Acessibilidade / Reportar erro

Correlação entre alergia à proteína do leite de vaca e otite média: uma revisão sistemática Como citar este artigo: Oliveira KA, Esper MT, Oliveira ML, Tofoli MH, Avelino MA. Correlation between cow's milk protein allergy and otitis media: a systematic review. Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:802-10.

Resumo

Objetivo

Revisar as evidências sobre a correlação entre alergia à proteína do leite de vaca e otite média aguda recorrente e otite média com efusão.

Métodos

As buscas foram feitas nas bases de dados Central, Web of Science, Embase, Medline, Lilacs e na literatura cinzenta.

Resultados

Quatro estudos foram incluídos, identificaram‐se as prevalências: 0,2% de fala atrasada devido a otite média com efusão crônica entre 382 crianças com alergia à proteína do leite de vaca, 10,7% de alergia à proteína do leite de vaca entre 242 crianças submetidas a procedimentos otorrinolaringológicos, 40% de alergia à proteína do leite de vaca entre 25 crianças com otite média com efusão recorrente e maior tendência à otite média em alérgicos à proteína do leite de vaca entre 186 crianças (1,5 + 0,6vs.0,4 + 0,1; p < 0,1).

Conclusão

Se considerarmos as características e variações metodológicas dos estudos identificados, não é possível afirmar a existência de evidência confiável sobre a correlação entre alergia à proteína do leite de vaca e otite média.

Palavras‐chave
Hipersensibilidade a leite; Proteínas do leite; Otite média; Otite média com derrame

Abstract

Objectives

To review the evidence pertaining to the association between cow’s milk protein allergy and recurrent acute otitis media and otitis media with effusion.

Methods

The CENTRAL, Web of Science, EMBASE, MEDLINE, LILACS databases, and gray literature were searched.

Results

Four studies were included, identifying the prevalence rates: 0.2% of delayed speech due to chronic otitis media with effusion in 382 children with cow’s milk protein allergy, 10.7% of cow’s milk protein allergy in 242 children who underwent ENT procedures, 40% of cow’s milk protein allergy in 25 children with recurrent otitis media with effusion and higher tendency to otitis media in children with cow’s milk protein allergy of 186 children (1.5 + 0.6 vs. 0.4 + 0.1; p< 0.1).

Conclusion

Considering the characteristics and methodological variations of the identified studies, it is not possible to state that there is reliable evidence of an association between cow’s milk protein allergy and otitis media.

Keywords
Milk hypersensitivity; Milk proteins; Otitis media; Otitis media with effusion

Destaque

  • A correlação entre alergia à proteína do leite de vaca e o desenvolvimento de otite média tem sido foi investigada nas últimas décadas.

  • A inflamação alérgica na mucosa nasal é sugerida como fator causador de disfunção da tuba auditiva, contribui para quadros de otite média.

  • Os estudos que investigaram a correlação entre alergia à proteína do leite de vaca e otite média apresentam importantes limitações, levam a resultados superestimados e controversos.

  • Não há evidência confiável de que a alergia à proteína do leite de vaca apresente uma relação de causalidade com otite média aguda recorrente e otite média com efusão.

Destaque

  • A correlação entre alergia à proteína do leite de vaca e o desenvolvimento de otite média tem sido foi investigada nas últimas décadas.

  • A inflamação alérgica na mucosa nasal é sugerida como fator causador de disfunção da tuba auditiva, contribui para quadros de otite média.

  • Os estudos que investigaram a correlação entre alergia à proteína do leite de vaca e otite média apresentam importantes limitações, levam a resultados superestimados e controversos.

  • Não há evidência confiável de que a alergia à proteína do leite de vaca apresente uma relação de causalidade com otite média aguda recorrente e otite média com efusão.

