Perfil e Avaliação Social de Candidatos a Transplante de Fígado: Uma Abordagem Retrospectiva

RESUMO

Introdução:

A complexidade do transplante de fígado requer uma equipe altamente qualificada, no qual o assistente social desempenha papel crucial para analisar e intervir na situação social dos candidatos.

Objetivos:

Investigar o perfil social dos candidatos ao transplante de fígado e relacioná-lo com as intervenções e reflexões efetuadas durante a avaliação social na Unidade de Transplante de Fígado do Hospital de Base.

Métodos:

Com base nos registros do Serviço Social, foram analisadas as informações dos candidatos avaliados entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020. Este estudo quantitativo-qualitativo, retrospectivo, descritivo e documental, com observação participante, foi conduzido a partir de um panorama dialético.

Resultados

Durante o período de coleta de dados, obteve-se174 avaliações. Perfil social: média etária de 55,8 anos, predominância masculina (N=116; 66,7%), com companheiro/a (N=129; 74,1%), residentes em municípios do estado de São Paulo (124; 71,3%), ensino fundamental incompleto (N=68, 39,1%), baixo nível de instrução (N=65; 37,4%), inatividade no mercado de trabalho (N=151; 86,8%), acessando benefício da previdência social (N=120; 69%), positiva aceitação do transplante (N=158; 90,8%), família nuclear (N=120; 69%), oferta de cuidados e aderência familiar (N= 172;98,9%), acesso parcial a medicamentos (N=122; 70,1%), facilidade de acesso ao centro transplantador (N=157; 90,2%), renda per capita familiar de 1\2 a 2 salários mínimos (N=107; 61,5%) e padrão habitacional e estado de conservação satisfatório/conservado (N=157; 90,3%).

Conclusão

O perfil social de maior vulnerabilidade social exigiu mais intervenções na maioria das 25 variáveis avaliadas, fornecendo elementos importantes para a identificação e atendimento das necessidades sociais de cada indivíduo.

Descritores
Análise de situação; Transplante de fígado; Perfil de saúde; Serviço social

ABSTRACT

Introduction:

The complexity of liver transplantation requires a highly qualified team, in which the social worker plays a crucial role in analyzing and intervening in the social situation of candidates.

Objectives:

To investigate the social profile of liver transplant candidates and relate it to the interventions and reflections made during the social assessment at the Hospital de Base Liver Transplant Unit.

Methods:

Based on the records of the Social Work, the information of the candidates evaluated between January 2019 and December 2020 was analyzed. This quantitative-qualitative, retrospective, descriptive and documentary study, with participant observation, was conducted from a dialectical perspective.

Results:

During the data collection period, 174 evaluations were obtained. Social profile: Average age 55.8 years, predominantly male (N=116; 66.7%), with a partner (N=129; 74.1%), living in municipalities in the state of São Paulo (N=124; 71.3%), incomplete primary education (N=68; 39.1%), low level of education (N=65; 37.4%), inactive in the job market (N=151; 86.8%), accessing social security benefits (N=120; 69%), positive acceptance of the transplant (N=158; 90.8%), nuclear family (N=120; 69%), offer of care and family adherence (N=172; 98.9%), partial access to medication (N=122; 70.1%), ease of access to the transplant center (N=157; 90.2%), per person family income of 1\2 to 2 minimum wages (N=107; 61.5%) and satisfactory/conserved housing standard and state of repair (N=157; 90.3%).

Conclusion:

The social profile of greater social vulnerability required more interventions in most of the 25 variables assessed, providing important elements for identifying and meeting the social needs of each individual.

Descriptors
Situation analysis; Liver transplantation; Health profile; Social work

INTRODUÇÃO

O Brasil está entre os países com maior número absoluto de transplantes de fígado, ocupando especificamente a quarta posição, tendo realizado um total de 2.044 procedimentos em 2021, ficando atrás da Índia (2.847), China (5.822) e Estados Unidos (9.236). No entanto, apesar de ocupar posição de destaque, o País continua distante de atender a demanda total por transplantes. Em 2022, foram realizados 2.118 transplantes de fígado, enquanto a necessidade estimada correspondia a 5.254. Ou seja, somente 40,2% da demanda foi atendida.¹

O atendimento desta demanda envolve uma variável central, a doação de órgãos. Apesar dos impactos diretos da pandemia de Covid-19 nas doações,^1,2 desde o primeiro semestre de 2023, as taxas vêm aumentando positivamente. Para que esse aumento seja contínuo, é necessário atenção a diversos fatores importantes como a taxa de contraindicações médicas para doação, aumento na negativa familiar para esse processo e registros adequados dos potenciais doadores.² Esses dimensionamentos realizados pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO)^1,2 permitem reiterar o quão complexo e multifatorial é a realização deste tipo de procedimento.

