Impacto da Pandemia da SARS-CoV-2 nas Doações de Tecidos Oculares para Transplantes em Hospital Universitário

RESUMO

Objetivos:

Analisar o impacto da pandemia da síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 (SARS-CoV-2) nas doações de tecidos oculares quanto às perdas de oportunidade de potenciais doadores devido à suspensão das captações e às mudanças nos critérios de elegibilidade, nas taxas de elegibilidade hospitalar de doadores e causas de não doação.

Métodos:

Foram analisados dados de pacientes falecidos em parada cardiorrespiratória (PCR) em um hospital universitário brasileiro em 2020. Compararam-se o número de doações efetivadas, o número de óbitos potencialmente elegíveis para doação e as causas de não doação nos três períodos de 2020: período 1, pré-pandemia (1 de janeiro a 18 de março de 2020), período 2, com suspensão de doações em PCR (19 de março a 19 de setembro de 2020), e período 3, de captações com triagem epidemiológica para SARS-CoV-2 e redução da faixa etária de doadores até 65 anos (20 de setembro a 31 de dezembro de 2020).

Resultados:

Houve 710 óbitos por morte circulatória em 2020. A taxa de elegibilidade hospitalar foi de 5,7% em 140 óbitos no período 1, 11,9% de 395 pacientes durante a suspensão da captação no período 2 e 3,4% de 175 pacientes durante as restrições da faixa etária e triagem para doença do coronavírus 2019 (COVID-19) (p = 0,004). Os 47 pacientes falecidos no período 2 representaram perda de oportunidade de doação devido à suspensão das captações e 13 (7,6%) dos 175 pacientes no período 3 não foram elegíveis devido à redução da faixa etária. Dentre os elegíveis sem contraindicação clínica, 81% dos 75 pacientes tiveram limitação na oferta de doação devido às restrições da pandemia. Apenas um paciente foi considerado inelegível para doação devido à triagem clínico-epidemiológica para SARS-CoV-2. As infecções graves foram a principal causa de não doação em 50,7, 48,1 e 47,4% dos óbitos nos três períodos (p = 0,615).

Conclusão:

A pandemia de SARS-CoV-2 afetou significativamente a captação de tecidos oculares para transplantes devido às medidas restritivas implementadas por motivos de segurança, resultando na perda de oportunidade de doação para 81% das famílias. As taxas de elegibilidade de potenciais doadores foram reduzidas significativamente pela restrição de faixa etária. As infecções graves foram a principal causa de não doação de tecidos oculares, porém, neste estudo, não houve aumento significativo durante o período pandêmico estudado.

Descritores
Transplante de Tecidos; Doadores de Tecidos; SARS-CoV-2; COVID-19; Obtenção de Tecidos e Órgãos

ABSTRACT

Objectives:

To analyze the impact of the severe acute respiratory syndrome coronavirus (SARS-CoV-2) pandemic on ocular tissue donations, assessing lost opportunities for potential donors due to the suspension of collections and changes in eligibility criteria, as well as hospital eligibility rates of donors and causes of non-donation.

Methods:

Data from patients who died in cardiopulmonary arrest in a Brazilian university hospital in 2020 were analyzed. The number of donations made, the number of deaths potentially eligible for donation, and the causes of non-donation were compared during the three periods of 2020: period 1, pre-pandemic (January 1 to March 18, 2020), period 2, with suspension of donations in cardiorespiratory arrest (March 19 to September 19, 2020), and period 3, of collections with epidemiological screening for SARS-CoV-2 and reduction of the age range of donors less than 65 years old (September 20 to December 31 2020).

Results:

There were 710 circulatory deaths in 2020. The hospital eligibility rate was 5.7% among 140 deaths in the pre-pandemic period 1, 11.9% among 395 patients during the suspension of uptake in pandemic period 2, and 3.4% among 175 patients during age group restrictions and coronavirus disease 2019 (COVID-19) screening (p:0.004). Forty-seven patients who died in period 2 represented a loss of donation opportunities due to the suspension of collections, and 13 (7.6%) of the 175 patients in period 3 were ineligible due to the reduction in age group. Due to pandemic restrictions, eighty-one percent of the 75 eligible patients without clinical contraindications had limited tissue donation offers. Only one patient was considered ineligible for donation due to clinical-epidemiological screening for SARS-CoV-2. Serious infections were the leading cause of non-donation in 50.7, 48.1, and 47.4% of deaths in the three periods (p:0.615).

