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Análise do Acesso ao Transplante de Fígado nas Diferentes Regiões Brasileiras de 2018 a 2022: Um Estudo Transversal

RESUMO

Introdução:

Embora o modelo simulado de alocação de fígado para transplante tenha permitido uma distribuição mais igualitária das cirurgias no Brasil, ainda é motivo de controvérsia se o acesso ao procedimento é justo nas diversas regiões do país. Para avaliar isso, analisamos dados de pacientes que se mudaram para diferentes regiões para serem submetidos a transplantes de fígado.

Métodos:

Realizamos um estudo transversal retrospectivo sobre transplante de fígado utilizando dados do departamento de informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) de 2018 a 2022, e classificamos os procedimentos/pacientes por região usando o Software PAST 4.12 (Universidade de Oslo).

Resultados:

88,78% (n = 198) dos pacientes da região Norte necessitaram migrar, enquanto na região Centro-Oeste, 23,39% (n = 84) dos pacientes necessitaram migrar para outras regiões. Em três estados da região Nordeste, 100% (n = 117) dos pacientes necessitaram migrar para estados da mesma região. No teste de Tukey pareado: Centro-Oeste e Sudeste p=0,03, Norte e Sudeste p=0,008, Nordeste e Sudeste p= 0,02.

Conclusões:

É perceptível a disparidade no acesso e a necessidade de migração de pacientes das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o que pode afetar o prognóstico e resultar em gastos extras para os pacientes dessas regiões.

Palavras-chave
Transplante; Brasil; Cirurgia Geral; Equidade

ABSTRACT

Introduction:

Although the simulated liver allocation model for liver transplantation has enabled a more equal distribution of surgeries in Brazil, it remains a subject of controversy whether access to the procedure is fair across various regions of the country. To assess this, data from patients who moved to different regions to undergo liver transplants were analyzed.

Methods:

A retrospective cross-sectional study was carried out on liver transplantation using the Brazilian Unified Health System’s IT department (DATASUS) data from 2018 to 2022, and sorted the procedures/patients by region using Software PAST 4.12 (University of Oslo).

Results:

88,78% (n = 198) of patients from the northern region needed to migrate, while in the central-west region, 23.39% (n = 84) of patients needed to migrate to other regions. In three states of the northeast region, 100% (n = 117) of the patients needed to migrate to states within the same region. In Tukey’s pairwise test: Midwest and Southeast p=0.03, North and Southeast p=0.008, Northeast and Southeast p= 0.02.

Conclusions:

There is a noticeable disparity in access and the need for patient migration from the North, Northeast, and Central-West regions, which may affect the prognosis and result in extra expenses for patients from these regions.

Descriptors: Transplantation; Brazil; General Surgery; Equity.

Keywords
Transplantation; Brazil; General Surgery; Equity

INTRODUÇÃO

O procedimento inaugural de transplante de fígado foi realizado no Brasil em 1985, abrangendo uma extensa duração cirúrgica de aproximadamente 23 horas no renomado Hospital das Clínicas - SP11 Raia S, Nery J, Mies S. Liver Transplantation From Live Donors. The Lancet. 1989;334(8661):497. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(89)92101-6
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. Esse marco notável ocorreu 22 anos após o primeiro transplante de fígado do mundo, em 1963, realizado pelo talentoso médico Thomas Starzl e sua equipe competente em Denver, Estados Unidos22 Starzl TE, Marchioro TL, Porter KA, Brettschneider L. Homotransplantation Of The Liver. Transplantation. 1967;5(4):790-803. https://doi.org/10.1097/00007890-196707001-00003
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. Desde então, ocorreram rápidos avanços no domínio do transplante de fígado, estabelecendo-se progressivamente como a modalidade terapêutica por excelência para a insuficiência hepática crônica e aguda, independentemente de sua etiologia. Impressionantemente, o registro cumulativo de procedimentos de transplante de fígado realizados até o momento ultrapassa 80.00033 European Association for the Study of the Liver. Electronic address: easloffice@easloffice.eu. EASL Clinical Practice Guidelines: Liver transplantation. J Hepatol. 2016;64(2):433-485. https://doi.org/10.1016/j.jhep.2015.10.006
https://doi.org/10.1016/j.jhep.2015.10.0...
.