Ainda acerca da complexidade dos transplantes, estes procedimentos envolvem diversos profissionais de saúde. Esses agentes atuam com avaliações e intervenções nos fatores de risco que podem impactar no sucesso e adesão de candidatos ao tratamento. Com isso, no que concerne a equipe da Unidade de Transplante de Fígado, o/a assistente social tem a função de identificar, analisar e intervir nas condições sociais que condicionam a vida do candidato em relação ao acesso contínuo ao tratamento. Este profissional direciona ações que incluem a aplicação de avaliações e intervenções sociais que,^3,4 neste contexto, relacionam as questões da presente pesquisa.

A avaliação social consiste no levantamento de informações acerca do perfil social do candidato. Inclui variáveis sociodemográficas, aceitabilidade para o transplante, dinâmica familiar, acessibilidade ao centro transplantador e condições socioeconômicas. Essas são informações fundamentais para formular um parecer social, conduzir e registrar orientações realizadas, dialogar com a equipe de transplante e para a entrega de instrumentos informativos de apoio ao candidato.⁴

Em conjunto com o levantamento do perfil, são identificadas as necessidades particulares que condicionam o candidato, processo que possibilita a articulação de intervenções sociais. Ademais, também é mensurado o que foi aprendido pelo aspirante e por sua rede afetivo-familiar, fator essencial para ações conjuntas entre o Serviço Social e esses agentes. Neste seguimento, a intervenção com as famílias é orientada pelo fortalecimento de vínculos e incentivo ao protagonismo na produção da saúde,⁵ processo que envolve a corresponsabilização do conjunto candidato e família pelo tratamento.³

Este estudo demonstra sua relevância por fornecer dados sociodemográficos, previdenciários e ocupacionais, além de auxiliar no entendimento aprofundado acerca do perfil social de candidatos a transplantes, processo fundamental para futuras investigações e mapeamentos. Esta pesquisa também pode corroborar com profissionais de saúde à medida que pode servir de base para o desenvolver de reflexões e estratégias para atender às necessidades sociais da população em espera por um transplante.

O objetivo da presente pesquisa foi demonstrar a interface entre os resultados da avaliação social dos aspirantes a transplante de fígado e as análises, posições e intervenções do Serviço Social no que concerne ao intuito de facilitar o acesso ao tratamento. Para tal, fez-se necessário o levantamento do perfil social (sociodemográfico, previdenciário, ocupacional e atitudinal em relação ao tratamento) dos aspirantes avaliados pelo Serviço Social na Unidade de Transplante de Fígado do Hospital de Base de São José do Rio Preto, de janeiro de 2019 a dezembro de 2020.

MÉTODO

Este estudo, de caráter quanti-qualitativo,⁶ descritivo,⁷ documental⁸ e associado a observação participante,⁹ contou com análise de resultados via abordagem dialética.¹⁰ Em seu direcionamento de tipo retrospectivo, não foram envolvidos seres humanos diretamente, visto que os dados foram obtidos dos instrumentais de avaliação social dos arquivos do Serviço Social da Unidade de Transplante de Fígado do Hospital de Base de São José do Rio Preto.

As avaliações sociais que foram objeto de análise neste estudo foram realizadas no período de janeiro de 2019 a dezembro de 2020, totalizando 24 meses.⁴ A seleção das avaliações contemplou todos os candidatos avaliados pelo Serviço Social neste recorte temporal, ou seja, 100% dos aspirantes que iniciaram o tratamento na Unidade no período informado.

No que concerne às classificações empregadas no instrumento de avaliação social:⁴ o nível de instrução individual foi determinado com base no grau de escolaridade; o nível ocupacional conforme a qualidade de inserção no mercado de trabalho; o modelo familiar a partir dos indivíduos ou conjunto de famílias que residiam com o aspirante. Ainda neste escopo, a tipologia familiar de aderência foi determinada com base em respostas resolutivas ou evasivas dos familiares quanto ao transplante do candidato. Já o nível de instrução familiar foi determinado pela escolaridade da família em questão.⁴

Para o registro das informações relativas ao perfil social e aos atendimentos realizados, bem como para o cálculo e processamento dos resultados, foram empregadas planilhas dos softwares Microsoft Excel e Google Planilhas. Os resultados quantitativos foram expostos em forma de tabelas e submetidos à análise estatística descritiva. Já os resultados qualitativos, que incluem informações sobre os atendimentos e que respeitam os princípios éticos da Resolução Conselho Nacional de Saúde 466/2012, foram categorizados de maneira dialética para facilitar sua descrição e análise.

