son tratadas solo implícitamente, y entre los profesores hubo consenso en que es necesario abordar los contenidos de la ética de una manera más aplicada a la realidad de la fisioterapia.
Especialidad de fisioterapia; Bioética; Enseñanza; Toma de decisiones
A fisioterapia, imprescindível para a promoção, prevenção e recuperação da saúde no que concerne ao movimento humano, visa dar liberdade ao indivíduo para viver suas escolhas e funcionalidades. Outra importante atuação do fisioterapeuta, mais atual, é a atuação nos cuidados paliativos de pacientes fora de possibilidade terapêutica.
Pela relação física que a atividade impõe, a partir do toque no corpo do outro, e por demandar um curso de tratamento mais constante que o de outras intervenções, é necessário que o fisioterapeuta tenha uma ótima comunicação com o paciente. No entanto, embora os resultados do tratamento possam demandar envolvimento emocional e interação entre fisioterapeuta e paciente, costuma-se dar pouca atenção às questões éticas relativas a essa relação 11. Poulis I . Bioethics and physiotherapy . J Med Ethics [ Internet ]. 2007 a [ acesso 8 out 2020 ]; 33 ( 8 ): 435 - 6 . DOI: 10.1136/jme.2007.021139 .
Tendo a função de desenvolver, manter e restaurar a capacidade funcional e movimento, melhorando a qualidade de vida, a fisioterapia é libertadora. As funções humanas com que ela trabalha são muitas vezes não só importantes, mas básicas 22. Poulis I . The end of physiotherapy . Aust J Physiother [ Internet ]. 2007 b [ acesso 8 out 2020 ]; 53 ( 2 ): 71 - 2 . DOI: 10.1016/s0004-9514(07)70038-7 . E é no encontro entre profissional e paciente que bioética e fisioterapia se aproximam, buscando garantir a autonomia do paciente e lhe oferecer mais e melhores oportunidades de cuidado:
Se um paciente fazendo fisioterapia for uma criança pequena andando de bicicleta, a bioética é a mãe, que corre ao lado com amor, em um caminho paralelo, certificando-se de que ela não caia e segurando-a com cuidado. O âmbito comum da bioética e da fisioterapia é a jornada, a autonomia, a capacidade da menina pequena de experimentar o mundo com o melhor de seu potencial físico 33. Poulis I . 2007 . Op. cit . p. 436 . Tradução livre . .
Apesar da importância dessa relação, há poucos estudos sobre fisioterapia e bioética em comparação com outras profissões da área da saúde 11. Poulis I . Bioethics and physiotherapy . J Med Ethics [ Internet ]. 2007 a [ acesso 8 out 2020 ]; 33 ( 8 ): 435 - 6 . DOI: 10.1136/jme.2007.021139 . No Brasil, pesquisas que focam a interface entre esses dois campos são recentes e ainda incipientes 44. Badaró AFV , Guilhem D . Bioética e pesquisa na fisioterapia: aproximação e vínculos . Fisioter Pesqui [ Internet ]. 2008 [ acesso 8 out 2020 ]; 15 ( 4 ): 402 - 7 . DOI: 10.1590/S1809-29502008000400015
5. Lorenzo CFG , Bueno GTA . A interface entre bioética e fisioterapia nos artigos brasileiros indexados . Fisioter Mov [ Internet ]. 2013 [ acesso 8 out 2020 ]; 26 ( 4 ): 763 - 75 . DOI: 10.1590/S0103-51502013000400006 - 66. Ladeira TL , Koifman L . Interface entre fisioterapia, bioética e educação: revisão integrativa . Rev. bioét . ( Impr .) [ Internet ]. 2017 [ acesso 8 out 2020 ]; 25 ( 3 ): 618 - 29 . DOI: 10.1590/1983-80422017253219 . Muitos dessas pesquisas, ademais, são descritivas e focadas em discussões deontológicas que pouco contribuem para a tomada de decisão em saúde 44. Badaró AFV , Guilhem D . Bioética e pesquisa na fisioterapia: aproximação e vínculos . Fisioter Pesqui [ Internet ]. 2008 [ acesso 8 out 2020 ]; 15 ( 4 ): 402 - 7 . DOI: 10.1590/S1809-29502008000400015 , 66. Ladeira TL , Koifman L . Interface entre fisioterapia, bioética e educação: revisão integrativa . Rev. bioét . ( Impr .) [ Internet ]. 2017 [ acesso 8 out 2020 ]; 25 ( 3 ): 618 - 29 . DOI: 10.1590/1983-80422017253219 .
No que tange à incorporação de questões éticas às decisões clínicas no campo da reabilitação, Finch, Geddes e Larin 77. Finch E , Geddes EL , Larin H . Ethically-based clinical decision-making in physical therapy: process and issues . Physiother Theory Pract [ Internet ]. 2005 [ acesso 8 out 2020 ]; 21 ( 3 ): 147 - 62 . DOI: 10.1080/09593980590922271 relatam que há pouca compreensão nesse contexto, o que prejudica a eficácia do cuidado e a formação dos profissionais de saúde nas várias disciplinas sobre reabilitação. Diante disso, os autores chamam atenção para a necessidade de ajuda de bioeticistas que abordem questões de fisioterapia, bem como de fisioterapeutas que compreendam melhor os problemas éticos da prática clínica 88. Poulis I . 2007a . Op. cit . p. 436 . Tradução livre . .
Portanto, é preciso aprofundar a reflexão sobre as repercussões éticas do trabalho em fisioterapia. Nesse sentido, o presente artigo aborda o papel da bioética na formação do fisioterapeuta, buscando analisar a formação humanística na graduação de fisioterapia e investigar a percepção de docentes e discentes da área sobre questões éticas relacionadas ao exercício profissional.
Método
O artigo traz resultados de pesquisa empírica, com abordagem qualitativa e descritiva, realizada na faculdade de fisioterapia de uma universidade pública brasileira, escolhida por conveniência, com nota cinco (a nota máxima) no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes de 2016. Desenvolvida de abril a junho de 2017, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense/Hospital Universitário Antônio Pedro.
