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Análise da Temperatura Durante o Armazenamento e o Período de Isquemia Morna do Enxerto em Transplantes Renais

RESUMO

Objective:

Este estudo tem por objetivo analisar as temperaturas dos transplantes renais realizados no Hospital Municipal São José, Joinville/SC, durante todo o período de isquemia fria e se essa temperatura se adéqua ao preconizado em literatura.

Método:

Foi realizado um trabalho prospectivo com a coleta de dados dos enxertos renais utilizados para transplante renal com órgãos de doador falecido no serviço de transplante renal do Hospital Municipal São José.

Resultados:

O estudo analisou que o método atual de conservação do enxerto atende parcialmente aos valores esperados para manter a temperatura preconizada.

Conclusão:

Importante que se mantenham estudos e análises sobre o tema para melhoria continua no armazenamento do enxerto.

Descritores
Transplante de Rim; Transplante de Órgãos; Isquemia Fria; Reperfusão

ABSTRACT

Objective:

To review the applicability of extracorporeal membrane oxygenation (ECMO) during the pre, intra and postoperative periods of patients undergoing liver transplantation.

Methods:

Prospective analysis based on all kidney grafts that was used for kidney transplant in the unit of kidney transplant of Hospital Municipal São José.

Results:

The study analyzed that the current method of graft conservation partially meets the expected values, to maintain the recommended temperature.

Conclusion:

It is important to maintain studies and analyzes on the subject for continuous improvement in graft storage.

Descriptors
Kidney Transplantation; Graft Transplantation; Cold Ischemia; Reperfusion

INTRODUÇÃO

A temperatura em que o enxerto é exposto, durante o período pré-operatório é importante para o desfecho clínico do receptor, estando relacionada à função do órgão transplantado, bem como à sobrevida a longo prazo do enxerto.11 Pegg DE, Calne RY, Pryse-Davies J, Leigh-Brown F (1964). Canine renal preservation using surface and perfusion cooling techniques. Ann NY Acad Sci. 120(2):506-23. https:/doi.org/10.1111/j.1749-6632.1965.tb30680.x
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O armazenamento de órgãos para transplante se faz, na maioria das vezes, em hipotermia, e a temperatura de conservação deve permanecer entre 0 e 4 °C. A hipotermia é induzida durante a cirurgia de captação de órgãos e se associa à infusão de solução de preservação, caracterizando a etapa de isquemia fria. A redução da temperatura do enxerto tem como objetivo reduzir o metabolismo do órgão no período em que não haverá fluxo sanguíneo, evitando a disfunção do enxerto durante a isquemia quente, ou seja, o período que compreende o clampeamento da artéria do doador até a infusão da solução de preservação. Esse é o período em que o dano celular se faz mais evidente, uma vez que ocorre a interrupção abrupta da oferta de oxigênio para as células e, como consequência, há redução do metabolismo aeróbico, suspensão da oxidação de glicose e ácidos graxos e transferência da glicólise para a via anaeróbia, o que reduz, de forma significativa, a quantidade de trifosfato de adenosina (ATP) intracelular. Com aporte reduzido de ATP, a diminuição da atividade da enzima Na/K/ATPase cria um desbalanço hidroeletrolítico entre os meios intra- e extracelulares, o que favorece a formação de edema celular.22 Roteiro: ANEXO IV - Protocolo de Acondicionamento. Secretaria de Estado da Saúde SC Transplantes - CET/SC. [citado em Ago. 29, 2022]. https://sctransplantes.saude.sc.gov.br/index.php/formularios-cihdott/doacao-de-multiplos-orgaos-e-tecidos/captacao/file/176-roteiro-anexo-iv-protocolo-de-acondicionamento
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A maioria dos órgãos toleram uma isquemia quente por 30 a 60 minutos até sua completa perda de função. Pegg et al mostraram que, quando o período dura mais que 5 minutos, ele já se relaciona a resultados desfavoráveis com lesões de reperfusão, porém também mostraram que a isquemia fria associada a uma solução apropriada pode aumentar a viabilidade do enxerto em até 30 horas.11 Pegg DE, Calne RY, Pryse-Davies J, Leigh-Brown F (1964). Canine renal preservation using surface and perfusion cooling techniques. Ann NY Acad Sci. 120(2):506-23. https:/doi.org/10.1111/j.1749-6632.1965.tb30680.x
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OBJETIVO

Analisar as medidas de temperatura desde o armazenamento do enxerto renal no momento da abertura da caixa de transporte do órgão, durante a realização do back-table até a reperfusão, compreendendo a isquemia morna, visando avaliar se a temperatura se faz adequada ao valor recomendado pela literatura.

MATERIAIS E MÉTODOS

Foram coletados os dados de maneira prospectiva em todos os enxertos renais aceitos para transplante no serviço de Transplante Renal do Hospital São José de Joinville, SC, durante o período de junho a dezembro de 2019.