No entanto, disparidades evidentes na frequência de transplantes de fígado entre regiões geográficas divergentes têm sido amplamente relatadas em várias nações, incluindo Austrália, Espanha, Estados Unidos da América, França e outras33 European Association for the Study of the Liver. Electronic address: easloffice@easloffice.eu. EASL Clinical Practice Guidelines: Liver transplantation. J Hepatol. 2016;64(2):433-485. https://doi.org/10.1016/j.jhep.2015.10.006
https://doi.org/10.1016/j.jhep.2015.10.0...
. O Brasil, com sua grande extensão territorial, não está imune a esse fenômeno, o que intensifica a situação. Consequentemente, em 2006, o Brasil adotou uma estrutura abrangente para a ordenação das listas de espera para transplante de fígado, baseada no Modelo para Doença Hepática em Estágio Final (MELD) ou Modelo para Doenças Hepáticas Terminais, que também acomoda casos de circunstâncias excepcionais44 Marinho A, Cardoso S de S, Almeida VV de. Disparidades nas filas para transplantes de órgãos nos estados brasileiros. Cadernos de Saúde Pública. 2010;26(4):786-796. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2010000400020
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. No entanto, a intrincada interação dos determinantes sociais da saúde, notadamente abrangendo fatores socioeconômicos, diferenças regionais e nuances culturais, continua sendo uma barreira formidável, impedindo o acesso equitativo à esfera de intervenções cirúrgicas hepáticas seguras44 Marinho A, Cardoso S de S, Almeida VV de. Disparidades nas filas para transplantes de órgãos nos estados brasileiros. Cadernos de Saúde Pública. 2010;26(4):786-796. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2010000400020
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MÉTODOS

Projeto

Trata-se de um estudo transversal e descritivo, baseado em pesquisa de dados secundários, realizado por meio do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS)⁶: um órgão da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, com a responsabilidade de coletar, processar e disseminar informações de saúde. A lista de verificação do estudo transversal Strengthening the Reporting of Observational studies in Epidemiology (STROBE) foi aplicada para conduzir esta pesquisa. A tabulação e a análise adicionais foram feitas por meio do programa Microsoft Excel®.

Cenário

Foram coletadas informações sobre o local de residência do paciente (estados) no Brasil e o local de hospitalização durante a coleta de dados, atualizada em 10 de outubro de 2022. Trata-se de um estudo observacional, transversal e retrospectivo, utilizando dados do Sistema de Informações Hospitalares do Brasil (SIH), por meio do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS - TabNet). Os dados foram analisados de 2018 a 2022.

O cenário deste estudo foram regiões do Brasil: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e sudeste. No total, o Brasil tem 26 estados e um distrito federal. O período de recrutamento de dados foi até 10 de outubro de 2022. Até esse prazo, os dados só estavam disponíveis entre abril de 2018 a abril de 2022. Para acessar os dados sobre transplante de fígado conforme a região em que as cirurgias foram realizadas, mostra-se a Fig. 1.

Figura 1
Diagrama de fluxo mostrando o processo de busca e seleção de pacientes.

Participantes

Os dados selecionados para este estudo atenderam aos seguintes critérios, com base no princípio PICo: pessoas submetidas ao transplante de fígado no Brasil de 2018 a 2022 (P- População/Paciente/Problema); transplante de fígado (I- Interesse), regiões brasileiras (Co- Contexto). Para coletar dados referentes ao local de internação dos pacientes e local de residência habitual, os dados foram categorizados selecionando ‘’Procedimentos hospitalares’’, ‘’Região/Unidade da federação’’ e ‘’autorização de internação’’, para procedimentos de transplante de fígado (órgão de doador vivo e doador falecido) realizados entre abril de 2018 e abril de 2022. Os dados sociodemográficos dos pacientes submetidos ao transplante de fígado, como sexo, idade, gênero e etnia, não estavam disponíveis.

Variáveis

O transplante de fígado foi analisado minuciosamente por região geográfica e ano (2018-2022) e o número absoluto e por 100.000 habitantes de cirurgiões do aparelho digestivo em cada estado brasileiro, atualizado até 10 de outubro de 2022. Os autores ajustaram os seguintes possíveis fatores de confusão e covariáveis: impacto da pandemia de covid-19 na realização de cirurgias, diferença no número de habitantes, sexo, idade e raça do receptor.

Fontes de dados e medição

Para analisar a distribuição dos cirurgiões nas regiões brasileiras, o número de cirurgiões do aparelho digestivo em cada estado do Brasil foi verificado no site do Conselho Federal de Medicina. Para analisar o número de habitantes em cada região, foi seguido o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mais recente, de 2021. Todos os dados referentes aos 7332 transplantes de fígado foram incluídos nesta pesquisa. A análise estatística e a mensuração foram realizadas no PAST, versão 4.12.

