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Tonometria Gastrointestinal no Perioperatório do Transplante Hepático: Uma Revisão Integrativa

RESUMO

Introdução:

A tonometria gástrica é uma ferramenta útil para examinar a perfusão esplâncnica regional por permitir o fornecimento de uma avaliação indireta do estado do enxerto hepático. Isso ocorre devido à hipoperfusão esplâncnica ser um parâmetro crítico no contexto do transplante de fígado, estando associada ao desenvolvimento de problemas como insuficiência hepática aguda e falência de múltiplos órgãos.

Objetivo:

Analisar os efeitos da tonometria gastrointestinal no perioperatório dos pacientes submetidos ao transplante hepático.

Metodologia:

Trata-se de uma Revisão Integrativa realizada nas bases de dados PubMed e BVS. Foram utilizados os descritores: “Tonometry”, “Splanchnic circulation” e “Liver transplantation”, incluindo o operador booleano “AND”, e selecionados artigos de relevância para o tema. Foram selecionados inicialmente 24 artigos, todos publicados nos últimos 20 anos, em português e/ou inglês. Após análise, seis artigos corresponderam ao objetivo proposto.

Resultado:

Observou-se que a diferença entre a PraCO2 no final da cirurgia e na fase anepática foi maior em pacientes sem disfunção do enxerto hepático. Foi identificada uma correlação positiva entre ΔpraCO2 e o pico de ALT após o transplante de fígado. Em outro estudo, verificou-se que a presença de enzimas hepáticas elevadas e a piora da função hepática sintética, coagulopatia e encefalopatia estava relacionada à má função do enxerto. Também foi comprovado que o pH gástrico intramucoso pode predizer a funcionalidade precoce do enxerto. Em um grupo com disfunção hepática, os pacientes apresentaram pH gástrico intramucoso abaixo de 7,3 no período perioperatório, mantendo-se baixo até a 24ª hora pós-operatória, enquanto o grupo sem disfunção apresentou pH gástrico intramucoso acima de 7,3, exceto na fase anepática, quando ficou abaixo desse valor.

Conclusão:

Descreve-se a utilidade da tonometria gastrointestinal para monitorar a circulação esplâncnica e a função do enxerto hepático durante o transplante hepático. Embora alguns estudos ofereçam suporte a essa afirmação, esta revisão apresenta limitações devido à quantidade restrita de artigos disponíveis, o que a impede de abranger uma ampla gama de evidências científicas.

Descritores
Tonometria; Circulação esplâncnica; Transplante de fígado

ABSTRACT

Introduction:

Gastric tonometry is a useful tool for examining regional splanchnic perfusion as it provides an indirect assessment of the state of the liver graft. This is because splanchnic hypoperfusion is a critical parameter in the context of liver transplantation, being associated with the development of problems such as acute liver failure and multiple organ failure.

Objective:

To analyze the effects of gastrointestinal tonometry in the perioperative period of patients undergoing liver transplantation.

Methodology

This is an Integrative Review using the PubMed and VHL databases. The following descriptors were used: “Tonometry”, “Splanchnic circulation” and “Liver transplantation” with the Boolean operator “AND”, and articles of relevance to the topic were selected. Initially, 24 articles were selected, all published in the last 20 years, in Portuguese and/or English. After analysis, 6 articles matched the proposed objective.

Results:

It was observed that the difference between PraCO2 at the end of surgery and in the anepathic phase was greater in patients without liver graft dysfunction. A positive correlation was found between ΔpraCO2 and peak ALT after liver transplantation. In another study, it was found that the relationship between poor graft function was the presence of elevated liver enzymes, worsening synthetic liver function, coagulopathy and encephalopathy. It has also been shown that intramucosal gastric pH can predict early graft function. In a group with liver dysfunction, patients had an intramucosal gastric pH of less than 7.3 in the perioperative period, which remained low until the 24th hour postoperatively, while the group without dysfunction had an intramucosal gastric pH of more than 7.3, except in the anepathic phase when it was below this value.

Conclusion:

The usefulness of gastrointestinal tonometry to monitor splanchnic circulation and liver graft function during liver transplantation has been described and although support for this statement was found in some studies, this review had limitations due to the small number of articles available, which prevents it from covering a wide range of scientific evidence.

Descriptors
Tonometry; Splanchnic circulation; Liver transplantation

INTRODUÇÃO

A hipoperfusão esplâncnica é um parâmetro crítico no contexto do transplante de fígado (TxF) por estar associada ao desenvolvimento de problemas como disfunção grave do enxerto e falência de múltiplos órgãos (FMO). Com isso, a tonometria gástrica é um dispositivo útil para examinar a perfusão esplâncnica regional por possibilitar o fornecimento de uma avaliação indireta do estado do enxerto hepático11 Perilli V, Aceto P, Modesti C, Vitale F, Ciocchetti P, Sacco T, et al. Prediction of poor graft function by means of gastric tonometry in patients undergoing liver transplantation. Ann Hepatol. 2014 jan;13(1):54-9. https://doi.org/10.1016/S1665-2681(19)30904-4
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. O pH gástrico intramural (pHi) é o parâmetro mais utilizado entre os tonométricos, enquanto o gradiente regional-arterial de CO2 (PraCO2) tem se mostrado mais sensível e confiável na detecção de hipoperfusão esplâncnica11 Perilli V, Aceto P, Modesti C, Vitale F, Ciocchetti P, Sacco T, et al. Prediction of poor graft function by means of gastric tonometry in patients undergoing liver transplantation. Ann Hepatol. 2014 jan;13(1):54-9. https://doi.org/10.1016/S1665-2681(19)30904-4
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.