Introdução

A otite média é uma das doenças mais comuns da infância, acomete mais de 90% da população pediátrica até os dois anos. Pode apresentar‐se como otite média aguda (OMA), com surgimento rápido de sinais e sintomas de inflamação do mucoperiósteo da orelha média, ou como otite média com efusão (OME), caracterizada pela presença de fluido na cavidade timpânica sem sinais de infecção otológica aguda.11 Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial . 3ª edição. GEN Guanabara Koogan; 2017. Tratado de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial.

O curso clínico e as sequelas da otite média são variáveis, algumas crianças apresentam resolução espontânea sem tratamento específico, enquanto outras, mesmo após antibioticoterapia e/ou cirurgia, evoluem com episódios recorrentes.11 Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial . 3ª edição. GEN Guanabara Koogan; 2017. Tratado de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial.,22 Rosenfeld RM, Shin JJ, Schwartz SR, Coggins R, Gagnon L, Hackell JM, et al. Clinical practice guideline: otitis media with effusion (update) Otolaryngol Head Neck Surg. 2016;154:S1-S41. Assim, a identificação de fatores de risco associados ao desenvolvimento de otite média recorrente (Omar) é de extrema importância para identificação das crianças mais suscetíveis, redução do uso indiscriminado de antimicrobianos e orientação de pais e cuidadores, evitam‐se, assim, sequelas auditivas e/ou estruturais.33 Zernotti ME, Pawankar R, Ansotegui I, Badellino H, Croce JS, Hossny E, et al. Otitis media with effusion and atopy: is there a causal relationship? World Allergy Organ J. 2017;10:37.

Estudos apontam que, no mínimo, 25% das crianças com OME evoluem com cronificação do quadro, com presença de fluido na cavidade timpânica por mais de três meses. Além disso, 15% a 20% das crianças que tiveram OMA terão Omar.11 Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial . 3ª edição. GEN Guanabara Koogan; 2017. Tratado de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial.,33 Zernotti ME, Pawankar R, Ansotegui I, Badellino H, Croce JS, Hossny E, et al. Otitis media with effusion and atopy: is there a causal relationship? World Allergy Organ J. 2017;10:37. Ambas podem estar associadas à perda auditiva, a alterações no equilíbrio, mau desempenho escolar, problemas comportamentais e desconforto auditivo, com grande impacto sobre a qualidade de vida.44 Schilder AG, Chonmaitree T, Cripps AW, Rosenfeld RM, Casselbrant ML, Haggard MP, et al. Otitis media. Nat Rev Dis Primers. 2016;2:16063.,55 Grindler DJ, Blank SJ, Schulz KA, Witsell DL, Lieu JE. Impact of otitis media severity on children’s quality of life. Otolaryngol Head Neck Surg. 2014;151:333-340. Apesar do grande número de publicações a respeito dos fatores de risco para o desenvolvimento da Omar e da OME, ainda existem controvérsias a respeito do manejo e das recomendações específicas destes. Nesse contexto, inclui‐se a busca pela correlação entre alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e o desenvolvimento de otite média.

A proteína do leite de vaca é o principal alérgeno alimentar crianças menores de três anos e essa prevalência cai para menos de 1% em crianças com seis anos ou mais.66 Sicherer SH. Epidemiology of food allergy. J Allergy Clin Immunol. 2011;127:594-602.,77 Rona RJ, Keil T, Summers C, Gislason D, Zuidmeer L, Sodergren E, et al. The prevalence of food allergy: a meta-analysis. J Allergy Clin Immunol. 2007;120:638-646. Entretanto, a real prevalência é difícil de ser estimada devido à falta de padronização diagnóstica dos estudos que se propõem a avaliar tal parâmetro.77 Rona RJ, Keil T, Summers C, Gislason D, Zuidmeer L, Sodergren E, et al. The prevalence of food allergy: a meta-analysis. J Allergy Clin Immunol. 2007;120:638-646. A maioria das crianças com APLV desenvolve sintomas antes de um ano, geralmente dentro de uma semana após a introdução da fórmula à base de leite de vaca.88 Høst A, Halken S. Cow’s milk allergy: where have we come from and where are we going? Endocr Metab Immune Disord Drug Targets. 2014;14:2-8. Alguns bebês alimentados exclusivamente com leite materno também podem desenvolver APLV, sob a hipótese de que isso se deva à β‐lactoglobulina, substância presente no leite de vaca, que é encontrado no leite materno quatro a seis horas após a mãe consumir leite de vaca.99 James JM. Common respiratory manifestations of food allergy: a critical focus on otitis media. Curr Allergy Asthma Rep. 2004;4:294-301.,1010 Kilshaw PJ, Cant AJ. The passage of maternal dietary proteins into human breast milk. Int Arch Allergy Appl Immunol. 1984;75:8-15.