O projeto de pesquisa que precede este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Parecer: 3.950.444; CAAE: 29383720.3.0000.5415). Para o desenvolvimento das discussões e reflexões científicas foi realizado levantamento documental e bibliográfico nas bases de dados Pubmed, Web of Science, Google Acadêmico e SciELO.

RESULTADOS

No período de janeiro de 2019 a dezembro de 2020, o Serviço Social da Unidade de Transplante de Fígado avaliou 174 candidatos, contemplando 100% dos pacientes que foram internados para as avaliações da equipe de trabalho no período informado. O perfil social (Tabela 1) desses indivíduos revelou que a maioria era do sexo masculino (N=116; 66,7%), tinha um(a) companheiro(a) (N=129; 74,1%), era proveniente do estado de São Paulo (N=124; 71,3%), tinha acessado até o ensino fundamental incompleto (N=68; 39,1%), possuía baixo nível de instrução (N=65; 37,4%), estava inativo no mercado de trabalho (N=151; 86,8%), tinha vínculo com a previdência (N=120; 69%), aceitava o transplante (N=158; 90,8%), tinha aderência familiar resolutiva (n=172; 98,9%), possuía nível de instrução familiar intermediário (N=89; 51,2%), tinha acesso parcial a medicamentos (N=122; 70,1%), tinha renda per capita familiar de 1\2 a 2 salários mínimos (N=107; 61,5%), apresentava nível ocupacional do provedor ruim (N=63; 43,7%) e tinha padrão habitacional satisfatório (N=157; 90,23%). Os pareceres sociais emitidos indicaram que 108 (62,1%) dos candidatos estavam em condições sociais favoráveis para o transplante de fígado, enquanto 66 (37,9%) apresentavam condições favoráveis limitadas.

Tabela 1
Avaliações sociais de candidatosa transplante de fígado de 2019 e 2020.

Idades: 15-76 anos; média = 55,72(±)10,78
Variáveis		N(%)
Gênero
	Masculino	116 (66,7%)
	Feminino	58 (33,3%)
Estado conjugal
	Com companheiro/a	129 (74,1%)
	Sem companheiro/a	45 (25,9%)
Procedência
	Outros municípios do estado de São Pauloa	124 (71,3%)
	Outros estados do Paísb	31 (17,8%)
	São José do Rio Pretoc	19 (10,9%)
Escolaridade
	Sem escolaridade	5 (2,9%)
	Ensino Fundamental Incompleto	68 (39,1%)
	Ensino Fundamental Completo	18 (10,3%)
	Ensino Médio Incompleto	9 (5,2%)
	Ensino Médio Completo	39 (22,4%)
	Ensino Superior Incompleto	5 (2,9%)
	Ensino Superior Completo	30 (17,2%)
Nível de instrução educacional
	Baixo	65 (37,4%)
	Intermediário	46 (26,4%)
	Alto	43 (24,7%)
	Muito alto	20 (11,5%)
Nível ocupacional
	Ruim	43 (24,7%)
	Regular	77 (44,3%)
	Bom	50 (28,7%)
	Muito bom	4 (2,3%)
Condição de atividade ocupacional
	Ativo	23 (13,2%)
	Inativo	151 (86,8%)
Religião
	Católica	109 (62,6%)
	Evangélica	42 (24,1%)
	Sem religião	17 (9,8%)
	Outrasd	6 (3,5%)
Vinculação
	Sistema Único de Saúde	162 (93,1%)
	Convênios	12 (6,9%)
Nacionalidade
	Brasileiro/a	173 (99,4%)
	Francês/a	1 (0,6%)
Vínculo previdenciário/assistencial
	Benefício previdenciárioe	120 (69%)
	Benefício assistencialf	7 (4%)
	Contribuinte	23 (13,2%)
	Sem vínculo previdenciário	24 (13,8%)
Residência
	Fixa	146 (83,9%)
	Temporária	28 (16,1%)
Meios de comunicação
	Telefone móvel	164 (94,3%)
	Telefone fixo	38 (21,8%)
Aceitabilidade para o transplante de fígado
	Aceita	158 (90,8%)
	Aceita com reservas	15 (8,6%)
	Rejeita	1 (0,6%)
Modelo familiar
	Nuclear	120 (69%)
	Extensa	47 (27%)
	Unipessoal	7 (4%)
Cuidador
	Familiar	166 (95,4%)
	Terceiros	9 (5,2%)
Tipologia familiar de aderência
	Resolutiva	172 (98,9%)
	Elaborativa	2 (1,1%)
Nível de instrução familiar
	Baixo	24 (13,8%)
	Intermediário	89 (51,2%)
	Alto	61 (35%)
Acesso a medicamentos pela rede pública
	Integral	45 (25,9%)
	Parcial	122 (70,1%)
	Não acessa	7 (4%)
Condições de acesso para o tratamento em transplante de fígado
	Facilitado	17 (9,8%)
	Dificultado	157 (90,2%)
Condições salariais
	Até 1/2 salário-mínimo	20 (11,5%)
	De 1/2 até 2 salários-mínimos	107 (61,5%)
	Acima de 2 salários-mínimos	47 (27%)
Despesas extras
	Medicamento	83 (47,7%)
	Transporte	30 (17,2%)
	Alimentação	13 (7,5%)
	Outrosg	13 (7,5%)
Nível ocupacional do provedor
	Ruim	63 (43,7%)
	Intermediário	56 (32,2%)
	Bom	42 (24,1%)
Padrão habitacional e estado de conservação do imóvel
	Satisfatório/conservado	157 (90,3%)
	Não satisfatório/necessita melhorias	17 (9,7%)
Parecer social
	Favorável	108 (62,1%)
	Favorável limitado	66 (37,9%)