Após o TxF, a estimativa precoce e rápida da função do enxerto é importante para estabelecer o diagnóstico de falência ou não funcionamento inicial do enxerto, permitindo reavaliar a técnica operatória ou contribuir para a indicação de retransplante. Isso pode ser realizado por meio da mensuração contínua do pH intramucoso com o tonômetro de ar que mede automaticamente a pressão regional de CO2 (PrCO2) do estômago e da mucosa intestinal22 Mándli T, Gondos T. Intramucosal pH monitoring during liver transplantation. Clin Transplant. 2003;17(4):358-62. https://doi.org/10.1034/j.1399-0012.2003.00059.x
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. Esse instrumento funciona como uma monitorização simples e não invasiva da região esplâncnica, possibilitando avaliar o fornecimento de O2 e o balanço energético das células com a mensuração do CO2 tecidual e as mudanças de níveis22 Mándli T, Gondos T. Intramucosal pH monitoring during liver transplantation. Clin Transplant. 2003;17(4):358-62. https://doi.org/10.1034/j.1399-0012.2003.00059.x
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. Os resultados obtidos a partir dessa técnica refletem o metabolismo da mucosa intestinal, que por sua vez é bastante sensível à hipóxia e à perfusão.

Postula-se que a oxigenação inadequada dos tecidos ocorra durante o transplante na mucosa intestinal por ser altamente suscetível à redução do fluxo sanguíneo33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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. Esse fato pode ser mais relevante durante a fase anepática, quando se faz necessário o clampeamento da veia porta para a hepatectomia do receptor. Uma perfusão intestinal deficiente pode induzir a disfunção da barreira mucosa e a translocação de bactérias e endotoxinas para as circulações sistêmica e linfática33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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. No transplante ortotópico de fígado (TOF), registrou-se a ocorrência de endotoxemia durante o procedimento, sendo as concentrações mais elevadas medidas no final da fase anepática, antes da reperfusão do enxerto33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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. Além disso, verificou-se que o nível de endotoxemia correlaciona-se com os resultados pós-operatórios dos doentes33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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Na fase anepática do TOF, ocorre o clampeamento da veia porta, da veia cava inferior supra-hepática e da veia cava inferior infra-hepática, resultando em congestão venosa gastrointestinal e nos membros inferiores44 Rønholm E, Runeborg J, Karlsen KL, Tomasdottir H, Aneman A, Bengtsson A. Perioperative gastric tonometric PCO2 and intramucosal pH in patients undergoing liver transplantation. Acta Anaesthesiol Scand. 1999 Aug;43(7):695-701. https://doi.org/10.1034/j.1399-6576.1999.430702.x
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. A partir disso, para evitar os efeitos deletérios do clampeamento portal na perfusão intestinal e para limitar a progressão da hipóxia tecidual, foi sugerido o bypass veno-venoso (VVB), que drena o sangue portal para a veia cava superior33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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. Contudo, a oxigenação da mucosa não foi adequadamente avaliada durante o TxH e, devido a isso, não se sabe se a isquemia da mucosa está relacionada com o procedimento, com a endotoxemia ou se a utilização da VVB preserva, de fato, a oxigenação da mucosa33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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. A partir disso, sugere-se que o pHi seja um marcador sensível da diminuição do fluxo sanguíneo intestinal e do fornecimento deficitário de oxigênio à mucosa.

A viabilidade dos enxertos no TOF é determinada por meio de testes metabólicos do fígado, os quais levam muitas horas para serem avaliados. Por esse motivo, esses testes só se tornam conclusivos na maioria dos pacientes no período pós-operatório. Contudo, outros indicadores podem ser utilizados, como a isquemia da mucosa gastrointestinal, que é uma das primeiras manifestações de comprometimento em pacientes gravemente enfermos55 Frenette L, Doblar DD, Singer D, Cox J, Ronderos J, Poplawski S, et al. Gastric intramural pH as an indicator of early allograft viability in orthotopic liver transplantation. Transplantation. 1994 aug 15;58(3):292.. Isso pode ser medido por meio da acidose do tecido gastrointestinal pelo tonomitor, um cateter nasogástrico que combina um tonômetro para a determinação indireta do pHi com um reservatório gástrico55 Frenette L, Doblar DD, Singer D, Cox J, Ronderos J, Poplawski S, et al. Gastric intramural pH as an indicator of early allograft viability in orthotopic liver transplantation. Transplantation. 1994 aug 15;58(3):292.. Essa ferramenta é considerada um indicador precoce de redução no fornecimento de O2, desequilíbrio metabólico e oxigenação tecidual.

Dessa forma, no TxH, a tonometria gastrointestinal com o cálculo de pHi tem sido utilizada como indicador de hipoperfusão esplâncnica, e a presença de acidose intramucosa tem sido correlacionada com o aumento da incidência de sepse, disfunção renal e do enxerto hepático. Assim, este estudo tem como objetivo analisar a literatura disponível sobre a utilização da tonometria gastrointestinal no perioperatório do TxH, evidenciando os benefícios resultantes do emprego de tal técnica.

METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão integrativa de literatura construída a partir dos seguintes passos: 1) Identificação do tema e elaboração da questão de pesquisa; 2) Estabelecimento de critérios para inclusão e exclusão de estudos; 3) Definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados; 4) Análise crítica dos estudos incluídos a partir dos níveis de evidência; 5) Discussão dos resultados; e 6) Apresentação da revisão integrativa66 Souza MT de, Silva MD da, Carvalho R de. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein São Paulo. 2010 mar;8:102-6. https://doi.org/10.1590/s1679-45082010rw1134
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Em vista disso, a revisão foi formulada de acordo com a estratégia PICO, que representa um acrônimo para Patient (Pessoa/Problema), Intervention (Intervenção), Comparison (Comparação) e Outcomes (Resultados), sendo a pergunta norteadora. Dessa maneira, a seguinte questão de pesquisa foi desenvolvida: quais são os benefícios da utilização da tonometria gastrointestinal no perioperatório de pacientes submetidos ao TxH?

