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Lacunas e Fatores Impeditivos da Doação de Órgãos no Brasil: Revisão de Literatura

RESUMO

Objetivo:

explorar os fatores que dificultam a doação de órgãos no Brasil.

Métodos:

foi realizada uma revisão de literatura buscando principais fatores que dificultam a doação de órgãos, utilizando os seguintes descritores: encaminhamento de órgãos, morte encefálica, cuidados intensivos.

Resultados:

foram encontrados 54 estudos publicados nos últimos cinco anos: PubMed (n=15), EMBASE (n=32), Lilacs (n=1), Mendeley (n=16) e SciELO (n=0). A recusa de familiares parece ser a principal dificuldade no processo de doação de órgãos no Brasil. A sistematização da captação e distribuição de órgãos, e a eficiência para diagnóstico de morte encefálica mostraram-se como fatores preditivos para maiores taxas de aceitação familiar e eficiência nas etapas do processo.

Conclusão:

medidas de sistematização do processo de captação e distribuição de órgãos, bem como a capacitação da equipe de saúde podem impactar beneficamente no cenário brasileiro de doação de órgãos.

Palavras-chave
Obtenção de Tecidos e Órgãos; Morte Encefálica; Cuidados Intensivos; Capacitação Profissional e Transplante

ABSTRACT

Objective:

To explore the factors that hinder organ donation in Brazil.

Methods:

A literature review was carried out, seeking the main factors that hamper organ donation, using the following descriptors: organ referral, brain death, and intensive care.

Results:

54 studies published in the last five years were found: PubMed (n=15), EMBASE (n=32), Lilacs (n=1), Mendeley (n=16) and SciELO (n=0). Family members’ refusal is the main difficulty in the organ donation process in Brazil. The systematization of organ capture and distribution and the efficiency of diagnosing brain death proved predictive factors for higher rates of family acceptance and efficiency in the process stages.

Conclusion:

Measures to systematize organ procurement and distribution and the health team’s training can benefit the Brazilian organ donation scenario.

Keywords
Tissue and Organ Procurement; Brain Death; Intensive care; Professional Training and Transplantation

