Fibrilação Atrial no Perioperatório de Transplante de Fígado: Uma Revisão Integrativa

RESUMO

Objetivo:

Revisar o desenvolvimento da fibrilação atrial (FA) durante o período perioperatório (intra e pós-operatório) em receptores de transplante de fígado (TxF).

Métodos:

Trata-se de uma revisão integrativa que buscou analisar o surgimento da FA no perioperatório de transplante hepático, bem como seus fatores associados. Utilizaram-se as bases de dados PubMed, MEDLINE, SciELO e Scopus. Os descritores foram permutados utilizando o operador booleano “AND”, com a restrição temporal de 10 anos, nos idiomas inglês e português. Inicialmente, foram encontrados 305 artigos, dos quais nove atenderam ao objetivo proposto após a análise.

Resultados

Nesta revisão, foram selecionados nove artigos, os quais foram categorizados de acordo com o momento de surgimento da FA, em relação à cirurgia de transplante hepático: três em relação ao surgimento da FA no intraoperatório (FAIO) e seis no pós-operatório. Durante o período intraoperatório, os casos de FA apresentaram maior incidência após a reperfusão do enxerto hepático. Além disso, o grupo com FA apresentou maior incidência de insuficiência hepática, pontuações mais altas no escore model for end-stage liver disease (MELD), concentrações séricas mais elevadas de bilirrubina total e valores aumentados de international normalized ratio (INR). A presença de FA no pós-operatório (FAPO) foi associada a pacientes de idade avançada, com escores MELD mais elevados e disfunção renal. A permanência hospitalar foi prolongada e o risco de mortalidade foi aumentado em pacientes com FAPO.

Conclusão

O aparecimento da FA no perioperatório de transplante de fígado sugere uma correlação com pacientes de escores MELD mais altos, idade avançada e possibilidade de ocorrerem instabilidades hemodinâmicas, como arritmias durante a cirurgia, podendo indicar um mau prognóstico para o paciente.

Descritores
Fibrilação Atrial; Transplante de Fígado; Período Intraoperatório; Período Pós-Operatório

ABSTRACT

Objective:

To review the development of atrial fibrillation (AF) during the perioperative period (intraoperative and postoperative) in liver transplant recipients.

Methods:

This integrative review sought to analyze the emergence of AF in the perioperative period of liver transplantation and its associated factors. The following databases were used: PubMed, MEDLINE, SciELO, and Scopus. The descriptors were interchanged using the boolean operator “AND”, with a time restriction of 10 years, in English and Portuguese. Initially, 305 articles were found, of which nine met the proposed objective after analysis.

Results:

In this review, nine articles were selected, categorized according to the onset of AF concerning liver transplant surgery: three concerning the onset of AF in the intraoperative period and six in the postoperative period. During the intraoperative period, cases of AF had a higher incidence after reperfusion of the liver graft. In addition, the group with AF had a higher incidence of liver failure, a higher model for end-stage liver disease (MELD) scores, higher serum total bilirubin concentrations, and increased international normalized ratio (INR) values. AF in the postoperative period was associated with older patients, higher MELD scores, and renal dysfunction. Hospital stay was prolonged, and the risk of mortality was increased in patients with postoperative AF.

Conclusion:

The appearance of AF in the perioperative period of liver transplantation suggests a correlation with patients with higher MELD scores, advanced age, and instability during surgery and may indicate a poor prognosis for the patient.

Descriptors
Atrial Fibrillation; Liver Transplantation; Intraoperative Period; Postoperative Period

INTRODUÇÃO

O transplante de fígado (TxF) é o tratamento cirúrgico para pacientes com doença hepática em estágio terminal, sendo um procedimento complexo com possíveis ou maior probabilidade de ocorrência de eventos cardiovasculares importantes. O procedimento cirúrgico é indicado para pacientes adultos e pediátricos que apresentem doenças hepáticas agudas ou crônicas, irreversíveis e progressivas, sendo o transplante a única alternativa para a melhoria da qualidade de vida. A faixa etária média dos receptores de TxF é de 50 anos. Cerca de 70% dos pacientes que receberam TxF nos Estados Unidos da América (EUA), em 2011, tinham 50 anos e quase 12% tinham 65 anos¹.

