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Tumor desmoide cervical gigante: relato de caso Como citar este artigo: Pallarés Martí B, Oishi N, Valdivieso L, Zapater E, Basterra J. A giant desmoid neck tumor: a case report. Braz J Otorhinolaryngol. 2021;87:634–7.

Introdução

O tumor desmoide (TD), também conhecido como fibromatose agressiva, é uma doença rara, caracterizada por proliferação fibroblástica originada do tecido conjuntivo dos músculos, fáscia ou aponeurose. Essa entidade representa 0,03% de todas as neoplasias e 3% de todos os tumores de tecidos moles.11 de Bree E, Keus R, Melissas J, Tsiftsis D, van Coevorden F. Desmoid tumors: need for an individualized approach. Expert Rev Anticancer Ther. 2009;9:525–35. Embora histologicamente benignos, os TDs são localmente infiltrativos, com uma taxa de recorrência de até 30% em tempos variáveis após a excisão cirúrgica. De acordo com sua localização anatômica, os TDs são classificados como: intra-abdominal, de parede abdominal e de parede extra-abdominal. Os TDs de cabeça e pescoço constituem TDs extra-abdominais e estima-se que sejam apenas 7%–15% de todas os TDs em todo o corpo.22 de Bree E, Zoras O, Hunt JL, Takes RP, Suárez C, Mendenhall WM, et al. Desmoid tumors of the head and neck: a therapeutic challenge: desmoid tumors of the head and neck. Head Neck. 2014;36:1517–26. Há poucos relatos sobre tumores desmoides de cabeça e pescoço na literatura e a maioria deles tem somente um pequeno número de casos.33 Wang C-P, Chang Y-L, Ko J-Y, Cheng C-H, Yeh C-F, Lou P-J. Desmoid tumor of the head and neck. Head Neck. 2006;28:1008–13.55 Primrose JN. Soft tissue tumours. 3rd ed. F. M. Enzinger and S. W. Weiss (eds). 284×220 mm. Pp. 1120. Illustrated. 1995. St Louis, Missouri: Mosby-Year-Book. £160. Br J Surg. 1995;82:1437.

Os TDs geralmente ocorrem em mulheres e a faixa etária mais afetada é de 30 a 40 anos. A etiopatogenia do TD é desconhecida, porém alguns casos têm sido relacionados a trauma ou cirurgia anterior e, mais raramente, à mutações da linha germinativa de polipose adenomatosa do colo (PAC).

O tratamento desses tumores pode necessitar de uma abordagem multidisciplinar. A contraindicação da cirurgia pode ser devida ao tamanho ou localização do tumor, o que pode levar a um sério comprometimento funcional. Doença sistêmica grave também pode ser uma contraindicação para a cirurgia. Nesses casos, o tratamento também pode incluir radioterapia primária e abordagens sistêmicas, incluindo quimioterapia citotóxica, administração de imatinib, anti-inflamatórios não esteroides e terapia hormonal. De outra forma, a política de “esperar para ver” é uma opção para casos assintomáticos.11 de Bree E, Keus R, Melissas J, Tsiftsis D, van Coevorden F. Desmoid tumors: need for an individualized approach. Expert Rev Anticancer Ther. 2009;9:525–35.

O objetivo deste estudo é apresentar o relato de caso de um paciente com TD cervical gigante relacionado a evento de autolesão ocorrido anos antes, que media 20 × 22 cm; nenhum caso com essas medidas foi publicado anteriormente. Relatamos a avaliação clínica, os resultados do diagnóstico por imagem, o procedimento cirúrgico e o seguimento.

Figura 1
(A) Imagem coronal ponderada em T1 na ressonância magnética (RM), mostrando a presença de um tumor subcutânea medindo 13 × 14 × 22 cm na área cervical posterior, que se estendia até a parede torácica posterior. (B) Imagem axial ponderada em T1 na RM mostrando realce significativo da lesão e destacando uma área necrótica central.

Relato de caso

Um homem de 52 anos apresentou uma massa muito grande e firme na área lateral posterior direita do pescoço, com restrição de movimento associada. O paciente tinha antecedentes de lesão autoinfligida com faca 4 anos antes. Ele não apresentava outro evento médico significativo. A imagem por ressonância magnética (RM) mostrou a presença de tumor subcutânea, medindo 13 × 14 × 22 cm na região lateral posterior direita do pescoço, estendendo-se até a parede torácica posterior. As imagens eram hipointensas quando ponderadas em T1 e hiperintensas quando ponderadas em T2. Além disso, as imagens ponderadas em T1 mostraram realce significativo da lesão tumoral e destacaram uma área necrótica central (fig. 1). A punção aspirativa por agulha fina foi realizada. A lesão foi identificada como um tumor de células fusiformes, sem evidência de atipia, compatível com fibromatose.