Conclusion:

The SARS-CoV-2 pandemic significantly affected the procurement of ocular tissues for transplants due to the restrictive measures implemented for safety reasons, leading to the loss of donation opportunities for 81% of families. Age restrictions significantly reduced potential donor eligibility rates. Serious infections were the leading cause of non-donation of ocular tissue, but it did not increase significantly in this study during the pandemic, in the period studied.

Descriptors
Tissue Transplantation; Tissue Donors; SARS-CoV-2; COVID-19; Tissue and Organ Procurement

INTRODUÇÃO

As doenças que acometem a córnea respondem por cerca de 4 a 5% dos casos de cegueira reversível em todo o mundo. Afecções como ceratopatia bolhosa, ceratocone, tracoma, distrofia de Fuchs e ceratites infecciosas, quando não tratadas adequadamente, além da própria história natural da doença, podem causar danos biopsicossociais significativos aos indivíduos¹.

O transplante de córnea apresenta-se como terapêutica eficaz para o tratamento dessas condições e, em alguns, casos como o único tratamento amplamente aceito, capaz de promover a transparência da córnea e a restauração da visão.

Embora a córnea seja o tecido mais transplantado em todo o mundo, apresentando os melhores resultados, a escassez de doadores é também uma realidade mundial^1-3.

A escassez de órgãos e tecidos para fins de transplante foi fortemente agravada pela pandemia causada pelo coronavírus, inicialmente caracterizada pelo surto de casos de pneumonia atípica em Wuhan, China, em dezembro de 2019, posteriormente denominada síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 (SARS-CoV-2), marcando o ano de 2020 no Brasil e no mundo⁴.

O crescente número de casos afetando 114 países em todos os continentes levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a decretar estado de pandemia em 11 de março de 2020^2,4,5. A doença, inicialmente caracterizada por sinais e sintomas como febre, tosse, mialgia e fadiga, pode cursar com resposta inflamatória sistêmica e falência múltipla de órgãos; causada pelo novo coronavírus, foi denominada COVID-19, do inglês coronavirus disease 2019^2,5.

Os programas de transplante de órgãos e tecidos foram diretamente afetados no Brasil e no mundo com a redução da taxa de doadores efetivos por milhão de população (PMP) e a suspensão da captação de tecidos oculares em pacientes falecidos na modalidade coração parado, resultando no aumento do número de pacientes nas listas de espera^6-8.

O estado de Minas Gerais (MG), com 21.412 habitantes, é o segundo estado mais populoso do Brasil, representando aproximadamente 9,9% da população do país, e o quarto estado em número absoluto de transplantes de tecidos oculares. No entanto, quando avaliado o número de transplantes PMP, MG cai para a 17ª posição^7-9.

Conforme determinações do Ministério da Saúde (MS), a Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) publicou, em março de 2020, as recomendações para conter a transmissão do coronavírus (SARS-CoV-2) para os profissionais de saúde, pacientes em lista de espera e transplantados. Essas recomendações visavam a implementação em caráter de urgência – Nota Técnica Nº 25/2020 determinando os “Critérios técnicos para triagem clínica do coronavírus (SARS, MERS, SARS-CoV-2)”¹⁰.

Em decorrência dessas medidas, houve redução na captação de tecidos oculares para transplantes, tornando-se restrita aos doadores de múltiplos órgãos, e suspensão dos transplantes de córneas em caráter eletivo¹⁰.

Mediante a heterogeneidade da situação epidemiológica entre os estados brasileiros, o MS recomendou que a retomada dos processos de doação e transplantes eletivos deveria considerar a situação epidemiológica de transmissão do SARS-CoV-2 em nível local e regional¹⁰.

Em MG, o período de 19 de março a 19 de setembro de 2020 foi marcado pela suspensão da captação de tecidos oculares em pacientes falecidos na modalidade coração parado, considerada a fase de risco aumentada para a transmissão do SARS-CoV-2 em receptores e profissionais de saúde envolvidos no processo de captação e transplante^9-12.

