Resumos
Estima-se que haja uma estreita relação entre o acometimento nas habilidades do processamento auditivo, do reflexo acústico e na fala. OBJETIVO: O presente estudo é retrospectivo. Avaliar estas três vertentes em crianças com e sem desvio fonológico e ver se há relação entre elas. MATERIAL E MÉTODO: Neste estudo participaram 46 crianças, 24 sem comprometimento de fala e 22 com desvio fonológico. Todas as crianças foram submetidas a testes do processamento auditivo e pesquisa dos limiares do reflexo acústico DESENHO CIENTÍFICO: Transversal e contemporâneo. RESULTADOS: Todas as crianças com desvio fonológico apresentaram alterações no processamento auditivo e nos limiares do reflexo acústico. O mesmo não ocorreu com as crianças tidas como normais para o desempenho de fala. CONCLUSÃO: Alterações no processamento auditivo e nos limiares do reflexo acústico estão intimamente ligados às dificuldades de fala.
audição; criança; distúrbios da fala; reflexo acústico
It is thought that a close relationship exists between auditory processing, the acoustic reflex and speech. AIM: A retrospective study to evaluate these three aspects in children with and without phonological disorders and seek any relationship among them. MATERIAL METHODS: 46 children were enrolled: 24 had normal speech abilities and 22 had phonological disorders. All children underwent auditory processing and acoustic reflex threshold testing. DESIGN: Cross-sectional contemporary. RESULTS: Auditory processing and acoustic reflex thresholds were abnormal in all children with phonological disorders. This was not the case in children with normal speech development. CONCLUSION: Changes in the auditory processing and acoustic reflex thresholds are closely related to speech difficulties.
hearing; acoustic; child; reflex
ORIGINAL ARTICLE
Processamento auditivo, reflexo acústico e expressão fonológica
Tiago Mendonça AttoniI; Victor Gandra QuintasII; Helena Bolli MotaIII
IMestrado em Distúrbios da Comunicação Humana, Fonoaudiólogo
IIMestrado em Distúrbios da Comunicação Humana, Fonoaudiólogo
IIIDoutorado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Professor Associado da Universidade Federal de Santa Maria
RESUMO
Estima-se que haja uma estreita relação entre o acometimento nas habilidades do processamento auditivo, do reflexo acústico e na fala.
OBJETIVO: O presente estudo é retrospectivo. Avaliar estas três vertentes em crianças com e sem desvio fonológico e ver se há relação entre elas.
MATERIAL E MÉTODO: Neste estudo participaram 46 crianças, 24 sem comprometimento de fala e 22 com desvio fonológico. Todas as crianças foram submetidas a testes do processamento auditivo e pesquisa dos limiares do reflexo acústico
DESENHO CIENTÍFICO: Transversal e contemporâneo.
RESULTADOS: Todas as crianças com desvio fonológico apresentaram alterações no processamento auditivo e nos limiares do reflexo acústico. O mesmo não ocorreu com as crianças tidas como normais para o desempenho de fala.
CONCLUSÃO: Alterações no processamento auditivo e nos limiares do reflexo acústico estão intimamente ligados às dificuldades de fala.
Palavras-chave: audição, criança, distúrbios da fala, reflexo acústico.
INTRODUÇÃO
A aquisição da fala é um processo aparentemente simples. Crianças aprendem sua língua materna rapidamente e esse desenvolvimento é bastante semelhante independentemente da cultura. As crianças são capazes de discriminar e compreender estruturas de fala antes mesmo de conseguir emiti-las, e isso se torna possível pelo amadurecimento de bases neurofisiológicas e cognitivas que ocorre antes que a criança seja capaz de realizar a produção de palavras1.
Para que o processo de aquisição de fala ocorra de forma natural, é preciso que o sistema miofuncional oral, sistema nervoso central e auditivo estejam em condições normais. Caso exista qualquer alteração em uma destas estruturas, a criança terá dificuldades na percepção, organização e produção do sistema fonológico2-3.