Após discussão com o grupo oncológico multidisciplinar, decidiu-se pelo tratamento cirúrgico. O planejamento pré-operatório foi realizado para decidir a melhor abordagem cirúrgica para ressecção da massa gigante cervical. Decidimos utilizar o suporte de cabeça Mayfield® para ter acesso à região posterior do pescoço, utilizando uma incisão de Hayes-Martin para abordagem da região infra-auricular e supraclavicular (fig. 2). O retalho dermoplatismal foi descolado na parte anterior, o músculo esternocleidomastoideo e o eixo vascular foram identificados, o tumor foi dissecado dos músculos esplênio e escaleno. Durante a cirurgia, observou-se que o tumor apresentava forte adesão e invasão da fáscia e musculatura adjacentes, principalmente da musculatura do trapézio. As fronteiras do tumor eram limitadas pela base do crânio; inferiormente pelo terço inferior da escápula, medialmente pelo processo estiloide, o qual foi seccionado com a Arcada de Riolan. Foi realizada a excisão completa do tumor, medindo 20 × 22 × 5 cm, o qual apresentava um aspecto macroscópico de uma lesão tumoral arredondada, firme e bem circunscrita (fig. 3). Um corte transversal revelou uma superfície branca e espiralada, que lembrava tecido cicatricial e alterações edematosas e císticas focais, mas nenhuma evidência de necrose. O diagnóstico anatomopatológico intraoperatório confirmou o caráter benigno do tumor e nenhum esvaziamento cervical adicional foi realizado.

Figura 2
Visão lateral do paciente mostrando o tumor desmode cervical. A linha pontilhada indica as margens da incisão de Hayes-Martin.

No espécime anatomopatológico, a lesão era composta por células fusiformes dispostas em longos fascículos. Algumas seções eram principalmente celulares, enquanto outras eram marcadamente colagenosas, com hialinização queloide (fig. 4). Fibras musculares esqueléticas regenerativas características estavam presas em direção às bordas do tumor. As regiões edematosas descritas macroscopicamente correlacionaram-se com alterações mixoides e necrose isquêmica.

A radioterapia pós-operatória foi dispensada, porque as margens cirúrgicas estavam livres de tumor quando avaliadas pelo exame histopatológico. Sequela funcional na elevação e no movimento dorsal do ombro devido à ressecção parcial do músculo trapézio foi detectada no paciente após a cirurgia. Nenhuma recorrência foi observada no exame de seguimento por ressonância magnética do sexto mês do pós-operatório.

Discussão

O TD de cabeça e pescoço é uma neoplasia rara, que, embora não tenha potencial metastático, requer interpretação microscópica precisa e representa um grande desafio tera- pêutico devido à anatomia específica da região de cabeça e pescoço. Os tumores de células fusiformes de tecidos moles apresentam desafios diagnósticos para os patologistas. Neste caso clínico, as características morfológicas do caso levan- taram a suspeita da presença de um sarcoma de baixo grau, como um mixofibrossarcoma ou tumor maligno de bainha de nervo periférico. Entretanto, a ausência de atipia nuclear e a expressão de actina de músculo liso, bem como a coloração negativa para EMA, MUC4 e S100, nos permitiram descartar essas neoplasias malignas. Somente reunindo todos os dados e colocando uma ênfase especial no contexto clínico pude- mos fazer uma interpretação clínica final da fibromatose.

Semelhante a outros tumores benignos da cabeça e pescoço, a ressecção cirúrgica ampla com margens claras é o tratamento de primeira linha mais comum para o TD. Entretanto, o TD tende a estar associado a morbidade significativa quando ocorre na região da cabeça e pescoço, devido à infiltração ou proximidade de estruturas anatômicas vitais e tendência à recorrência local. Às vezes, a ressecção completa desses tumores é difícil e embora o status da margem seja importante, cirurgias que preservam a função e a estrutura devem ser o objetivo principal.11 de Bree E, Keus R, Melissas J, Tsiftsis D, van Coevorden F. Desmoid tumors: need for an individualized approach. Expert Rev Anticancer Ther. 2009;9:525–35.