INTRODUÇÃO

No ano de 1933 foi realizado o primeiro transplante de órgão no mundo, ocorreu na Ucrânia e utilizou-se um rim. Apesar de a paciente evoluir para o óbito, foi considerado sucesso técnico do procedimento. Em 1964, foi realizado no Brasil o primeiro transplante renal no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro.11 Garcia CD, Pereira JD, Garcia VD. Doação e transplante de órgãos e tecidos. São Paulo: Segmento Farma; 2015. A partir disso, as técnicas e a tecnologia utilizadas evoluíram, com oww uso de protocolos e abordagem multidisciplinar,22 Martin-Loeches I, Sandiumenge A, Charpentier J, Kellum JA, Gaffney AM, Procaccio F, et al. Management of donation after brain death (DBD) in the ICU: the potential donor is identified, what's next? Intensive Care Med. 2019;45(3):322-30. https://doi.org/10.1007/s00134-019-05574-5
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propiciando melhor qualidade e expectativa de vida para o transplantado.33 Dell Agnolo CM, Freitas RA, Toffolo VJO, Oliveira MLF, Almeida DF, Carvalho MDB, et al. Causes of organ donation failure in Brazil. Transplant Proc. 2012;44(8):2280-2. https://doi.org/10.1016/j.transproceed.2012.07.133
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55 Cunha DSP, Lira JAC, Campelo GVS, Ribeiro JF, Silva FAA, Nunes BMVT. Morte encefálica e manutenção de órgãos: conhecimento dos profissionais intensivistas. Rev Enferm UFPE on line. 2018;12(1):51-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v12i1a25130p51-58-2018
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Em 2018, o Brasil ficou em primeiro lugar no programa público de transplantes de órgão do mundo, correspondendo a 96% dos procedimentos no sistema público, Sistema Único de Saúde (SUS).55 Cunha DSP, Lira JAC, Campelo GVS, Ribeiro JF, Silva FAA, Nunes BMVT. Morte encefálica e manutenção de órgãos: conhecimento dos profissionais intensivistas. Rev Enferm UFPE on line. 2018;12(1):51-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v12i1a25130p51-58-2018
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77 Brasil. Ministério da Saúde. Brasil aumenta doação de órgãos e bate recorde em transplantes. Brasília: Ministério da Saúde; 2018. [acesso em: 04 jul. 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2018/setembro/brasil-aumenta-doacao-de-orgaos-e-bate-recorde-em-transplantes
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Não obstante, durante a pandemia da covid-19, a disseminação da doença restringiu consideravelmente os programas de transplante no mundo.88 Vasconcelos TF. Avaliação do conhecimento de médicos sobre morte encefálica e doação de órgãos e fatores associados. Ribeirão Preto. Dissertação [Mestrado em clinica Cirúrgica] – Universidade de São Paulo; 2021. https://doi.org/10.11606/D.17.2021.tde-28012022-112118
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No Brasil, no primeiro semestre de 2020, houve diminuição dos transplantes de fígado (6,9%), rim (18,4%), coração (27,1%), pulmão (27,1%), pâncreas (29,1%) e principalmente córneas (44,3%), pela interrupção de grande parte dos serviços.99 Araújo AYCC, Almeida ERB, Lima LKS, Sandes-Freitas TV, Pinto AGA. Declínio nas doações e transplantes de órgãos no Ceará durante a pandemia da COVID-19: estudo descritivo, abril a junho de 2020. Epidemiol Serv Saúde. 2021;30(1):e2020754. https://doi.org/10.1590/s1679-49742021000100016
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A Espanha mantém desde 1992 o recorde mundial de doadores de órgãos por milhão da população (PMP), totalizando 46,9 doadores PMP. Em 2017, permanecem na fila de espera apenas 4.896 pacientes. Entretanto, no Brasil, em 1992 a média de doadores correspondeu a 16,6 PMP, e, em 2017, 32.402 pacientes na fila de espera de órgãos.44 Coelho GHF, Bonella AE. Doação de órgãos e tecidos humanos: a transplantação na Espanha e no Brasil. Rev Bioética. 2019;(27)3:419-29. https://doi.org/10.1590/1983-80422019273325
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Já em 2022, o Registro Brasileiro de Transplante (RBT) apresentou 52.989 pessoas esperando por um órgão no Brasil1010 Brasil. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. São Paulo; 2022., sugerindo o crescimento da demanda para transplante. A relação entre a quantidade de pacientes que ingressam na lista de espera, se comparado aos órgãos disponibilizados, é cada vez mais desproporcional.44 Coelho GHF, Bonella AE. Doação de órgãos e tecidos humanos: a transplantação na Espanha e no Brasil. Rev Bioética. 2019;(27)3:419-29. https://doi.org/10.1590/1983-80422019273325
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,1111 McCallum J, Ellis B, Dhanani S, Stiell IG. Solid organ donation from the emergency department - A systematic review. CJEM. 2019;21(5):626-37. https://doi.org/10.1017/cem.2019.365
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,1212 Westphal GA, Garcia VD, Souza RL, Franke CA, Vieira KD, Birckholz VRZ, et. al. Associação de Medicina Intensiva Brasileira; Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Guidelines for the assessment and acceptance of potential brain-dead organ donors. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):220-55. https://doi.org/10.5935/0103-507X.20160049
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Um rigoroso processo resguarda a conclusão do diagnóstico de morte encefálica e a efetivação do processo de doação de órgãos e tecidos: 1) identificação de pacientes em estado grave e com suspeita de Morte Encefálica (ME); 2) abertura do protocolo e notificação para Organização de Procura de Órgãos (OPO) ou CIHDOTT; 3) confirmação do diagnóstico pela equipe médica; 4) comunicação da morte à família; 5) realização da Entrevista Familiar (EF) para doação dos órgãos e tecidos.1313 Brasil. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. São Paulo; 2019.

Conforme recomendações da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, somente após o consentimento verbal e a autorização familiar expressa por escrito, é confirmada a doação.1313 Brasil. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. São Paulo; 2019. Contudo, de acordo com pesquisa realizada entre os anos de 2013 a 2018, no Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos do Hospital de Clínicas da Unicamp, dentre os motivos para a não doação, a recusa familiar (42,8%) foi a principal causa, seguida de contraindicação médica (25,75%), de parada cardiorrespiratória (21,63%), de sorologia positiva (4,21%), de não conclusão do protocolo de ME (<0,1%), e em sessenta casos (5,49%) não havia relato do motivo da não doação.1414 Bertasi RAO, Bertasi TGO, Reigada CPH, Ricetto E, Bonfim KO, Santos LA, et al. Profile of potential organ donors and factors related to donation and non- donation of organs in an Organ Procurement Service. Rev Col Bras Cir. 2019;46(3):e20192180. https://doi.org/10.1590/0100-6991e-201922180
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Assim, este trabalho buscou listar os fatores impeditivos no que tange à doação de órgãos, tais como a recusa familiar, desafios na sistematização do processo para a captação e viabilidade dos órgãos, e sobre possíveis lacunas acerca do protocolo de morte encefálica e seu diagnóstico, colaborando para estabelecer rotinas e protocolos para a eficácia do processo de doação.