No entanto, existem crianças que, mesmo com ausência de fatores etiológicos detectáveis, apresentam alterações no sistema fonológico, e isso pode ser evidenciado pelo uso incorreto do padrão da língua falada. Crianças que se enquadrem neste perfil são denominadas como portadores de distúrbio fonológico ou desvio fonológico4-5. O nível de gravidade do desvio fonológico é descrito pelo percentual de consoantes corretas (PCC) produzidas pela criança e classifica-se em severo (PCC<50%), moderado-severo (50%<65%), médio-moderado (65%<85%) e médio (85%<100)6.
A busca por respostas sobre os fatores que possam estar envolvidos com alterações de fala tem conduzido a pesquisas que relacionam o desvio fonológico com possíveis alterações do processamento auditivo7-10.
O processamento auditivo é responsável pela leitura do sinal acústico. Suas atribuições são verificadas pela capacidade de localizar a fonte sonora, focar, discriminar, reconhecer ou compreender estímulos auditivos. Para que sua funcionalidade se apresente de forma natural e ampla, é necessário que estruturas auditivas relacionadas ao sistema nervoso central e periféricas estejam preservadas, caso contrário, verificaremos alterações em habilidades do processamento auditivo, expressas pelas dificuldades no recebimento, análise e organização da informação auditiva11-12.
Sobre o funcionamento de estruturas periféricas, há indícios de uma estreita e combinada relação entre o reflexo acústico (RA) ou contração do músculo estapédio e a atuação do processamento auditivo, sendo as alterações no reflexo acústico apontadas como indicativo para alterações no comportamento do processamento auditivo13-15.
A verificação dos limiares do reflexo acústico tem se tornado uma importante ferramenta, pois possibilita avaliar as vias eferentes e obter informações quanto à região de tronco encefálico16. Suas funções se estendem à melhora da atenção auditiva para sons contínuos; separação do sinal auditivo do ruído de fundo; percepção de alterações de intensidade acima do limiar auditivo; atenuação de ruídos produzidos por atividades de mastigação e movimentos de mandíbula durante a fala; participação no ato de vocalizar; melhora na discriminação de fala em altas intensidades e seletividade de frequências; melhora na localização ou senso de direção do som pela interação binaural17-21.
O nível de intensidade ou limiar de resposta do reflexo acústico para padrão de normalidade está compreendido entre 70-90 dBNA, valores acima de 90 ou/e ausência de respostas são classificados como alteração do reflexo acústico22-23.
O objetivo deste estudo foi verificar e analisar as habilidades do processamento auditivo e os limiares do reflexo acústico em crianças com desenvolvimento de fala normal e desviante, correlacionar a gravidade do desvio fonológico com o processamento auditivo e com o reflexo acústico e também correlacionar os resultados encontrados na pesquisa do reflexo acústico com o sistema fonológico de crianças com desvio fonológico.
A justificativa deste estudo está na necessidade de se entender os motivos pelos quais algumas crianças apresentam uma fala fora dos padrões de seu dialeto local, sem circunstâncias etiológicas aparentes. Isso gera uma possibilidade de esclarecimento sobre causas do desvio, os mecanismos fisiológicos que possam estar envolvidos com a discriminação dos sons e sua aquisição, além de nortear e aumentar os recursos terapêuticos.
MATERIAL E MÉTODO
Este trabalho foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa, sendo protocolado e aprovado com o número 23081.006440/2009-60.
A amostra desta pesquisa foi constituída de 46 crianças de ambos os gêneros, com idades compreendidas entre 5 e 7 anos, que foram divididas em dois grupos:
Grupo Controle (GC): formado por 24 crianças com desenvolvimento de fala normal, sendo 8 do gênero masculino e 16 do gênero feminino.
Grupo experimental (GE): formado por 22 crianças com desvio fonológico, sendo 12 do gênero masculino e 10 do gênero feminino.