A idade, por si só, pode desempenhar papel significativo na avaliação do risco associado a procedimentos cirúrgicos, uma vez que o envelhecimento está frequentemente associado a mudanças fisiológicas e condições médicas crônicas¹. Assim, a idade torna-se um fator de risco para complicações perioperatórias, sendo uma dessas o desenvolvimento de fibrilação atrial (FA)². Conforme o estudo de Wilke et al.³, que analisou a prevalência de FA em 8,3 milhões de pacientes na Alemanha, foi relatado que a média de idade de pacientes com FA foi de 73,1 anos e 55,5% eram do sexo masculino. Em todas as faixas etárias, a incidência de FA é mais comum em homens do que em mulheres³.

A FA representa uma arritmia cardíaca caracterizada por contrações descoordenadas e irregulares das câmaras superiores do coração. Esse fenômeno assume relevância clínica significativa quando se manifesta no contexto perioperatório de TxF, um procedimento cirúrgico complexo. Nos EUA, pelo menos 3 a 6 milhões de indivíduos são afetados pela FA, com projeções indicando que esse número pode alcançar aproximadamente 6 a 16 milhões até 2050. Na Europa, espera-se que o número de indivíduos com FA atinja 14 milhões até 2060, entre pessoas com mais de 55 anos⁴.

A relação entre a FA e o TxF não apenas influencia o desfecho cardiovascular do paciente, mas impacta diretamente a morbidade e a mortalidade associadas a essa intervenção. Cabe ressaltar que a arritmia é clinicamente importante porque pode estar associada a instabilidades hemodinâmicas significativas, especificamente nos pacientes submetidos a TxF. Pacientes submetidos a TxF são frequentemente expostos a fatores predisponentes de FA, como estresse cirúrgico, níveis elevados de catecolaminas e fluidos intravenosos que adicionam pré-carga e aumentam a pós-carga, promovendo um significativo estresse no sistema cardiovascular⁵.

A ocorrência de FA no contexto do TxF é uma preocupação clínica significativa, pois pode impactar adversamente o prognóstico dos pacientes. Estudos destacam que a FA está associada a complicações cardiovasculares e aumenta o risco de eventos tromboembólicos, como acidente vascular cerebral (AVC) e insuficiência cardíaca, bem como o aumento da mortalidade na população em geral. No entanto, indivíduos que apresentam FA durante o curso perioperatório constituem um subgrupo pouco estudado nessa população. Além disso, os efeitos da FA em pacientes submetidos a TxF ainda são amplamente desconhecidos⁶.

Diante disso, a relevância deste estudo reside na necessidade de identificar os fatores associados ao surgimento da FA durante o período perioperatório em receptores de TxF. Essa análise da literatura científica disponível não apenas contribui para o entendimento dos mecanismos subjacentes à FA nesse contexto complexo, mas pode orientar estratégias clínicas para prevenção e manejo dessa complicação crítica.

MÉTODOS

O presente estudo consiste em uma revisão integrativa que utilizou o protocolo Preferred Reporting Items for Systematic Review and Meta-Analysis (PRISMA) para análise da presença de FA em adultos durante o perioperatório de TxF. A elaboração da pergunta norteadora da revisão foi fundamentada na estratégia PICO, acrônimo para P: população/paciente, I: intervenção, C: comparação/controle e O: desfecho/outcome. Dessa forma, elaborou-se o seguinte questionamento: quais as evidências presentes na literatura sobre o desenvolvimento da FA durante o perioperatório de receptores de TxF?

A pesquisa bibliográfica foi realizada nas bases de dados PubMed [serviço da U.S. National Library of Medicine (NLM)], MEDLINE, Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Scopus. Os termos de busca foram validados pelos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) “Atrial Fibrillation”, “Liver Transplantation”, “Intraoperative Period”, “Postoperative Period” e “Arrhythmias Cardiac”. Os descritores foram permutados usando o operador booleano “AND” e foi aplicada uma restrição temporal de 10 anos. A coleta de dados foi realizada visando artigos que abordassem análises do período intraoperatório e pós-operatório de TxF, nos quais ocorreu o surgimento da FA de início recente.

Como critérios de inclusão para a seleção da amostra, foram incluídos artigos originais disponíveis na íntegra, publicados no período de 2013 a 2023, nos idiomas inglês e português, em indivíduos com mais de 18 anos. Além disso, relatos de casos foram incluídos na pesquisa. Os critérios de exclusão utilizados foram trabalhos publicados que fugiam do objetivo central da revisão, artigos voltados para a população pediátrica, pesquisas sem caráter científico e estudos inadequados, como carta ao leitor e editoriais de jornais.