MÉTODOS

Um levantamento bibliográfico foi realizado nas seguintes bases de dados: PubMed; EMBASE; Biblioteca Cochrane; Lilacs e SciELO. A busca compreendeu o período entre 2018 e 2022, para trabalhos publicados em língua inglesa e portuguesa, utilizando apenas descritores cadastrados no “Descritores em Ciências da Saúde” (DeCS) da Biblioteca Virtual em Saúde, desenvolvido a partir da Medical Subject Headings (MeSH) da United States National Library of Medicine, que permite uma linguagem única na indexação de publicações. Os seguintes descritores e seus sinônimos foram utilizados de forma combinada, nas línguas portuguesa e inglesa, respectivamente: “encaminhamento de órgãos (organ referral)”, “morte encefálica (brain death)” e “cuidados intensivos (critical care)”, bem como o operador booleano “AND” para apurar o rastreio.

Dos trabalhos encontrados, foi realizada uma revisão dos estudos que citam as principais dificuldades relacionadas não só ao diagnóstico de morte encefálica em tempo hábil – e ao curto prazo da viabilidade dos órgãos e tecidos –, mas também à identificação adequada de potenciais doadores. Foram incluídos apenas artigos que relacionam as principais dificuldades para efetivar a doação de órgãos mundialmente. Todos os artigos que não abordavam possíveis soluções aos problemas propostos foram excluídos da presente revisão. Após a exclusão das duplicatas, entre as bases de dados, foram excluídos os resumos de trabalhos e aqueles que não incluíam estudos e humanos.

RESULTADOS

Foram encontrados 54 estudos publicados nos últimos cinco anos, sendo: PubMed (n=15), EMBASE (n=32), Lilacs (n=1), Mendeley (n=16) e SciELO (n=0). Foram removidas as duplicadas entre as bases de dados (três estudos) e trabalhos que não incluíram possíveis obstáculos ao processo de doação, ou que compreendiam outras etapas do processo além da suspeita de diagnóstico de ME (43 estudos). Foram incluídos oito estudos conforme fluxograma apresentado na Fig. 1. Outros trabalhos encontrados fora dos critérios de busca foram considerados na escrita do texto, mas não incluídos na sistematização apresentada na Fig. 1. A análise bibliográfica apontou a recusa de familiares como principal dificuldade no processo de doação de órgãos no Brasil, de modo que tanto a sistematização quanto o maior grau de conhecimento médico acerca da morte encefálica ressaltaram-se como fatores preditivos para maiores taxas de aceitação familiar e eficiência nas etapas do processo. Além disso, o conhecimento médico acerca da morte encefálica mostrou-se insuficiente, sobretudo entre os médicos generalistas, o que se torna alarmante, afinal, a equipe de urgência e emergência é crucial nesse contexto e abrange tais profissionais. As contribuições do estudo estão expostas na Tabela 1.

Figura 1
Fluxograma do processo de seleção dos estudos adaptado.
Tabela 1
Contribuições do estudo.

DISCUSSÃO

Legislação para a doação de órgãos no Brasil

A cirurgia para o transplante de órgãos só foi regularizada em 1997, com a Lei nº 9.434 ,1515 Brasil. Casa Civil. Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 1997. [acesso em: 04 jul. 2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
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que aborda a concessão post mortem de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante; dos critérios para transplante com doador vivo; e das sanções penais e administrativas pelo seu descumprimento. A referida lei alterou o tipo de doação vigente no país que, até então, era consentida, ou seja, era preciso se manifestar em vida a favor ou contra a doação em caso de óbito.44 Coelho GHF, Bonella AE. Doação de órgãos e tecidos humanos: a transplantação na Espanha e no Brasil. Rev Bioética. 2019;(27)3:419-29. https://doi.org/10.1590/1983-80422019273325
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A partir da Lei dos Transplantes, a autorização passou a ser presumida, devendo o discordante manifestar formalmente seu posicionamento. Esse registro, a favor ou contra a doação dos órgãos, era feito na cédula de identidade ou na Carteira Nacional de Habilitação. Contudo, a Lei nº 10.211/20011616 Brasil. Casa Civil. Lei 10.211, de 23 de março de 2001. Altera dispositivos da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que “dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento”. Brasília: Diário Oficial da União; 2001. [acesso em: 04 jul. 2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10211.htm
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extinguiu a doação presumida e determinou autorização por escrito, de familiares de primeiro ou segundo grau ou cônjuge com relação comprovada, sem a qual a retirada de órgãos seria impedida, independente do desejo em vida do potencial doador. Os registros, antes realizados nos documentos de identificação, deixaram de ter valor.44 Coelho GHF, Bonella AE. Doação de órgãos e tecidos humanos: a transplantação na Espanha e no Brasil. Rev Bioética. 2019;(27)3:419-29. https://doi.org/10.1590/1983-80422019273325
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,1313 Brasil. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. São Paulo; 2019.