O mecanismo fisiopatológico relacionado ao desenvolvimento das manifestações clínicas da APLV ainda está em elucidação. Algumas manifestações são induzidas por mecanismos mediados por IgE, por meio de reações de hipersensibilidade do tipo 1, como urticária, angioedema e anafilaxia. As reações tardias não são mediadas por IgE e/ou são reações imunes mistas e se caracterizam por acontecer de 24 horas até semanas após a exposição. São reações inespecíficas, como, por exemplo, baixo ganho ponderal, vômitos, recusa alimentar e diarreia.1111 Høst A, Halken S, Jacobsen HP, Christensen AE, Herskind AM, Plesner K. Clinical course of cow’s milk protein allergy/intolerance and atopic diseases in childhood. Pediatr Allergy Immunol. 2002;13:23-28. Essas características, associadas à ausência de exames laboratoriais confirmatórios, dificultam a acurácia diagnóstica para APLV e alguns estudos estimam que os sintomas de APLV podem ser encontrados em 5% a 15% dos bebês em geral.99 James JM. Common respiratory manifestations of food allergy: a critical focus on otitis media. Curr Allergy Asthma Rep. 2004;4:294-301. Assim, quando há suspeita de APLV, deve‐se fazer uma dieta com exclusão do alérgeno por 2 a 4 semanas e, posteriormente, teste de provocação oral para avaliar se há reprodutibilidade dos sintomas e, dessa forma, confirmação do diagnóstico.1212 Lifschitz C, Szajewska H. Cow’s milk allergy: evidence-based diagnosis and management for the practitioner. Eur J Pediatr. 2015;174:141-150.

O diagnóstico correto permite que a dieta apropriada seja dada às crianças afetadas, permiteo assim crescimento e desenvolvimento adequados. Por outro lado, quando se institui uma dieta de exclusão que não é necessária ou quando essa dieta persiste, mesmo após a criança já ter desenvolvido tolerância ao alérgeno, pode haver déficits nutricionais, pioria da qualidade de vida da criança e da família, bem como geração de custos de saúde desnecessários e significativos.88 Høst A, Halken S. Cow’s milk allergy: where have we come from and where are we going? Endocr Metab Immune Disord Drug Targets. 2014;14:2-8.,1111 Høst A, Halken S, Jacobsen HP, Christensen AE, Herskind AM, Plesner K. Clinical course of cow’s milk protein allergy/intolerance and atopic diseases in childhood. Pediatr Allergy Immunol. 2002;13:23-28.

Em 2004, a correlação entre alergia alimentar e OME e Omar foi postulada por James a partir de uma série de estudos que apontaram a inflamação alérgica na mucosa nasal como fator causador de disfunção da tuba auditiva e subsequente OME. Entretanto, o autor discute as dificuldades de se obter a confirmação do papel da alergia alimentar na ocorrência de otite média, uma vez que os dados publicados na época eram limitados, os estudos envolvidos tinham desenhos metodológicos pouco desenvolvidos e por conseguinte levavam a resultados superestimados e controversos.99 James JM. Common respiratory manifestations of food allergy: a critical focus on otitis media. Curr Allergy Asthma Rep. 2004;4:294-301.

Assim, o presente estudo tem como objetivo fazer uma revisão das evidências sobre a correlação entre APLV e o desenvolvimento de Omar e OME.

