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Transformando ciclos: a ruptura necessária para atingir a excelência

Recebi da editora-chefe desta publicação, a professora Wilma Terezinha Anselmo Lima, uma atribuição para lá de instigante e desafiadora: escrever um editorial para o nosso querido BJORL. Ao aceitar esse chamamento fui invadido por uma compreensível, porém efêmera, sensação de orgulho e satisfação. Rapidamente, entretanto, meus sentimentos foram redirecionados pela percepção da maiúscula responsabilidade embutida no adequado cumprimento dessa tarefa: transmitir claramente ao nosso abalizado conjunto de leitores as linhas mestras de como eu penso ciência e, mais especificamente, no seu processo de construção, veiculação e aplicação. Da mesma forma, após muito refletir, decidi que não deveria utilizar este precioso espaço para considerações autoindulgentes e ufanistas. Não. Seria mais do que imperioso, (a meu ver) inadiável, dividir com os leitores e colaboradores muitas das minhas inquietações sobre questões fundamentais envolvidas no andamento de todo este processo.

Vivemos um momento especial no nosso Brasil com mudanças e oscilações marcantes ditando novos ritmos em todas as esferas da vida nacional: política, economia, saúde e educação. Algumas dessas oscilações nem sempre se fizeram no sentido mais desejado ou esperado por nós. Ainda que seja irrefutável que avançamos consideravelmente em vários setores, também é fato que algumas das reformas estruturais mais importantes fincaram seus alicerces em terrenos com consistência, no mínimo, discutível. Infelizmente, esse parece ser o caso em dois dos segmentos mais críticos para todos nós e que seguramente mais nos importam enquanto associação médica: saúde e educação.

Sem querer generalizar, poderíamos facilmente identificar uma série de ações deflagradas nos últimos anos que, na melhor das hipóteses, maquiaram números francamente desfavoráveis e vergonhosos ao país. Parece que o planejamento estratégico brasileiro foi pouco ambicioso ao estabelecer suas metas nessas áreas e ao abdicar do padrão de excelência que todos almejávamos, ficando estacionado em patamares muito aquém do que sonhamos e merecemos. A impressão geral é a de que teremos de nos contentar não com o ótimo, mas com o razoável, jamais com o ideal, mas com o possível. Condenados eternamente a viver na média, na mediana, ou, sejamos claros, tangenciando a mediocridade! Pois bem, como membros de uma classe profissional intelectualizada, politizada e muito bem informada (afinal convivemos diretamente com as mazelas geradas por essas diretrizes) podemos identificar as distorções e somos os primeiros a, contundentemente, denunciá-las apontando prováveis causas e potenciais culpados. Em resumo, somos capazes de lançar um olhar crítico sobre o país e traçar facilmente o inventário de alguns dos nossos rotundos fracassos!

Cai o pano, fim do primeiro ato. Ao descerrarmos novamente as cortinas, convido-os a migrar de palco: do macroambiente nacional para o nosso nicho específico de atuação: nosso sagrado ofício, nossa valorizada especialidade e nossa pujante associação. E aí emergem duas perguntas para lá de inconvenientes: Será que temos empregado estes mesmos rigorosos critérios para julgar nossas próprias ações cotidianas e assuntos de "economia interna"? Como sociedade organizada temos buscado a excelência assistencial e acadêmica que "a priori" dependeria, não exclusivamente, mas muito de nosso próprio esforço e empenho? No plano assistencial, não restam dúvidas que a Otorrinolaringologia desse país cresceu e com ela cresceram e amadureceram aqueles que se dedicam à sua prática como especialistas. O monumental trabalho desenvolvido por colegas brasileiros catapultou a relevância da especialidade no cenário médico nacional e, extrapolando as fronteiras, tornou as nossas "supras" referências globais! No âmbito acadêmico também colecionamos conquistas. Só para citar algumas, publicamos há décadas uma conceituada e disputada revista cientifica em dois idiomas, editamos o mais ambicioso e abrangente compêndio do mundo, mantemos uma série de atividades pioneiras em educação médica continuada, fomos vanguarda em programas de aperfeiçoamento veiculados via Internet (tendo realizado com grande sucesso três congressos transmitidos integralmente pela rede mundial). Nossos eventos situam-se entre os mais movimentados e prestigiados do planeta e organizamos de forma impecável um congresso mundial! Está tudo bem então? Absolutamente... NÃO! Ainda acho que estamos longe, mas muito longe do ideal... Aliás, isso não é uma impressão minha, mas um fato respaldado em números. Vamos a eles:

  • Nossa maior vitrine científica, o BJORL, apesar do esforço hercúleo de seus editores e colaboradores ao longo dos anos, ainda padece de problemas;

  • Ingressamos no PubMed em 2005 (somente para constar, o PubMed é um banco de dados para pesquisa bibliográfica de artigos médicos que reúne cerca de 4.000 periódicos científicos);

  • Seis anos mais tarde (2011) fomos indexados pelo Institute for Scientific Information (ISI). É importante ressaltar que este passo foi extremamente importante por dois aspectos temporais: (1) retrospectivamente por atestar e levar em conta a qualidade editorial da revista (para que um periódico logre ingressar nesta base de dados ele necessariamente deve reunir inúmeros requisitos como pontualidade, editoração dentro das normas internacionais, revisão dos artigos a serem publicados por pares - peer review, entre outros); (2) prospectivamente possibilitar a sua parametrização com outras revistas a partir do cálculo do seu fator de impacto (FI), uma vez que somente periódicos indexados ao ISI são considerados para este cálculo. O FI é uma medida que reflete o número médio de citações de artigos científicos publicados em determinado periódico. É empregado para avaliar a importância de um dado periódico em sua área, sendo que aqueles com um maior FI são considerados mais relevantes do que aqueles com um menor FI. O seu valor é obtido dividindo-se o número total de citações dos artigos, acumulados nos últimos dois anos, pelo total de artigos publicados pela revista no respectivo espaço de tempo.

  • Dois anos após (2012) obtivemos o nosso primeiro fator de impacto medido: 0.545. Já na aferição de 2013 passamos a 0.623, ou seja, estamos crescendo, ou melhor: aparecendo (na medida em que temos mais citações).

Apesar de sermos a única revista da especialidade na América Latina que ostenta o FI é preciso evoluir e muito (afinal ser a vanguarda do atraso me parece um prêmio de consolação para lá de dispensável!). Mal querendo se comparar às revistas com maiores fatores de impacto em 2011 foram a Nature (36 280) e a Science (31 201)! Na mesma verificação, somente 16 títulos brasileiros apresentam fator de impacto igual ou superior a 1,0. É importante salientar, entretanto, que, pela natureza do cálculo do FI, ele somente deve ser empregado na comparação de periódicos com a mesma vocação seria no mínimo injusto comparar o FI de uma revista de ciência geral (imenso universo de leitores) com um periódico de especialidades! Ainda assim, apesar da nossa revista ostentar o selo comemorativo dos seus 80 anos, ainda está engatinhando cientificamente e nossa maturidade, ou melhor, tão almejada maioridade está por vir. Os desafios para chegarmos lá são de várias ordens e esferas. Talvez nosso maior obstáculo seja superar o que costumo chamar de "ciclo vicioso perverso". Senão vejamos os fatos:

  1. Nosso caro BJORL ainda ostenta baixo FI necessitando da submissão contínua de artigos de muito maior peso para prosperar.

  2. As principais fontes nacionais de pesquisas clínicas e experimentais (e, por conseguinte, de potenciais trabalhos de qualidade) são os programas de pós-graduação das nossas melhores universidades que aportam dezenas de novas teses e dissertações todos os anos.

  3. Esses programas, por sua vez, cada vez mais cobrados pelas instâncias universitárias superiores, são pontuados pelas nossas agências de fomento após a análise minuciosa de uma série de quesitos. Entre eles, destaca-se, mormente o número de artigos publicados pelo grupo (orientadores e alunos) em revistas de grande prestígio e, obviamente, alto fator de impacto.

  4. Pressionados pelas circunstâncias, não restam alternativas aos pesquisadores, senão o de direcionar suas melhores publicações a periódicos científicos de porte acadêmico mais robusto gerando uma alça de retroalimentação negativa onde os mais fortes são cada vez mais tonificados e os mais fracos definham à míngua...