Os critérios de inclusão na amostra para o GC foram os seguintes:
Não apresentar desvio fonológico; não apresentar alterações neurológicas, emocionais e/ou perceptivas aparentes, alterações anatômicas e fisiológicas dos órgãos fonoarticulatórios, de linguagem expressiva e compreensiva; ter audição dentro dos padrões de normalidade; ser destro; não apresentar queixa de alteração no processamento auditivo.
Os critérios considerados como de exclusão para este grupo foram a presença de alterações de estruturas anatômicas e fisiológicas relacionadas à comunicação, e/ou presença de alterações relacionadas à compreensão e ou expressão da linguagem.
Os critérios de inclusão na amostra para o GE foram os seguintes: apresentar diagnóstico de desvio fonológico; não apresentar alterações neurológicas, emocionais e/ou perceptivas aparentes, alterações anatômicas e fisiológicas dos órgãos fonoarticulatórios, de linguagem expressiva e compreensiva; ter audição dentro dos padrões de normalidade; ser destro; não ter recebido ou estar em tratamento fonoaudiológico.
Os fatores de exclusão se restringiram a qualquer fator perceptível que pudesse ser diretamente responsável pelo desvio fonológico ou contribuir de forma decisiva para seu agravamento ou permanência. Desta forma, só foram selecionadas as crianças que apresentaram o desvio fonológico evolutivo.
O GC foi obtido por meio de contato com uma escola de uma instituição filantrópica da cidade de Santa Maria (RS). A direção da escola convidou os pais ou responsáveis a participarem de uma reunião, onde assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e foram elucidados quanto aos procedimentos da pesquisa.
Para a obtenção do GE, foi providenciada uma lista, no setor de triagem, com todos os pacientes portadores de desvio fonológico em lista de espera.
Os equipamentos utilizados para a pesquisa foram: Audiômetro Clínico Fonix FA - 12, fone TDH 39 (calibração ANSI S3.6/96: ANSI S343/92). Todos os estímulos aplicados ocorreram em cabina acusticamente tratada; para a pesquisa do RA ipsi e contralateral nas frequências de 500 a 4000 Hz foi utilizado o Impedanciômetro AZ7, fone TDH 39, com tom de sonda de 220 Hz a 70 dB (calibração ANSI S3.6/96: ANSI S343/92); para emissão do parecer quanto ao processamento auditivo foram aplicados os testes: avaliação simplificada do processamento auditivo (instrumentos guizo, agogô, sino e coco), teste dicótico de dígitos, teste de fala no ruído, teste de dissílabos alternados (Staggered Spondaic Word - SSW), teste Pediatric Speech Inteligibility (PSI) e os pôsteres com as ilustrações das respostas. Foram utilizados os CDs volume 1 e volume 2, com a gravação dos testes, aplicados conforme manual de aplicação24.
As avaliações dos dois grupos aconteceram na clínica escola de uma instituição de ensino superior e foram realizadas pelo próprio pesquisador.
Todas as crianças passaram por triagem fonoaudiológica, onde se avaliou: sistema estomatognático, avaliação da linguagem, inspeção otológica, avaliação audiológica (audiometria tonal, limiar de recepção de fala e índice perceptual de reconhecimento de fala), pesquisa do reflexo acústico e curva timpanométrica, avaliação da fala.
O sistema fonológico foi avaliado por meio do instrumento Avaliação Fonológica da Criança (AFC)25, que possibilita a obtenção e análise de uma amostra significativa de fala contendo todos os contrastes fonêmicos presentes no português brasileiro em diferentes posições e estruturas silábicas.
O RA foi avaliado em todas as crianças, nas orelhas direita e esquerda, pelas frequências de 500, 1000, 2000 e 4000 Hz. Esta avaliação ocorreu de forma ipsi e contralateralmente à orelha avaliada. Como metodologia de análise, considera-se valores de normalidade compreendidos entre 70 - 90 dBNA e resultados acima de 90 dBNA ou ausentes foram considerados alterados23.