Métodos

Revisão sistemática norteada pela pergunta: “Existe evidência de uma correlação entre APLV e Omar/ou OME?” A formulação da questão de pesquisa foi estruturada segundo os componentes do acrônimo PECO (População de interesse, Exposição, Comparador e Desfecho).1313 Ministério da Saúde (BR) Ministério da Saúde; Brasília (DF): 2014. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes Metodológicas: elaboração de revisão sistemática e metanálise de estudos observacionais comparativos sobre fatores de risco e prognóstico. A revisão incluiu estudos com texto completo publicados em qualquer data, nas línguas inglesa, portuguesa e espanhola, que avaliaram a associação entre APLV e Omar e/ou OME, com descrição dos parâmetros usados para o diagnóstico dessas condições. Foram excluídos resumos publicados em anais de congressos, relatos de caso e estudos em que os diagnósticos foram feitos por autorrelato ou não foram descritos. Todos os procedimentos para a condução desta revisão foram feitos de acordo com checklist Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (Prisma).1414 Moher D, Liberati A, Tetzlaff J, Altman DG, PRISMA Group Preferred reporting items for systematic reviews and meta-analyses: the PRISMA statement. PLoS Med. 2009;6 e1000097.

O número de registro é: CRD42021262210.

Métodos de busca para identificação dos estudos

Busca eletrônica

Os estudos foram identificados nas bases de dados Cochrane Central Register of Controlled Trials (Central), Web of Science (Clarivate Analytics), Embase (Elsevier), Medline (PubMed), Latin American and Caribbean Health Sciences Literature (Lilacs/Bireme). A seguinte estratégia de busca usada na base de dados Medline (PubMed): “Otitis Media” [MeSH] OR otitis media OR aom OR ome AND “Milk Hypersensitivity” [Mesh] OR milk proteins OR (CMA OR CMPA) OR “milk allergy” OR “milk protein allergy” OR “cow* milk protein allergy” OR allergy AND (“infant formula*” OR “milk adverse effects” OR “Food Hypersensitivity” [MeSH] OR “food allergen”. A estratégia de busca completa de acordo com cada base de dados está detalhada no Apêndice 1 Apêndice A Material adicional Pode‐se consultar o material adicional para este artigo na sua versão eletrônica disponível em doi: https://doi.org/10.1016/j.bjorl.2021.07.005. . Não foram aplicadas restrições de busca.

Outros recursos de busca

Foram consultadas as seguintes fontes de literatura cinzenta: Google Scholar, OpenGrey, Turning Research Into Practice (TRIP) e catálogos de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A estratégia de busca nessas fontes está detalhada no Suplemento 1. As listas de referências dos estudos recuperados também foram pesquisadas para identificar outros estudos potencialmente elegíveis.

Coleta e análise de dados

Seleção de estudos

Na etapa de triagem, três autores avaliaram de forma independente os títulos e resumos de todos os resultados da estratégia de busca, de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. As discordâncias, quando presentes, foram resolvidas por um quarto revisor. Na etapa seguinte, foram feitas a leitura do texto completo dos estudos selecionados na etapa anterior, de modo independente, e a exclusão dos estudos que não atenderam aos critérios de inclusão.

Extração e gerenciamento de dados

Os dados dos estudos incluídos foram coletados por meio de uma ficha de avaliação padronizada.