As entrevistas foram semiestruturadas e feitas individualmente, com o coordenador do curso, 12 docentes e 24 discentes, segundo amostragem por saturação. Para adequar os instrumentos de coleta, um estudo-piloto foi realizado com personagens de curso de fisioterapia de outra instituição de ensino superior (IES).
Inicialmente, a Comissão Orientadora de Estágio da IES pesquisada disponibilizou dados e contatos de 42 profissionais ligados à comissão e 31 discentes regulares nos campos de estágio. Os docentes incluídos atuavam direta ou indiretamente em estágios supervisionados, como efetivos ou substitutos, com vínculo trabalhista permanente ou temporário com a IES.
Foram excluídos os supervisores de estágio sem vínculo docente com a IES (caso dos preceptores pertencentes à rede de assistência à saúde) e os docentes que não retornaram os e-mails de convite. O coordenador do curso foi excluído da entrevista dos docentes e convidado a participar, considerando suas atribuições nesse cargo de gestão. Os docentes afastados temporariamente também seriam excluídos, mas não havia ninguém nessa situação. Os critérios utilizados são ilustrados na Figura 1 .
Para serem incluídos no estudo, além de fornecer consentimento, os discentes deviam estar cumprindo estágio supervisionado – o que ocorre no 9º ou 10º período do curso – na atenção primária, secundária ou terciária. Seriam excluídos os estudantes sem experiência de estágio, ainda que cursando o 9º ou 10º período, e os que não estudaram na IES pesquisada desde o início da graduação, mas ninguém estava nessas situações.
Os professores receberam um convite por e-mail com informações sobre a pesquisa e, de acordo com sua disponibilidade, foram agendadas as entrevistas nas instalações da faculdade. O acesso aos discentes ocorreu mediante contato com os docentes vinculados ao estágio, e as entrevistas, realizadas por uma pesquisadora, tiveram lugar em ambientes reservados na faculdade, no hospital universitário ou em unidades básicas de saúde. As entrevistas foram gravadas, transcritas e lidas em profundidade. Para análise qualitativa dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin 99. Bardin L . Análise de conteúdo . São Paulo : Edições 70 ; 2011 . . Os achados foram categorizados a partir das áreas temáticas propostas nos roteiros de entrevista.
Resultados e discussão
A categorização dos participantes levou em consideração papel social, idade e gênero. Para os docentes, considerou-se também titulação, tipo de vínculo e tempo de exercício profissional; para os discentes, o período cursado no momento da entrevista ( Quadro 1 ).
Concepções sobre formação em valores e aspectos humanísticos
Sobre a ética na relação profissional-paciente, 21 discentes mencionaram que o tema foi abordado nas aulas teóricas das disciplinas de Ética e Deontologia (5º período). Outros relataram que a temática foi tratada na disciplina Saúde Coletiva (7º período), no início das aulas práticas das disciplinas profissionalizantes (6º período) e no momento de ingresso no estágio (9º período).
Embora tenham ocorrido em diferentes momentos da formação, houve consenso entre os estudantes de que as discussões sobre ética foram superficiais e pontuais. Alguns participantes afirmaram que os discursos sobre o tema ficam muitas vezes “implícitos” e focam em questões superficiais relativas ao comportamento perante o paciente. A principal questão abordada é o não julgamento.
Quanto a discussões mais detalhadas, uma discente mencionou que a disciplina Saúde Coletiva trabalha situações hipotéticas em contextos de pacientes em vulnerabilidade social. Sabemos que há convergências entre bioética e saúde coletiva, já que ambas propõem rupturas epistemológicas e questionam o senso comum 1010. Junges JR , Zoboli ELCP . Bioética e saúde coletiva: convergências epistemológicas . Ciênc Saúde Coletiva [ Internet ]. 2012 [ acesso 8 out 2020 ]; 17 ( 4 ): 1049 - 60 . DOI: 10.1590/S1413-81232012000400026 . Os dois campos, além disso, incluem determinantes sociais e subjetivos em suas análises 1010. Junges JR , Zoboli ELCP . Bioética e saúde coletiva: convergências epistemológicas . Ciênc Saúde Coletiva [ Internet ]. 2012 [ acesso 8 out 2020 ]; 17 ( 4 ): 1049 - 60 . DOI: 10.1590/S1413-81232012000400026 .
Ao serem questionados se as disciplinas que abordaram questões éticas foram relevantes para o atendimento de pacientes, 13 discentes afirmaram que sim, 8 que não, e 3 disseram que parcialmente. Algumas considerações críticas foram feitas. Primeiro, os casos discutidos se referiam à saúde em geral, e não especificamente à fisioterapia. Segundo, a disciplina de ética costuma ser negligenciada pelos alunos e, talvez, se fosse ofertada mais ao final do curso, relacionando seu conteúdo com a prática de atendimento, seria mais bem-vista. Por fim, os estudantes também apontaram que o conteúdo sobre ética poderia ser mais bem distribuído ao longo da formação, e que sua abordagem poderia ser mais prática e menos teórica e expositiva.
Por esses relatos, que estão de acordo com a literatura 1111. Silva RP , Ribeiro VMB . Inovação curricular nos cursos de graduação em medicina: o ensino da bioética como uma possibilidade . Rev Bras Educ Méd [ Internet ]. 2009 [ acesso 8 out 2020 ]; 33 ( 1 ): 134 - 43 . DOI: 10.1590/S0100-55022009000100017
12. Dagfal MRB , Alves FA , Silva ICM . O ensino transversal da bioética no curso de graduação em medicina na era pós-desvendamento do Projeto Genoma Humano . Rev Práxis [ Internet ]. 2010 [ acesso 8 out 2020 ]; 2 ( 3 ): 39 - 43 . DOI: 10.25119/praxis-2-3-917
13. Porto D . Qualidade & finalidade: características da bioética brasileira . Rev. bioét . ( Impr .) [ Internet ]. 2017 [ acesso 8 out 2020 ]; 25 ( 3 ): 443 - 53 . DOI: 10.1590/1983-80422017253201
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- 1414. Silva LFA , Lima MG , Seidl EMF . Conflitos bioéticos: atendimento fisioterapêutico domiciliar a pacientes em condição de terminalidade . Rev. bioét . ( Impr .) [ Internet ]. 2017 [ acesso 8 out 2020 ]; 25 ( 1 ): 148 - 57 . DOI: 10.1590/1983-80422017251176 , percebe-se que a bioética deveria ser um conteúdo transversal nas graduações de saúde, de forma a acompanhar os diferentes níveis de complexidade ao longo do curso e desenvolver um saber prático. Os temas transversais se referem aos conteúdos que perpassam por várias ou por todas as disciplinas do currículo. Assim, os temas transversais são saberes dinâmicos que, longitudinalmente, atravessam outros saberes convencionais da grade curricular 1515. Silva RP , Ribeiro VMB . Op. cit . p. 138 . .