Embora a taxa de recorrência relatada seja alta, situada em uma faixa de 46% a 62%,66 Fasching MC, Saleh J, Woods JE. Desmoid tumors of the head and neck. Am J Surg. 1988;156:327–31. o tratamento adjuvante (sugerido para controle local adequado) ainda não foi estabelecido porque a incidência de TD de cabeça e pescoço é muito rara para conduzir um estudo abrangente a fim de estabelecer o papel da terapia adjuvante. Além disso, a regressão espontânea e o crescimento interrompido após a ressecção incompleta são ocasionalmente observados e a margem de corte não apresenta uma boa correlação com o desenvolvimento de recorrência local.77 Hoos A, Lewis JJ, Urist MJ, Shaha AR, Hawkins WG, Shah JP, et al. Desmoid tumors of the head and neck – a clinical study of a rare entity. Head Neck. 2000;22:814–21.

Figura 3
Aspecto macroscópico da lesão após excisão completa. O tumor media 20 × 22 × 25 cm e pesava 1 kg.

As opções de tratamento adjuvante incluem radioterapia; uma política de “esperar para ver”; e tratamento clínico (por exemplo, anti-inflamatórios não esteroides, terapia hormonal, quimioterapia ou uso de imatinib). Quando o comportamento do tumor não é progressivo, a observação pode ser o manejo mais adequado em pacientes assintomáticos. A radioterapia é consideravelmente eficaz no controle local do tumor (não equivalente à erradicação do tumor), mas está associada a uma alta taxa de complicações dose-dependentes.88 Niu X, Jiang R, Hu C. Radiotherapy in the treatment of primary or recurrent unresectable desmoid tumors of the neck. Cancer Invest. 2019;37:387–92. A radioterapia só deve ser aplicada quando a excisão total possa levar à mutilação e quando a morbidade induzida por radiação for considerada aceitável.11 de Bree E, Keus R, Melissas J, Tsiftsis D, van Coevorden F. Desmoid tumors: need for an individualized approach. Expert Rev Anticancer Ther. 2009;9:525–35.

As recorrências nas cirurgias de cabeça e no pescoço geralmente surgem nos primeiros 2 anos, mas podem ocorrer a qualquer momento, de alguns meses a >10 anos após a cirurgia inicial.22 de Bree E, Zoras O, Hunt JL, Takes RP, Suárez C, Mendenhall WM, et al. Desmoid tumors of the head and neck: a therapeutic challenge: desmoid tumors of the head and neck. Head Neck. 2014;36:1517–26. Para investigação da extensão da doença e exames de seguimento, a RM é a modalidade de imagem de escolha, pois fornece melhor definição de tecidos moles do que a tomografia computadorizada.99 Lee JC, Thomas JM, Phillips S, Fisher C, Moskovic E. Aggressive fibromatosis: MRI features with pathologic correlation. AJR Am J Roentgenol. 2006;186:247–54. Considerando o desconhecimento do comportamento natural desses tumores, os pacientes necessitam de um monitoramento cuidadoso ao longo da vida.

Figura 4
Imagem histológica mostrando células fusiformes com núcleos opacos (seta) e alteração mixóide focal (asterisco).

Conclusão

O tumor desmoide é uma doença rara e heterogênea, que definitivamente requer tratamento individualizado para reduzir a falha no controle local do tumor. Realizamos uma ressecção cirúrgica completa com margens claras neste caso; foi um desafio, devido ao tamanho do tumor e à sua localização. Após busca na base de dados PubMed, verifica- mos que nenhum caso desse tipo de TD na região de cabeça e pescoço havia sido publicado anteriormente. Um período de seguimento cuidadoso é indicado para avaliar o compor- tamento do tumor.

References

  • 1
    de Bree E, Keus R, Melissas J, Tsiftsis D, van Coevorden F. Desmoid tumors: need for an individualized approach. Expert Rev Anticancer Ther. 2009;9:525–35.
  • 2
    de Bree E, Zoras O, Hunt JL, Takes RP, Suárez C, Mendenhall WM, et al. Desmoid tumors of the head and neck: a therapeutic challenge: desmoid tumors of the head and neck. Head Neck. 2014;36:1517–26.
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    Niu X, Jiang R, Hu C. Radiotherapy in the treatment of primary or recurrent unresectable desmoid tumors of the neck. Cancer Invest. 2019;37:387–92.
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    Lee JC, Thomas JM, Phillips S, Fisher C, Moskovic E. Aggressive fibromatosis: MRI features with pathologic correlation. AJR Am J Roentgenol. 2006;186:247–54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2020
  • Aceito
    2 Nov 2020
  • Publicado
    29 Nov 2020
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