Avaliação da qualidade dos estudos incluídos

O checklist fornecido pelo relatório elaborado pela iniciativa Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (Strobe)1515 von Elm E, Altman DG, Egger M, Pocock SJ, Gøtzsche PC, Vandenbroucke JP, et al. The Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) statement: guidelines for reporting observational studies. J Clin Epidemiol. 2008;61:344-349. foi usado para a avaliação da qualidade dos estudos incluídos. Cada estudo foi avaliado por dois revisores de forma independente e as discrepâncias foram resolvidas por consenso. Para apresentação dos dados o checklist foi preenchido de duas formas. Na primeira, de forma qualitativa, foi atribuído para cada item do Strobe: “sim” (baixo risco de viés) quando o item foi totalmente contemplado, “não” (alto risco de viés), quando o item não foi contemplado, ou ainda “parcialmente”, quando o item não demonstrou clareza. Os resultados foram representados na figura 1. Na segunda, de forma quantitativa, foram atribuídas a cada item pontuações: 1 ponto para itens contemplados; 0,5 para itens parcialmente contemplados e 0 para itens não contemplados. Para os itens compostos por subitens a pontuação foi distribuída de maneira proporcional, isto é, em um item formado por 5 subitens cada subitem recebia o valor de 0,2. Os resultados dessa segunda abordagem estão expressos na figura 2.

Figura 1
Avaliação qualitativa da qualidade dos estudos incluídos.

Figura 2
Avaliação quantitativa da qualidade dos estudos incluídos.

Resultados

Foram identificados 908 resultados. Após a execução das etapas metodológicas foram incluídos quatro estudos para síntese qualitativa. O fluxo da informação que contém as fases desta revisão está apresentado na figura 3. Assinalamos que não foi possível acessar apenas um estudo selecionado para leitura do texto completo. Após contato com o periódico responsável pela publicação, foi informado que o estudo não se encontra disponível em meio digital (Apêndice 2).

Figura 3
Diagrama de fluxo PRISMA.

Os quatro estudos incluídos avaliaram a correlação entre APLV e Omar ou OME. Os estudos incluíram pacientes pediátricos de diferentes grupos etários e houve variação nos critérios diagnósticos empregados, observou‐se heterogeneidade. Os estudos são do tipo observacional, três do tipo transversal e um prospectivo. As características dos estudos estão apresentadas na tabela 1. A avaliação da qualidade metodológica está apresentada nas figuras 1 e 2.

Tabela 1
Características dos estudos incluídos

Para o diagnóstico de APLV, dois estudos usaram como parâmetro melhoria clínica após exclusão do leite de vaca e recorrência dos sintomas após reintrodução. Um desses considerou também positive o teste de provocação oral feito em hospital. Quanto aos outros dois estudos, um deles usou dosagem de anticorpos totais e específicos para antígenos do leite e o outro, teste cutâneo (prick skin test) positivo e melhoria clínica após retirada do alérgeno. Para a identificação da recorrência de otite média, dois estudos apresentaram os critérios usados para definir OMA/OME e Omar e dois estudos usaram como parâmetros o registro de procedimentos cirúrgicos otorrinolaringológicos (miringotomia bilateral com inserção de tubos, adenoidectomia e tonsilectomia) e o registro do diagnóstico de fala atrasada devido a OME crônica em prontuários médicos.

As medidas de interesse apresentadas nos estudos e de interesse para esta revisão foram: (1) Prevalência de fala atrasada devido a OME crônica em crianças com APLV; (2) Prevalência de APLV em crianças submetidas a procedimentos otorrinolaringológicos; (3) Prevalência de APLV em crianças com OME recorrente; (4) Frequência de quadros de otite média de repetição em crianças com APLV e crianças sem APLV. Dessa forma, os resultados encontrados em cada estudo foram: a prevalência de fala atrasada devido a OME crônica foi de 0,2% em uma amostra de 382 crianças com APLV; a prevalência de APLV foi de 10,7% em uma amostra de 242 crianças submetidas a procedimentos otorrinolaringológicos; a prevalência de APLV foi de 40% em uma amostra de 25 crianças com OME recorrente; em uma amostra de 183 crianças seguidas desde o nascimento, sete crianças com APLV tendiam a ter otite média com mais frequência durante o primeiro ano quando comparadas às crianças sem APLV (1,5 + 0,6 vs. 0,4 + 0,1; p < 0,1). Apenas uma dessas sete crianças teve OMAR.