Nas avaliações do Processamento Auditivo, optou-se pela realização de testes que avaliassem as habilidades auditivas por meio de escuta diótica, monótica e dicótica.
Escuta diótica
Para a Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo foram utilizados agogô, coco, guizo e sino. Este teste não requer nenhum mecanismo sofisticado, sendo fácil e bastante prática sua aplicação. É constituído de três etapas: localização sonora - a criança deve identificar qual direção do estímulo sonoro. Neste caso, a criança deve acertar pelo menos 4 direções de 5 apresentadas e se espera que os erros sejam em frente ou acima da cabeça. A próxima etapa é chamada de memória sequencial verbal: são apresentadas sílabas e espera-se que a criança seja capaz de repetir pelo menos duas sequências de três apresentadas. Por fim temos a memória sequencial não verbal: nessa tarefa a criança deve escutar o som de instrumentos já pré-determinados (guizo, agogô, sino, coco) e, ao fim, repetir corretamente a sequência apresentada. De três sequências espera-se que se acertem duas.
Escuta monótica
O teste PSI possibilita avaliar a capacidade de Figura-fundo e associação audiovisual. São apresentadas frases com mensagem competitiva ipsi e/ou contralateral. O participante foi instruído a ouvir uma estória e, ao mesmo tempo, a apontar um dos desenhos apresentados no quadro à sua frente.
No teste Fala com Ruído, foi explicado às crianças que ouviriam uma série de palavras juntamente com ruído, sendo que deveriam repetir as palavras que ouviriam. Este teste avalia a capacidade de fechamento auditivo.
Escuta dicótica
O Teste Dicótico de Dígitos (etapa atenção livre e direcionada) consiste em quatro apresentações de uma lista de dígitos dissílabos do português brasileiro, em que quatro dígitos diferentes são apresentados simultaneamente, dois em cada orelha, caracterizando uma tarefa dicótica. Através deste teste é possível identificar as habilidades de atenção seletiva (direcionar a escuta).
O teste SSW possibilita a avaliação da habilidade de análise-síntese auditiva e memória, e envolve a identificação de quatro dissílabos diferentes apresentados simultaneamente nas duas orelhas. A instrução é que repetissem as quatro sentenças apresentadas.
Na análise dos resultados, foram feitas correlações entre os achados do PA, do RA e da fala, dentro de cada grupo. Para tratamento estatístico foi utilizado o programa SAS user's guide: statistical, Analysis System Institute, Inc., Cary, NC, 2001; teste de correlação de coeficientes de Pearson.
RESULTADOS
Os resultados referentes aos testes PSI e Fala com Ruído não serão expostos, pois não existiram variabilidades dentro de cada grupo, tampouco entre os dois grupos, ou seja, todos os sujeitos obtiveram o máximo de aproveitamento nos dois testes. Desta forma, não existe magnitude para se fazer análises estatísticas.
Para a Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo somente os resultados do grupo experimental se apresentaram alterados.
Na análise qualitativa do SSW, as crianças do grupo experimental obtiveram, de uma forma geral, altos valores em trocas e omissões; além disso, os sujeitos deste grupo, em análise de respostas comportamentais relacionadas ao desempenho temporal, necessitaram de um tempo maior para emitir as respostas. Na obtenção dos resultados quantitativos do teste SSW, as crianças do grupo controle obtiveram valores dentro do padrão para normalidade.
No teste Dicótico de Dígitos, é possível visualizar os valores referentes aos números de erros dentro de cada grupo. Nas etapas de atenção livre, à direita e à esquerda, os índices de respostas foram semelhantes entre as duas orelhas, de forma equivalente em cada grupo. Somente o grupo experimental obteve valores fora dos padrões tidos para normalidade.
Esses resultados podem ser vistos na Tabela 1.