Como facilmente podemos depreender, encontramo-nos em uma situação crítica que, aliás, já havia sido abordada pelo nosso ex Editor-Chefe Professor Ricardo Ferreira Bento em um incisivo editorial publicado em março 2013. Ali o Professor Ricardo já lembrava: "Os órgãos universitários e governamentais de pesquisa e pós-graduação, como CAPES e CNPq, são insensíveis ao argumento de que o índice de impacto dentro da área é o mais importante e há necessidade de se publicar como os demais pesquisadores de ORL no mundo. Esses colegiados insistem em querer nos associar com outras áreas básicas e clínicas que publicam em veículos de maior impacto, inerentes às suas especialidades. Como diz o ditado, querem comparar alhos com bugalhos".

Bem, mas as regras do jogo estão postas e são estas. Diante deste paradoxo, restam as perguntas: É possível romper esse ciclo vicioso? Qual o melhor caminho para proceder esta ruptura? Discutindo estas questões com um grupo de professores da pós-graduação do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vislumbramos algumas possibilidades. A primeira seria a de incentivar e consolidar novos grupos de pesquisadores brasileiros com inserção internacional sólida e continuada. Estes grupos, aliados aos nossos vetores acadêmicos já tradicionais, poderiam operar como novas pontas de lança da otorrinolaringologia brasileira no mercado editorial global. Uma vez galgada a notoriedade, o próximo movimento seria o de redirecionar o foco de parcelas generosas de suas publicações para o mercado interno com a certeza de atrair ondas de leitores e pesquisadores já devidamente fidelizados pela sua excelência.

Uma segunda abordagem seria a de seguir mais amplamente o exemplo de escolas como Ribeirão Preto e desencadear um processo nacional de estímulo e fomento a pesquisas básicas na especialidade. Neste sentido, sou um entusiasta da pesquisa interdisciplinar. Nossos programas de pós-graduação devem acolher anatomistas, fisiologistas, geneticistas, bioquímicos, enfim, profissionais que analisam um mesmo problema sobre diferentes perspectivas. Insere-se, neste contexto, a necessidade de obtermos o compromisso dos nossos melhores programas de pós-graduação de dividir com o BJORL largas fatias dos trabalhos de ponta ali gerados. De nada essas atitudes adiantariam, entretanto, se não fizéssemos, como revista científica, nosso dever de casa: elevar nosso nível de exigência a patamares cada vez mais superlativos. Unirmo-nos em torno do ideal que almejamos; juntarmos esforços no cumprimento de nossas metas. Contaminarmos nosso corpo editorial com o vírus da qualidade total. Enfim perseguirmos, como um todo, obstinadamente nossa visão de excelência. Temos consciência que processos dessa natureza, todavia, não se produzem num dia, num único mês ou ano. Antes, demandam décadas de trabalho, esforço e dedicação. Ainda assim, parece que o caminho mais curto para aferir bons resultados em curto prazo, passe pela conscientização e pelo treinamento do nosso corpo editorial (ações, aliás, que já vêm sendo realizadas nos últimos anos). Uma seleção mais criteriosa e exigente de artigos a serem publicados terá um impacto direto e imediato tanto no numerador quanto no denominador da equação de cálculo do FI. Mais trabalhos de qualidade (aumentando paralelamente o índice de citações) sobre uma base geral menor de publicações. E o resto fica por conta da matemática...

Esse salto de qualidade somente será possível com o engajamento obstinado de todos! Como resultado deste esforço, certamente emergirá um produto mais qualificado e mais próximo, bem mais próximo, daquele que sonhamos. Colegas, ao aproximar-me do fechamento deste editorial, agradeço pela atenção e pela paciência da leitura até aqui. Todos que me conhecem sabem do meu profundo entusiasmo por nossa especialidade. Se meus comentários hoje são um pouco mais ácidos é porque julgo que nossa associação está madura o suficiente e pronta para encarar desafios muito maiores. Críticas bem-vindas são aquelas que vêm acompanhadas de propostas de soluções e ações afirmativas! A responsabilidade por estas transformações, tanto em âmbito assistencial (menos) quanto acadêmico (mais), é exclusivamente de cada um de nós. Sem terceirizações, sem dedos apontados! Temos de materializar, individualmente, todas essas mudanças que nos tornarão cada vez mais fortes ou, caso contrário, todos perderão como sociedade. Este sonho, sim, é tangível. Nossa visão, sim, é a excelência! Mas a missão somente estará completa quando definitivamente procedermos à ruptura que transformará este pernicioso ciclo vicioso em um eterno ciclo virtuoso.

  • Como citar este artigo: da Costa SS. Changing cycles: the necessary rupture to achieve excellence. Braz J Otorhinolaryngol. 2015;81:1-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015
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