Viés e tamanho do estudo

Para evitar viés de amostragem, decidiu-se usar dados absolutos e também a proporção para cada região brasileira. Por meio do DATASUS e dos critérios de inclusão, chegou-se a um total de 7.332 cirurgias de transplante de fígado.

Variáveis quantitativas e Métodos estatísticos

As variáveis quantitativas foram avaliadas por meio de médias e variância, usando o teste de Levene e o teste pareado de Tukey. A análise estatística e a medição foram realizadas com o software PAST (versão 4.12, Museu de História Natural, Universidade de Oslo, Noruega), a análise de variância foi realizada por ANOVA unidirecional e testes de comparações múltiplas de Tukey. Foi considerado um intervalo de confiança de 95%. As diferenças nos dados que atingiram p < 0,05 foram consideradas estatisticamente significativas.

Consentimento informado e aprovação ética

Neste estudo, foi realizada uma análise transversal utilizando procedimentos de dados elegíveis obtidos do banco de dados de acesso público DATASUS. Portanto, é importante observar que a exigência de consentimento informado e aprovação ética não foi aplicável. Vale a pena mencionar que o Ministério da Saúde fornece acesso abrangente aos dados de serviços de internação por meio do DATASUS, considerado de domínio público. Como resultado, as identidades dos pacientes permanecem protegidas, e qualquer pesquisa que utilize dados do DATASUS segue os padrões éticos e as aprovações regulatórias.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participantes

Um total de 7.332 procedimentos foi considerado nesta pesquisa com base nos critérios de inclusão, realizados no Brasil de abril de 2018 a abril de 2022.

Dados descritivos

Os dados sobre o perfil epidemiológico dos pacientes não estavam disponíveis no DATASUS. Por outro lado, no relatório de monitoramento de transplante de fígado de 2021 do Ministério da Saúde do Brasil⁶, há informações sobre a demografia dos receptores de órgãos. Com base nesse relatório, pode-se inferir que 12.687 pacientes foram submetidos ao transplante de fígado (TxH) de janeiro de 2000 a dezembro de 2014. O tempo médio de acompanhamento dos pacientes foi de 34,5 meses e a mediana foi de 20 meses. A maioria dos pacientes era do sexo masculino (65,4%), e o TxH foi realizado na região Sudeste do Brasil (57,0%). A maioria dos enxertos foi proveniente de doadores falecidos (90,0%), e cerca de 60,0% dos receptores tinham mais de 46 anos. Em sua maioria, os pacientes não tinham cor de pele registrada (85,2%). Entre os que tinham, a cor branca foi a mais prevalente (10,0%)66 Brazil. Procedimentos hospitalares do SUS. DATASUS. BRAZIL, 2021, Monitoring of liver transplant in Brazil: 2000-2015. Disponível em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sih/cnv/qiuf.def. Acesso em 12 Out. 2022.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
.

Dados e media dos resultados

Os 26 estados brasileiros, além do Distrito Federal, formam a República Federativa do Brasil. Geograficamente, o território é dividido em cinco grandes regiões: Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste77 Brazil. Divisão Territorial Brasileira | IBGE. www.ibge.gov.br. Disponível em https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/estrutura-territorial/23701-divisao-territorial-brasileira.html?=&t=acesso-ao-produto. Acesso em 23 Dez. 2022.
https://www.ibge.gov.br/geociencias/orga...
.

No Sistema Único de Saúde, as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, combinada com a atenção integral, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema88 LEI No 8.080, DE 19 DE SETEMBRO DE 1990.. Planalto.gov.br. Published 2019. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.html. Acesso em 20 Dez. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
.

Região Norte

Os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, em conjunto, acomodaram um total de 223 pacientes submetidos ao transplante de fígado com base em seu local de residência. Vale ressaltar que todos os estados da região tinham pacientes que precisavam de transplante de fígado. No entanto, é interessante observar que apenas 25 indivíduos (11,21%) foram hospitalizados na região norte para transplante de fígado. Surpreendentemente, a maioria, ou seja, 198 pacientes (88,79%), foi transferida para outras regiões do país para seus procedimentos cirúrgicos.

Região Nordeste

Composto por nove estados, chama a atenção que três deles (Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe), apesar de expressarem a necessidade de transplante hepático, permaneceram sem nenhum procedimento. No entanto, os estados próximos da região atenderam a essa demanda. A região nordeste registrou 1.360 procedimentos (95,30%) realizados em três estados: Bahia, Ceará e Pernambuco. Por outro lado, a demanda inicial desses estados - Bahia, Ceará e Pernambuco - foi de 1.063 (77,65%).

