Open-access A judicialização do ato médico

Desde os seus primórdios e mais efetivamente a partir da Idade Média, a atividade médica tem sido objeto de implacável controle social e, consequentemente, do próprio Direito. Nesse sentido, a Medicina Medieval submetia-se à análise prática dos resultados obtidos, quer seja com o emprego de medicamentos ou intervenções cirúrgicas, definindo-se o que era sucesso terapêutico, resultado acidental, caso fortuito ou curso inexorável da doença. 1

A partir do século XIX, constatou-se o crescimento dos procedimentos operatórios de risco e, simultaneamente, ocorreu incremento das queixas e da resistência dos pacientes em submeter-se aos procedimentos indicados pelos médicos. 2 Observou-se que tais fatos ocorreram justamente em momento de crescente investimento em técnicas operatórias mais eficazes e em estratégias que culminassem na diminuição das taxas de contaminação hospitalar.

No início do século XX, decorrente do crescimento das demandas jurídicas por erro médico, verificou-se plena discussão de que os maus resultados ocorridos não deveriam somente ser imputados exclusivamente ao cirurgião ou ao clínico que diretamente atuaram no caso. Questionava-se, então, que a responsabilidade deveria ser solidária em relação a outros profissionais que tiveram oportunidade de atuar ou influir nas condutas assumidas.

No fim do século XX, o erro médico passou a ser problema de Saúde Pública, uma vez que os recursos humanos e materiais utilizados com o objetivo de correção do "erro médico" aumentavam consideravelmente, apresentando número aproximado a 100 mil casos/ano nos Estados Unidos. 3

James Reason, pesquisador da Universidade de Manchester, discutiu o "erro médico" em várias publicações e, principalmente, retomando a discussão de que erro poderia ser sistêmico e organizacional, 4 intensificando-se a preocupação por uma Medicina mais segura.

No Brasil, com o advento do Código de Defesa do Consumidor e do considerável aumento de demandas indenizatórias fundamentadas em alegada má prática médica, a relação médico-paciente ganhou lugar de destaque nos meios jurídico-acadêmicos e nos Tribunais.

Os procedimentos médicos nunca foram tão formalizados como nos dias atuais, prevalecendo o objetivo de documentar as decisões e resguardar interesses, direitos e deveres das partes envolvidas, modificando inexoravelmente a relação médico-paciente.

Abaixo são descritos alguns desses procedimentos que devem ser mantidos na prática médica:

  • Elaboração de termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE);

  • Registro fotográfico ou em forma de vídeo do "status" pré e pós-operatório;

  • Realização de "check list" e "time out" no Centro Cirúrgico e elaboração de relatórios detalhados sempre que solicitados pelo paciente;

  • Descrição em prontuário dos diagnósticos que foram firmados, bem como das opções terapêuticas e seus riscos, sempre na presença do paciente com a expressão de sua anuência;

  • Em todas as anotações de prontuário, registrar com precisão a data da consulta e horário da avaliação, mormente nos casos de internação hospitalar;

  • Em hipótese alguma tecer comentários a respeito do caso com pessoal não compromissado com o dever ético do sigilo;

  • Na ocorrência de resultado inesperado, o médico deve compartilhar com o paciente, familiares ou responsáveis tais eventos, seguido da informação a respeito das propostas alternativas de condução do caso;

  • Manter-se atualizado a respeito do Código de Ética Médica, Resoluções e pareceres emanados pelos Conselhos de Medicina, no sentido de não praticar procedimentos proscritos ou ainda não aprovados cientificamente;

  • Especialista ou não, o médico deve estar atualizado a respeito dos avanços da Medicina, buscando oferecer o melhor da ciência do diagnóstico e tratamento em favor do paciente.

Não obstante a força das provas materiais mencionadas, dentro do nosso Direito não se pode interpretá-las isoladamente e nem supervalorizá-las, considerando assim que as mesmas evitariam possíveis desentendimentos. Ademais, há o risco transformarmos a relação com o paciente em um contrato frio e formal, relegando ao segundo plano o diálogo, a atenção e a empatia, características que norteiam a Medicina.

Outro aspecto a ser analisado refere-se à chamada Medicina Defensiva, ou seja, a mudança de conduta médica do comportamento habitual ou daquele considerado como boa prática médica para uma atitude cujo objetivo é reduzir ou prevenir-se de questionamentos ou críticas dos seus pacientes e familiares. Tal prática pode ocorrer por meio de duas modalidades − a positiva e a negativa. A primeira ocorre quando há excessiva solicitação de exames ou de condutas para o tratamento e a última pela ação retraída por parte do médico, propondo encaminhamentos e medidas evasivas.

Existiria o ponto de equilíbrio para tal situação?

Entendemos que sim e o caminho para o médico reside em sempre documentar adequadamente o seu atendimento, sem nunca deixar de orientar, utilizando linguagem acessível, franca, adaptada a cada paciente, respeitando sua capacidade de compreensão, privilegiando a autonomia de decisão, em verdadeira parceria, compartilhando os riscos e eventuais maus resultados.

Referências bibliográficas

  • 1 Cosman MP. Medieval medical malpractice: the dicta and the dockets. Bull N Y Acad Med. 1973;49:22-47.
  • 2 Broock C. Risk, responsability and surgery in the 1890s and early 1900s. Med Hist. 2013;57:317-37.
  • 3 Reason J. Human error. Cambridge: Cambridge University Press; 1990.
  • 4 Reason J. Managing the risks on organizational accidents. Burlington: Ashgate Publishing Limited; 1997.
  • Como citar este artigo: Campos RAC, Camargo RAE, Neves LR. The judicialization of the medical act. Braz J Otorhinolaryngol. 2016;82:1-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Fev 2016
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