Inicialmente, os artigos foram selecionados por meio de leitura do título e resumo. Em seguida, os artigos pré-selecionados foram lidos na íntegra. Por fim, os estudos que respondessem à pergunta norteadora foram anexados à amostra da revisão integrativa. Artigos duplicados em mais de uma base foram considerados somente uma vez. Nesse contexto, a ênfase da busca foi direcionada aos artigos científicos que tratavam do surgimento da FA no perioperatório, considerando também suas potenciais complicações. Neste estudo, incluímos apenas os artigos que abordaram os pacientes com FA de início recente, definida como aquela que ocorre durante o período operatório e até 30 dias após o TxF, desde que não tivessem FA crônica (persistente) no momento da cirurgia de TxF⁵.

Na coleta de dados, buscaram-se as seguintes informações: nome do autor, ano da publicação, país da publicação, objetivo do estudo, tamanho da amostra, momento do transplante em que ocorreu a FA (intra, pós-operatório), delineamento do estudo e principais resultados. O material coletado foi analisado e sintetizado em tabelas anexas. Para organização dos artigos, foi utilizado o software Zotero para excluir artigos duplicados. Seguiu-se também a estratégia de pesquisa delineada no PRISMA Statement 2020⁷, conforme as diretrizes do CARE Guidelines do EQUATOR Network para revisões sistemáticas, descrita na Fig. 1.

Figura 1
Triagem dos artigos com o fluxograma de revisão sistemática (PRISMA).

RESULTADOS

Inicialmente, foram identificados 305 artigos e, ao final, selecionados nove. A primeira etapa da seleção ficou restrita aos descritores utilizados na pesquisa, e foram identificados 305 artigos. Em seguida, foram aplicados os critérios de inclusão e exclusão, restando 128 artigos que seguiram para análise por título e resumo. Para análise do texto completo, foram selecionados 26 artigos. Após a leitura completa, foram escolhidos nove artigos, os quais foram divididos de acordo com o período de surgimento da FA, em relação à cirurgia de transplante hepático: três em relação ao surgimento da FA no intraoperatório (FAIO) e seis no pós-operatório.

Intraoperatório

Três artigos relataram o surgimento de FAIO do TxF: dois relatos de caso e um estudo retrospectivo (Tabela 1). Prakash et al.⁸ citam o desenvolvimento da FA e da taquicardia supraventricular (TSV) durante a fase anepática do TxF de doador vivo. Paciente do sexo masculino, 40 anos, com doença hepática crônica alcoólica, sem comorbidades cardíacas preexistentes e com ecocardiograma pré-operatório normal. Durante a dissecção, foram administradas 13 unidades de concentrado de hemácias e 10 unidades de plasma fresco, um concentrado de plaquetas e seis crioprecipitados. Outros distúrbios, como hipocalcemia, taquicardia, oligúria e acidose metabólica, foram observados e corrigidos durante o intraoperatório. A fase anepática teve duração de 3,5 horas. Nesse período, o paciente continuou hemodinamicamente instável, com uso de noradrenalina e vasopressina durante toda a cirurgia. Após 3 horas de fase anepática, houve início súbito de TSV que respondeu a 6 mg de adenosina intravenosa. Cinco minutos depois, houve recorrência de TSV que não respondeu às doses de adenosina. Em seguida, o ritmo mudou para FA com frequência ventricular em torno de 110/min. Acidose, hipo/hipercalemia, hipocalcemia, hipoglicemia e hipotermia foram descartados. Durante a reperfusão, o ritmo permaneceu irregular, com FA contínua. Após a cirurgia, o paciente foi monitorado na unidade de terapia intensiva e o ritmo foi revertido para sinusal 10 horas após a cirurgia⁸.

Tabela 1
Resumo dos estudos de FAIO do transplante hepático.