• Fonte: Elaboração própria. a: Municípios do estado de São Paulo com exceção do município do centro transplantador. b: Municípios do Brasil com exceção daqueles situados no estado do centro transplantador. c: Município onde se situa o referido centro transplantador. d: Espírita; Seicho-no-ie. e: Aposentadoria por tempo de contribuição; Auxílio por incapacidade temporária; Aposentadoria por incapacidade permanente; Pensão por morte; Seguro desemprego. f: Benefício de prestação continuada; Auxílio emergencial. g: Convênio, moradia, exames e consultas.

DISCUSSÃO

No tocante ao perfil social dos aspirantes a transplante de fígado, o destaque percentual do gênero masculino (N=116, 66,7) demonstra proximidade em relação a estudos de mesma modalidade (prevalência masculina > 60%).^11–19 Tal incidência pode estar relacionada ao fato de homens serem mais acometidos por doenças hepáticas se comparados às mulheres.²⁰ Isso pode ocorrer pela busca de atendimento médico de modo tardio, o que possivelmente está atrelado às determinações de gênero que pressionam o homem a assumir prioritariamente a posição de provedor da família, podendo levá-lo negligenciar a busca por serviços de saúde.^21,22

Ainda neste escopo, o/a assistente social trabalha com estratégias de caráter multidisciplinares direcionadas para lidar com a angústia e o sofrimento²³ do candidato. Com direcionamento educacional, além desse profissional reforçar a ideia do transplante como um direito, também atua na reflexão sobre a mudança de noções prévias sobre o tratamento e o autocuidado. Essas ações educacionais buscam desconstruir concepções da procura por tratamento e serviços de saúde como suposto sinônimo de fragilidade ou desvio dos papéis de gênero, como, por exemplo, a imposição social da figura masculina como provedor absoluto da família.^21,22

Quanto aos achados de aspirantes com companheiro (N=129; 74,1%), estão em harmonia com demais pesquisas (maior parte > 60%).^12,14,15,19 Além de contribuir com o diálogo e comunicação entre família e equipe, a presença de um/a companheiro/a caracteriza um fator positivo e estratégico tanto na veiculação de informações quanto no cuidado e acompanhamento familiar, dimensões fundamentais para o tratamento.¹² Neste âmbito, o/a assistente social do transplante realiza um processo humanizado⁵ de escuta, dialogo e planejamento com as famílias e os candidatos²³ no intuito de que o cuidado familiar não se torne em sobrecarga para o/a companheiro/a.

A predominância de indivíduos provenientes de municípios do estado de São Paulo (N=24; 71,3%) é semelhante aos achados de estudos anteriores realizados na presente Unidade.^12,19 Esta ênfase geográfica é justificada pelos princípios da regionalização e hierarquização no SUS, estrutura que tende a absorver demandas mais próximas dos centros transplantadores pelo fator logístico. Todavia, pessoas advindas de outros estados tiveram acesso à Unidade (N=31; 17,8%) por conta dos princípios da universalidade e integralidade preconizados na Lei Orgânica de Saúde (LOA).²⁴ Em contraste, é importante destacar que o acesso à saúde continua distante de ser exercido pela população na totalidade, como demonstrado mais adiante.