A retomada das captações no estado ocorreu a partir de 20 de setembro de 2020, condicionada aos novos critérios para validação do doador falecido de tecidos oculares definidos pelo MS e recomendações para triagem clínica com foco na história epidemiológica para SARS-CoV-2 orientada pelo Banco de Tecidos Oculares de referência¹².

Nesse contexto, o Banco de Tecidos Oculares de referência para essa instituição aderiu às recomendações contidas no Plano de Contingência do Estado de Minas Gerais, Minas Consciente, e orientou que as captações fossem suspensas nas regiões classificadas pelo plano como “onda vermelha”^9,12.

Vários estudos foram realizados analisando o impacto da pandemia SARS-CoV-2 nos transplantes de órgãos e tecidos, mas poucos relatos foram publicados avaliando os impactos nos processos de captação e doação de tecidos oculares em pacientes falecidos em parada cardiorrespiratória (PCR) e nas taxas de elegibilidade de potenciais doadores de tecidos^13-16.

Este estudo analisou o impacto da pandemia no processo de captação de tecidos oculares em doadores falecidos em PCR, considerando as perdas de oportunidade de doações potenciais durante o período de suspensão da captação de tecidos oculares, bem como o impacto dos novos critérios de elegibilidade dos doadores, com a exclusão a partir da triagem epidemiológica e redução da faixa etária estabelecidas pelo Banco de Olhos de referência para esse hospital em MG.

MÉTODOS

Trata-se de estudo de abordagem quantitativa de natureza descritiva que utilizou como base o banco de dados construído pela Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) de um hospital universitário localizado na cidade de Belo Horizonte, MG. O período estabelecido para a análise dos dados compreende os meses de janeiro a dezembro de 2020.

Como instrumentos de análise, utilizaram-se os Formulários I e III, que correspondem ao Anexo 19 do Anexo I da Portaria de Consolidação Nº 04 de 28 de setembro de 2017¹⁷.

O Formulário I, denominado “Relatório de Atividades Diária da Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante – CIHDOTT – possibilidade de doação de tecidos, após ocorrência de óbito (pós-PCR)”, é um instrumento de registro hospitalar que contém todos os óbitos hospitalares por PCR, incluindo dados dos pacientes falecidos na instituição, como nome, idade, causa da morte, setor, se houve ou não doação de tecidos e causa da não doação classificada conforme definida no Anexo 19 do Anexo I da Portaria de Consolidação Nº 04 de 28 de setembro de 2017.

Para este estudo, foram classificados como causa de não doação, recebendo o código 023, todos os casos sem contraindicação clínica para doação de tecidos oculares nos quais não foi oferecida a oportunidade de doação aos familiares do paciente falecido, por motivo de suspensão das captações, como medida de contenção sanitária durante a pandemia de SARS-CoV-2. Esses casos foram considerados perda de oportunidade de potencial doação devido à pandemia.

O Formulário III, denominado “Relatório Mensal das Atividades da Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes – CIHDOTT”, consiste em um instrumento de síntese da estatística mensal de óbitos hospitalares e informações relativas aos processos de captação enviado à Central Estadual de Transplantes – MG Transplantes.

O banco de dados analisado compreende o consolidado dos Formulário I e III referente ao período de janeiro a dezembro de 2020. O período de 19 de março a 19 de setembro de 2020 foi marcado pela suspensão da captação de tecidos oculares em pacientes falecidos em PCR e considerado fase de risco aumentado para a transmissão do SARS-CoV-2 em receptores e profissionais de saúde envolvidos no processo de captação e implante^10,12.

Os novos critérios definidos para a elegibilidade de potenciais doadores por esse serviço de referência durante a retomada das captações de tecidos oculares em doadores falecidos por PCR, de 20 de setembro a dezembro de 2020, caracterizam-se por “Paciente sem contraindicações clínicas, físicas e sociais (conforme RDC 55 e triagem para COVID-19), com idade até 65 anos e após autorização da família”^17,18.