Discussão

Nas últimas décadas, o papel das alergias no desenvolvimento de Omar e OME tem sido consideravelmente investigado. Contudo, ao revisar os estudos que avaliam a correlação entre otite média e APLV, observamos a ausência de definições de caso claras, de critérios diagnósticos padrão ou de randomização e cegamento para controlar potenciais vieses. Os estudos incluídos nesta revisão investigaram crianças em faixas etárias mistas e apresentaram variações nos métodos para o diagnóstico de otite média e APLV.

O estudo desenvolvido por Arroyave1616 Arroyave CM. Otitis media recurrente con efusión y alergia a los alimentos en pacientes pediátricos [Recurrent otitis media with effusion and food allergy in pediatric patients] Rev Alerg Mex. 2001;48:141-144. avaliou a correlação entre OME e alergias alimentares. O diagnóstico de atopia foi definido por meio do teste cutâneo positivo e melhoria clínica após retirada do alérgeno. Ao investigar múltiplos alérgenos em uma amostra de 25 pacientes, foram identificados 10 (40%) pacientes com teste cutâneo positivo para antígenos do leite de vaca. É importante ressaltar que esse estudo não define de forma clara o critério usado como diagnóstico de OME na população incluída, uma vez apenas cita o número de episódios de otite, sem especificar os critérios diagnósticos usados para definição de caso. Além disso, teste cutâneo e dieta de eliminação empregados nesse estudo como método diagnóstico de APLV não são considerados o padrão‐ouro para considerar o indivíduo portador dessa alergia alimentar.

Na análise conduzida por Bhombal, Bothwell e Bauer,1717 Bhombal S, Bothwell MR, Bauer SM. Prevalence of elevated total IgE and food allergies in a consecutive series of ENT pediatric patients. Otolaryngol Head Neck Surg. 2006;134:578-580. o parâmetro investigado foi o aumento das imunoglobulinas do tipo IgE totais e específicas para vários alérgenos alimentares, inclusive o leite de vaca, em crianças submetidas aos procedimentos otorrinolaringológicos: miringotomia bilateral com inserção de tubos, adenoidectomia e tonsilectomia. Foram avaliados 242 pacientes e, desses, 26 (10,7%) apresentaram aumento de IgE específico para leite de vaca quando comparados à população total. No entanto, sabe‐se que o aumento da IgE específica não serve como critério diagnóstico para APLV e apenas como um exame complementar que auxiliaria no acompanhamento dos pacientes com esse tipo de patologia. Assim, o estudo conclui que embora não seja possível estabelecer uma relação de causalidade entre alergia alimentar e a maior frequência desses procedimentos, haveria algum benefício em se estudar de forma mais aprofundada a presença de alergia alimentar na população pediátrica com indicação dessas cirurgias.

Quanto ao estudo desenvolvido por Ngamphaiboon, Chatchatee e Thongkaew,1818 Ngamphaiboon J, Chatchatee P, Thongkaew T. Cow’s milk allergy in Thai children. Asian Pac J Allergy Immunol. 2008;26:199-204. que teve como objetivo investigar as manifestações clínicas mais frequentes em crianças com APLV, identificou‐se atraso no desenvolvimento de linguagem devido a OME em 0,2% das 382 crianças incluídas. Apesar do estudo atribuir o atraso da fala aos episódios de OME, destaca‐se a existência de múltiplas causas para o atraso de fala na faixa etária estudada. Contudo, o estudo não descreve se há fatores de risco de confusão. Ademais, não foi feito teste de provocação oral com cegamento em todos os pacientes incluídos como portadores de APLV. Desse modo, o estudo não demonstra confiabilidade para atribuir relação de causalidade entre OME e APLV, a partir dos parâmetros avaliados.