Em associação às posições do Serviço Social, estas informações permitem não somente a identificação de meios de transporte mais adequados, mas também averiguar o grau de conhecimento que os aspirantes e suas famílias possuem acerca do acesso aos direitos de locomoção.¹² Com isso, além da educação acerca dos direitos,⁵ também podem ser articulados os transportes necessários via Tratamento Fora de Domicílio (TFD) e/ou via assistencial,²⁵ ambos direcionados ao exercício do direito à saúde.²⁴

Quanto a escolaridade, os achados sobre aspirantes com ensino fundamental incompleto (N=68; 39,1%), demonstra proximidade não somente a outros estudos,^12,16,19 como também em relação aos levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o Instituto, o ensino fundamental incompleto no ano de 2019 chegou a 32,2%, caracterizando o maior índice educacional na referida pesquisa.²⁶ A interface entre educação e saúde é fundamental, seja no âmbito dos condicionantes e determinantes de saúde enfatizados pela LOA,²⁴ seja no campo da veiculação e assimilação de informações estratégicas que circunscrevem as ações e orientações das equipes de transplantes.

A instrução individual, em relação à proeminência do nível baixo (N=65; 37,4%), demonstra conformidade com outras pesquisas^12,16,19 e com dados já mencionados acerca dos níveis de educação captados no Brasil pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Considerando que o acesso à educação influencia no exercício de cidadania e no desenvolvimento social,²⁶ o/a assistente social (realiza a captação) se atenta ao nível de instrução individual, pois esse pode indicar necessidades mais ou menos acentuadas de ações educativas ou assessorias para veiculação de direitos.⁵

Ainda neste escopo, o nível de instrução individual permite um atendimento pedagogicamente personalizado, viabilizando o processo de escuta¹⁸ e diálogo eficientes, didáticos e conforme às condições sociais de cada aspirante e/ou familiar e direcionado para um acesso aos direitos de modo consciente e empoderado. A exemplo disso, nas orientações previdenciárias, termos jurídicos, andamento de processos e até mesmo o uso de plataformas digitais, como “Meu INSS”,²⁷ são submetidos a um processo de inteligibilidade a partir do próprio perfil das pessoas atendidas. O mesmo ocorre acerca do TFD, à medida que relatórios de contrarreferência, ajudas de custo,²⁵ administração de agendamentos compatíveis com a realidade familiar e demais trâmites são “decodificados”, os candidatos e suas famílias não somente acessam seus direitos, como também se tornam ativos e conscientes⁵ dos processos que os condicionam.

A prevalência quantitativa de sujeitos em condição ocupacional inativa (N=151; 86,8%), similar também em outras pesquisas,^12,15–19 pode ser contextualizada pelo problema das imensas filas de transplante de pessoas acometidas por doenças graves e/ou crônicas.² Com isso, por essas enfermidades, muitas pessoas são acometidas por complicações que levam ao afastamento no mercado de trabalho. Não obstante, o candidato também é afetado pelo desemprego nacional, indicador que atingiu a marca de 8,7% no terceiro trimestre de 2022, afetando um total de 9,5 milhões de brasileiras(os).²⁸

Por seus impactos na renda, a inatividade no campo laboral afeta diretamente o sustento de diversas famílias.¹² Esta intempérie ainda se acentua quando um familiar necessita restringir suas atividades profissionais para atuar no papel de cuidador e/ou acompanhante. Considerando as várias estruturas e configurações ocupacionais, o/a assistente social opera conforme as especificidades do contexto que envolve o candidato e sua família, com iniciativas voltadas para corroborar no acesso seguro ao tratamento.⁵

Quanto ao predomínio do nível ocupacional (caracterizado por renda e estabilidade empregatícia) regular (N=77; 44,3%), isso demonstra um caráter favorável no que concerne o tratamento em transplante, sugerindo maiores possibilidades de acesso a benefícios previdenciários. No entanto, apesar de estarem assegurados pela previdência social,²⁷ é perceptível que muitos candidatos enfrentam obstáculos como falta de informações, excesso de burocracia, atrasos nos prazos de análise, entre outros, para obter acesso a esses benefícios.

A proeminência da religião católica (N=109; 62,64%) está conforme à pesquisa do instituto Datafolha, cuja maior parcela da população brasileira foi identificada como católica (50%, ± 2%).²⁹ Essa variável, como fenômeno que articula religiosidades e espiritualidades, pode desempenhar um papel relevante para o contexto social do tratamento. Em seu caráter benéfico, a religiosidade pode ter efeitos na saúde mental e física do indivíduo, podendo auxiliar na aceitação e na adoção de hábitos saudáveis,³⁰ o que é importante em todos os estágios do tratamento em transplante.