Observa-se, no campo da saúde, dificuldade de reconhecer elementos transversais que são a base do comportamento humano e, conectados à dimensão biológica, atravessam o processo saúde-doença. É nesse sentido que componentes subjetivos e sociais são importantes, visto que condicionam tanto a produção de saúde quanto o adoecimento das pessoas 1616. Mourthé CA Jr , Lima VV , Padilha RQ . Integrando emoções e racionalidades para o desenvolvimento de competência nas metodologias ativas de aprendizagem . Interface Comum Saúde Educ [ Internet ]. 2018 [ acesso 8 out 2020 ]; 22 ( 65 ): 577 - 88 . DOI: 10.1590/1807-57622016.0846 .
Para Burgatti, Bracialli e Oliveira 1717. Burgatti JC , Bracialli LAD , Oliveira MAC . Problemas éticos vivenciados no estágio curricular supervisionado em enfermagem de um currículo integrado . Rev Esc Enferm USP [ Internet ]. 2013 [ acesso 8 out 2020 ]; 47 ( 4 ): 937 - 42 . DOI: 10.1590/S0080-623420130000400023 , deveria haver uma progressão de estágios ou níveis de tomada de decisão ética e julgamento moral durante a formação dos estudantes. Esse desenvolvimento auxiliaria a tomada de decisão consciente, baseada em princípios próprios em vez de determinações externas. A transversalidade, dada sua importância, poderia apoiar esse tipo de progressão.
Como pontos positivos, os estudantes apontaram a utilidade das reflexões sobre ética não só para a vida profissional, mas para a vida pessoal, e o auxílio no relacionamento com o paciente, já que essas reflexões convidam a se colocar no lugar do outro sem julgamentos, entendendo suas limitações para equilibrar as condutas. Os discentes apontaram também que os conteúdos de ética fazem refletir sobre o contexto de vida do paciente e possibilitam analisar os benefícios das terapias propostas. Houve relatos, ainda, de que esses conteúdos conscientizam sobre o momento de encaminhar o paciente a outro profissional e promovem o respeito à autonomia, sem imposições. Os pacientes, mesmo os mais difíceis, são vistos então como pessoas dignas de respeito, que merecem o melhor que o profissional pode oferecer. Assim, como disse um dos discentes, “ essas disciplinas são tão importantes quanto as disciplinas que me formam um fisioterapeuta ”.
Esse último relato, ainda que reconheça a importância dos conteúdos de ética, mostra que eles ainda não são vistos como parte da formação em fisioterapia, mas sim como complemento. A bioética, no entanto, é essencial, visto que contribui para a moralidade livre e consciente dos alunos, extrapolando o caráter deontológico.
Como aponta d’Avila, reconhece-se que a formação moral não define o caráter, mas aprimora e direciona jovens cuja natureza é positiva, consolidando sua disposição para ajudar o próximo, não fazer o mal, reconhecer a individualidade e autonomia dos demais, respeitando-os como seres iguais 1818. d’Avila LR . A codificação moral da medicina: avanços e desafios na formação dos médicos . Rev Bras Saude Mater Infant [ Internet ]. 2010 [ acesso 8 out 2020 ]; 10 ( supl 2 ): 399 - 408 . p. 311 . DOI: 10.1590/S1519-38292010000600019
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. Assim, visto que uma pessoa não nasce ética, mas conta com condições a priori para o desenvolvimento moral, devemos estimular a construção e introjeção do raciocínio ético 1919. Neves WA Jr , Araújo LZS , Rego S . Ensino de bioética nas faculdades de medicina no Brasil . Rev. bioét . ( Impr .) [ Internet ]. 2016 [ acesso 8 out 2020 ]; 24 ( 1 ): 98 - 107 . DOI: 10.1590/1983-80422016241111 .
Concepções sobre ética/bioética e prática profissional
Discentes e docentes acreditam que os professores são uma referência para a conduta profissional. Dessa forma, procuramos abordar a percepção dos docentes sobre ética e comportamentos fundamentais na relação profissional-paciente, a fim de entender os valores que vêm sendo trabalhados na formação.
Metade dos docentes mencionaram a palavra “respeito”. Essa palavra, porém, assumiu diferentes significados na fala dos professores: respeito com o ser humano em si; respeito pelo corpo físico do paciente, já que no atendimento há o toque; respeito pela história do paciente e aspectos emocionais envolvidos; respeito na forma como o profissional se veste; respeito ao avisar o paciente sobre o que será feito; respeito ao escutar, considerando todo o contexto, sem julgar; e respeito a crenças, atitudes e práticas religiosas.
Os docentes também mencionam a importância de informar o paciente sobre sua condição de saúde, benefícios do tratamento, possibilidades e consequências, expondo com clareza o diagnóstico, o prognóstico e as limitações da terapêutica oferecida, compartilhando a tomada de decisão. Quando o fisioterapeuta age desse modo, o paciente passa de objeto a sujeito do cuidado, fazendo suas próprias escolhas após análise consciente, sem imposições. Na prática do fisioterapeuta, dizer simplesmente que visamos o bem-estar e a autonomia do paciente não é suficiente. Todo o processo de decisão tem mais de um parâmetro. O paciente deve ter um papel ampliado, uma parte maior na decisão 2020. Poulis I . 2007 . Op. cit . p. 72 . Tradução livre . .