A busca bibliográfica foi realizada de forma sistematizada nos seguintes bancos de dados: PubMed, Web Of Science e Biblioteca Virtual de Saúde (BVS). Na última, foram encontrados apenas artigos científicos da Medline. Os descritores utilizados foram validados pelo Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), sendo eles: “Tonometry”, “Splanchnic circulation” e “Liver transplantation”. Os descritores foram permutados pelo operador booleano “AND”, não havendo restrição de lapso temporal. A escolha dos descritores em inglês se deve ao funcionamento das bases de dados, uma vez que a maioria dos artigos indexados estão disponíveis na língua inglesa. Isso evita que a busca com os descritores em português restrinja os resultados apenas aos artigos que disponibilizam versões em português e inglês.

Nos três bancos de dados os descritores foram utilizados e as buscas foram ampliadas para todos os campos, resultando 8, 8 e 2 artigos, respectivamente. Ao final, foram totalizados 18 artigos.

Para a seleção sistematizada dos artigos, foi utilizada a ferramenta Rayyan – Intelligent Systematic Review, seguindo a estratégia de busca do PRISMA Statement 2020, de acordo com as diretrizes CARE Guidelines do Equator Network para Revisões Sistemática, conforme demonstrado na Fig. 177 Page MJ, McKenzie JE, Bossuyt PM, Boutron I, Hoffmann TC, Mulrow CD, et al. The PRISMA 2020 statement: an updated guideline for reporting systematic reviews. BMJ. 2021 Mar 29;372:n71. https://doi.org/10.1136/bmj.n71
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Figura 1
Triagem de artigos utilizando o fluxograma do PRISMA Statement 2020 para revisões sistemáticas.

Na triagem dos artigos, foram aplicados critérios de screening (inclusão e exclusão), sendo excluídos os artigos duplicados, aqueles que não se enquadravam nos tipos de publicação aceitos em revisão integrativa e os que não abordavam o foco da pesquisa sobre a utilização da tonometria gastrointestinal no perioperatório do TxH. Com isso, a prioridade da busca foi direcionada exclusivamente a artigos científicos que descrevessem a visão geral sobre o uso da tonometria gastrointestinal no TxF, o manejo da tonometria gastrointestinal na predição precoce da viabilidade do enxerto hepático e possíveis críticas à utilização da tonometria gastrointestinal para o monitoramento da perfusão esplâncnica.

Os artigos que se enquadraram na temática foram analisados e classificados de acordo com os níveis de evidência, os quais dependem da abordagem metodológica adotada e representam a qualidade da evidência científica66 Souza MT de, Silva MD da, Carvalho R de. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein São Paulo. 2010 mar;8:102-6. https://doi.org/10.1590/s1679-45082010rw1134
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. Neste estudo, todos os artigos foram categorizados no nível 2, indicando estudos do tipo retrospectivos e prospectivos. Os resultados foram descritos na Tabela 1.

Tabela 1
Resumo dos estudos incluídos na revisão integrativa.