Contexto da Doação por Morte Encefálica (DME) no Brasil

O protocolo de diagnóstico de Morte Encefálica é regulamentado pela Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997,1515 Brasil. Casa Civil. Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 1997. [acesso em: 04 jul. 2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
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que trata da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante. É normatizado pelo Decreto nº 9.175,1717 Brasil. Secretaria Geral. Decreto nº 9.175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Brasília: Diário Oficial da União; 2017. [acesso em: 20 out. 2022]. Disponível em: https://bit.ly/2Ol2lDT
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de 18 de outubro de 2017 e pela Resolução n° 2.137, de 2017, do Conselho Federal de Medicina.1818 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Brasília: Diário Oficial da União; 2017. [acesso em: 20 out. 2022]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20171205/19140504-resolucao-do-conselho-federal-de-medicina-2173-2017.pdf
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O diagnóstico de ME, no Brasil, segue normativas rígidas e atribui caráter legal ao protocolo de doação, sendo necessário o atendimento a todas as etapas para que se declare um indivíduo morto.1919 Silva L, Pinheiro FES, Varano N, Carrilho AJFP, Destro-Filho JB. Comparison of the clinical profile of two groups of patients who underwent the Brain Death protocol. Research, Society and Development. 2022;11(11):e386111133807. https://doi.org/10.33448/rsd-v11i11.33807
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Os procedimentos para o diagnóstico de ME contemplam: 1) comunicação da suspeita da ME aos familiares; 2) notificação para Central Estadual de Transplantes/OPO; 3) presença de lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e capaz de causar a ME; 4) ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico de ME (por exemplo: sedativos); 5) tratamento e observação em hospital por período mínimo de seis horas; 6) temperatura corporal > 35°C, SatO2 > 94% e pressão arterial conforme faixa etária; 7) dois exames clínicos que constatem sinais compatíveis com a ME, tais como coma profundo não perceptivo ou ausência de reflexos do tronco encefálico, como os reflexos pupilar, corneano, oculocefálico, vestíbulo-ocular e da tosse; 8) teste de apneia e exames complementares, a exemplo do eletroencefalograma, doppler transcraniano e arteriografia cerebral.1212 Westphal GA, Garcia VD, Souza RL, Franke CA, Vieira KD, Birckholz VRZ, et. al. Associação de Medicina Intensiva Brasileira; Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Guidelines for the assessment and acceptance of potential brain-dead organ donors. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):220-55. https://doi.org/10.5935/0103-507X.20160049
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No ano de 2022, o Brasil apresentou um total de 13.195 notificações de potenciais doadores (PD), sendo que 3.528 tornaram-se doadores efetivos, ou seja, 26,7% do total. Entretanto, existem 52.989 pacientes ativos na lista de espera. Acerca da conversão de aproximadamente apenas um quarto em doadores efetivos, os maiores obstáculos encontrados no Brasil são a recusa familiar (46%) e contraindicações médicas (18%).1010 Brasil. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. São Paulo; 2022.