Nesse sentido, uma docente chamou atenção para a necessidade de trabalhar com tecnologias leves a fim de criar momentos verdadeiros de escuta, o que, segundo outra docente, requer boa habilidade de comunicação. Segundo Merhy 2121. Merhy EE . A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde: uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência . In: Campos CR , organizador . Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público . São Paulo : Xamã ; 1997 . p. 103 - 20 . , tecnologias leves são tecnologias relacionais que produzem espaços de troca, fala e escuta, acolhimento, responsabilização, vínculo e parceria entre usuários e profissionais. A boa comunicação que essas tecnologias constroem contribui para o exercício da autonomia, favorecendo o acesso a informações claras, que capacitam o paciente para tomar decisões relativas à sua saúde.
Mourthe, Lima e Padilha 1616. Mourthé CA Jr , Lima VV , Padilha RQ . Integrando emoções e racionalidades para o desenvolvimento de competência nas metodologias ativas de aprendizagem . Interface Comum Saúde Educ [ Internet ]. 2018 [ acesso 8 out 2020 ]; 22 ( 65 ): 577 - 88 . DOI: 10.1590/1807-57622016.0846 defenderam a inclusão das emoções em atividades educacionais para ampliar experiências e desmistificar a tradicional dicotomia “razão e emoção”. Ao reconhecer que a bioética é eminentemente relacional (a relação entre seres humanos e entre humano e ambiente), acreditamos que a tomada de decisão consciente, equilibrada e prudente é consequência da capacidade de análise cognitiva e afetiva sobre as relações de cuidado. Essa perspectiva leva o profissional a compreender que as interações e demandas envolvidas na assistência à saúde são complexas, e que sua atuação deve considerar tal complexidade. Nesse sentido, um meio como o cinema pode ser uma ferramenta poderosa de educação, tendo em vista sua capacidade de recriar situações próximas da realidade, suscitar emoções e estimular o espectador a formar juízos 2222. Cezar PHN , Gomes AP , Siqueira-Batista R . O cinema e a educação bioética no curso de graduação em Medicina . Rev Bras Educ Méd [ Internet ]. 2011 [ acesso 8 out 2020 ]; 35 ( 1 ): 93 - 101 . DOI: 10.1590/S0100-55022011000100013
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.
Outros pontos relevantes apontados pelos professores foram: reconhecer o paciente, compreender suas expectativas e respeitá-las; ter empatia; e preocupar-se não somente com a técnica, mas englobar todo o contexto de vida do paciente e de quem o cerca. Os docentes também destacam que a conduta clínica deve ser a mais adequada à melhora do quadro clínico do paciente, e pautada sempre na segurança, na prescrição correta e na ética. Para isso, os professores enfatizam que é preciso ter responsabilidade pelas consequências das intervenções e saber a hora de encaminhar o paciente a outro profissional; agir ao perceber que o paciente não está recebendo o tratamento de que precisa (mesmo que o problema se refira a outra área); ser capaz de ter conversas duras; não expor o paciente, falando sobre ele de forma pejorativa; tratar do caso somente com objetivo científico ou terapêutico; não fazer julgamentos de valor sobre o paciente ou sua família; dedicar ao paciente todo o momento do atendimento; e dar orientações condizentes com a capacidade de compreensão do paciente.
A fala dos docentes faz referência a um senso de responsabilidade pelo cuidado, pelas condutas e pelas orientações dadas ao paciente, considerando seu contexto de saúde e de vida. Os discursos corroboram o que propõe o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia 2323. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional . Resolução nº 424, de 8 de julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia . Diário Oficial da União [ Internet ]. Brasília , nº 147 , 1º ago 2013 [ acesso 8 out 2020 ]. Seção 1 . Disponível: https://bit.ly/3iePHHL
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e remetem à consciência de que saúde e enfermidade se baseiam em valorações que fundamentam ações morais. Quando negligenciamos essa compreensão, somos incapazes de compreender o mínimo sobre a dimensão moral humana 2424. Gracia D . La deliberación como método de la bioética . In: Porto D , Schlemper B Jr , Martins GZ , Cunha T , Hellmann F , organizadores . Bioética: saúde, pesquisa, educação . Brasília : CFM ; 2014 . p. 223 - 59 . .
Conflitos éticos e tomada de decisão
Outra preocupação da pesquisa foi conhecer a perspectiva dos entrevistados sobre os conflitos ou questões éticas que permeiam a fisioterapia, investigando como os discentes são orientados sobre tais conflitos.
Dos 12 docentes, 10 reconheceram a existência de conflitos e dois alegaram não perceber conflitos éticos em sua área de atuação. Cinco docentes mencionaram conflitos com outros profissionais: médicos (os mais citados), educadores físicos e terapeutas ocupacionais. A discussão se centrou na interferência de um profissional na conduta de outro. Ainda sobre essa questão, uma docente lastimou o fato de não conseguir possibilitar aos alunos a vivência do trabalho interprofissional. Essa entrevistada também disse acreditar que o conflito ocorre quando nem todos os envolvidos estão dando o melhor para o usuário.
Cinco docentes também apontaram conflitos entre fisioterapeuta e paciente. Esses participantes relataram que tais conflitos ocorrem pelo fato de o fisioterapeuta lidar com o corpo do outro, o que envolve uma relação física próxima e exige um ambiente amistoso. Outro conflito citado diz respeito à discordância entre profissional e paciente sobre o momento adequado para a alta hospitalar.
Essa discussão sobre a alta já foi levantada por Poulis 22. Poulis I . The end of physiotherapy . Aust J Physiother [ Internet ]. 2007 b [ acesso 8 out 2020 ]; 53 ( 2 ): 71 - 2 . DOI: 10.1016/s0004-9514(07)70038-7 , que chamou atenção para a falta de uma teoria bem estabelecida ou aceita que defina um ponto final para a reabilitação. Segundo o autor, os objetivos da fisioterapia são claros, mas definir o momento em que esses objetivos são alcançados é incerto, de modo que o fisioterapeuta deve contar com uma medida rigorosa e confiável que guie suas decisões e ações. O difícil nessa situação é delimitar o que é restauração da função e o que é aprimoramento. Na visão de Poulis, o paciente deve ser ouvido para determinar o ponto final da terapia, o que não quer dizer que ele pode definir sozinho o ponto final da reabilitação. Assim, todos devem trabalhar conjuntamente para clarear possibilidades de escolhas e garantir a autonomia do paciente.