As aferições da temperatura foram realizadas de acordo com as instruções presentes em manual do aparelho termômetro digital infravermelho Scantemp ST-600. A distância padronizada foi de 24 ± 5 cm de distância para cada item aferido e o tempo de medição foi de 1 s conforme manual do aparelho. A primeira medição (T1) foi realizada no fundo da caixa de transporte, logo em seguida da retirada do frasco com o enxerto. A segunda medição (T2) foi realizada após a retirada do enxerto da última embalagem que o envolve e no momento exato em que o enxerto é exposto na mesa de preparo do órgão (back-table). A terceira medição (T3) ocorreu no início do período de isquemia morna (em que o órgão sai da mesa e entra em contato com o paciente, na fase de implante). A quarta medição (T4) foi aferida no momento antes da reperfusão (pós-implante). As medidas T1, T2, T3 e T4 foram padronizadas, tendo como ponto o parênquima renal próximo ao hilo. Todos os enxertos foram mantidos com o mesmo líquido de preservação (histidina-triptofano-cetoglutarato; Custodiol, Contatti Medical, São Geraldo, Brasil) em todas as etapas de armazenamento, mesma solução utilizada por equipe de transplante hepático.

Os dados foram armazenados e cruzados usando cálculos estatísticos (mínimo, máximo, desvio-padrão) e valor de significância, com p < 0,05 nos programas Microsoft Excel 2016 e IBM SPSS.

Os enxertos foram captados, armazenados e transportados conforme protocolo estadual de acondicionamento de órgãos para transporte do estado de Santa Catarina (RDC-66/2009).7

RESULTADOS

A análise estatística é composta pelo teste de normalidade de dados de Shapiro–Wilk, conforme demonstrado na Tabela 1. Na Tabela 2 estão apresentadas medidas de temperatura, média e desvio-padrão.

Tabela 1
Teste de normalidade das variáveis quantitativas do estudo.
Tabela 2
Principais medidas descritivas dos grupos de dados de mensuração quantitativa do estudo.

A Tabela 3 apresenta as frequências absolutas e relativas de cada temperatura e observamos que 64% das aferições de temperatura em T2 estão dentro do intervalo de 0 a 4° C e 33% estão acima de 4° C. Vimos também que 100% das aferições em T3 e T4 estão acima de 4° C. Todas essas constatações com um P < 0,001. Analisando os resultados obtidos em T1 apenas 25,6% das medições estavam dentro do intervalo de 0 a 4° C e o restante dos dados encontram-se abaixo de 0° C. Porém, como pode-se ver na Tabela 3, não há relação entre o T1 e qualquer outra temperatura aferida.

Tabela 3
Distribuição de frequências da classificação de cada temperatura.