Na Tabela 2 é possível ver a representação dos valores correspondentes aos achado do RA ipsi e contralateral dos grupos controle e experimental, em média, coeficiente de variação, desvio padrão, mínimo e máximo.
Foram encontrados valores representativos na correlação entre os dados do RA e a gravidade do desvio fonológico. Valores igualmente significativos foram obtidos na correlação efetuada entre a alteração fonêmica da fala e os achados do RA. Esses resultados são visíveis na Tabela 3.
DISCUSSÃO
A ausência de fatores etiológicos detectáveis, principalmente no que se refere à audição, desperta a atenção para a pesquisa sobre as causas do desvio fonológico. O fato de que essas crianças apresentam tipicamente uma estruturação anatômica e fisiológica nas mesmas condições que crianças com desenvolvimento de fala normal remete ao raciocínio de que o fator causador desse desvio esteja presente nas estruturas responsáveis pela discriminação do estímulo auditivo.
Com o surgimento das primeiras produções vocais, se as estruturas auditivas estiverem preservadas, possibilitando um feedback adequado, há continuação do caminho evolutivo da fala26; assim, os sons da fala devem ser corretamente percebidos, discriminados e processados por todo o complexo auditivo para que ocorra a aquisição fonêmica.
Neste estudo, identificou-se duas ocorrências bastante significativas relacionadas ao sistema auditivo de crianças com desvio fonológico. A primeira está no fato de que todas as crianças apresentaram alterações em determinados testes do processamento auditivo. A segunda é que os resultados da avaliação do reflexo acústico se apresentaram alterados em todas as crianças, ou seja, todos os valores encontrados se mantiveram acima de 90 dBNA e/ou ausentes. Um fato importante é que as crianças tidas como normais para a fala não apresentaram valores alterados nas avaliações do processamento auditivo, além de resultados dentro da normalidade para a avaliação do reflexo acústico. Os dados encontrados sugerem que o processamento auditivo e o reflexo acústico desempenham um papel importante na condução dos processos de aquisição dos sons da fala.
Estes achados confirmam, ainda, a relação existente entre alterações do processamento auditivo e RA13-15. Não foi possível mensurar até que ponto as alterações possam estar associadas, mas estão diretamente ligadas ao comprometimento do desenvolvimento de fala.
Nas avaliações do processamento auditivo, foram detectados padrões considerados normais e alterados para as crianças do grupo experimental.
Na Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo, os resultados se apresentaram alterados, mas com relação significante entre sons não-verbais e sons verbais. Não foi identificado correlação entre o desempenho por idade ou gênero.
Nos testes PSI e Fala com Ruído, todas as crianças dos dois grupos conseguiram 100% de aproveitamento, diferentemente de um estudo10 que encontrou diferenças significativas com relação à idade de crianças com desvio fonológico no teste PSI. Em outro estudo27, onde se avaliou crianças com dificuldades escolares, por meio dos testes PSI e Fala com Ruído, as correlações se mostraram significativas na análise feita por idade.
Os resultados destes dois testes identificam o não comprometimento ou dificuldade nas habilidades auditivas de figura-fundo, associação audiovisual e fechamento auditivo e podem ajudar a detectar alterações relacionadas à codificação auditiva. Sendo assim, as crianças com desvio fonológico não apresentam dificuldades em integrar a informação auditiva, o que é chamado de agnosia auditiva integrativa.
A avaliação do SSW apresentou resultados bastante alterados. Não foi possível identificar um melhor desempenho em alguma condição em especial, nem com relação ao gênero ou idade.
Para o teste Dicótico de Dígitos, os erros computados não geraram diferenças significativas entre as orelhas, mesmo se apresentando bastante alterado em todas as etapas.
Ao se avaliar os três testes (diótico e dicóticos), percebe-se que as crianças apresentaram dificuldades em habilidades de atenção seletiva, análise e síntese-auditiva e memória. Em vista disso, o tipo de desacordo do processamento auditivo pode ser determinado por déficits em decodificação e organização da informação auditiva24. Esses dados reafirmam as ligações entre dificuldades fonoarticulatórias e alterações do processamento auditivo, impossibilitando o uso correto dos fonemas28.