O estudo de Tainio et al.1919 Tainio VM, Savilahti E, Salmenperä L, Arjomaa P, Siimes MA, Perheentupa J. Risk factors for infantile recurrent otitis media: atopy but not type of feeding. Pediatr Res. 1988;23:509-512. teve como objetivo investigar os fatores de risco relacionados ao desenvolvimento de Omar durante o seguimento de 198 crianças desde o nascimento até dois anos. O método empregado para o diagnóstico de Omar foi o registro de cinco episódios de otite média confirmada pela otoscopia no primeiro ano de vida ou quatro episódios no segundo ano de vida e a APLV foi confirmada através de teste de provocação oral. Entre as crianças avaliadas, apenas uma portadora de APLV evoluiu com Omar. Assim, o estudo demonstrou que a APLV não pode ser considerada fator de risco para o diagnóstico de OMAR. E ainda, embora os níveis de imunoglobulinas IgG para leite de vaca séricos das crianças com Omar seja maior do que nas demais crianças dos estudos, sabe‐se que tal evidência não tem significado clínico, isto é, não confere diagnóstico de alergia.

Ao investigar a relação entre APLV e OMA, somente Tainio et al. consideraram a concomitância de fatores de risco bem estabelecidos para OMA, como tabagismo dos pais e frequência em creches, e fatores de proteção, como tempo de aleitamento materno. A ausência da descrição desses fatores em estudos similares evidencia ausência de estratégias para o controle dos fatores de confusão. A avaliação da qualidade dos estudos incluídos apresentou variação de 30,68% e 76,04% (de um total de 100%). Dessa forma, os resultados encontrados nos estudos desta revisão não demonstram rigor metodológico e não podem ser generalizados.

Por fim, salientamos que metanálises publicadas sobre os fatores de risco para o desenvolvimento de otite média apontam tabagismo passivo, uso de chupeta, cuidados em creches, ausência de aleitamento materno como fatores confiáveis.2020 Zhang Y, Xu M, Zhang J, Zeng L, Wang Y, Zheng QY. Risk factors for chronic and recurrent otitis media-a meta-analysis. PLoS One. 2014;9 e86397.,2121 Uhari M, Mäntysaari K, Niemelä M. A meta-analytic review of the risk factors for acute otitis media. Clin Infect Dis. 1996;22:1079-1083. Quanto às atopias ou alergias, as evidências apontam que alergias respiratórias, como rinite alérgica, podem contribuir para o início da otite média recorrente.2121 Uhari M, Mäntysaari K, Niemelä M. A meta-analytic review of the risk factors for acute otitis media. Clin Infect Dis. 1996;22:1079-1083. Apesar disso, no que diz respeito à para a comprovação da correlação entre APLV e Omar/OME, destacamos que ainda são necessários novos estudos.

Conclusão

Foram identificados estudos observacionais que apresentaram considerável heterogeneidade quanto ao desenho metodológico, faixa etária da população estudada e métodos diagnósticos para APLV e otite média. Dessa forma, os resultados encontrados não permitem afirmar a existência de uma correlação entre APLV e o desenvolvimento de Omar ou OME. Torna‐se necessário o desenvolvimento de estudos com desenhos metodológicos adequados e padronização dos critérios diagnósticos.

Apêndice A Material adicional

Pode‐se consultar o material adicional para este artigo na sua versão eletrônica disponível em doi: https://doi.org/10.1016/j.bjorl.2021.07.005.

  • Como citar este artigo: Oliveira KA, Esper MT, Oliveira ML, Tofoli MH, Avelino MA. Correlation between cow's milk protein allergy and otitis media: a systematic review. Braz J Otorhinolaryngol. 2022;88:802-10.