O período de 1 de janeiro a 18 de março de 2020 foi denominado período 1 pré-pandêmico, o período de 19 de março a 19 de setembro de 2020 foi denominado período 2, de suspensão das captações de tecidos oculares em pacientes falecidos em PCR, e o período 3 considerado de captação com restrições de triagem epidemiológica para SARS-CoV-2 e redução da faixa etária de doadores.

A taxa de elegibilidade de potenciais doadores corresponde ao percentual de pacientes que não apresentam os critérios de exclusão definidos em relação ao total de óbitos por PCR no período^17,18.

Os dados contidos nos Formulários I e III, no período de janeiro a dezembro de 2020, foram consolidados em uma planilha do programa Microsoft Excel^® do Microsoft Office Plus Professional 2016 e analisados com as ferramentas de análise estatística do Microsoft Excel^® e do programa Epi Info^TM 7 do Centers for Disease Control and Prevention (CDC).

Foram realizadas análises de estatística descritiva e análise comparativa de proporções para as taxas de elegibilidade entre os períodos, aplicando-se teste qui-quadrado ou teste exato de Fisher bicaudal para valores de eventos ≤ 5, definindo-se valor de p ≤ 0,05 para interpretação de significância estatística.

O estudo seguiu as normas preconizadas na Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que se refere à pesquisa envolvendo seres humanos, sendo o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com CAAE nº: 56517521.5.0000.5149.

RESULTADOS

Durante o período estudado, ocorreram 710 óbitos em morte circulatória, sendo 140 no período 1 pré-pandêmico, 395 no período 2, durante a suspensão das captações, e 175 no período 3, de retorno das captações com restrições de faixa etária e triagem epidemiológica para exclusão do risco de transmissão de SARS-CoV-2.

Observou-se maior frequência de óbitos no sexo masculino e na faixa etária de 60 a 79 anos nos três períodos, sem diferenças estatísticas (p > 0,05) na distribuição entre a fase pré-pandêmica e o período pandêmico (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição por sexo e faixa etária dos óbitos, 2020.

		Pré-pandemia			Suspensão de captaçõesem PCR				Triagem para COVID-19 e redução da faixa etária < 65 anos
		n	%		n	%	Valor de p		n	%	Valor de p
Sexo
	Feminino	66	47		193	49	0,726		85	47	0,887
	Masculino	74	53		202	51			89	51
	Não informado	0			0				1
Faixa etária (anos)
	≤ 2	20	14		42	11	0,245		27	16	0,836
	>2 ≤ 18	3	2		14	4	0,26		5	3	0,465
	>18 ≤ 40	6	4		28	7	0,242		4	2	0,352
	> 40 ≤ 60	37	26		105	27	0,971		51	30	0,604
	> 60 ≤ 79	64	46		165	42	0,417		73	42	0,494
	> 79	10	7		41	10	0,262		15	9	0,742
Total		140			395				175

• Fonte: Elaborada pelos autores. Valor de p calculado em comparação com fase pré-pandemia.

Setenta e dois pacientes tiveram óbito relacionado à COVID-19, e as infecções graves foram a principal causa de exclusão de doadores nos três períodos comparados (Tabela 2). Não se observou diferença significativa na proporção de infecções graves como contraindicação para doação do período pré-pandêmico para a fase da pandemia estudada (p = 0,615).

Tabela 2
Desfecho de avaliação e doação de tecidos oculares, 2020.

	Pré-pandemia			Suspensão de captações em PCR			Triagem para COVID-19 e redução da faixa etária < 65 anos
Causas da não doação	n	%		n	%		n	%
Doador contrário em vida	1	0,7		0	0,0		0	0,0
Familiares indecisos	1	0,7		0	0,0		0	0,0
Desejam corpo íntegro	0	0,0		0	0,0		1	0,6
HIV	3	2,1		4	1,0		1	0,6
Hepatite B	0	0,0		2	0,5		3	1,8
Hepatite C	1	0,7		4	1,0		1	0,6
Infecção grave	69	49,3		190	48,1		81	47,4
Neoplasia	6	4,3		23	5,8		15	8,8
Sem diagnóstico	1	0,7		3	0,8		0	0,0
Fora da faixa etária	32	22,9		83	21,0		56*	32,0
Outros motivos clínicos	20	14,3		39	9,9		10	5,8
Grau de parentesco não permite doação	0	0,0		0	0,0		1	0,6
Deficiência estrutural	2	1,4		0	0,0		1	0,6
Suspensão da captação ou triagem COVID-19**	NSA	0,0		47	11,9		1**	8,2
Subtotal	136	97,1		395	100,0		171	97,7
Pacientes elegíveis	8	5,7		47	11,9		6	3,4
Doação efetivada	4	66,7		NSA	NSA		4	80,0
Recusa familiar	2	33,0		NSA	NSA		1	20,0
Total	140	19,7		395	55,6		175	24,6