Na correlação dos coeficientes coletados, sobre o reflexo acústico e a fala de crianças com desvio fonológico, os valores obtidos foram bastante representativos. As crianças que apresentaram reflexo acústico preservado em todas as frequências testadas, porém com valores acima do limiar para normalidade, demonstraram um sistema fonológico menos afetado. De forma inversa, a ausência de respostas para o RA, em alguma das frequências testadas, representou maior acometimento à expressão fonológica.
A ausência do RA, em pelo menos uma frequência, parece indicar uma maior dificuldade da criança em adquirir os sons. Em contrapartida, quando encontramos apenas valores alterados, sem ausência de respostas, a capacidade fonológica expressiva está menos prejudicada.
Quanto à relação do RA e gravidade do desvio fonológico, a ausência em uma das frequências manteve valor significante com o nível de gravidade moderado-severo e severo. Os níveis de gravidade do desvio médio tiveram relação significante com a presença do RA em valores aumentados. Esses resultados reforçam as hipóteses sobre a participação do RA no processamento dos estímulos sonoros29.
É possível perceber a expressão do componente fonológico logo nos períodos iniciais do desenvolvimento infantil. A aquisição dos fonemas ocorre de forma gradual, que obedece a uma periodicidade. Primeiro a criança tende a adquirir os fonemas plosivos e nasais. Em um momento inicial, os fonemas /p/, /t/, /k/. Em um segundo momento, torna-se perceptível o aparecimento dos fonemas /b/, /d/. Por fim, o fonema /g/. Os fonemas nasais /n/ e /m/ despontam no mesmo período dos fonemas plosivos, entre 1:6 a 1:8 de idade. A nasal /ñ/ aparece a partir de 1:7 de idade. A seguir, no período de 1:8 a 2:10 de idade, a criança adquire os fonemas chamados de fricativos. A ordem de aquisição é a seguinte: /v/, /f/, /z/, /s/, /S/, /Z/. No período de 2:8 a 4:2 de idade, a criança adquire os fonemas /l/, /R/, /L/, /r/, nesta ordem de apresentação30-32.
Na ausência do RA, o sistema fonológico estava mais comprometido. Isso ficou evidente no alto valor significante entre a ausência do RA e o acometimento sobre alguns fonemas, principalmente nos de aquisição inicial, os plosivos.
Ao se analisar as estruturas fonêmicas prejudicadas e as alterações do RA, os sons mais comprometidos são os que possuem traço de sonoridade, ou seja, aqueles que exigem vibração das pregas vocais.
Para alguns autores33, a diferenciação dos sons surdos e sonoros seria uma faculdade inata ao ser. O fato é que os bebês com um mês de vida já conseguem discriminar alguns sons. No entanto, esses autores afirmam existir um ponto básico para que ocorra esta discriminação, que é o tempo de início de sonorização, mais conhecido como VOT (Voice Onset Time). O VOT é o intervalo de tempo entre a soltura da oclusão do fonema e o inicio da sonorização. A discriminação auditiva é um requisito importante para a diferenciação dos sons, pois possibilita a diferenciação entre os sons sonoros e surdos. Os processos de fala denominados de dessonorização (a criança substitui um som sonoro por um surdo) estão intimamente ligados ao baixo potencial para a discriminação fonêmica34.
Em um estudo35 onde se avaliou o VOT por meio de análise acústica em crianças com desvio, os resultados indicaram que esta capacidade está defasada nestas crianças, o que pode vir a gerar impossibilidades no processo de aquisição dos fonemas.