DISCUSSÃO

Técnicas de preservação e perfusão de órgãos são um dos grandes desafios técnicos para a viabilidade e o sucesso dos transplantes. Diante disso, duas fases se destacam, a hipotérmica e a normotérmica (através de máquinas de perfusão). Na área de preservação de órgãos, a busca por novas soluções de preservação, como substrato enriquecido, saturado de oxigênio e com depleção de leucócitos para ajudar na qualidade do órgão.33 Zimmerman MA, Martin A, Hong JC. Basic considerations in organ perfusion physiology. Curr Opin Organ Transplant. 2016;21(3):288-93. https://doi.org/10.1097/mot.0000000000000312
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A interrupção aguda do fluxo sanguíneo, em qualquer órgão, gera uma redução significativa no aporte de oxigênio, gerando uma hipóxia e consequentemente lesões celulares isquêmicas. A alternativa para reverter esse processo seria a reperfusão tecidual, porém a rápida revascularização gera lesão de isquemia de reperfusão (LIR). Além disso, a reoxigenação leva à ativação direta de ambas as respostas imunes, inata e adaptativa do ambiente estéril, e, como reação, há ativação da cascata inflamatória, que, por sua vez, causa lesões patológicas distintas, incluindo a disfunção endotelial com aumento da permeabilidade vascular, apoptose e, finalmente, necrose celular.33 Zimmerman MA, Martin A, Hong JC. Basic considerations in organ perfusion physiology. Curr Opin Organ Transplant. 2016;21(3):288-93. https://doi.org/10.1097/mot.0000000000000312
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A necrose celular é manifestada clinicamente como LIR, leva à disfunção orgânica e à morte. Vale salientar que a LIR está presente em diversas situações clínicas além do transplante, como infarto agudo do miocárdio e hemorragia maciça em acidentes traumáticos.33 Zimmerman MA, Martin A, Hong JC. Basic considerations in organ perfusion physiology. Curr Opin Organ Transplant. 2016;21(3):288-93. https://doi.org/10.1097/mot.0000000000000312
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Estratégias são utilizadas para atenuar os efeitos da lesão de isquemia/reperfusão, principalmente em relação ao cuidado adequado com o doador, evitando instabilidade hemodinâmica, drogas vasoativas, variações eletrolíticas e o aumento do tempo de isquemia fria (TIF).33 Zimmerman MA, Martin A, Hong JC. Basic considerations in organ perfusion physiology. Curr Opin Organ Transplant. 2016;21(3):288-93. https://doi.org/10.1097/mot.0000000000000312
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As soluções de preservação tentam mimetizar o ambiente hidroeletrolítico e intracelular, objetivando estabilizar a membrana plasmática, evitar o edema e reduzir ao máximo o dano celular ocasionado pela isquemia e acidose.55 Hameed AM, Hawthorne WJ, Pleass HC. Advances in organ preservation for transplantation. ANZ J Surg. 2017;87(12):976-80. https://doi.org/10.1111/ans.13713
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Somados, ao resfriamento do enxerto à temperatura de 0 a 4 °C, reduzindo as taxas de metabolismo em 90 a 95%, reduz a carência de ATP e o desvio do metabolismo para as vias anaeróbias.44 Requião-Moura LR, Durão Junior MS, Matos ACC, Pacheco-Silva A. Lesão de isquemia e reperfusão no transplante renal: Paradigmas hemodinâmico e imunológico. Einstein (São Paulo). 2015;13(1):129-35. https://doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3161
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Apesar do tempo de isquemia quente (período entre o clampeamento arterial e o início da perfusão com solução de preservação) ser mais lesivo ao órgão, com equipes capacitadas, hoje em dia, raramente esse tempo ultrapassa 5 minutos, sendo o TIF uma das principais variáveis relacionadas com o atraso na função do enxerto renal.44 Requião-Moura LR, Durão Junior MS, Matos ACC, Pacheco-Silva A. Lesão de isquemia e reperfusão no transplante renal: Paradigmas hemodinâmico e imunológico. Einstein (São Paulo). 2015;13(1):129-35. https://doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3161
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Em T2 tem-se 64% dos casos dentro do intervalo de 0 a 4 °C, com apenas uma medida com temperatura negativa em –1,6 °C e 13 aferições acima de 4 °C, o que, de acordo com a literatura, pode trazer prejuízo à função do enxerto.44 Requião-Moura LR, Durão Junior MS, Matos ACC, Pacheco-Silva A. Lesão de isquemia e reperfusão no transplante renal: Paradigmas hemodinâmico e imunológico. Einstein (São Paulo). 2015;13(1):129-35. https://doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3161
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A isquemia quente antes do implante acarreta alta taxa de atraso na função do enxerto e necrose tubular aguda, dependendo da duração da isquemia.66 Jain S, Lee SH, Korneszczuk K, Culberson CR, Southard JH, Berthiaume F, et al. Improved preservation of warm ischemic livers by hypothermic machine perfusion with supplemented University of Wisconsin solution. J Invest Surg. 2008;21(2):83-91. https://doi.org/10.1080/08941930701883657
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Com relação à análise das temperaturas do início e do fim da isquemia morna, T3 e T4 respectivamente, nenhum caso apresentou temperatura dentro do intervalo de 0 a 4 °C, conforme recomendado na literatura,33 Zimmerman MA, Martin A, Hong JC. Basic considerations in organ perfusion physiology. Curr Opin Organ Transplant. 2016;21(3):288-93. https://doi.org/10.1097/mot.0000000000000312
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o que favorece ainda mais o impacto negativo dos efeitos celulares da privação de oxigênio. Vale ressaltar a enorme dificuldade com a atual tecnologia, em se manter temperatura entre 0 a 4 °C na preparação do enxerto em back-table e manipulação cirúrgica, onde as equipes, nesse caso, têm a seu favor a realização do mesmo no menor tempo possível.44 Requião-Moura LR, Durão Junior MS, Matos ACC, Pacheco-Silva A. Lesão de isquemia e reperfusão no transplante renal: Paradigmas hemodinâmico e imunológico. Einstein (São Paulo). 2015;13(1):129-35. https://doi.org/10.1590/S1679-45082015RW3161
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CONCLUSÃO

Este estudo demonstra que a temperatura dos órgãos durante o armazenamento e a cirurgia de bancada encontra-se adequada e de acordo com o preconizado na literatura (0 a 4 °C) em 64%, com significância estatística; porém 33% apresenta-se acima de 4 °C, especificamente na cirurgia de bancada. Observamos também que os valores de T3 estão acima dos valores recomendados na literatura. Portanto conclui-se que o método de conservação do enxerto na caixa de transporte atende (64%) aos valores esperados, porém essa temperatura fica totalmente fora do preconizado após a preparação do enxerto até o momento do implante. Ampliação do número de transplantes analisados se faz necessária para confirmação e melhoria dos dados, porém revisão de técnicas de manutenção de temperatura no back-table é um grande desafio para todas as equipes.

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • Como citar: Lima AC, Alves JCR, Borga AL, Ocampos HBL, Deboni LM, Guterres JCP, Garcia CE. Análise da Temperatura Durante o Armazenamento e o Período de Isquemia Morna do Enxerto em Transplantes Renais. BJT. 2023.26 (01):e0423. https://doi.org/10.53855/bjt.v26i1.482_PORT
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os conjuntos de dados foram gerados ou analisados no estudo atual.

REFERÊNCIAS

Editado por

Editora de seção: Ilka de Fátima Santana F Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2022
  • Aceito
    19 Dez 2022
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