Outro ponto crítico foi exemplificado com casos em que a fisioterapia ameniza, mas não cura o paciente, desencorajando-o a manter o tratamento. Nesses casos, o fisioterapeuta pode acabar se culpando por não conseguir resolver todos os problemas do paciente.
Ante esse tipo de conflito, é preciso resgatar o sentido da fisioterapia como prática que promove a saúde e previne a piora de condições crônicas. Esse sentido compreende a ideia de que melhorar a qualidade de vida não significa necessariamente curar enfermidades, mas trabalhar para garantir a funcionalidade do paciente de acordo com as possibilidades terapêuticas reais, o que certamente contribui para o bem-estar dos indivíduos. Tal entendimento torna o profissional mais apto para gerenciar situações em qualquer nível da atenção à saúde, inclusive nos cuidados paliativos. Sobre essa questão, um docente mencionou conflitos gerados pela incapacidade de o fisioterapeuta aceitar a morte de um paciente em terapia intensiva, buscando erros de conduta que poderiam justificar esse acontecimento.
Ainda sobre a relação com o paciente, outras duas condutas consideradas antiéticas foram citadas. A primeira diz respeito aos conflitos gerados por estagiários que tentam se desvencilhar de pacientes difíceis e passam o tempo de atendimento com condutas não eficientes. A segunda conduta se refere a alunos que expõem casos de pacientes desnecessariamente, comprometendo o sigilo das informações e a garantia de privacidade do paciente, o que contraria o código de ética profissional.
Professores também relataram tratamento pejorativo de deficiências por parte de alguns alunos – um problema que demonstra a necessidade de mais espaço dentro da formação para tratar desse assunto e discutir o papel da fisioterapia em minimizar a dependência funcional da pessoa com deficiência. É preciso compreender que há barreiras físicas, organizacionais e atitudinais que limitam o livre exercício da cidadania dessas pessoas. Dessa maneira, pode-se ampliar o olhar rumo à conscientização da sociedade quanto à necessidade de políticas públicas e ações que garantam igualdade de liberdades e direitos.
A deficiência gera mudanças físicas, cognitivas e morais, e o cuidado de pessoas com deficiência traz diversos desafios éticos ao fisioterapeuta. Como resultado de doenças e lesões que mudam a vida, muitos desses pacientes perdem habilidades físicas e sofrem mudanças em sua identidade pessoal, o que altera papéis sociais (inclusive dentro da família) e os obriga a lidar com estigmas 2525. Greenfield BH , Jensen GM . Understanding the lived experiences of patients: application of a phenomenological approach to ethics . Phys Ther [ Internet ]. 2010 [ acesso 8 out 2020 ]; 90 ( 8 ): 1185 - 97 . DOI: 10.2522/ptj.20090348 .
Outro conflito, mencionado por três docentes, diz respeito a problemas que ultrapassam a esfera interpessoal e trazem à tona aspectos relacionados à organização do sistema de saúde. Duas docentes relataram situações bastante complexas envolvendo acesso a diagnóstico, atendimentos, materiais, insumos e equipamentos adaptativos na área de fisioterapia neurofuncional infantil. Segundo esses relatos, o problema começa com a dificuldade das famílias em conseguir um diagnóstico preciso do comprometimento neuropsicomotor da criança, apesar da presença de características fisiopatológicas típicas. Muitas vezes, essa dificuldade se deve à falta de contato da família com o profissional médico, e o problema se estende à falta de informações necessárias para que os pais consigam acessar os direitos da criança (como auxílios e benefícios), o que remete a uma questão de justiça social. Por fim, a situação é ainda mais complexa porque grande parte das mães não conseguem exercer suas atividades laborais, pois se dedicam integralmente à criança.
O relato das docentes exemplifica o papel social do fisioterapeuta em diminuir as iniquidades em saúde. É compromisso ético desse profissional ser consciente das desigualdades e ajudar na melhora das funcionalidades do paciente, de modo a ampliar suas possibilidades de escolha e aumentar sua liberdade 2626. Edwards I , Delany CM , Townsend AF , Swisher LL . New perspectives on the theory of justice: implications for physical therapy ethics and clinical practice . Phys Ther [ Internet ]. 2011 [ acesso 8 out 2020 ]; 91 ( 11 ): 1642 - 52 . DOI: 10.2522/ptj.20100351.10 .
Uma das docentes detalhou o problema de acesso a equipamentos adaptativos:
“Então a gente tem que fazer a solicitação para o SUS [Sistema Único de Saúde] e aí demora e você precisa do equipamento. E aí você não tem como possibilitar que aquela criança consiga, porque depende desse caminho natural do SUS e aí atrasa… E piora… De consulta, de contrarreferência e referência. Muita dificuldade de ter um profissional da rede especializado na neuropediatria. Então várias crianças que estão aí precisando de cirurgia ortopédica não conseguem vaga para ortopedista. Aí quando consegue, não consegue vaga para a cirurgia. Aí tem uma piora do quadro, de uma coisa que você sabe que poderia ser facilmente resolvida se a criança fosse operada no tempo certo. E acaba dando uma revolta na gente como profissional! A gente tem que se controlar para não botar essa revolta para fora, de não falar, de não comentar, sabendo que está prejudicando o paciente!” (DO1).