• Fonte: Elaborada pelos autores. NSA = não se aplica.
• ^*
  13 pacientes elegíveis foram excluídos para doação devido à redução da faixa etária para doação de 80 para 65 anos.
• ^**
  1 paciente foi excluído pela triagem epidemiológica para SARS-CoV-2 no período 3.

A segunda causa mais frequente de exclusão de possíveis doadores foi o critério de faixa etária, correspondendo a 22,9, 21 e 32% nos períodos respectivos de pré-pandemia, suspensão de captações e captação com restrição de critérios. A redução da faixa etária de doação até 65 anos, no período 3, causou o aumento significativo na proporção de pacientes excluídos para doação, devido à nova faixa de exclusão (p = 0,004).

Durante todo o ano, ocorreram oito doações de tecidos oculares e três recusas familiares. Dentre as duas recusas no período pré-pandemia, uma se justificou pelo doador ser contrário à doação em vida e outra pela indecisão dos familiares. A recusa no período pandêmico relacionou-se ao desejo de integridade do corpo do paciente pelos familiares.

Quanto à elegibilidade, foram identificados oito (5,7%) pacientes na fase pré-pandemia, 47 (11,9%) pacientes durante a suspensão e 6 (3,4%) pacientes no período de captação com restrições, elegíveis para doação. Verificou-se redução significativa da taxa de elegibilidade a partir dos critérios de exclusão do período 3 (p = 0,004).

Dentre os 14 pacientes excluídos como possíveis doadores pelos critérios adicionais de exclusão do período 3, 13 (92,8%) estavam na faixa etária de 65 a 80 anos e um (7,2%) foi excluído por insuficiência respiratória associada à massa tumoral mediastinal e pulmonar ao se aplicarem os critérios de triagem epidemiológica para risco de transmissão de SARS-CoV-2 da Nota Técnica nº 80/2020¹⁰.

DISCUSSÃO

Este estudo demonstrou que a suspensão das captações de tecidos oculares em pacientes falecidos em morte circulatória durante o período de suspensão das ceratoplastias eletivas excluiu 77% do total de 61 pacientes potenciais doadores de tecidos oculares, no hospital estudado.

Adicionalmente, a restrição da captação por faixa etária de doação a partir de 65 anos no reinício das captações, que ocorreu a partir de setembro de 2020 juntamente com a triagem epidemiológica, excluiu outros 14 pacientes que seriam elegíveis fora do cenário pandêmico, totalizando a exclusão de 81% dos pacientes elegíveis para doação devido às restrições impostas nesse primeiro ano de pandemia.

Considerando a taxa de doação observada de 72% nos períodos de captação e excluindo-se 21% de escapes por deficiência estrutural, pelo menos 27 doadores deixaram de ser captados durante o período de suspensão. Os escapes de captação, identificados como pacientes elegíveis como doadores de tecidos oculares cujas famílias não foram consultadas quanto à doação, constituem um problema estrutural que ainda afeta as doações de tecidos oculares em todo país, como pode ser estimado a partir do número de óbitos em morte circulatória e o número de doações de tecidos oculares¹¹.

A escassez de literatura relativa ao déficit de captação de tecidos oculares na morte por coração parado nas instituições hospitalares, nos períodos estabelecidos neste estudo, impossibilita a discussão dos dados encontrados. No entanto, o impacto gerado pela suspensão seguido das restrições para o retorno das captações é percebido pelo crescente número de pacientes em lista, assim como o aumento do tempo de espera para realização do transplante¹⁹.