A sistematização do processo de doação

No Brasil, a estrutura organizacional do processo de doação de órgãos é baseada no “modelo espanhol” de transplantes, que integra os três níveis hierárquicos no processo de doação: nacional (Sistema Nacional de Transplante – SNT), estadual (Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos – CNCDO) e local (Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e tecidos para o transplante – CIHDOTT). Hospitais com mais de oitenta leitos devem ter sua CIHDOTT. Além disso, para atender a demanda de doação de órgãos em hospitais que não possuem coordenador hospitalar de transplante atuante ou parceria com coordenadores foram criadas as Organizações de Procura de Órgãos (OPOs).2020 Garcia CD, Garcia VD, Pereira JD. Manual de Doação e Transplantes: Informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017. A estratégia de ter uma equipe coordenadora de transplante dentro do hospital, cuja responsabilidade abrange todo processo desde a identificação até coleta e enxerto, promove um aumento significativo nas taxas de doação. Na Espanha, esta estratégia permitiu superar diversos obstáculos, como a não identificação de doadores e a relutância dos profissionais em se aproximarem das famílias em luto.2121 Ramsi MA, Al Maeeni SM, Al Sereidi HM, Al Ali AS, Alzoebie LA. United Arab Emirates' Future Perspective: Converting Potential Organ Donors Into Actual Organ Donors in an Academic Setting. Exp Clin Transplant. 2020;18(2):177-81. https://doi.org/10.6002/ect.2019.0251
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Em linhas gerais, o processo de doação por morte encefálica (DME) pode ser dividido em doze partes: 1) detecção da suspeita de ME; 2) diagnóstico de ME; 3) entrevista familiar; 4) avaliação do potencial doador (PD); 5) manutenção dos órgãos e tecidos; 6) aspectos logísticos; 7) remoção de órgãos e tecidos; 8) alocação; 9) transplante; 10) acompanhamento; 11) registros; 12) educação permanente; conforme apresentado na Fig. 2.2020 Garcia CD, Garcia VD, Pereira JD. Manual de Doação e Transplantes: Informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017.,2222 Araújo AYCC, Governo do Estado do Ceará, Secretaria da Saúde. Processo de doação de órgãos e tecidos: Recomendações técnicas para profissionais das Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante - CIHDOTT. Ceará: Universidade Estadual do Ceará; 2021. [acesso em: 20 out. 2022]. Disponível em: https://www.saude.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/9/2021/04/Processo-de-doacao-de-orgaos-e-tecidos-23-de-setembro-de-2021.pdf
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Figura 2
Etapas da doação por morte encefálica.

Suspeita de morte encefálica e identificação de doadores

No contexto de sistematização do processo DME, a busca ativa mostra-se como instrumento crucial para evitar subnotificações. Para tal feito, é dever da CIHDOTT realizar sistematicamente uma busca ativa de potenciais doadores em unidades com pacientes críticos, abrangendo todas as localidades que possuem ventilador mecânico. Vale citar que a CIHDOTT deve atuar em conjunto com as equipes médicas do hospital, principalmente UTI e Urgência e Emergência.2222 Araújo AYCC, Governo do Estado do Ceará, Secretaria da Saúde. Processo de doação de órgãos e tecidos: Recomendações técnicas para profissionais das Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante - CIHDOTT. Ceará: Universidade Estadual do Ceará; 2021. [acesso em: 20 out. 2022]. Disponível em: https://www.saude.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/9/2021/04/Processo-de-doacao-de-orgaos-e-tecidos-23-de-setembro-de-2021.pdf
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Ademais, é importante destacar o encaminhamento do potencial doador pelo departamento de emergência do hospital, já que nesse setor existe maior taxa de sucesso de doadores, além de uma tendência de doação de mais de um único indivíduo, em comparação com encaminhamentos oriundos da UTI. Dessa forma, torna-se crucial a busca ativa da CIHDOTT, sobretudo quando existem falhas reincidentes no encaminhamento pela equipe médica de urgência, sendo benéfico o treinamento para a capacitação específica desses profissionais por esse órgão intra-hospitalar.1111 McCallum J, Ellis B, Dhanani S, Stiell IG. Solid organ donation from the emergency department - A systematic review. CJEM. 2019;21(5):626-37. https://doi.org/10.1017/cem.2019.365
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É crucial entender que, quando feitos de imediato, a detecção do PD e seu encaminhamento para avaliação repercute em maiores taxas de sucesso para qualquer doação de órgãos, o que tem relação direta com uma manutenção de órgãos e tecidos prontamente. Fatores de entrave nessa fase são a falta de treinamento específico no que tange à detecção, além do trabalho concomitante do profissional no atendimento urgente a outros pacientes críticos.22 Martin-Loeches I, Sandiumenge A, Charpentier J, Kellum JA, Gaffney AM, Procaccio F, et al. Management of donation after brain death (DBD) in the ICU: the potential donor is identified, what's next? Intensive Care Med. 2019;45(3):322-30. https://doi.org/10.1007/s00134-019-05574-5
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Em virtude de lidar com essa problemática, a aplicação de tecnologias de comunicação para acelerar o encaminhamento mostrou-se eficaz, sobretudo na identificação de pacientes de fora da UTI. Durante um período de quatro anos, no Hospital Universitário de Vall d’Hebron (Barcelona, Espanha), um aplicativo de mensagens instantâneas foi usado para comunicação multidirecional entre equipes profissionais médicas no que diz respeito ao encaminhamento, avaliação e manejo do PD com o coordenador de doação, concomitantemente a uma pesquisa relacionada ao cuidado intensivo para facilitar a doação de órgãos. O resultado da aplicação dessa ferramenta foi uma maior eficiência no manejo do PD, justamente porque a comunicação entre o coordenador de doação e os outros departamentos foi facilitada, além de engajar o aprendizado coletivo dos profissionais envolvidos ao enviar feedbacks imediatos sobre o caso e indicar a contribuição final de cada profissional no processo de doação.2323 Martín-Delgado MC, Martínez-Soba F, Masnou N, Pérez-Villares JM, Pont T, Carretero MJS, et al. Summary of Spanish recommendations on intensive care to facilitate organ donation. Am J Transplant. 2019;19(6):1782-91. https://doi.org/10.1111/ajt.15253
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Diagnóstico de ME