O fisioterapeuta, como profissional com competência para diagnosticar e analisar distúrbios cinético-funcionais e prescrever órteses adaptativas, é responsável pela microalocação de recursos em saúde, que, segundo Freitas e Schramm 2727. Freitas EEC , Schramm FR . A moralidade da alocação de recursos no cuidado de idosos no centro de tratamento intensivo . Rev Bras Ter Intensiva [ Internet ]. 2009 [ acesso 8 out 2020 ]; 21 ( 4 ): 432 - 6 . DOI: 10.1590/S0103-507X2009000400014 , abrange a seleção individualizada das pessoas que se beneficiarão dos serviços e recursos disponíveis. Os profissionais que atuam no setor público também concentram a responsabilidade de gerir a prioridade das filas de espera para tratamento fisioterapêutico, que geralmente são bastante extensas. Assim, a assistência médica, na maioria das sociedades, não fornece rotineiramente a fisioterapia suficientemente cedo e em quantidade suficiente para garantir que o dano seja adequadamente limitado e a recuperação acelerada 2828. Poulis I . 2007a . Op. cit . p. 436 . Tradução livre . . Esse é um grave problema, pois, como apontam Gaudenzi e Schramm 2929. Gaudenzi P , Schramm FR . A transição paradigmática da saúde como um dever do cidadão: um olhar da bioética em saúde pública . Interface Comum Saúde Educ [ Internet ]. 2010 [ acesso 8 out 2020 ]; 14 ( 33 ): 243 - 55 . DOI: 10.1590/S1414-32832010000200002 , a moralidade das ações em saúde pública deve garantir: acesso equitativo e justo a um sistema de saúde com cobertura universal; desenvolvimento das capacidades humanas; proteção da saúde dos necessitados; e respeito às liberdades fundamentais de todos.
Outro conflito mencionado pelos docentes diz respeito à qualidade dos serviços de fisioterapia e a condutas profissionais inadequadas: Outra questão ética que eu acho fundamental e que acontece muito na fisioterapia é uma conduta inadequada. Por exemplo, a prostituição da profissão. Você ir lá e ligar um aparelho e deixar a pessoa 20 minutos! Isso para mim é uma questão ética seríssima! (DO2).
Outro problema ético, considerado comum pelos docentes, refere-se à discussão atual sobre o uso de redes sociais e a exposição de pacientes sem o devido consentimento. Segundo Martorell, Nascimento e Garrafa 3030. Martorell LB , Nascimento WF , Garrafa V . Redes sociais, privacidade, confidencialidade e ética: a exposição de imagens de pacientes no Facebook . Interface Comum Saúde Educ [ Internet ]. 2016 [ acesso 8 out 2020 ]; 20 ( 56 ): 13 - 23 . DOI: 10.1590/1807-57622014.0902 , tal situação pode trazer repercussões negativas a profissionais de saúde, pacientes e a sociedade, visto que envolve quebra de confidencialidade e privacidade, direitos inalienáveis. Os autores citam uma série de exemplos: casos clínicos com fotografias de “antes e depois”; exames radiográficos com exposição do nome completo de paciente e comentários do médico responsável; exposição de partes do corpo dos pacientes ou de procedimentos realizados; imagens de pacientes em centros cirúrgicos; grupos de pacientes em atividades de educação/prevenção em saúde; fotos de denúncia de unidades de saúde com capacidade acima da suportada; e exposição de crianças, que são vulneráveis e incapazes de tomar decisões autônomas. Há relatos, ainda, de uso inapropriado de descrições que acompanham as fotos em redes sociais, bem como de comentários de pares de profissão ou familiares parabenizando o profissional ou opinando sobre os casos.
Segundo Martorell, Nascimento e Garrafa 3030. Martorell LB , Nascimento WF , Garrafa V . Redes sociais, privacidade, confidencialidade e ética: a exposição de imagens de pacientes no Facebook . Interface Comum Saúde Educ [ Internet ]. 2016 [ acesso 8 out 2020 ]; 20 ( 56 ): 13 - 23 . DOI: 10.1590/1807-57622014.0902 , tanto o Estado, por meio da legislação, quanto as entidades profissionais, com seus códigos de ética e resoluções normativas, devem proteger as vítimas de exposição de imagem. Acrescentamos ainda que, em se tratando de serviços vinculados à academia, é preciso que professores conscientizem os alunos sobre as repercussões éticas de tais atitudes. Nascimento 3131. Nascimento DB . Análise bioética da utilização de imagens de pacientes em mídias sociais eletrônicas [ dissertação ] [ Internet ]. Brasília : Universidade de Brasília ; 2016 [ acesso 8 out 2020 ]. Disponível: https://bit.ly/3iep8CE
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corrobora essa perspectiva ao defender que o ensino de bioética ajudaria a combater a apropriação e exposição indevida da imagem de pacientes.
Atualmente, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, por meio da Resolução 532/2021 3232. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional . Resolução nº 532, de 24 de junho de 2021. Autoriza a divulgação de imagens, textos e áudios relativos a procedimentos fisioterapêuticos e terapêuticos ocupacionais e altera os Códigos de Ética e Deontologia da Fisioterapia e da Terapia Ocupacional . Diário Oficial da União [ Internet ]. Brasília , 7 jul 2021 [ acesso 22 jul 2021 ]. Seção 1 . Disponível: https://bit.ly/3yeqbrO
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, alterou o código de ética da profissão, autorizando a divulgação de imagens, textos e áudios relativos a procedimentos fisioterapêuticos, desde que haja autorização prévia do paciente ou de seu representante legal em termo de consentimento livre e esclarecido. Na divulgação deve constar ainda o nome do profissional e seu número de inscrição no órgão de classe, além de data das imagens, textos e áudios, ficando vedada a divulgação de casos clínicos de autoria de terceiros 3232. Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional . Resolução nº 532, de 24 de junho de 2021. Autoriza a divulgação de imagens, textos e áudios relativos a procedimentos fisioterapêuticos e terapêuticos ocupacionais e altera os Códigos de Ética e Deontologia da Fisioterapia e da Terapia Ocupacional . Diário Oficial da União [ Internet ]. Brasília , 7 jul 2021 [ acesso 22 jul 2021 ]. Seção 1 . Disponível: https://bit.ly/3yeqbrO
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Uma docente entrevistada também levantou a possibilidade de conflitos na área acadêmica, mencionando questões éticas relacionadas à autoria de trabalhos e ao manuseio de dados de pesquisa. Ainda nesse campo da formação, questionamos os docentes sobre a orientação dos alunos antes ou durante o estágio, e a maioria relatou que não há preparação específica.