A redução da faixa etária para captação de tecidos oculares está contemplada nas atribuições estabelecidas no regulamento técnico do SNT às centrais estaduais, considerando análises de custo-efetividade, lista de espera, qualidade dos transplantes e possibilidade de alocação dos enxertos para outros estados¹⁷.

No contexto da pandemia, essa restrição teve o grave efeito de reduzir, de forma significativa, a taxa de elegibilidade de doadores, em um período crítico, o que provavelmente contribuiu para o aumento da lista de espera para transplante de córnea no estado, que atingiu 39,6% devido à menor disponibilidade de córneas para transplantes⁹.

Moriyama et al.⁶ relataram o impacto da COVID-19 nesse mesmo período, aumentando a lista de espera em 27,6% no estado de São Paulo e de 43,7% no Brasil.

Os critérios de triagem epidemiológica para COVID-19 adotados, bastante sensíveis e com baixa especificidade, não tiveram impacto significativo na exclusão de potenciais doadores^10,12.

A suspensão da captação de tecidos oculares em morte circulatória levou ao esgotamento do estoque de córneas até mesmo para transplantes de urgência em alguns bancos de olhos, e questionou-se a medida restritiva relacionada ao mecanismo de morte, não adotada em outros países para o controle da COVID-19¹³.

Outro aspecto bastante debatido foi a grande latência no tempo para atualização de normas sanitárias brasileiras para acompanhar os conhecimentos científicos sobre a transmissão de SARS-CoV-2 em transplantes oculares¹³. As normas sanitárias brasileiras continuaram mais restritivas do que nos Estados Unidos e alguns países europeus, até a atualização em dezembro de 2023, quando não houve mais referência à obrigatoriedade de teste de reverse transcription-polymerase chain reaction (RT-PCR) SARS-CoV-2 em paciente falecido em PCR, e o critério de exclusão absoluta de um doador passou a ser a infecção confirmada há menos de 10 dias e não 28 dias, como anteriormente. O impacto no risco-benefício desse tempo para atualização das normas, para os milhares de pacientes em lista, ainda não foi avaliado^19-22.

Em 2023, decretado o fim do alerta pandêmico pela OMS, continuamos com uma lista de espera no país duas vezes maior do que em 2019, e com ingresso de pacientes maior que o número de transplantes realizados, aumentando a desproporção entre oferta e demanda de tecidos oculares^19,23.

A redução desse problema é um desafio para organização do nosso sistema de doação e transplantes que se inicia com a capacidade de notificar e avaliar possíveis doadores falecidos pelas CIHDOTTs¹⁷.

Este estudo tem como principal limitação a avaliação de dados de apenas um hospital. Apresenta a limitação adicional de a instituição ser referência de atendimento em onco-hematologia e, por isso, apresentar taxas de elegibilidade menores do que as esperadas em hospitais gerais²⁴.

CONCLUSÃO

A pandemia da SARS-CoV-2 teve impacto significativo na captação de tecidos oculares para transplantes tanto no hospital quanto em MG, principalmente devido à restrição, no Brasil, da captação relacionada ao mecanismo de morte circulatória e à redução da faixa etária para captação, o que resultou na perda de oportunidade de doação para 81% das famílias atendidas.

As taxas de elegibilidade de potenciais doadores, que já são historicamente menores do que em outros hospitais gerais devido ao perfil de pacientes atendidos, sofreram uma redução adicional devido à restrição da faixa etária, contribuindo para um pool de doadores ainda menor.

As infecções graves foram a principal causa de não doação de tecidos oculares, porém, neste estudo, apesar da alta mortalidade por COVID-19 nesse período, não houve aumento significativo na proporção de infecções graves como causa de exclusão de possíveis doadores.

AGRADECIMENTOS

À Alexandre Rodrigues Ferreira, Patrícia Pereira de Azevedo Magalhães, Marcela Pinto Freitas e Paulo Lener Peixoto de Araújo Filho.

• FINANCIAMENTO

  Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os dados foram gerados ou analisados no presente artigo.

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Editado por

Editora de Seção: Ilka de Fátima Santana F. Boin https://orcid.org/0000-0002-1165-2149

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Jul 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  28 Dez 2023
• Aceito
  16 Abr 2024