Referência/país	Ano da publicação	Tipo de estudo	Objetivo doestudo	Tamanho da amostra	Incidência de FA	Principaisresultados
Prakash et al.8 Índia	2019	Relato de caso	Relatar a ocorrência de TSV e FA durante a fase anepática do TxF de doador vivo e descrever o seu manejo.	1	-	TSV ou FA de início recente podem ocorrer na fase anepática do TxF. Os fatores atribuídos ao desenvolvimento de FA durante o TxF incluem alcoolismo, hipomagnesemia, condições cardíacas preexistentes, perda maciça de sangue e desequilíbrios ácido-base e eletrolíticos. Embora a FA possa estar presente no pré-operatório, também foi descrita após a reperfusão.
Li et al.9 China	2022	Relato de caso	Descrever o caso de um paciente que apresentou novo início de FA durante transplante ortotópico de fígado que pode ter sido induzido por injeção de solução salina gelada para medição da TDTP.	1	-	A FA ocorreu durante a dissecção do fígado receptor. A incidência de FA se deu pela infusão da solução salina gelada para medição de TDTP durante o transplante hepático ortotópico. O aparecimento de FA durante o TxF pode ser autolimitado, muitas vezes durando entre 1 hora e 1 semana.
Moon et al.10 Coreia do Sul	2018	Estudo de coorte retrospectivo	Descrever a ocorrência de FAIO recém-desenvolvida durante TxF e avaliar os resultados dos pacientes em relação à duração da FA.	1.059	1,20%	Escores MELD mais altos e insuficiência hepática fulminante podem contribuir para o desenvolvimento da FAIO.

• Fonte: Elaborada pelos autores.

Em outro estudo, Li et al.⁹ relatam paciente do sexo masculino, 52 anos, submetido a TxF devido à cirrose alcoólica associada à hipertensão portal. A FA ocorreu com frequência ventricular de 120 bpm, 3 minutos após a injeção de solução salina gelada, durante a realização da termodiluição transpulmonar (TDTP). Na etapa de reperfusão, a instabilidade hemodinâmica foi controlada com norepinefrina. A fase neo-hepática transcorreu sem intercorrências. A FA persistiu por 5 dias e reverteu automaticamente para o ritmo sinusal⁹.

Além desses, Moon et al.¹⁰ demonstraram, em seu estudo de coorte retrospectivo, 13 casos de FA diagnosticados durante o período intraoperatório, representando 1,2% do total. Desses casos, a maior incidência deu-se imediatamente após a reperfusão do enxerto hepático (n = 8), enquanto os demais foram observados nas fases pré-anepática (n = 2) e anepática (n = 3). A duração da FAIO foi, em geral, breve, com sete pacientes apresentando duração < 1 hora, quatro pacientes revertendo a FA para ritmo sinusal antes da alta hospitalar. Nesse estudo, dois pacientes faleceram nos 6° e 52° dias de pós-operatório. Dentre os fatores pré-operatórios relacionados ao receptor, o grupo com FA apresentou maior incidência de insuficiência hepática fulminante, valores mais elevados no escore model for end-stage liver disease (MELD), na concentração sérica de bilirrubina total e no international normalized ratio (INR) (Tabela 2). Na análise dos estudos, foi percebida uma prevalência de mortalidade maior entre os indivíduos que desenvolveram FAIO¹⁰.

Tabela 2
Dados dos pacientes de acordo com o desenvolvimento da FA

Moon et al.10	Idade	MELD	INR	Bilirrubina sérica
Pacientes com FAIO	45,4	31,5	2,8	34,7
Pacientes sem FAIO	50,6	18,8	1,7	2,8

• Fonte: Elaborada pelos autores.

Pós-operatório

Ao revisar a literatura, destacou-se a relevância da FA pós-operatória (FAPO), sendo identificados seis artigos que investigaram sua ocorrência logo após o TxF (Tabela 3). Essas pesquisas incluíram cinco estudos retrospectivos^5,6,11-13 e uma meta-análise¹⁴. Dentre os estudos desse cenário, cinco artigos relacionaram a presença de FAPO em pacientes significativamente mais velhos, com escore MELD elevado e disfunção renal^5,6,12-14.

Tabela 3
Resumo dos estudos de FAPO do transplante hepático.