Região Centro-Oeste

No contexto da região Centro-Oeste, que engloba três estados, vale a pena mencionar que um total de 359 pacientes apresentou uma necessidade urgente de transplante de fígado. Lamentavelmente, a execução desses procedimentos foi limitada a apenas 275 casos, resultando na necessidade de transferência de 84 pacientes para outros estados. Notavelmente, uma única cidade, o Distrito Federal, assumiu uma responsabilidade louvável ao realizar 244 desses transplantes, representando uma maioria substancial de 88,72% na região.

Regiões Sul e Sudeste

As regiões Sul e Sudeste realizaram um número maior de transplantes de fígado do que a demanda da própria região. Pode-se inferir, então, que ambas as regiões foram capazes de atender toda a sua população e também pacientes não residentes, suprindo a demanda das regiões vizinhas.

Na Tabela 1, é possível ver a distribuição dos pacientes candidatos a transplante de fígado separados por região. E na Tabela 2 a distribuição dos cirurgiões do aparelho digestivo no país.

Tabela 1
Distribuição de pacientes e internações para transplante de fígado por unidade federativa entre abril de 2018 e abril de 2022.
Tabela 2
Distribuição dos Cirurgiões do Trato Digestivo por Unidade da Federação.

Quantidade média de procedimentos por 100.000 habitantes entre 2018 e 2022. Região Sudeste: 3,99, Região Centro-Oeste: 1,64, Região Sul: 6,65, Região Norte: 0,13, Região Nordeste: 2,47.

Análise estatística

A análise estatística foi realizada no PAST, versão 4.12. A significância estatística foi definida como p < 0,05. Por ANOVA de uma via: Região Sudeste: Média= 895,5, S²= 79,175. Região Centro-Oeste: Média = 68,75, S²=13.863,58. Região Sul: Média=674,3333, S²104.169,3. Região Norte: Média= 3,571429, S²= 89,28. Região Nordeste: Média = 158,5556, S² = 70.400,28.

Fator de Bayes: 3.724 evidências substanciais para médias desiguais Welch. Teste F no caso de variâncias desiguais: F=2,31, DF=6,21, p=0,1686, Teste de Levene para homogeneidade de variância, a partir de médias p (iguais): 0,002084, Teste de Levene, a partir das medianas p (igual): 0,09242. Soma dos quadrados entre os grupos: 2,30765E06, p (o mesmo)= 0,01318.

No teste de Tukey pareado: Houve diferenças significativas na comparação: Centro-Oeste e Sudeste p=0,03806, Norte e Sudeste p=0,008449, e entre Nordeste e Sudeste p= 0,0274.

Considera-se importante este estudo porque foi possível perceber que, embora os transplantes de fígado sejam realizados em níveis satisfatórios, as disparidades regionais permanecem. Além desses principais achados, apesar de ter a menor densidade de mão de obra cirúrgica do país por 100 mil habitantes, conforme a Tabela 2, a região Nordeste apresentou uma média de procedimentos por 100 mil habitantes, superior à média apresentada na região Norte. Isso indica que a disparidade não é motivada apenas pela ausência de profissionais.

O ponto-chave de nosso trabalho é que, apesar da existência de um sistema nacional de saúde, as variações regionais são um dos principais contribuintes para as desigualdades em saúde no país. Registros semelhantes1414 Jameson JL, Fauci AS, Kasper DL, Hauser SL, Longo DL, Loscalzo J. Medicina Interna de Harrison - 2 Volumes - 20.Ed. McGraw Hill Brasil já mostraram que foram identificadas 153 unidades de transplante em 2017, sendo que apenas 11,8% estavam localizadas nas regiões Norte e Centro-Oeste. Durante o período do estudo, foram realizados 99.805 transplantes, variando de 3.520 em 2001 a 8.669 em 2017. O maior número de transplantes se concentrou nas regiões Sul e Sudeste.