RESULTADOS

A partir dos estudos encontrados, foi possível analisar o impacto da utilização da tonometria gastrointestinal no TOF. Em um estudo, a tonometria gástrica foi utilizada juntamente com a medição do PraCO2, a gasometria arterial, o monitoramento hemodinâmico por meio da pressão arterial média (PAM), da frequência cardíaca (FC) e do monóxido de carbono (CO) e metabólico pela saturação venosa central de oxigênio (SvCO2) e o lactato durante as cirurgias de todos os pacientes submetidos ao TxH. Foram analisados dois momentos: o final da fase anepática (T1) e o final da cirurgia (T2). A diferença entre a PraCO2 no final da cirurgia e na fase anepática (ΔpraCO2) foi utilizada como variável dependente para avaliar o efeito da recuperação do enxerto. Foi relatado que 22% dos pacientes apresentaram má função do enxerto, enquanto 76% tiveram uma boa recuperação do mesmo. Não houve diferença entre os dois grupos quanto às características pré-operatórias. Também não houve diferenças significativas para PAM, FC, saturação venosa de oxigênio (SvO2), CO e lactato em pacientes com e sem má função do enxerto. A ΔpraCO2 entre T2 e T1 foi significativa; o teste demonstrou que houve um efeito de má função do enxerto para ΔpraCO2. Um teste pareado intragrupo de PraCO2 em T1 versus T2 mostrou uma diferença significativa em pacientes sem função deficiente do enxerto e sem diferenças em pacientes com má função do enxerto. Além disso, também foi encontrada correlação positiva entre ΔpraCO2 e o pico de ALT após o TxF11 Perilli V, Aceto P, Modesti C, Vitale F, Ciocchetti P, Sacco T, et al. Prediction of poor graft function by means of gastric tonometry in patients undergoing liver transplantation. Ann Hepatol. 2014 jan;13(1):54-9. https://doi.org/10.1016/S1665-2681(19)30904-4
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Em outro estudo, foram examinados 45 pacientes submetidos ao TxH. Os pacientes foram distribuídos retrospectivamente em dois grupos de acordo com a função precoce do enxerto. No grupo 1, com 28 pacientes, foi encontrada uma função adequada do enxerto no pós-operatório, enquanto no Grupo 2, com 17 indivíduos, foi comprovada uma deterioração precoce da função do enxerto. Os critérios para má função do enxerto incluíram a presença de enzimas hepáticas elevadas, piora da função hepática sintética, coagulopatia e encefalopatia. Não houve diferenças significativas entre os dois grupos quanto às características pré-operatórias, e as doenças subjacentes eram semelhantes. A terapia de reposição de glóbulos vermelhos e plasma fresco congelado durante a operação foi significativamente maior no Grupo 2. O tempo do procedimento cirúrgico foi significativamente maior no Grupo 1 se comparado ao Grupo 2. Na fase pós-operatória, o tempo de ventilação mecânica, os dias de internamento na UTI e a mortalidade mostraram-se valores piores no Grupo 2 em comparação com o Grupo 122 Mándli T, Gondos T. Intramucosal pH monitoring during liver transplantation. Clin Transplant. 2003;17(4):358-62. https://doi.org/10.1034/j.1399-0012.2003.00059.x
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No Grupo 1, o valor do pHi permaneceu acima de 7,3, exceto na fase anepática, quando ficou abaixo desse valor. O pior valor de pHi nesse grupo foi de 7,0, e a pressão regional de CO2 da mucosa (PrCO2) foi de 70 mmHg. No Grupo 2, os valores de pHi medidos ficaram principalmente abaixo de 7,3 durante o período perioperatório e permaneceram baixos até a 24ª hora do pós-operatório. O valor mais baixo de pHi foi 6,6, e o de PrCO2 foi 97 mmHg. As diferenças foram altamente significativas entre o Grupo 1 e o Grupo 2 desde o início da operação até a 36ª hora do pós-operatório, tanto no pHi quanto na PrCO2. A PrCO2 estava próxima de 40 mmHg no Grupo 1, mas ultrapassou 50 mmHg no Grupo 2 durante a fase anepática22 Mándli T, Gondos T. Intramucosal pH monitoring during liver transplantation. Clin Transplant. 2003;17(4):358-62. https://doi.org/10.1034/j.1399-0012.2003.00059.x
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Ainda no estudo anterior, os valores de débito cardíaco (DC) e pressão arterial média (PAM) foram inferiores no Grupo 2 em comparação com o Grupo 1. A oferta de oxigênio (DO2) apresentou alterações paralelas no período examinado, com valores significativamente maiores no Grupo 1 no início da operação. As mudanças nos valores de consumo de oxigênio (VO2) foram semelhantes em ambos os grupos, com valores significativamente maiores no Grupo 1 após a fase de reperfusão. O excesso de base (BE) apresentou diferença maior no Grupo 2, mas após o término da operação, a diferença foi se igualando. Essa discrepância foi significativa desde a fase anepática até a 1ª hora do pós-operatório. Foram encontradas diferenças importantes nos valores de bilirrubina sérica a partir do 4º dia de pós-operatório22 Mándli T, Gondos T. Intramucosal pH monitoring during liver transplantation. Clin Transplant. 2003;17(4):358-62. https://doi.org/10.1034/j.1399-0012.2003.00059.x
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Em outra pesquisa, foram analisados seis pacientes submetidos à ressecção hepática e 18 TOF realizados em 16 pacientes adultos. As variáveis hemodinâmicas e de oxigenação mantiveram-se inalteradas durante toda a cirurgia. Embora o pHi tenha diminuído ligeiramente em todos os pacientes após a laparotomia, não foram observados efeitos significativos do tempo no pH arterial e no pH gástrico. Nos dois doentes em que o fluxo de sangue portal foi interrompido transitoriamente pelo clampeamento do ligamento hepatoduodenal, o pH diminuiu instantaneamente. O valor mais baixo de pHi foi de 6,95, encontrado no doente com o tempo de clampeamento mais longo, 63 minutos. Após a liberação do clampeamento portal, o pH retornou à faixa de valores basais e não diferiu do pH nos pacientes sem clampeamento portal ao final do procedimento. Em dois pacientes, o retransplante foi realizado 4 e 51 dias após o primeiro transplante devido à não função primária do enxerto e rejeição crônica, respectivamente. As variáveis hemodinâmicas centrais e o índice DO2 mantiveram-se essencialmente inalterados durante todo o período perioperatório. A PAM diminuiu ligeiramente durante as fases anepática e neo-hepática, sendo mais baixa no final em comparação com o início da cirurgia. O índice de VO2 foi baixo durante o TOH e aumentou após a admissão na UTI. A concentração venosa mista de lactato aumentou continuamente durante o transplante, atingindo o pico após a reperfusão do enxerto, e diminuiu para os valores basais 30 horas após a admissão na UTI. A SVO2 permaneceu constante em um nível alto de 87% durante o TOF e começou a diminuir após a operação, atingindo o valor mais baixo 30 horas após a admissão na UTI. O pH arterial diminuiu significativamente de 7,39 no início do TOF para 7,32 durante a VVB. Após a reperfusão do enxerto, o pH arterial permaneceu abaixo dos valores basais e recuperou valores normais após a admissão na UTI33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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O pHi diminuiu significativamente dos valores basais de 7,28 para 7,19 durante a VVB e permaneceu abaixo durante a fase anepática. Após a reperfusão do enxerto, o pH aumentou em 30 minutos e não divergiu dos valores basais ao final do TOF. Após a operação, o pHi aumentou ainda mais, atingindo os valores mais altos 18 e 30 horas após a admissão na UTI. O curso intraoperatório do pH da região do cólon sigmóide (pHs) mostrou o mesmo padrão do pHi, sendo que os valores mais baixos foram medidos durante a VVB, e o pHs, no final da cirurgia, não divergiu do valor basal. A função hepática pós-operatória, avaliada pela atividade plasmática do fator V e pelo tempo de protrombina, e o grau de dano hepatocelular, avaliado pela ALT sérica, não se correlacionam com o pH após a reperfusão do enxerto ou no final da cirurgia33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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Em outro estudo, realizado com 35 pacientes submetidos ao TOF, o pHi médio no período pré-anepático (P1) e na fase anepática (P2) foi o seguinte: P1 aos 60 minutos, 7,34; P1 aos 120 minutos, 7,32; P2 aos 30 minutos, 7,30; e P2 aos 90 minutos, 7,30. Para a medição do pHi 30 minutos após a reperfusão durante o período neo-hepático (P3), os pacientes foram divididos em dois grupos diferentes. Um pHi inferior a 7,30 foi definido como anormal. Pacientes com pHi igual ou superior a 7,30 foram alocados no Grupo 1, sendo 24 pacientes. Pacientes com pHi inferior a 7,30 foram designados para o Grupo 2, contando com 11 pacientes. O pHi no Grupo 1 durante o P3, 30 minutos após a reperfusão, foi maior quando comparado ao Grupo 2. O pHi aos 90 minutos foi, em média, de 7,38; em 120 minutos, foi de 7,38; e em 180 minutos, foi de 7,38. 24 pacientes do Grupo 1 apresentaram pHi normal 30 minutos após a reperfusão e durante toda a cirurgia. Os 11 pacientes do Grupo 2 apresentaram pHi alterado 30 minutos após a reperfusão. O pHi em dez pacientes voltou ao normal dentro de 3 horas após a reperfusão, mas o pHi em 1 paciente permaneceu inferior a 7,30 e não normalizou. Posteriormente, esse paciente foi submetido ao retransplante no dia seguinte55 Frenette L, Doblar DD, Singer D, Cox J, Ronderos J, Poplawski S, et al. Gastric intramural pH as an indicator of early allograft viability in orthotopic liver transplantation. Transplantation. 1994 aug 15;58(3):292..