Referência/país	Ano da publicação	Tipode estudo	Objetivodo estudo	Tamanhoda amostra	Incidência de FA	Principaisresultados
Xia et al.5 EUA	2015	Estudo de coorte retrospectivo	Investigar a incidência, o impacto e os fatores de risco da FAPO em pacientes com TxF.	1.387	7,4%	Os pacientes com FAPO eram significativamente mais velhos, com escore MELD e nível basal de creatinina mais elevados. A presença de história de FA antes do TxF e necessidade de vasopressor pré-transplante foram significativamente associados ao desenvolvimento de FAPO após TxF. A permanência hospitalar foi significativamente mais longa em pacientes que desenvolveram FAPO. A incidência de lesão renal aguda no grupo FAPO foi de 24,3%, significativamente maior do que no grupo não FAPO (11,8%).
Nicolau-Raducu et al.11 EUA	2015	Estudo de coorte retrospectivo	Investigar o papel das variáveis preditoras relatadas na incidência de morbidade e mortalidade cardíaca precoce e tardia em um grupo de alto risco de receptores de transplante hepático.	389	2,6%	No decorrer do ano inicial após o TxF, observaram-se índices de morbidade e mortalidade cardiovascular de 15,2 e 2,8%, respectivamente. Entre os pacientes que atravessam o 1º ano, as taxas de morbidade e mortalidade foram de 3,9 e 2%, sendo a etiologia cardiovascular a terceira causa de óbito.
Koshy et al.6 Austrália	2021	Estudo de coorte retrospectivo	Avaliar se a FAPO estava associada ao risco de AVC e embolia sistêmica em uma população não selecionada de pacientes submetidos a TxF.	461	10,2%	A FAPO após TxF é comum e está associada a um risco oito vezes maior de eventos tromboembólicos, e o uso do escore CHA2DS2-VASc pode facilitar a estratificação de risco adequada desses pacientes.
Molinari, Michele et al.14 USA	2019	Meta-análise	Avaliar se a presença de FA em receptores de transplante renal e hepático estava associada a uma sobrevida inferior do paciente e do enxerto.	2.239	6,8%	Na presença de FA, o risco de mortalidade aumentou em 2,3 para receptores de TxF. O risco de perda do enxerto não apresentou diferença estatisticamente significativa após TxF, provavelmente devido ao pequeno número de pacientes com TxF e FA.
Rivas et al.12 EUA	2022	Estudo de coorte retrospectivo	Identificar os preditores de início recente de FAPO durante os primeiros 90 dias após TxF e avaliar a associação entre FAPO e mortalidade intra-hospitalar e em 1 ano.	857	10,4%	Os pacientes que tiveram FA de início recente eram mais velhos, tinham maior probabilidade de serem da raça branca, escore MELD mais alto e maior probabilidade de ter histórico de disfunção renal que necessitou de diálise, doença arterial coronariana, hipertensão, doença pulmonar obstrutiva crônica, ascite, síndrome hepatorrenal e hipertensão pulmonar.
Rachwan et al.13 EUA	2020	Estudo de coorte retrospectivo	Determinar a incidência de FAPO, identificar os fatores de risco associados e avaliar os desfechos no TxF.	1.011	10%	A incidência de FAPO foi significativamente maior em pacientes com doença hepática gordurosa não alcoólica. O escore MELD mais alto e idade acima de 50 anos também foram fatores associados ao aumento na incidência de FAPO.

• Fonte: Elaborada pelos autores.

Escore CHA₂DS₂-VASc é o índice que busca estratificar o risco de AVC em pacientes com FA e o escore MELD é usado para estimar a gravidade relativa da doença hepática.

Xia et al.⁵ relataram que a FA em receptores de TxF manifestou-se no 1º mês pós-cirurgia. Além disso, todos os pacientes com FAPO foram submetidos à conversão para ritmo sinusal após o tratamento, e nenhuma FA persistente ou crônica foi documentada no momento da alta. Ao longo do curso intraoperatório, os intervalos de isquemia quente e fria foram semelhantes, não revelando disparidades entre os dois grupos. No grupo FAPO, observou-se diminuição do débito urinário e maior demanda de plasma fresco e concentrado de hemácias, em comparação com o grupo sem FAPO. A permanência hospitalar foi significativamente mais longa em pacientes que desenvolveram FAPO⁵.

No estudo conduzido por Koshy et al.⁶, o tempo de isquemia fria e de isquemia quente também foi equivalente. O surgimento da FAPO ocorreu em média 3 dias após o transplante. Verificou-se que apenas cinco (10,6%) pacientes com FAPO mantiveram a FA persistente na alta após o TxF. O tempo total de internação estratificado pela FAPO não foi significativamente diferente entre os grupos. Em contrapartida, a incidência de FA 12 meses após o TxF foi consideravelmente maior em pacientes que desenvolveram FAPO⁶.

Rivas et al.¹² perceberam, em sua análise de dados, que pacientes com histórico de diálise, síndrome hepatorrenal e hipertensão pulmonar obtiveram uma prevalência mais elevada no desenvolvimento de FAPO. No intraoperatório, os pacientes que desenvolveram FAPO apresentaram maior perda sanguínea e receberam mais coloides e hemoderivados. Em contraste com a análise de Koshy et al.¹², o tempo de permanência hospitalar observado foi mais prolongado na presença de FAPO em comparação com o grupo sem FAPO. Ademais, na avaliação da mortalidade, os pacientes que desenvolveram FA apresentaram risco de 2,64 vezes maior de óbito em um ano¹².