Por exemplo, a região Sudeste foi a que mais realizou transplantes de fígado, conforme a Tabela 1. Segundo a mesma Tabela, a região Sudeste realizou 60,16% mais transplantes em números absolutos do que a região Nordeste, uma das mais pobres do país, durante o período avaliado. Isso pode estar relacionado ao fato de que os transplantes de fígado são procedimentos de alto risco e alto custo que exigem estruturas de saúde sólidas99 Soares LSDS, Brito ES, Magedanz L, França FA, Araújo WN, Galato D. Solid organ transplantation in Brazil: a descriptive study of distribution and access inequalities across the Brazilian territory, 2001-2017. Transplantes de órgãos sólidos no Brasil: estudo descritivo sobre desigualdades na distribuição e acesso no território brasileiro, 2001-2017. Epidemiol Serv Saude. 2020;29(1):e2018512. https://doi.org/10.5123/S1679-49742020000100014
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, o que sugere que as diferenças observadas entre essas duas regiões podem ser devidas a fatores econômicos e sociais.

O registro nacional para transplantes de fígado e outros órgãos é um registro único. Entretanto, a distribuição dos órgãos doados por morte encefálica é, inicialmente, estadual e, posteriormente, dentro das macrorregiões estabelecidas na Portaria n.º 2.600 do Ministério da Saúde, de 21 de outubro de 200999 Soares LSDS, Brito ES, Magedanz L, França FA, Araújo WN, Galato D. Solid organ transplantation in Brazil: a descriptive study of distribution and access inequalities across the Brazilian territory, 2001-2017. Transplantes de órgãos sólidos no Brasil: estudo descritivo sobre desigualdades na distribuição e acesso no território brasileiro, 2001-2017. Epidemiol Serv Saude. 2020;29(1):e2018512. https://doi.org/10.5123/S1679-49742020000100014
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. Esse fato pode contribuir para a manutenção de disparidades no transplante de fígado no Brasil, dado o desequilíbrio entre a demanda e a disponibilidade de órgãos viáveis nas diferentes localidades brasileiras1010 Melki CR, Fernandes JLR e, Lima AS. Critério Meld na Fila de Transplantes: Impacto na Mortalidade Geral e por Grupos Diagnósticos. Brazilian Journal of Transplantation. 2022; 25(2). Disponível em https://bjt.emnuvens.com.br/revista/article/view/454. Acesso em 11 Dez. 2022.
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.

Diante da realidade apresentada, devido à desigualdade na distribuição de cirurgiões do aparelho digestivo no Brasil e à falta de estrutura para a realização de cirurgias de transplante hepático em muitos estados e regiões, o tempo entre o diagnóstico da necessidade de realização de um transplante e a execução do evento se torna muito amplo, dada a necessidade de deslocamento para outro estado ou região para a realização da cirurgia de transplante¹¹, nesse contexto, os pacientes usuários do Sistema Único de Saúde, muitas vezes, precisam se deslocar interestadual ou inter-regionalmente para poderem se submeter a uma cirurgia modificadora de mortalidade (Tabela 1). Com isso, os pacientes, que têm muitas vezes condições financeiras limitadas, precisam custear o deslocamento para outro estado e a sua estadia e a do acompanhante pelo tempo que for necessário1212 Victorino JP, Ventura CAA. Bioética e Biodireito: da Doação ao Transplante de Órgãos. Brazilian Journal of Forensic Sciences, Medical Law and Bioethics. 2016;6(1):72-83. https://doi.org/10.17063/bjfs6(1)y201672
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.

Além disso, considerando que a equipe médica responsável por diagnosticar e traçar o curso do tratamento a ser seguido difere da equipe que realizará a cirurgia, muitas vezes, são necessários novos exames e consultas pré e pós-operatórias, o que aumenta o tempo de permanência do paciente em outro estado e, consequentemente, o custo financeiro para o próprio paciente1313 Machado EL. Determinantes sociais do acesso ao transplante renal no Brasil e em Belo Horizonte/MG. repositorioufmgbr. Disponível em https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-ADBQ6S. Acesso em 2 Jun. 2023.
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. Sabe-se que há necessidade de estudos focados na avaliação desses custos para esclarecer o impacto financeiro na disparidade do transplante hepático.

Limitações

Este artigo é limitado, principalmente no que diz respeito à falta de dados demográficos por meio do DATASUS. Sabe-se também que, devido aos dados sobre transplantes estarem atualizados somente até abril de 2022, isso pode configurar um viés de notificação e a consequente distorção dos dados devido à subnotificação ou erro de notificação, que é mais comum nas regiões Norte e Nordeste do Brasil do que em outras regiões1313 Machado EL. Determinantes sociais do acesso ao transplante renal no Brasil e em Belo Horizonte/MG. repositorioufmgbr. Disponível em https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-ADBQ6S. Acesso em 2 Jun. 2023.
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, que foi mitigado por meio de cálculos estatísticos, o sistema pelo qual acessamos os dados é aberto para pesquisa por qualquer indivíduo e é constantemente atualizado. É importante que mais estudos relacionados às disparidades de transplantes no Brasil sejam realizados, inclusive, para avaliar o nível de representatividade dessas cirurgias durante o ano de 2020 devido à pandemia da COVID-19.