Em um estudo envolvendo nove pacientes submetidos ao TOF, a pressão de dióxido de carbono (PCO₂) arterial variou de 4,7 kPa a 5,6 kPa, sendo os valores mais elevados observados 2 min e 10 min após a reperfusão. A pressão tonométrica do monóxido de carbono (PCO) foi caracterizada por um aumento de 4,6 kPa no pré-operatório, chegando a 5,6 kPa durante a fase de dissecção e 5,5 kPa durante a fase anepática. Esse aumento significativo na PCO tonométrica persistiu ao longo do restante do período de medição. O gradiente tonométrico-arterial da PCO aumentou de – 0,3 kPa no pré-operatório para 0,6 kPa durante a fase de dissecção e 0,7 kPa durante a fase anepática. No entanto, 30 minutos após a reperfusão, retornou a valores não significativamente diferente do gradiente tonométrico-arterial de PCO₂ pré-operatório. As mudanças no decorrer do tempo no pH arterial foram caracterizadas por uma diminuição para 7,29 em 2 minutos após a reperfusão – fora isso, o pH arterial não se desviou significativamente do valor pré-operatório até o primeiro dia do pós-operatório, quando o pH arterial aumentou ligeiramente para 7,43. Houve uma diminuição do pHi para 7,25 durante a fase de dissecção e 7,27 durante a fase anepática, com retorno ao nível de pHi pré-operatório em 120 minutos após a reperfusão44 Rønholm E, Runeborg J, Karlsen KL, Tomasdottir H, Aneman A, Bengtsson A. Perioperative gastric tonometric PCO2 and intramucosal pH in patients undergoing liver transplantation. Acta Anaesthesiol Scand. 1999 Aug;43(7):695-701. https://doi.org/10.1034/j.1399-6576.1999.430702.x
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Em um cenário de cirurgias abdominais eletivas e de emergências, foram calculados os valores médios de pHi no intra e no pós-operatório (pHiIO e pHiPO), PrCO2 (PrCO₂IO e PrCO₂PO), pHg (pHgIO e pHgPO) e PCO2g (PCO2gIO e PCO2gPO). O pHiIO variou entre 7,03 e 7,58, enquanto o pHiPO variou de 6,89 a 7,56. Houve uma significativa diminuição do pHi gástrico na primeira hora do intraoperatório em comparação com o pHi após a indução da anestesia. Observou-se uma correlação forte e significativa entre os valores do pHiIO e os do pHiPO, tanto em pacientes que desenvolveram complicações quanto naqueles com evolução não complicada. Os pacientes submetidos a procedimentos abdominais de emergência apresentaram valores mais baixos de pHiIO e pHiPO em comparação com o grupo eletivo. O grupo de pacientes que necessitaram de internação na UTI apresentou medidas de pHiIO e pHiPO significativamente mais baixas. Da mesma forma, PrCO₂IO e PrCO₂PO foram significativamente maiores entre os pacientes da UTI. Em geral, pHiIO e pHiPO mais baixos, bem como valores elevados de PrCO₂IO e PrCO₂PO foram correlacionados com a necessidade de ventilação mecânica pré-operatória, tempo de internação na UTI e ocorrência de complicações pós-operatórias e mortalidade. No ponto de corte de 7,32 para o pHiIO gástrico e 45 mmHg para o PrCO₂IO, ambos os parâmetros tonométricos apresentaram sensibilidade e especificidade semelhantes para predizer complicações pós-operatórias e óbito88 Theodoropoulos G, Lloyd LR, Cousins G, Pieper D. Intraoperative and early postoperative gastric intramucosal pH predicts morbidity and mortality after major abdominal surgery. Am Surg. 2001 Apr;67(4):303-8; discussion 308-309..

DISCUSSÃO

Visão geral sobre o uso da tonometria gastrointestinal no TxF

A tonometria gástrica é uma medida bastante sensível e específica da oxigenação tecidual em pacientes críticos, sendo um indicador significativo da morbimortalidade em UTI. A terapia guiada por pHi pode desempenhar a função de marcador sentinela de hipoperfusão tecidual em estados de choque, contribuindo para a melhoria dos resultados em pacientes com FMO e sepse grave11 Perilli V, Aceto P, Modesti C, Vitale F, Ciocchetti P, Sacco T, et al. Prediction of poor graft function by means of gastric tonometry in patients undergoing liver transplantation. Ann Hepatol. 2014 jan;13(1):54-9. https://doi.org/10.1016/S1665-2681(19)30904-4
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O não funcionamento primário do enxerto geralmente é determinado pelos critérios de enzimas elevadas, pouca ou nenhuma produção de bile, encefalopatia inalterada e coagulopatia. Contudo, as enzimas hepáticas demoram mais de 4 horas para diminuir após o TOF, indicando que as mensurações intraoperatórias das enzimas hepáticas não são úteis para a determinação precoce do não funcionamento primário do enxerto. A produção de bile do novo enxerto é um sinal positivo precoce, mas esse sinal pode ser enganoso se a produção de bile for inferior a 100 ml a cada 24 horas ou se a bile for aquosa, escassa ou esverdeada. É impossível determinar encefalopatia ou deterioração do estado mental na sala de cirurgia sob anestesia geral, e a correção da coagulopatia com base na normalização do tempo de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada pode confundir os parâmetros de coagulação55 Frenette L, Doblar DD, Singer D, Cox J, Ronderos J, Poplawski S, et al. Gastric intramural pH as an indicator of early allograft viability in orthotopic liver transplantation. Transplantation. 1994 aug 15;58(3):292..