No Brasil, com a suspeita de morte encefálica, os familiares devem ser notificados, e podem escolher um médico de sua confiança para acompanhar os exames. Quando feito o diagnóstico de ME, os familiares são prontamente avisados e a CIHDOTT notifica a Central Estadual de Transplantes (CET), mesmo que exista inviabilidade de órgãos ou recusa familiar à doação.2020 Garcia CD, Garcia VD, Pereira JD. Manual de Doação e Transplantes: Informações práticas sobre todas as etapas do processo de doação de órgãos e transplante. Porto Alegre: Libretos, 2017.,2222 Araújo AYCC, Governo do Estado do Ceará, Secretaria da Saúde. Processo de doação de órgãos e tecidos: Recomendações técnicas para profissionais das Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante - CIHDOTT. Ceará: Universidade Estadual do Ceará; 2021. [acesso em: 20 out. 2022]. Disponível em: https://www.saude.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/9/2021/04/Processo-de-doacao-de-orgaos-e-tecidos-23-de-setembro-de-2021.pdf
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No entanto, o processo de declaração de ME ainda passa por obstáculos relacionados a falhas em completar o diagnóstico. Em virtude de investigar ineficiências nessa etapa do processo de doação, uma pesquisa dos Estados Unidos estudou os possíveis fatores relacionados aos PD por ME que nunca foram declarados durante quatro anos, sendo que estes representaram 15% de todos os PD por ME. Nesse contexto, cada causa de falha pode ser agrupada em quatro grupos que totalizam 394 casos, sendo fatores envolvendo o paciente (n=55), família (n=122), profissional (n=110) e sistema de saúde (n=107). Na família, destacou-se a indisposição dos membros que a constituem em esperar mais pelo diagnóstico (n=65) e a recusa familiar à doação (n=17); já relacionado aos profissionais, a menção precoce acerca doação (n=44) e a falta de cooperação com a equipe de procuração de órgãos (n=21); no sistema de saúde, o atraso no encaminhamento (n= 48) e a equipe de transplantes não estar no local (n=37); associado ao paciente restaram objeção previamente conhecida (n=55) e instabilidade severa ou terminal (n=26).2424 Webster PA, Markham LE. Never Declared Brain Dead Potential Organ Donors-An Additional Source of Donor Organs? Prog Transplant. 2018;28(1):43-8. https://doi.org/10.1177/1526924817746683
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Além de tais empecilhos gerais identificados nos Estados Unidos, o cenário brasileiro abrange outros entraves mais particulares, como a falta de leitos de UTI nos hospitais públicos, de modo que esses pacientes acabam por ser manejados em salas de emergência lotadas, e a ignorância médica acerca do assunto, por conta da descrença de vários profissionais no que diz respeito ao diagnóstico de ME, posicionamento que corrobora com o questionamento do diagnóstico pelo senso comum.33 Dell Agnolo CM, Freitas RA, Toffolo VJO, Oliveira MLF, Almeida DF, Carvalho MDB, et al. Causes of organ donation failure in Brazil. Transplant Proc. 2012;44(8):2280-2. https://doi.org/10.1016/j.transproceed.2012.07.133
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É cabível citar ainda a Doação após Morte Circulatória (DMC), uma modalidade que vem crescendo no mundo e pode ser usada como complemento para a DME no que tange à insuficiência dos casos de DME ao atenderem a demanda por transplantes. Em sua definição, a DMC ocorre quando existe parada cardiorrespiratória, podendo ser classificada pelas categorias de Maastricht, das quais somente a IV (parada cardiorrespiratória antes, durante ou após a confirmação de morte encefálica) é utilizada no Brasil em um pequeno número de transplantes renais. No entanto, apesar de ser estrategicamente acatada por muitos países, a DMC não é utilizada no Brasil devido barreiras éticas, legais e financeiras. Logo, por ser menos complexo e mais barato, o investimento em maior eficácia da DME mostra-se satisfatório para suprir a demanda de transplantes vigente no país, com exceção para o pulmão, cujo usufruto da DMC tem maior potencialidade.2525 Garcia VD, Pestana JOMA, Pêgo-Fernandes PM. Is donation after circulatory death necessary in Brazil? If so, when? J Bras Pneumol. 2022;48(2):e20220050. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20220050
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Como exemplo de investimento em eficácia no processo, o uso da teleneurologia, isto é, o auxílio remoto de um especialista na interpretação de exames complementares, mostrou-se eficiente no diagnóstico de ME, aumentando percentualmente a taxa de doações de órgãos do hospital estudado quando comparado ao período anterior à implementação das teleconsultas no mesmo local.2626 Matiello M, Turner AC, Estrada J, Whitney CM, Kitch BT, Lee PT, et al. Teleneurology-Enabled Determination of Death by Neurologic Criteria After Cardiac Arrest or Severe Neurologic Injury. Neurology. 2021;96(15):e1999-e2005. https://doi.org/10.1212/WNL.0000000000011751
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O conhecimento médico acerca da morte encefálica e seus impactos na doação de órgãos