Além desses, Rachwan et al.¹³ relataram a presença de FAPO em 102 (10%) pacientes, dos quais oito já tinham história preexistente de FA ou flutter atrial (FLA). O grupo de pacientes com FAPO apresentou maior incidência de doença hepática gordurosa não alcoólica em comparação com aqueles sem FAPO. Os pacientes com FAPO tiveram tempo de internação mais prolongado e frequência mais alta de internações pós-transplante. Os pacientes com FAPO apresentaram maior taxa de falência do enxerto em um ano em comparação com aqueles sem FAPO. O tempo médio após TxF para o primeiro episódio de FA foi de três dias, com 72% dos casos resolvidos em 48 horas após o início. Os vasopressores mais comumente utilizados no momento do início da FAPO foram norepinefrina e vasopressina. Observou-se que 13% dos pacientes com FAPO faleceram durante a internação na unidade de terapia intensiva (UTI) para TxF e dois apresentaram FA documentada não resolvida. Os medicamentos frequentemente empregados para tratamento de FAPO incluíram amiodarona, betabloqueadores e bloqueadores de canais de cálcio¹³.

DISCUSSÃO

Fibrilação Atrial no Intraoperatório (FAIO)

Um grande estudo de coorte relatou a presença de FAIO durante o TxF, em pacientes sem histórico prévio de FA, correlacionando-a com o risco de mortalidade no pós-operatório. No estudo de Xia et al.⁵, foram encontrados cinco casos (0,4%) de FA no dia do TxF. Todavia, é importante ressaltar que os pacientes incluídos nesse estudo tinham também o diagnóstico de FA paroxística, não sendo claro se a FA ocorreu no intraoperatório ou no dia 0 do pós-operatório. A FAIO, embora frequentemente transitória durante o TxF, permanece um indicador de prognóstico importante, associada à mortalidade e ao aumento no tempo de internação⁵.

Pacientes submetidos a TxF frequentemente apresentam fatores predisponentes à FA. A fisiopatologia associada à FAIO parece multifatorial e ainda não é totalmente compreendida. No entanto, diversos mecanismos têm sido propostos para explicar a ocorrência desse fenômeno. Entre as possíveis causas, a ativação do sistema simpático e o desequilíbrio autonômico são os mecanismos mais reconhecidos que aumentam a suscetibilidade à FA, tanto no intraoperatório como no pós-operatório¹⁰. Dessa forma, a ocorrência de FA de novo início pode ocorrer na fase anepática devido à alta demanda de medicamentos inotrópicos durante essa etapa do TxF¹⁰.

Outros mecanismos estão relacionados ao desenvolvimento de FA durante o TxF, incluindo o estresse cirúrgico, nível elevado de catecolaminas, exposição súbita ao frio, disfunção cardíaca e inflamação pericárdica preexistente. A aumento do tônus simpático pode reduzir o período refratário do átrio, o que potencialmente contribui para o surgimento da FAIO¹⁰. Ademais, acidose, hipo/hipercalemia, hipocalcemia e hipoglicemia, bem como hipotermia durante o transplante hepático, também podem induzir FA. Escore MELD mais alto e insuficiência hepática fulminante foram associadas à FAIO⁹.

Moon et al.¹⁰ observaram que sete casos de FAIO ocorreram durante a reperfusão do enxerto. A fase de reperfusão é o momento em que ocorre a restauração do fluxo sanguíneo hepático, período crítico de grande instabilidade hemodinâmica¹⁰. Esse período caracteriza-se pela queda da pressão arterial e da resistência vascular sistêmica. A reposta hemodinâmica ocorre devido à súbita liberação de sangue acidótico, hipercalêmico, rico em substâncias vasoativas e os subprodutos do processo de isquemia¹⁵. Além disso, ocorre hipotermia causada pelo elevado influxo de solução de preservação fria que está no enxerto hepático¹⁰.

No estudo conduzido por Li et al.⁹, a FA ocorreu durante a dissecção do fígado do receptor, imediatamente após a administração em bolus de solução salina gelada e 8 μg de norepinefrina. Contudo, acredita-se que a FA não esteja diretamente relacionada à administração de norepinefrina, visto que são raros os relatos de FA com o uso de norepinefrina em baixas doses durante procedimentos cirúrgicos. Em contrapartida, o influxo repentino da solução salina gelada pode provocar estiramento atrial, constituindo-se um fator contribuinte para o surgimento da FA. Além disso, o resfriamento do nó sinoatrial pode interferir na frequência e no débito cardíaco, causando uma desregulação hemodinâmica que pode predispor à ocorrência de FA⁹.