Sendo o estágio uma modalidade de ensino prático que aproxima a academia do serviço de saúde, expondo os alunos à complexidade dos processos de trabalho e da tomada de decisões, a análise aprofundada de conflitos éticos nessa fase da formação ajudaria a sensibilizar os futuros profissionais para essas questões. No entanto, as discussões sobre questões éticas parecem ocorrer somente após algum acontecimento presenciado por professores e supervisores ou relatado por alunos em reunião.
Diante desses casos, os docentes relatam condutas diferentes. Um deles diz chamar o estagiário longe do paciente, para não quebrar a relação entre eles, enquanto outro diz deixar a situação acontecer, para observar como o aluno reage e depois abrir espaço para questionamento e discussão. Uma terceira docente relata ainda que costuma dar exemplos que considera “gritantes” para elucidar as situações. Os exemplos citados foram: registrar condutas não desenvolvidas e informações falsas no prontuário; lesar conscientemente o paciente com procedimentos errôneos; ter acesso à fila de espera do serviço e alterá-la; e cobrar para ter facilidades com relação à fila de espera.
Outras duas docentes disseram orientar os estagiários para que, em caso de dúvida, recorram ao supervisor e não tomem decisões sozinhos, evitando assim procedimentos incorretos. Tal conduta, porém, pode acabar não preparando os discentes para a tomada de decisão autônoma ante o paciente. É preciso lembrar que em breve tais alunos serão profissionais e não contarão com o suporte imediato dos docentes. Por isso é importante ensiná-los a caminhar por si mesmos e com mais segurança.
Outras duas docentes apontaram que, com o início das práticas no 6º período, já há certo preparo relativo a atitudes e comportamentos adequados diante do paciente e de sua família. Segundo essas professoras, alguns exemplos são apresentados, e os estudantes recebem informações mais detalhadas sobre casos mais complexos que estejam vinculados às aulas práticas das disciplinas que estão cursando.
É importante que os fisioterapeutas compreendam melhor os problemas éticos da prática clínica no cotidiano, para além dos casos especiais e difíceis 11. Poulis I . Bioethics and physiotherapy . J Med Ethics [ Internet ]. 2007 a [ acesso 8 out 2020 ]; 33 ( 8 ): 435 - 6 . DOI: 10.1136/jme.2007.021139 . Assim, é urgente incluir a discussão sobre esses problemas na formação, no intuito de entender o processo de trabalho e conhecer os entraves para o cuidado e a tomada de decisão consciente.
Quando questionados se já tinham vivenciado ou presenciado situações de conflitos éticos, 16 discentes responderam que sim, e oito que não. Os que responderam afirmativamente apontaram dificuldades relativas a diagnóstico, prognóstico, alta, utilização de recursos sem aceitação do paciente, contexto social dos pacientes, gestão de filas de espera e distribuição dos recursos de saúde. Os conflitos mais citados foram: comportamentos inapropriados em relação ao acometimento do paciente; situações relacionadas ao atendimento de crianças e relacionamento com familiares cujas atitudes nem sempre condizem com o esperado pelos estagiários; cuidados paliativos; e dificuldade de lidar com a morte.
Alguns alunos relataram que, diante desses conflitos, são auxiliados por professores ou profissionais de saúde na tomada de decisões, mas outros questionaram as decisões e atitudes desses profissionais. Somente um estudante afirmou que a discussão posterior à ocorrência do conflito foi satisfatória.
Segundo o coordenador do curso de fisioterapia, algumas questões éticas, quando malconduzidas, são levadas ao conhecimento da coordenação. De acordo com ele, essas situações geralmente se referem às relações professor-aluno e aluno-paciente. O coordenador mencionou ainda que no curso há disciplinas voltadas à formação ética e humanística, mas reconheceu que o currículo pouco contempla atitudes e aspectos éticos da profissão (em comparação com a teoria).
Em nossa observação, não foi possível enxergar com clareza as reais contribuições dos conteúdos de ética para a formação dos futuros profissionais, nem a existência de reflexões bioéticas mais aplicadas, para além da deontologia. Os avanços tecnológicos vêm exigindo do fisioterapeuta maior domínio das técnicas, o que repercute diretamente nos currículos, cada vez mais restritos e limitados no tocante a questões humanísticas 3333. Machado D , Carvalho M , Machado B , Pacheco F . A formação ética do fisioterapeuta . Fisioter Mov [ Internet ]. 2007 [ acesso 8 out 2020 ]; 20 ( 3 ): 101 - 5 . Disponível: https://bit.ly/3fgYR4J
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Perguntamos ao coordenador e aos docentes se eles acreditam que os discentes estão preparados para a tomada de decisão em situações de conflito ético. Metade dos entrevistados presumiram que não. Apenas um respondeu que sim, e outros cinco docentes, além do coordenador do curso, acham que isso depende de algumas circunstâncias: caráter, formação pessoal e familiar, crenças e contexto social do aluno; perfil emocional, maturidade e capacidade de administrar sentimentos como insegurança, medo, frustração e derrota; e gravidade da situação.
Os entrevistados mencionam que uma das causas da falta de preparação é a sobrecarga de conteúdo. Essa sobrecarga faz com que sobre pouco tempo para discutir aspectos éticos, que só são abordados quando algum acontecimento os traz à tona.
Na visão da maioria dos estagiários, os conteúdos e práticas pedagógicas do curso não preparam o aluno para tomada de decisão diante de conflitos éticos. Apenas quatro estudantes consideraram a formação ética satisfatória para enfrentar os conflitos na prática, outros seis responderam que “em parte”, e dois não souberam opinar.