O RA é ativado antes e durante a vocalização. A contração do RA atenua os sons por via óssea e por via aérea, pois o nível sonoro emitido pela vocalização do próprio falante que atinge a cóclea é muito alto em frequências graves, o que dificulta a recepção simultânea da fala de outra pessoa. Esse efeito diminuiu durante a vocalização a amplitude do próprio sinal de fala. A atenuação dos componentes de baixa frequência dos sons do próprio falante, realizada pela ativação do RA, parece influenciar a própria percepção do som, e a inteligibilidade de fala externa36.
As alterações do RA podem representar uma dificuldade presente no ponto discriminativo dos fonemas, e uma de suas representações pode estar na não percepção do VOT. Se não houver um retorno auditivo adequado, fatalmente o percurso de aquisição dos sons da fala estará prejudicado.
É importante salientar a significância entre os fonemas /S/, /Z/ e /L/ com as alterações no reflexo acústico. Os dois primeiros são sons fricativos e o último uma líquida lateral; todos são sons mais complexos de aquisição mais tardia e os três fonemas compartilham o traço distintivo [-ant]. É provável que alterações no reflexo acústico representem um obstáculo para a perfeita identificação dos componentes destes sons, bem como sua assimilação ao sistema fonológico.
O processo de mielinização das fibras nervosas acontece de forma caudal para cefálica, sendo assim, as habilidades auditivas relacionadas com a região de tronco encefálico são mielinizadas mais precocemente comparadas com as que exigem a participação de áreas corticais. E é exatamente no tronco encefálico que encontraremos as vias responsáveis pelo reflexo acústico16,37.
As experiências pelas quais a criança passa durante os estágios iniciais de sua vida, especialmente no primeiro ano, representam um momento decisivo para o aparecimento da fala38. Se a estrutura especializada em proporcionar a leitura sobre os sinais acústicos de fala estiver reagindo de forma inferior ao esperado, existirá certo nível de privação sensorial, e isso levará o sistema nervoso a se auto-organizar, um fenômeno de suma importância conhecido como plasticidade cerebral39. Talvez esse seja o caminho que a criança com desvio fonológico percorra durante as fases iniciais do período de aquisição da fala.
Para que possa produzir um fonema, as representações mentais sobre as sensações cinestésicas e auditivas devem ser exercitadas. Se existe uma produção incorreta, a sensação cinestésica reforçará a permanência da produção errada40.
Esse pode ser o motivo pelo qual as crianças com desvio fonológico se apropriam de regras erradas para a produção de alguns fonemas, mas são capazes de perceber e compreender esses mesmos fonemas em situações de conversa espontânea. Pois, quanto mais velha, maior tende a ser sua experiência e, logicamente, seu desenvolvimento maturacional levando a uma melhor discriminação e entendimento dos padrões dos sons41,42.
Desta forma, a participação do reflexo acústico nos períodos iniciais do desenvolvimento infantil e sua relação com o processamento auditivo possibilitam à criança discriminar corretamente os fonemas e a incorporá-los em seu discurso.
Em conformidade com o apresentado, a forma expressiva do sistema fonológico, a ativação do reflexo acústico e a disposição do processamento auditivo, estão intimamente ligados. Se um destes estiver fora dos padrões tidos para a normalidade, existirá uma correspondência em nível de alteração nos dois outros, conduzindo a um baixo potencial para a capacidade comunicativa e utilização e assimilação do sistema fonológico.
CONCLUSÃO
Somente os casos com desvio fonológico apresentaram alterações do processamento auditivo.
Todas as crianças com desvio fonológico apresentaram alterações no RA.
Os fonemas, com perfil sonoro, são mais afetados que os surdos quando se encontram ausências do RA.
O nível de gravidade do desvio fonológico médio manteve correlação significativa com as crianças que apresentavam somente RA aumentados. Os níveis moderado-severo e severo tiveram valores significativos em circunstâncias onde havia ausência de RA.
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Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 15 de dezembro de 2009. cod. 6843
Artigo aceito em 7 de abril de 2010.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Dez 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2010
Histórico
-
Recebido
15 Dez 2009 -
Aceito
07 Abr 2010