É imperioso destacar que um processo de doação mal conduzido, efetuado por profissionais mal instruídos ou insuficientemente capacitados, pode enfraquecer a confiança de todo serviço, levando a julgamentos e questionamentos sobre tal processo. Contudo, se bem conduzido e com experiências exitosas, auxiliará os familiares a lidarem com a perda e o abalo emocional, bem como contribuirá para o incentivo ao desejo de doação pela sociedade.88 Vasconcelos TF. Avaliação do conhecimento de médicos sobre morte encefálica e doação de órgãos e fatores associados. Ribeirão Preto. Dissertação [Mestrado em clinica Cirúrgica] – Universidade de São Paulo; 2021. https://doi.org/10.11606/D.17.2021.tde-28012022-112118
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De acordo com a resolução 2.173/2017 do CFM,1818 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Brasília: Diário Oficial da União; 2017. [acesso em: 20 out. 2022]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20171205/19140504-resolucao-do-conselho-federal-de-medicina-2173-2017.pdf
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são considerados aptos e capazes de realizar o exame clínico para determinação da ME os médicos com, no mínimo, um ano de experiência no atendimento de pacientes em coma, e que cumpram um dos dois seguintes critérios: 1) realização ou acompanhamento de dez determinações ME; 2) realização de curso de capacitação para determinação ME.1212 Westphal GA, Garcia VD, Souza RL, Franke CA, Vieira KD, Birckholz VRZ, et. al. Associação de Medicina Intensiva Brasileira; Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Guidelines for the assessment and acceptance of potential brain-dead organ donors. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):220-55. https://doi.org/10.5935/0103-507X.20160049
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Vasconcelos (2021)88 Vasconcelos TF. Avaliação do conhecimento de médicos sobre morte encefálica e doação de órgãos e fatores associados. Ribeirão Preto. Dissertação [Mestrado em clinica Cirúrgica] – Universidade de São Paulo; 2021. https://doi.org/10.11606/D.17.2021.tde-28012022-112118
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avaliou o conhecimento de 313 médicos intensivistas e não intensivistas, atuantes em diferentes regiões do Brasil, por meio de um questionário com doze questões sobre o protocolo de ME e doação de órgãos. Os resultados indicaram uma média de acertos igual a cinco, que corresponde ao desconhecimento sobre o diagnóstico de ME e doação de órgãos na amostra estudada. A abordagem da ME durante o curso de graduação também foi considerada insuficiente pela maioria dos participantes (88,8%), ressaltando a necessidade da inclusão da temática na grade curricular dos cursos da área médica.88 Vasconcelos TF. Avaliação do conhecimento de médicos sobre morte encefálica e doação de órgãos e fatores associados. Ribeirão Preto. Dissertação [Mestrado em clinica Cirúrgica] – Universidade de São Paulo; 2021. https://doi.org/10.11606/D.17.2021.tde-28012022-112118
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É essencial o conhecimento da Resolução 2.173 de 2017 do Conselho Federal de Medicina,1818 Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Brasília: Diário Oficial da União; 2017. [acesso em: 20 out. 2022]. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20171205/19140504-resolucao-do-conselho-federal-de-medicina-2173-2017.pdf
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cujo objetivo central é estabelecer parâmetros para uniformizar o diagnóstico de ME, e consiste num protocolo legal relevante sobre a necessidade de padronização da metodologia utilizada.1212 Westphal GA, Garcia VD, Souza RL, Franke CA, Vieira KD, Birckholz VRZ, et. al. Associação de Medicina Intensiva Brasileira; Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Guidelines for the assessment and acceptance of potential brain-dead organ donors. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):220-55. https://doi.org/10.5935/0103-507X.20160049
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Ao reafirmar a importância do compromisso de todos os médicos na preservação da vida por meio da doação de órgãos, a resolução resguarda o doador e o transplantado e oferece credibilidade ao sistema. Dessa forma, é evidente a necessidade da capacitação da equipe de saúde e dos profissionais médicos sobre o diagnóstico da ME, por ser uma estratégia fundamental para preencher as lacunas de conhecimento existentes. Aconselha-se também a elaboração de novos estudos que possam verificar o entendimento dos profissionais, antes e após participação em cursos de treinamentos.55 Cunha DSP, Lira JAC, Campelo GVS, Ribeiro JF, Silva FAA, Nunes BMVT. Morte encefálica e manutenção de órgãos: conhecimento dos profissionais intensivistas. Rev Enferm UFPE on line. 2018;12(1):51-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v12i1a25130p51-58-2018
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,88 Vasconcelos TF. Avaliação do conhecimento de médicos sobre morte encefálica e doação de órgãos e fatores associados. Ribeirão Preto. Dissertação [Mestrado em clinica Cirúrgica] – Universidade de São Paulo; 2021. https://doi.org/10.11606/D.17.2021.tde-28012022-112118
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A recusa familiar no processo de doação de órgãos

A Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 determina a juridicidade a respeito da doação de órgãos, em que estabelece a família de primeiro grau como fonte exclusiva de autorização ao processo, mesmo que, em vida, o doador tenha deixado por escrito esse desejo.1515 Brasil. Casa Civil. Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 1997. [acesso em: 04 jul. 2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
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Desse modo, o diálogo prévio com a família é a única forma para que essa vontade individual de doar seja respeitada e atendida.2727 Amazonas MAM, Santos JS, Araújo JC, Souza ATAC, Coelho MB, Santos JPS, et al. Doação de órgãos: dilemas dos familiares na doação de órgãos. Revista Eletrônica Acervo Saúde. 2021;13(1):e5871. https://doi.org/10.25248/reas.e5871.2021
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De acordo com o Registro Brasileiro de Transplantes – RBT, dentre as causas para a não concretização do procedimento de doação, a recusa familiar configura 46% de todos os casos não concluídos, entre junho e setembro de 2022.1010 Brasil. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. São Paulo; 2022.

Portanto, sabe-se que o processo não abrange somente a doação e o transplante de órgãos e tecidos, mas também contempla questões éticas, morais e religiosas no contexto familiar. Nesse sentido, a compreensão sobre o diagnóstico de morte encefálica e a questão religiosa ainda se apresentam como impeditivos, nos quais a falta de informação é um dos principais motivos para a recusa de órgãos. Os familiares não entendem o que é a morte encefálica e acham que, aceitando doar os órgãos, o médico e sua equipe podem induzir a morte do paciente. Além disso, a falta de preparo do profissional que aborda a família no momento da perda do ente, por não ter as informações necessárias e não apresentar sensibilidade e empatia, pode levar a não aceitação da doação. Por fim, em virtude da ausência de elucidação, os parentes possuem medo da manipulação do corpo para a retirada de órgãos, e tem o desejo de manter o corpo íntegro para o velório e enterro e, assim, negam a doação de órgãos.2828 Araújo MR, Almeida CG, Gonzaga MFN, Contini ICP. Principais fatores de recusa familiar para doação de múltiplos órgãos. Saúde em Foco. 2020;12:146-53.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tanto as medidas de sistematização do processo de doação de órgãos, seja para a capacitação da equipe de saúde diretamente envolvida com potenciais doadores, para a redução do tempo entre a distribuição e a captação de órgãos, ou para a sugestão de novos protocolos e mecanismos para a confirmação da morte encefálica podem promover benefícios para o cenário brasileiro de doação de órgãos nacionalmente. A transparência do processo de doação de órgãos assegura aspectos éticos essenciais aos usuários do sistema, garantindo eficácia e credibilidade na efetivação da doação.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem imensamente todos os doadores de órgãos brasileiros e suas famílias, que permitiram analisar as informações e fatores motivadores apresentados neste estudo. Agradecimento especial à Mariana Pereira Carvalho pela assistência intelectual e técnica durante a produção do trabalho.

  • Como citar: Oliveira AFCG, Cardoso RAB, Freitas KC, Lotte EJ, Lucas BL. Lacunas e Fatores Impeditivos da Doação de Órgãos no Brasil: Revisão de Literatura. BJT. 2023.26 (01):e2723. https://doi.org/10.53855/bjt.v26i1.520_PORT
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Não aplicável.

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Editado por

Editora de seção: Ilka de Fátima Santana F Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    27 Jul 2023
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