Uma exceção pode ser a depuração do verde indocianina (ICG), que é um marcador rápido da função hepática – no entanto, seu valor depende não apenas da excreção do fígado, mas também da perfusão da área esplâncnica. Durante a fase anepática, o clampeamento cruzado das veias cava e porta induz diminuição reversa do fluxo sanguíneo esplâncnico e causa congestão venosa. Em pacientes submetidos ao TxH, a tonometria gástrica pode ser utilizada como indicador de hipoperfusão esplâncnica. Foi identificado que, no estágio neo-hepático, o pHi permanentemente inferior a 7,30 é um bom indicador de não função primária do enxerto22 Mándli T, Gondos T. Intramucosal pH monitoring during liver transplantation. Clin Transplant. 2003;17(4):358-62. https://doi.org/10.1034/j.1399-0012.2003.00059.x
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Manejo da tonometria gastrointestinal na predição precoce da viabilidade do enxerto hepático

Em condições de estresse, a circulação esplâncnica é a mais sensível aos vasoconstritores endógenos. As camadas mais internas do intestino podem representar a área mais sensível da circulação esplâncnica para a detecção de isquemia. Para detectar a presença de isquemia celular, deve-se medir um marcador metabólico da adequação da oxigenação celular, como a relação ADP/ATP, lactatos celulares, estado redox do citocromo ou pH tecidual. O tonomitor, que consiste em um balão de silicone livremente permeável ao CO, é inserido em um segmento do intestino suficientemente longo para que o CO no fluido se equilibre com o PCO na camada superficial da mucosa com a qual está em contato. A PCO₂ do fluido no tonomitor fornece uma medida indireta da PCO nas camadas superficiais da mucosa. A determinação do pHi pelo tonomitor depende da suposição de que a concentração de bicarbonato na mucosa é equivalente à do sangue arterial. O pHi é calculado substituindo a medida da PCO no líquido luminal e do bicarbonato no sangue arterial na equação de Henderson-Hasselbalch. Isso resulta em uma boa correlação entre o pHi obtido pelo tonomitor e o pH obtido pela sonda de pH do espaço submucoso do intestino. Um pHi normal sugere adequada oxigenação, enquanto um enxerto funcional pode ser refletido por um pHi normal ou alcalótico e um enxerto não funcionante será refletido por um pHi acidótico. Em um estudo, foi possível confirmar um enxerto funcional logo 30 minutos após a reperfusão. Somente um paciente necessitou de retransplante, sendo o único com pHi anormal no final da cirurgia55 Frenette L, Doblar DD, Singer D, Cox J, Ronderos J, Poplawski S, et al. Gastric intramural pH as an indicator of early allograft viability in orthotopic liver transplantation. Transplantation. 1994 aug 15;58(3):292..

Em um estudo, foi verificado que um grupo composto por pacientes submetidos ao TOF apresentou valores de pHi principalmente acima de 7,3, e a função do enxerto hepático estava melhorando. Todos os pacientes sobreviveram no período do pós-operatório imediato. Em outro grupo, os valores de pHi foram, em sua maioria, abaixo de 7,3 e cursaram com a deterioração da função do enxerto. No pós-operatório imediato, foram a óbito quatro pacientes, um deles no segundo dia de pós-operatório por complicação cirúrgica. No pós-operatório tardio, três pacientes faleceram por FMO. Os valores de CO mostraram diferenças significativas de forma semelhante aos valores de pHi. Os parâmetros de oxigenação mostraram pequenas diferenças apenas na fase de revascularização22 Mándli T, Gondos T. Intramucosal pH monitoring during liver transplantation. Clin Transplant. 2003;17(4):358-62. https://doi.org/10.1034/j.1399-0012.2003.00059.x
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. Os parâmetros de perfusão, no que diz respeito à circulação esplâncnica, podem comportar-se de forma completamente diferente do que mostram os parâmetros hemodinâmicos globais medidos. A partir disso, pode-se afirmar que o pHi e PrCO2 resultaram em boa separação prognóstica e poderiam fornecer informações úteis na detecção precoce da função do enxerto99 Downing A, Cottam S, Beard C, Potter D. Gastric mucosal pH predicts major morbidity following orthotopic liver transplantation. Transplant Proc. 1993 apr;25(2):1804..