Ainda neste sentido, também é preciso atenção com fatores ético-religiosos, pois podem demandar o replanejamento de execução do transplante. Por exemplo, o procedimento com testemunhas de jeová (não aderem à transfusão de sangue), demanda preparo hematológico do indivíduo e, no âmbito intraoperatório, tecnologias para reduzir a perda de sangue, o que possibilita o acesso ao tratamento sem violar as referidas questões éticas.³¹ Com isso, através de escuta qualificada, diálogo¹⁸ e respeito a pluralidade religiosa dos indivíduos, inclusive daqueles que optam por não iniciar ou prosseguir no tratamento em transplante, o profissional de Serviço Social pode compreender as concepções religiosas do candidato e de sua família, articulando uma interface positiva entre tratamento e espiritualidade.³⁰

O destaque de candidatos com acesso a benefício previdenciário (N=120; 69%) demonstra proximidade com pesquisas anteriores.^12,19 No geral, esses benefícios representam uma fonte de renda crucial para a subsistência dos indivíduos e de suas famílias, especialmente no contexto das (já) mencionadas filas de transplante,¹ cenário em que é notável que muitas pessoas não podem trabalhar devido a doenças crônicas.

Nessa conjuntura, o papel do assistente social é fundamental para veicular o acesso estratégico a benefícios e demais direitos adequados, bem como o próprio tratamento em transplante.⁵ Ainda neste seguimento, no caso de beneficiários por incapacidade permanente para o trabalho, quando cabível, o/a assistente social orienta o candidato e sua família a solicitar um acréscimo de 25% no valor do benefício, processo factível caso haja evidências de que o beneficiário precisa de assistência de outra pessoa.²⁷

A ênfase quantitativa de residência fixa (N=146; 83,9%) na origem não pode ser entendida como sinônimo de conforto para os candidatos, pois como verificado em outras pesquisas,^12,19 uma parcela considerável de aspirantes reside em municípios ou em estados fora do município do centro transplantador.

Neste contexto, quando há indicação médica para permanência nas proximidades da Unidade de Transplante, nem sempre é possível que os aspirantes e suas famílias arquem com custos de estada temporária. Diante dessa demanda, o/a assistente social realiza um processo de escuta, diálogo²³ e orientações para possibilitar a articulação e posterior encaminhamento a casas de apoio que estejam consoantes as particularidades e preferências do conjunto família-candidato.^12,19

A predominância da comunicação via telefone móvel (N=164; 94,3%) está em concordância com dados do IBGE que apontam que somente no ano de 2021, 155,2 milhões de brasileiros/as acima de 10 anos possuíam telefone móvel para uso pessoal, ou seja, 84,4% da população.³² No contexto do serviço de transplantes, o Serviço Social, os candidatos, suas famílias e demais membros da equipe estabelecem redes de comunicação que otimizam o tempo, facilitam o envio de documentos, entrega e instrumentos informativos e auxiliam no registro de demandas. Com isso, o telefone móvel é uma ferramenta aliada no planejamento de ações para prevenir impactos, promover a saúde, compartilhar experiências e fortalecer vínculos.³³

O alto percentual de aceitabilidade para o transplante de fígado (N=158; 90,8%) demonstra proximidade em relação a outros estudos em que há indicadores de aceitação superiores a 85%. Esse fator pode estar atrelado à extensa orientação e informação fornecida pela equipe de transplante,^12,16,19 o que ajuda a melhorar a compreensão dos aspirantes e de suas famílias para tomar decisões autônomas e elucidadas acerca da adesão ao tratamento.¹²

Ainda neste sentido, é relevante salientar que o fornecimento de informações de saúde é não apenas uma responsabilidade da equipe, mas também um direito fundamental do usuário da saúde pública.²⁴ Quando os sujeitos e suas redes familiares estão devidamente informados, capacitados, e empoderados, suas ações se tornam ainda mais positivas no âmbito do tratamento.

Quanto às famílias do modelo nuclear (N=120; 69%), os achados estão consoantes a outras pesquisas.^12,19,34 O levantamento do tipo de família pode facilitar as orientações, planejamentos e intervenções do/a assistente social à medida que demonstra como esses grupos se organizam. Ao compreender a estrutura familiar, as intervenções e diálogos se tornam mais humanizados e concretos, especialmente quando se trata dos complexos processos que envolvem o transplante, como recuperação física, adaptação e experiência com o novo órgão. Neste sentido, o apoio social das redes familiares e afetivas não é somente aliado, mas fundamental.^12,34

A predominância de cuidadores familiares (N=166; 95,4%), consistente com outros estudos que mostram presença superior a 90%, reforça novamente o papel crucial das famílias no contexto do cuidado.^12,19 O fato de o cuidador familiar ser um agente decisivo em potencial para um parecer social favorável se dá pelas contribuições deste como disseminador de informações acerca do tratamento¹² e suporte emocional ao candidato pelo vínculo afetivo pré-existente.