Apesar das limitações, os dados fornecidos são importantes. O acesso e o número de cirurgiões associados aos transplantes de fígado foram descritos pela primeira vez no país, e os resultados deste estudo têm implicações significativas para a melhoria do sistema de saúde pública, em geral.

CONCLUSÃO

Com base no que foi exposto, fica evidente que, no Brasil, a universalidade da realização de transplantes hepáticos entre as Regiões do país ainda é um desafio substancial. A grande extensão territorial e a falta de capacidade técnica, profissional e estrutural dos hospitais resultaram em uma grande concentração de transplantes nas principais regiões, como Sul e Sudeste, enquanto outros estados, mesmo com demanda, não conseguem ser atendidos em sua região de origem.

O Brasil deve aprimorar seu sistema de medição de resultados de transplantes de órgãos para obter dados mais abrangentes e comparáveis para comparações internacionais. As estimativas atuais que usam proporções padrão ignoram as diferenças regionais na carga da doença. Uma melhor coleta de dados epidemiológicos pode informar os planejadores de serviços de saúde, e a divulgação pública dos gastos com saúde em subserviços é vital para avaliações acadêmicas. É fundamental abordar o descompasso histórico do financiamento da saúde com a carga de doenças no Brasil1414 Jameson JL, Fauci AS, Kasper DL, Hauser SL, Longo DL, Loscalzo J. Medicina Interna de Harrison - 2 Volumes - 20.Ed. McGraw Hill Brasil,1515 Gómez EJ, Jungmann S, Lima AS. Resource allocations and disparities in the Brazilian health care system: insights from organ transplantation services. BMC Health Serv Res. 2018;18(1):90. https://doi.org/10.1186/s12913-018-2851-1
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Aumentar a confiança do público nos serviços de saúde por meio de campanhas de conscientização e treinamento de solicitação de doação precoce durante a graduação poderia beneficiar o sistema de transplante.

Além disso, há uma oportunidade para o Brasil inovar ao regionalizar os serviços de transplante, especialmente, nas avaliações de acompanhamento pré e pós-operatório. Alguns departamentos já são pioneiros em projetos de telessaúde para oferecer atendimento médico especializado em áreas remotas1515 Gómez EJ, Jungmann S, Lima AS. Resource allocations and disparities in the Brazilian health care system: insights from organ transplantation services. BMC Health Serv Res. 2018;18(1):90. https://doi.org/10.1186/s12913-018-2851-1
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Para que todos recebam um transplante de fígado seguro, econômico e oportuno, e para evitar que sua localização geográfica seja uma barreira ao seu acesso à saúde, é fundamental que os procedimentos cirúrgicos sejam um componente central dos planos de transplante globais e nacionais.

AGRADECIMENTOS

Estendemos nossa sincera gratidão à Associação de Mulheres Cirurgiãs por seu apoio inestimável durante o desenvolvimento deste artigo. Agradecimentos especiais à Dra. Isabella Faria por suas discussões esclarecedoras e orientações sobre o assunto. Suas contribuições foram fundamentais para melhorar a qualidade deste trabalho.

  • Como citar: Vieira LVS, Reis JF, Leitão EL, França BNA, Gomes MBV, Salvador SD, Silva ROS. Análise do Acesso ao Transplante de Fígado nas Diferentes Regiões Brasileiras de 2018 a 2022: Um Estudo Transversal. BJT. 2023.26 (01):e4023. https://doi.org/10.53855/bjt.v26i1.523_PORT
  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Os dados serão fornecidos mediante solicitação.

REFERÊNCIAS

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    Starzl TE, Marchioro TL, Porter KA, Brettschneider L. Homotransplantation Of The Liver. Transplantation. 1967;5(4):790-803. https://doi.org/10.1097/00007890-196707001-00003
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    European Association for the Study of the Liver. Electronic address: easloffice@easloffice.eu. EASL Clinical Practice Guidelines: Liver transplantation. J Hepatol 2016;64(2):433-485. https://doi.org/10.1016/j.jhep.2015.10.006
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Editado por

Editora de seção: llka de Fátima Santana F Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    04 Dez 2023
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