Para criar elos entre os compontentes científico- tecnológico e humano-social, os conteúdos atitudinais deveriam ser abordados na formação, indo além da ética e das normas para abranger também valores, sentimentos e características individuais da pessoa 3434. Nosow V . O ensino dos conteúdos atitudinais na formação inicial do enfermeiro [ dissertação ] [ Internet ]. São Paulo : Universidade de São Paulo ; 2009 [ acesso 8 out 2020 ]. Disponível: https://bit.ly/3rNf32K
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Possibilidades de reflexão geradas pela pesquisa
Como se percebe nos relatos dos entrevistados, certamente a capacitação dos professores em ética e bioética traria maior segurança para que eles pudessem sensibilizar os alunos sobre a importância de um olhar ampliado para a realidade. Alguns docentes apontaram que tal capacitação permitiria ampliar e difundir a discussão ética e defenderam que essa temática não pode se concentrar em uma disciplina só. Uma entrevistada questiona:
Quantos de nós professores temos formação e condição de, nas nossas disciplinas, problematizar um pouco mais acerca disso? Porque muitas vezes o professor de ética, ainda que ele seja da fisioterapia ou da saúde, (…) está mais centrado nessa parte teórica da ética. E quando a gente vai para o dia a dia do exercício profissional você consegue trazer algumas situações que vão ser mais palpáveis, mais palatáveis para ele pensar assim: aquele conceito que eu aprendi lá, aqui na prática eu tenho que saber como utilizar, como pensar, usar esse ferramental para me ajudar a refletir e ter atitudes que vão ser éticas (DO3).
Percebe-se na fala a consciência da necessidade de construir um saber que seja complementar e aplicado à prática do fisioterapeuta, o que exige maior preparo, leituras e discussões por parte dos docentes, na tentativa de incluir os conteúdos de ética nas disciplinas. A docente finaliza dizendo que a presente pesquisa foi uma oportunidade para pensar o currículo, apontando que seria pertinente uma conversa entre os professores para descobrir como contemplar melhor esse assunto.
Em pesquisa sobre a reorientação profissional em fisioterapia, Gauer e colaboradores 3535. Gauer APM , Ferretti F , Teo CRPA , Ferraz L , Soares MCF . Ações de reorientação da formação profissional em fisioterapia: enfoque sobre cenários de prática . Interface Comum Saúde Educ [ Internet ]. 2018 [ acesso 8 out 2020 ]; 22 ( 65 ): 565 - 76 . DOI: 10.1590/1807-57622016.0852 defenderam que, para alcançar avanços na formação, é preciso criar estratégias de ensino-aprendizagem contínuas e planejar as práticas de forma integrada com os serviços de saúde. No mesmo sentido, a literatura aponta que a problematização, como método de ensino e aprendizagem nos estágios, promove a reflexão crítica sobre a prática profissional, os serviços e o sistema de saúde 1717. Burgatti JC , Bracialli LAD , Oliveira MAC . Problemas éticos vivenciados no estágio curricular supervisionado em enfermagem de um currículo integrado . Rev Esc Enferm USP [ Internet ]. 2013 [ acesso 8 out 2020 ]; 47 ( 4 ): 937 - 42 . DOI: 10.1590/S0080-623420130000400023 .
Com a reabilitação de seus cidadãos, a sociedade demonstra respeito pela qualidade de vida 22. Poulis I . The end of physiotherapy . Aust J Physiother [ Internet ]. 2007 b [ acesso 8 out 2020 ]; 53 ( 2 ): 71 - 2 . DOI: 10.1016/s0004-9514(07)70038-7 . A formação e a assistência em saúde devem aliar exatidão técnica e ética, o que inclui a habilidade de tomar decisões diante de conflitos que envolvem crenças e valores pessoais 1717. Burgatti JC , Bracialli LAD , Oliveira MAC . Problemas éticos vivenciados no estágio curricular supervisionado em enfermagem de um currículo integrado . Rev Esc Enferm USP [ Internet ]. 2013 [ acesso 8 out 2020 ]; 47 ( 4 ): 937 - 42 . DOI: 10.1590/S0080-623420130000400023 , 3636. Zoboli E . Tomada de decisão em bioética clínica: casuística e deliberação moral . Rev. bioét . ( Impr .) [ Internet ]. 2013 [ acesso 8 out 2020 ]; 21 ( 3 ): 389 - 96 . Disponível: https://bit.ly/3idYQjV
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. Para que isso ocorra, é imprescindível saber reconhecer os conflitos éticos de cada exercício profissional. Por fim, cabe destacar que a fisioterapia é um campo fértil para a bioética, pois os fisioterapeutas devem se proteger de negligência e devem ter respostas para todos os conflitos éticos que eles encontram 33. Poulis I . 2007 . Op. cit . p. 436 . Tradução livre . .
Considerações finais
Os resultados da presente pesquisa mostram que a maioria dos docentes e discentes entrevistados consegue perceber os conflitos enfrentados pelos fisioterapeutas na assistência a seus pacientes. Nas entrevistas, tais conflitos se apresentaram como: questões interpessoais com outros profissionais de saúde e com os pacientes; questões relacionadas às condutas fisioterapêuticas; e questões relacionadas ao serviço de saúde e à alocação dos recursos.
Embora não explorados em profundidade na graduação, valores e conflitos éticos foram referenciados por docentes e discentes. Entretanto, os conflitos apresentados como exemplos aos discentes não costumam ser os mais comuns na realidade da fisioterapia. Os relatos apontam que a discussão costuma focar aspectos mais graves, em detrimento de situações do dia a dia que, a princípio, podem não chamar atenção, mas geram insegurança para docentes e discentes. A falta de preparo para lidar com essas situações pode levar a resoluções desastrosas ou a omissões.
Os docentes reconhecem situações cotidianas de conflitos, mas, talvez por falta de maior capacitação na área de bioética, não abordam esses conflitos com a profundidade necessária nas disciplinas e no estágio. Esse é um grave problema, pois a discussão ética poderia promover o autodesenvolvimento moral dos discentes e transformar o conhecimento teórico em prática, fomentando a capacidade de agir de modo autônomo e crítico na vida pessoal e no trabalho.
Conclui-se que a discussão ética deve ser transversal e permeada pela prática fisioterapêutica, já que, como exposto, as disciplinas de ética e deontologia não contemplam a realidade do processo de trabalho. Dessa forma, a bioética deve ser compreendida como ferramenta para desenvolver o pensamento crítico sobre questões complexas e amplas que envolvem o processo saúde-doença.
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O estudo fez parte da tese da pesquisadora principal.
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Aprovação CEP-UFF 1.995.980
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Out 2021 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2021
Histórico
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Recebido
11 Jan 2020 -
Revisado
22 Jul 2021 -
Aceito
23 Jul 2021