References

  • 1
    Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial . 3ª edição. GEN Guanabara Koogan; 2017. Tratado de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial.
  • 2
    Rosenfeld RM, Shin JJ, Schwartz SR, Coggins R, Gagnon L, Hackell JM, et al. Clinical practice guideline: otitis media with effusion (update) Otolaryngol Head Neck Surg. 2016;154:S1-S41.
  • 3
    Zernotti ME, Pawankar R, Ansotegui I, Badellino H, Croce JS, Hossny E, et al. Otitis media with effusion and atopy: is there a causal relationship? World Allergy Organ J. 2017;10:37.
  • 4
    Schilder AG, Chonmaitree T, Cripps AW, Rosenfeld RM, Casselbrant ML, Haggard MP, et al. Otitis media. Nat Rev Dis Primers. 2016;2:16063.
  • 5
    Grindler DJ, Blank SJ, Schulz KA, Witsell DL, Lieu JE. Impact of otitis media severity on children’s quality of life. Otolaryngol Head Neck Surg. 2014;151:333-340.
  • 6
    Sicherer SH. Epidemiology of food allergy. J Allergy Clin Immunol. 2011;127:594-602.
  • 7
    Rona RJ, Keil T, Summers C, Gislason D, Zuidmeer L, Sodergren E, et al. The prevalence of food allergy: a meta-analysis. J Allergy Clin Immunol. 2007;120:638-646.
  • 8
    Høst A, Halken S. Cow’s milk allergy: where have we come from and where are we going? Endocr Metab Immune Disord Drug Targets. 2014;14:2-8.
  • 9
    James JM. Common respiratory manifestations of food allergy: a critical focus on otitis media. Curr Allergy Asthma Rep. 2004;4:294-301.
  • 10
    Kilshaw PJ, Cant AJ. The passage of maternal dietary proteins into human breast milk. Int Arch Allergy Appl Immunol. 1984;75:8-15.
  • 11
    Høst A, Halken S, Jacobsen HP, Christensen AE, Herskind AM, Plesner K. Clinical course of cow’s milk protein allergy/intolerance and atopic diseases in childhood. Pediatr Allergy Immunol. 2002;13:23-28.
  • 12
    Lifschitz C, Szajewska H. Cow’s milk allergy: evidence-based diagnosis and management for the practitioner. Eur J Pediatr. 2015;174:141-150.
  • 13
    Ministério da Saúde (BR) Ministério da Saúde; Brasília (DF): 2014. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes Metodológicas: elaboração de revisão sistemática e metanálise de estudos observacionais comparativos sobre fatores de risco e prognóstico.
  • 14
    Moher D, Liberati A, Tetzlaff J, Altman DG, PRISMA Group Preferred reporting items for systematic reviews and meta-analyses: the PRISMA statement. PLoS Med. 2009;6 e1000097.
  • 15
    von Elm E, Altman DG, Egger M, Pocock SJ, Gøtzsche PC, Vandenbroucke JP, et al. The Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) statement: guidelines for reporting observational studies. J Clin Epidemiol. 2008;61:344-349.
  • 16
    Arroyave CM. Otitis media recurrente con efusión y alergia a los alimentos en pacientes pediátricos [Recurrent otitis media with effusion and food allergy in pediatric patients] Rev Alerg Mex. 2001;48:141-144.
  • 17
    Bhombal S, Bothwell MR, Bauer SM. Prevalence of elevated total IgE and food allergies in a consecutive series of ENT pediatric patients. Otolaryngol Head Neck Surg. 2006;134:578-580.
  • 18
    Ngamphaiboon J, Chatchatee P, Thongkaew T. Cow’s milk allergy in Thai children. Asian Pac J Allergy Immunol. 2008;26:199-204.
  • 19
    Tainio VM, Savilahti E, Salmenperä L, Arjomaa P, Siimes MA, Perheentupa J. Risk factors for infantile recurrent otitis media: atopy but not type of feeding. Pediatr Res. 1988;23:509-512.
  • 20
    Zhang Y, Xu M, Zhang J, Zeng L, Wang Y, Zheng QY. Risk factors for chronic and recurrent otitis media-a meta-analysis. PLoS One. 2014;9 e86397.
  • 21
    Uhari M, Mäntysaari K, Niemelä M. A meta-analytic review of the risk factors for acute otitis media. Clin Infect Dis. 1996;22:1079-1083.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2021
  • Aceito
    5 Jul 2021
Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial. Sede da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial, Av. Indianópolia, 1287, 04063-002 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (0xx11) 5053-7500, Fax: (0xx11) 5053-7512 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@aborlccf.org.br