A partir dos estudos, pode-se verificar que os pacientes com má função do enxerto apresentaram um ΔpraCO2 maior do que os pacientes sem má função do mesmo. Isso significa que pacientes com função deficiente do enxerto não tiveram melhora importante da PraCO2 ao final da cirurgia. A má reperfusão do enxerto, com consequente limitação do fluxo sanguíneo pelo fígado, pode ser a razão dessa deficiente melhora, na ausência de alterações macro-hemodinâmicas significativas. A relação observada entre ΔpraCO2 e o pico de ALT parece confirmar essa hipótese11 Perilli V, Aceto P, Modesti C, Vitale F, Ciocchetti P, Sacco T, et al. Prediction of poor graft function by means of gastric tonometry in patients undergoing liver transplantation. Ann Hepatol. 2014 jan;13(1):54-9. https://doi.org/10.1016/S1665-2681(19)30904-4
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A ΔpraCO2 entre a fase anepática e o final da cirurgia foi utilizada para avaliar o efeito do enxerto, uma vez que as variações da PraCO2 podem refletir melhor a perfusão esplâncnica. A diferença entre a PraCO2 no final da cirurgia (T2) e antes da reperfusão do enxerto (T1) pode refletir alterações na perfusão esplâncnica relacionadas à presença de um novo fígado. Os valores de PraCO2 no final da fase anepática, bem como no final da cirurgia, mostraram moderada hipoperfusão, mesmo que nenhum sinal de hipóxia tenha sido detectado11 Perilli V, Aceto P, Modesti C, Vitale F, Ciocchetti P, Sacco T, et al. Prediction of poor graft function by means of gastric tonometry in patients undergoing liver transplantation. Ann Hepatol. 2014 jan;13(1):54-9. https://doi.org/10.1016/S1665-2681(19)30904-4
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. Clinicamente, uma PraCO2 abaixo de 25 deve ser considerada como meta para evitar hipoperfusão e hipóxia1010 Carlesso E, Taccone P, Gattinoni L. Gastric tonometry. Minerva Anestesiol. 2006 jun;72(6):529-32..

Considera-se que uma diminuição do pH da mucosa reflete o fornecimento inadequado de oxigênio ao intestino para atender as demandas metabólicas. Consequentemente, verificou-se uma relação entre as alterações agudas na perfusão esplâncnica e no pH da mucosa. A partir das ressecções hepáticas, pode-se comprovar que a interrupção aguda do fluxo sanguíneo intestinal foi refletida de perto por uma diminuição no pHi medido tonometricamente. Em um estudo, dois dos seis pacientes nos quais o fluxo sanguíneo portal foi interrompido intencionalmente pelo clampeamento do ligamento hepatoduodenal apresentaram diminuição do pHi dentro de 30 minutos após a oclusão portal. Após a liberação da pinça portal, o pHi retornou aos valores basais no final da cirurgia. Nos pacientes sem clampeamento portal, o pHi manteve-se essencialmente inalterado33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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Com base nos resultados obtidos durante a ressecção hepática, a redução reversível do pH gástrico e sigmoide durante a fase anepática da TOF sugere o desenvolvimento de uma hipóxia intramural transitória da mucosa gastrointestinal. Além disso, o pH diminuiu, embora o fluxo sanguíneo portal tenha sido mantido pelo VVB, permitindo taxas de fluxo total de até 50% do DC. Como pH intraoperatório, as alterações foram semelhantes em ambos os locais, estômago e cólon sigmoide. A diminuição do pHi não pode ser atribuída a alterações na perfusão da mucosa gástrica induzida por manipulações cirúrgicas ou pH falsamente baixo, valores causados por refluxo de líquido duodenal alcalino. Na perfusão microvascular da mucosa durante o TxF, a redução do pH observada durante a fase anepática sugere que a preservação do fluxo sanguíneo portal por meio de VVB não alcançou distribuição adequada de fluxo sanguíneo intestinal. Em um estudo, observou-se uma diminuição do pH em 30 minutos após o início da fase anepática, sugerindo que o breve período de clampeamento portal completo, necessário para permitir a inserção da cânula VVB na veia porta, pode ser suficientemente longo para induzir comprometimento prolongado da perfusão microvascular da mucosa33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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O índice de DO2 permaneceu inalterado durante o TOF, mas o VO2 teve uma diminuição na fase anepática resultante de uma hipotermia intraoperatória e ausência de função hepática metabólica. Durante o procedimento, o SVO2 permaneceu elevado, o que é típico em pacientes cirróticos, e tendeu a aumentar ainda mais durante a fase anepática. Como consequência, o monitoramento intraoperatório contínuo da SVO2 parece ser um método inadequado para detectar hipóxia tecidual em pacientes cirróticos hidrodinâmicos. A diminuição do pH demonstra que a mucosa intestinal é um local de hipóxia tecidual. Nesse estudo, não foi encontrada correlação entre o pHi ou pHs intraoperatório, medidos após a reperfusão, e a viabilidade pós-operatória do enxerto. Contudo, vale ressaltar que é relatada na literatura a associação entre pHi intraoperatório, valores < 7,32, e disfunção do enxerto, insuficiência renal aguda, sepse e necessidade de suporte ventilatório após o TOF. Além disso, a alta concentração sistêmica de endotoxina foi um fator prognóstico para a não função primária do enxerto, complicações pulmonares pós-operatórias e mortalidade33 Welte M, Pichler B, Groh J, Anthuber M, Jauch KW, Pratschke E, et al. Perioperative mucosal pH and splanchnic endotoxin concentration in orthotopic liver transplantation. Br J Anaesth. 1996 jan;76(1):90-8. https://doi.org/10.1093/bja/76.1.90
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Os principais achados de um estudo com nove pacientes submetidos ao TxH incluíram o aumento da PCO tonométrica e do gradiente tonométrico-arterial da PCO durante as fases de dissecção e anepática. Essas mudanças foram acompanhadas por uma diminuição no pHi. Durante períodos de hipoperfusão gastrointestinal com metabolismo aeróbico, a extração de O2 aumenta, e a PCO₂ tecidual local pode aumentar como resultado da fosforilação oxidativa normal e da remoção prejudicada de CO2. Na mucosa intestinal, a PCO2 tecidual máxima que pode ser atribuída ao metabolismo aeróbico é de 16-19 kPa. A presença de maior tensão tecidual de PCO₂ indica hipoperfusão gastrointestinal com metabolismo anaeróbico e liberação de CO₂ secundária ao tamponamento com bicarbonato. Assim, o aumento da PCO₂ tonométrica encontrado no presente estudo sugere um aumento da PCO2 tecidual local secundário à redução da perfusão gastrintestinal na faixa do metabolismo aeróbio. As alterações na PCO tonométrica não são compatíveis com a redução da perfusão gastrintestinal na faixa do metabolismo anaeróbio44 Rønholm E, Runeborg J, Karlsen KL, Tomasdottir H, Aneman A, Bengtsson A. Perioperative gastric tonometric PCO2 and intramucosal pH in patients undergoing liver transplantation. Acta Anaesthesiol Scand. 1999 Aug;43(7):695-701. https://doi.org/10.1034/j.1399-6576.1999.430702.x
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. A partir desse estudo, observou-se que o gradiente tonométrico da PCO arterial é provavelmente melhor que a PCO₂ tonométrica como indicador de hipoperfusão gastrointestinal. O pequeno aumento no gradiente tonométrico arterial de PCO pode indicar redução da perfusão gastrintestinal na faixa do metabolismo aeróbio, mas não suporta a presença de hipoperfusão gastrointestinal com metabolismo anaeróbio.