No caso clínico delineado por Prakash et al.⁸, o paciente em questão apresentava histórico de alcoolismo crônico; contudo, não foram identificadas evidências de comorbidades cardíacas preexistentes, tais como doença cardíaca isquêmica, cardiomiopatia ou FA preexistente. No presente estudo, observou-se significativa perda sanguínea e uso de altas doses de vasopressores os quais podem ter contribuído para um estado pró-arritmogênico. Além disso, o aumento adicional no suporte vasopressor durante a fase anepática provavelmente exacerbou a condição⁸.

A maioria das pesquisas se concentra no surgimento da FA no período pós-operatório de TxF, havendo poucos estudos que abordem a ocorrência de FA durante o próprio procedimento cirúrgico. A incidência e as características de FAIO no TxF ainda são pouco compreendidas, sendo a discussão sobre esse tema limitada na literatura e a prevalência desse evento ainda não está claramente estabelecida.

Fibrilação Atrial no Pós-operatório (FAPO)

A FAPO representa a complicação cardiovascular mais prevalente após o TxF, caracterizada pelo surgimento de FA em um período médio de 30 dias após a cirurgia⁶. A incidência da FAPO varia de acordo com o tipo de procedimento cirúrgico realizado e as particularidades clínicas do paciente. Em cirurgias cardíacas ou torácicas, a FAPO pode ocorrer em até 60% dos casos, devido à manipulação do pericárdio e à estimulação da inervação cardíaca. Pacientes submetidos a TxF frequentemente apresentam estado de saúde bastante debilitado em comparação com outros grupos de pacientes, resultando em alta incidência de FAPO, mesmo não sendo uma cirurgia torácica¹⁶.

No estudo de Xia et al.⁵, a taxa de FAPO em receptores de fígado foi de 7,9%. Koshy et al.⁶ relataram a presença de FAPO em, aproximadamente, um a cada 10 pacientes submetidos a TxF. Em outro estudo, a incidência de FAPO foi de 10% após TxF. Além disso, sua ocorrência foi observada em 11% dos casos após cirurgias abdominais¹³. A idade avançada é reconhecida como fator de risco significativo para o surgimento de FA de início recente^5,6,11,13,14. Estudos como o de Jiang et al.¹⁷ demonstraram aumento de 1,8 vezes no risco de FAPO para cada aumento de 10 anos na idade. Fatores adicionais, como sexo masculino, obesidade, histórico prévio de FA e mau estado físico, têm sido consistentemente associados a maior risco.

De forma semelhante, no estudo conduzido por Xia et al.⁵, a análise revelou que a cada década após os 50 anos, as chances de desenvolver FAPO aumentaram quase duas vezes⁵. Nas últimas décadas, tem-se observado um aumento considerável na proporção de pacientes com mais de 50 anos submetidos a TxF. Consequentemente, é esperado que a incidência de FA no perioperatório aumente ao longo do tempo. Além da idade, a presença de uma baixa reserva fisiológica e um substrato subjacente de cardiomiopatia cirrótica também estão associados ao aumento da incidência^6,18.

Os fatores relacionados ao procedimento cirúrgico também influenciam a incidência de FA. A abordagem cirúrgica aberta comumente utilizada no TxF e o tempo prolongado do procedimento estão ligados à ocorrência dessa complicação. O TxF é reconhecido como uma das cirurgias de maior porte, com tempo cirúrgico considerável, o que contribui significativamente para essa incidência^17,19. O estresse cirúrgico, estímulos adrenérgicos e a inflamação sistêmica podem atuar como gatilhos para a ativação do sistema nervoso autônomo. Além disso, desequilíbrios eletrolíticos, como a hipocalemia agravada pelas mudanças no equilíbrio de fluidos durante a cirurgia, também estão associados a um maior risco de FAPO, devido às modificações nas características elétricas das células cardíacas, na automaticidade e na excitabilidade¹⁹.