É importante enfatizar que o Serviço Social além de articular possíveis cuidadores da rede familiar, também desenvolve orientações e veiculação dos direitos do próprio cuidador⁵ como sujeito de direito.²⁴ No entanto, também é fundamental que o/a assistente social direcione sua escuta qualificada²³ para monitorar o quão sustentável está sendo o ato de cuidar e acompanhar o candidato, visto que os cuidadores familiares estão potencialmente sujeitos a trabalho intenso e, por vezes, ininterrupto, além de estresse e sobrecarga.

A predominância de uma resposta familiar resolutiva (N=172; 98,9%) também demonstra similaridade com dados mencionados anteriormente (> 90%).^12,19 Esta aderência elevada pode ser justificada pelo fato de as famílias compreenderem que o transplante representa uma possibilidade de tratamento de um familiar acometido por uma doença grave e/ou crônica, ainda que ocorram vários riscos.^35,36 Visando minimizar as inseguranças e enfatizar a tomada de decisões autônoma, o Serviço Social e toda a equipe prestam orientações e informações durante o tratamento,^5,24 o que também corrobora para a adesão familiar e do usuário.

A proeminência do nível de instrução familiar intermediário (N=89; 51,2%), observada nesta Unidade (< 55%),¹² pode ser atribuída às configurações familiares predominantes (nuclear e extensa), em que os membros têm níveis variados de educação, fator que pode equilibrar os resultados para o meio. Quanto mais alto o nível de instrução, tendencialmente mais fácil será para a família assimilar orientações.¹² Neste contexto, o/a assistente social presta atenção a cada atendimento e diálogo, além de escutar às necessidades da família,¹⁸ com foco em fazer orientações personalizadas, didáticas e que veiculem a democratização e universalização da saúde.²⁴

Quanto ao percentil de candidatos com acesso parcial a medicamentos (N=122; 70,11%) pela rede pública, similar ao encontrado em outra pesquisa (> 70%),¹² pode-se atribuir um problema enfatizado pelo Conselho Nacional de Saúde, a insuficiência ou falta estrutural de medicamentos.³⁷ Esta questão vai além de um problema administrativo, pois representa uma violação do direito fundamental à assistência terapêutica integral - incluindo farmacêutica, conforme reconhecido na LOA de Saúde.²⁴

Diante deste contexto, o/a assistente social realiza diálogos com aspirantes, famílias e equipe médica, reforçando a importância de ocorrer prescrições de medicamentos presentes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais. Isso acontece para a facilitação do acesso e para evitar a judicialização da demanda,³⁸ bem como os atrasos no que concerne a liberação legal do medicamento, fator que pode impactar a saúde do indivíduo. Neste cenário, pela ausência de cumprimento estrutural do direito à saúde (nos termos da assistência terapêutica integral),²⁴ muitas vezes, as doações de medicamentos por redes de solidariedade de outros indivíduos em tratamento acabam representando uma das poucas vias ágeis para remediar esta situação.

O acesso geográfico facilitado (N=157; 90,2%) ao centro transplantador, consistente com estudos anteriores que mostram uma taxa de acesso superior a 85%,^12,19 está conforme a cobertura oferecida pelo SUS, principalmente no que concerne o TFD.^24,25 O Serviço Social presta assessoria e orienta os candidatos e suas famílias buscando assegurar o cumprimento das exigências legais para o acesso ao TFD e demais benefícios, especialmente para evitar a perda desses benefícios. Este processo colabora para reduzir a sobrecarga de burocracias legais e o estresse com estas durante o tratamento.

A renda familiar per capita proeminente de ½ até 2 salários-mínimos (N=107; 61,5%), que está consoante a uma pesquisa anterior que também mostra um percentual superior a 60%,¹² está também consoante a renda domiciliar per capita média do brasileiro em 2020 (R$1.349,00). Enquanto isso, as rendas per capita acima de 2 salários-mínimos (N=47; 27%) e até ½ salário-mínimo (N=20; 11,5%), que também são semelhantes às encontradas em um estudo anterior,¹² podem refletir a desigualdade de renda nacional por região, gênero, cor, entre outros, conforme abordado pelo IBGE através da PNAD Contínua.³⁹

A ênfase nos gastos com medicamentos (N=83; 47,7%), que também foi observada em uma pesquisa anterior,¹² indica que metade dos aspirantes não têm acesso integral à saúde pública, levando-os, muitas vezes, a usar seus próprios recursos para comprar medicamentos. O profissional de Serviço Social, em caráter excepcional, investiga a disponibilidade de doação junto à farmácia ambulatorial. No entanto, as ações do assistente social são direcionadas para veicular o acesso ao tratamento integral como um direito fundamental,^5,24 ou seja, a caridade não substitui o direito e não deve ser entendida desta maneira.