Sob condições aeróbicas, a PCO venosa e o gradiente entre a PCO2 tecidual e a PCO venosa aumentam com a diminuição do fluxo. Com o início do metabolismo anaeróbico, a troca entre o tecido e o sangue venoso é reduzida, e a PCO no tecido aumentará consideravelmente, enquanto a PCO₂ no sangue venoso aumentará em menor grau. Portanto, durante o TxF, a diminuição do fluxo sanguíneo gastrointestinal deve ser acompanhada por um aumento da PCO2 na veia porta99 Downing A, Cottam S, Beard C, Potter D. Gastric mucosal pH predicts major morbidity following orthotopic liver transplantation. Transplant Proc. 1993 apr;25(2):1804.. Contudo, em um estudo, a PCO₂ da veia porta não foi elevada nem houve qualquer diferença significativa entre a PCO₂ da veia porta, PCO arterial ou PCO tonométrica. A PCO2 normal da veia porta sugere que a hipoperfusão gastrointestinal não está presente durante o procedimento do TOF44 Rønholm E, Runeborg J, Karlsen KL, Tomasdottir H, Aneman A, Bengtsson A. Perioperative gastric tonometric PCO2 and intramucosal pH in patients undergoing liver transplantation. Acta Anaesthesiol Scand. 1999 Aug;43(7):695-701. https://doi.org/10.1034/j.1399-6576.1999.430702.x
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Um estado de hipovolemia relativa perioperatória, em associação com os efeitos vasodilatadores da anestesia geral, pode levar à hipoperfusão da mucosa intestinal, identificada por uma queda do pHi. Em um estudo, a predição precisa de complicações pós-operatórias, principalmente sepse e FMO, bem como a mortalidade por pHi anormalmente baixo, esteve intimamente associada à necessidade e à duração da ventilação mecânica pós-operatória, além da permanência prolongada na UTI e da hospitalização geral88 Theodoropoulos G, Lloyd LR, Cousins G, Pieper D. Intraoperative and early postoperative gastric intramucosal pH predicts morbidity and mortality after major abdominal surgery. Am Surg. 2001 Apr;67(4):303-8; discussion 308-309..

Críticas à utilização da tonometria gastrointestinal para o monitoramento da perfusão esplâncnica

O uso do pHi para monitoramento da perfusão gastrointestinal tem sido criticado devido a diversas falhas na técnica tonométrica utilizada para determinar o pHi. A princípio, a concentração de bicarbonato arterial não é equivalente à concentração de bicarbonato intracelular e intersticial. Durante a hipoperfusão grave o suficiente para induzir o metabolismo anaeróbico, o bicarbonato no tecido é utilizado para tamponar os íons de hidrogênio, resultando em uma concentração de bicarbonato no tecido inferior à concentração de bicarbonato arterial4. Isso, por sua vez, subestima a magnitude da acidose intramucosa.

Outra questão é que as alterações no bicarbonato arterial, como em casos de acidose metabólica não relacionada à hipoperfusão gastrointestinal, afetariam o cálculo do pHi. Durante o TxF, o acúmulo de lactato associado à acidose metabólica sistêmica e a diminuição da concentração arterial de bicarbonato resultam em pHi baixo, o que não implica necessariamente em hipoperfusão gastrointestinal. Da mesma forma, um pHi normal após a administração intravenosa de bicarbonato não necessariamente indica uma perfusão gastrointestinal normal, uma vez que essa administração aumentará a concentração de bicarbonato arterial, podendo corrigir o pHi calculado, apesar da presença de hipoperfusão gastrointestinal9. Assim, o pHi reflete a situação do tecido local em relação aos distúrbios ácido-base sistêmicos, mas o cálculo do pHi não pode ser considerado para monitorar corretamente a perfusão gastrointestinal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tonometria gastrointestinal pode ser útil para monitorar a circulação esplâncnica e a função do enxerto hepático durante o TOF. Tanto as medições do pHi no período perioperatório quanto aquelas feitas de 10 a 30 minutos após a reperfusão do fígado podem contribuir para o diagnóstico e o destino terapêutico do paciente, uma vez que o fígado representa o principal alvo da privação de oxigênio da circulação esplâncnica, e as mudanças no pHi predizem a viabilidade futura desse órgão.

O poder preditivo da tonometria também foi importante entre as fases anepática e o término da cirurgia, com elevada sensibilidade. Além disso, a ocorrência de uma oxigenação mucosa deficiente, mesmo com a manutenção do fluxo portal, sugere a necessidade de investigar outros mecanismos relacionados à perfusão durante o TOF. Por fim, as medidas da PCO tonométrica e o gradiente tonométrico-arterial da PCO₂ indicam que o TxF está associado à perfusão gastrointestinal na faixa aeróbica do metabolismo, mas não na anaeróbica.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editora de seção: Ilka de Fátima Santana F Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2023
  • Aceito
    16 Jan 2024
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