Pacientes com doença hepática são frequentemente considerados com baixas comorbidades cardíacas, sendo o tratamento centrado no controle da disfunção renal e da coagulopatia associadas. No entanto, estudos recentes, como o de Huang et al.²⁰, sugerem que pacientes com cirrose apresentam risco elevado de FA, risco esse aumentado conforme o escore MELD aumenta. A prevalência e a incidência de FA aumentam em pacientes com escore MELD mais alto. A prevalência de FA foi de 3,7, 6,4, 16,7 e 20,2%, correspondendo, respectivamente, aos quartis MELD 1 a 10, 11 a 20, 21 a 30 e acima de 30²⁰. No estudo realizado por Xia et al.⁵, observou-se que pacientes com escore MELD mais alto apresentam evolução perioperatória mais complicada, maior incidência de comorbidades pré-operatórias e maior necessidade de vasopressores⁵.

Lee et al.²¹ observaram risco relativamente maior de FA, de até 46%, em pacientes cirróticos em comparação com pacientes não cirróticos. Segundo Mozos et al.¹⁸, os mecanismos que explicam a presença de FA em pacientes com cirrose hepática ocorrem devido a desregulação eletrolíticas, síndrome hepatorrenal, elevada concentração de ácidos biliares na corrente sanguínea, anormalidades metabólicas e síndromes inflamatórias¹⁸.

A doença hepática crônica pode exercer influência direta ou indireta sobre a patogênese da FA. As fibras do nervo vago inervam a veia porta, as artérias hepáticas, os ductos biliares e, também, o parênquima hepático. Na cirrose, pode ocorrer uma desenervação do parênquima hepático, contribuindo para uma disfunção na regulação autonômica. Dessa forma, a neurotransmissão anormal, com hiperativação do sistema simpático e parassimpático, relaciona-se com a desregulação rítmica do coração e, consequentemente, com a ocorrência de FA²⁰.

A hiperatividade do sistema simpático está correlacionada com o aumento na produção de citocinas inflamatórias, tais como interleucina-1beta, interleucina-6, interleucina-8, fator de necrose tumoral alfa [tumor necrosis fator alpha (TNF-α)] e fator de crescimento transformador beta [transfoming growth factor beta (TGF-β)]. A infecção pelo vírus da hepatite C pode ser observada em pacientes com cardiomiopatia dilatada e hipertrófica, podendo desempenhar um papel na patogênese dessas condições e causar arritmias cardíacas. A FA e o FLA são arritmias diagnosticadas em pacientes cirróticos e estão significativamente associadas à presença de arteriosclerose, hipercolesterolemia e diabetes mellitus¹⁸.

Já em relação à morbimortalidade, observou-se aumento da mortalidade e do tempo de permanência hospitalar em diversos estudos^10-14. Rachwan et al.¹³ relataram que as taxas de mortalidade após 90 dias e 1 ano foram consideravelmente mais elevadas nos grupos de pacientes com FAPO, em comparação com aqueles sem FAPO. Esses resultados foram consistentes com os achados de Xia et al.⁵, que também identificaram o aumento significativo nas taxas de mortalidade em 1, 3 e 6 meses em pacientes com FAPO quando comparados com os controles.⁵

Outro desfecho adverso associado à FA perioperatória, conforme evidenciado nos estudos, foi a extensão do tempo de internação hospitalar^2,10. Estudos anteriores também demonstraram a associação entre FAPO e a maior taxa de readmissão na unidade de terapia intensiva após o TxF¹³. Um estudo anterior mostrou que a FAPO estava associada a uma maior taxa de readmissão na unidade de terapia intensiva após TxF. A maioria dos episódios de FAPO foi autolimitado ou resolvido com tratamento. Esse fenômeno pode indicar um mau prognóstico para complicações cardiovasculares subsequentes^2,13.

CONCLUSÃO

A FA no período perioperatório de transplante hepático ainda é uma questão subestimada e pouco abordada na literatura científica. No entanto, as evidências disponíveis indicam que sua ocorrência está ligada a pacientes com escores MELD mais altos, idade avançada, insuficiência hepática e instabilidades hemodinâmicas e hidroeletrolíticas durante o intraoperatório. Independentemente da duração, essa disritmia está associada a condições médicas subjacentes. Assim, são necessários estratégias preventivas e protocolos de gerenciamento que devem ser implementados durante o perioperatório, visando mitigar os riscos associados a essa complicação cardíaca e melhorar os desfechos clínicos do paciente.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

• FINANCIAMENTO

  Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

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Editado por

Editora de Seção: Ilka de Fátima Santana F. Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  12 Ago 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  21 Abr 2024
• Aceito
  21 Jun 2024