No que tange ao nível ocupacional do provedor familiar, o predomínio do indicador ruim (N=63; 43,7%) pode sofrer variações conforme a configuração vigente do campo socioeconômico. Pesquisas precedentes demonstram a respectiva variação de percentuais: 24,7%, 67,5% e 12,3%.^12,19 Esse indicador negativo pode estar atrelado ao fator inatividade, o que pode estar ligado a questão do provedor, por vezes, ser o candidato em tratamento e assim ser impactado por doença crônica/grave e desemprego.

Ainda neste escopo, os altos níveis de desemprego, em confluência com um mercado de trabalho altamente exigente,^3,28 podem afetar de modo considerável o acesso a uma posição de trabalho ativa. Com isso, o assistente social articula ações voltadas para o acesso e/ou manutenção de possíveis benefícios, bem como para a reintegração ou segurança do vínculo no mercado de trabalho. Estes fatores podem colaborar para um cenário positivo no campo da autonomia e administração financeira do conjunto familiar, contribuindo, não somente para a facilitação do acesso, mas também para as manutenções do tratamento.¹²

A ocorrência majoritária de sujeitos com padrão habitacional satisfatório, ou seja, imóveis em bom estado de conservação (N=157; 90,3%) é similar a achados anteriores (> 85%).^12,19 Essa realidade é possivelmente justificada pela influência de programas habitacionais, em que ocorrem dinâmicas de regularização fundiária, melhoria habitacional e até mesmo redução de juros para crédito imobiliário.⁴⁰ A habitação caracteriza um fator determinante para a saúde,²⁴ além de ser um dos espaços mais frequentados pelas famílias e aspirantes. Neste sentido, uma habitação bem conservada é fundamental para o cuidado do indivíduo, especialmente em imunossupressão, pelo fato de reduzir, de modo considerável, riscos de contaminação por bactérias e fungos.¹⁹

No que tange ao resultado da avaliação do/a assistente social, o destaque do parecer favorável (N=108; 62,1%), similar a pesquisas anteriores (> 60%),^12,19 caracteriza a síntese do estudo social realizado no processo de avaliação. Ainda que o parecer social seja definido como favorável para a realização do transplante, o/a assistente social permanece atuando aliado às famílias e candidatos/transplantados.¹⁹ Essas ações contínuas buscam um acesso de caráter constante, visto que a realidade investigada muda conforme a dinâmica de redes de apoio, relações familiares e políticas sociais.

CONCLUSÃO

A análise do perfil social dos candidatos ao transplante de fígado, baseada em vinte e quatro (24) variáveis da avaliação social, revela uma população com menor vulnerabilidade social em dez (10) categorias: estado civil, religião, vínculo com o SUS, nacionalidade, meios de comunicação, aceitação para o transplante, modelo familiar, cuidador, aderência familiar e condições de acesso.

Por outro lado, foi observada uma maior vulnerabilidade social em quatorze (14) categorias: gênero, procedência, nível de educação individual e familiar, inatividade, nível ocupacional no mercado de trabalho, vínculo assistencial ou previdenciário, acesso parcial a medicamentos, renda per capita familiar e despesas extras. Este perfil fornece elementos importantes para a identificação e reflexão sobre as necessidades/demandas sociais de cada sujeito atendido.

Os diversos pareceres sociais, ainda que favoráveis para o transplante, demonstraram demandas ao Serviço Social. Os outros pareceres (favoráveis limitados) sugeriram a demanda por maior atenção, monitoramento e atendimentos, porém, não configuraram contraindicação para o transplante. Além da efetividade das ações profissionais do Serviço Social se manifestar no processo de avaliação, isso também ocorre à medida que a análise é seguida de intervenções e orientações personalizadas. Essas dinâmicas servem, no geral, de embasamento à tomada de decisões dos aspirantes e de suas famílias com horizonte no exercício de seus direitos.

Assim, as ações profissionais ocorrem por meio de um processo de humanização da assistência, dinâmicas de respeito e consideração pelas pluralidades e diferenças. Ao acessar os direitos na saúde, em interface com as particularidades que configuram a demanda, é viabilizado a redução de impactos financeiros, o que corrobora com a segurança familiar e facilita o acesso ao transplante, conforme os princípios fundamentais do SUS.

Diante do exposto, recomenda-se maior aprofundamento em pesquisas que identifiquem a eficácia do trabalho do assistente social no acesso ao transplante de fígado, bem como possibilitem o incremento e melhoria de seus instrumentos profissionais.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

• FINANCIAMENTO

  Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Os dados poderão ser fornecidos mediante contato.

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Editado por

Editora de seção: Ilka de Fátima Santana F Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Jul 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  14 Nov 2023
• Aceito
  21 Dez 2023